Nascida em 1944

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Nascida em 1944

©EDIÇÃO: By the Book, Edições Especiais

TÍTULO: Nascida em 1944

©TEXTO: Maria Luísa Bastos Bouza Serrano

REVISÃO: Isabel Costa

IMPRESSÃO: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos

ISBN: 978-989-53737-3-4

DEPÓSITO LEGAL: 507782/22

NOTA DO EDITOR: Faz parte integrante desta obra o facsimilado do título Com Raízes em Torres Vedras, da autoria de José Alberto Santos da Costa Bastos, cuja a 1 .ª edição data de 2016

BOOK BY THE

Edições Especiais, lda Rua das Pedreiras, 16-4º 1400-271 Lisboa T. + F. (+351) 213 610 997 www.bythebook.pt

Prefácio JOANA LEITÃO DE BARROS 5 Assentando ideias 9 Começando pelo princípio 13 O início da escolarização 49 O tempo de internato 102 A passagem pela Faculdade 170 A viagem a Marrocos 196 Adulta 100% 205 A Viagem de finalistas 221 Casamento à vista 239 Concluindo 263

Prefácio

UM

TESTEMUNHO SINGULAR E SIGNIFICATIVO PODE

chegar-nos assim, suavemente e em bicos de pés, impondo-se sem querer in quietar, esboçando controvérsias sem correr para o ajuste de contas, cami nhando com firmeza sobre o que é ou foi, contando factualmente e como que reportando. Por vezes deixando-nos antever, transportando tudo em si mas seleccionando e revisitando apenas o que quis. E igualmente omitindo, pro positadamente. Neste caso, privilegiando a esfera familiar e permitindo que lá encontremos a dimensão social, política e colectiva – e neste ponto estamos já a ouvir os académicos dizer que esses são traços dominantes na escrita feminina do século XX .

Esta narrativa autobiográfica despretensiosa, num país de tão escassa tra dição memorialista no feminino, entra tranquilamente na História silenciada das mulheres. Teremos de ver nela a raridade de uma mulher portuguesa que constrói a sua própria história e, consequentemente, a história de tantas outras mulheres, cujo lugar e expressão tanto se foi transformando, filhas e mulhe res de oficiais, professoras que marcaram gerações sucessivas. Como distingue Mariza Bahia trata-se da presença da mulher onde ela sempre foi ausente: o de narradora de sua própria história (BAHIA , 2000, p. 21).

Haverá quem possa ler este livro tão somente como a colorida e saborosa evocação da experiência de uma mulher da média/alta burguesia, nascida de pois da Segunda Guerra, com raízes nortenhas que se vão concentrar em Torres Vedras, que começa o seu internato no Instituto de Odivelas em 1954, e veio a ser durante 40 anos docente do Colégio Sagrado Coração de Maria, em Lisboa, integrando a equipa directiva durante oito anos. Segura de si e apreciando a vida, casada com um homem inteligente e “dialogante” que a ama e que res peita a sua Liberdade. Numa segunda leitura, que exigirá sensibilidade e, con venhamos, investigação paralela, lá procuraremos a mulher de Manuel Bouza Serrano, Engenheiro Maquinista Naval e Comandante de uma Companhia de Fuzileiros na Guiné entre 1972 e 1974, cujo envolvimento com a Revolução

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de 1974 o leva a integrar a 5.ª Divisão do Estado-Maior-General das Forças Armadas, onde foi responsável pelo Boletim do Movimento das Forças Armadas e nomeado Presidente para a Emissora Nacional, função que por motivos de saúde exerce durante pouco tempo. Maria Luísa Santos da Costa Bastos Bouza Serrano está a seu lado, partilha os ideais do marido, abandonando então o ca minho que sabia traçado: Não defendi como de mim se esperava a manutenção do regime em que fui criada , escreve.

Como vimos, nesse período da pós-revolução foi Professora de Histó ria nesse colégio católico – onde anos mais tarde seria sua aluna – ensinando uma disciplina estruturante e essencial na forma de compreender o mundo e a sociedade.

Bem-disposta e cordial, as suas aulas “cinemascópicas”, como antecipa ra Jorge Borges de Macedo na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, eram um momento alto no quotidiano das estudantes de Letras, de 16 e 17 anos, muitas de nós vindas de famílias comprometidas com o regime, a quem explicava, seguindo o programa e esforçando-se por redobrar a objec tividade e facultar integralmente os textos de apoio, o papel da luta de classes desde épocas remotas. De tal maneira que ainda recordo as suas aulas brilhan tes sobre a Crise Dinástica de 1383/1385, que ganhavam contornos realmente cinematográficos.

A direcção da altura do Colégio, a quem não agradeceremos vezes sufi cientes o espírito progressista e aberto que nos marcaria, valorizava essa ca pacidade de chegar às alunas. Gosto de pensar que ao Colégio, àquele colégio, fazia falta uma mulher de tal maneira desassombrada, a quem se estranhava a maneira directa de colocar as questões. E que a D.ª Luísa, essa terrível forma a que éramos chamadas a tratar as mestras licenciadas, estaria ali melhor do que em qualquer outro lugar do mundo, junto das meninas burguesas que desper tavam. E é por essa ordem de ideias que, enquanto aluna, defendo que ao seu CV activista sejam acrescentados muitos pontos, ganhos nessa influência junto de tantos alunos, que os tornou mais interessados em procurar diferentes pon tos de vista, no Passado e no tempo presente.

A honestidade das memórias que agora publica tornam-nas particular mente sedutoras e perdoam-lhe as omissões em matérias de que tanto a gosta ríamos de ler, como o seu envolvimento e conhecimento de Abril, ou a forma como o Colégio encarou e lidou com vários desafios e temas fracturantes, ao longo das décadas.

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Muito curiosamente, Luísa Serrano inicia a narrativa ainda nos anos 40 do século XX , evocando um momento primeiro de dúvida quanto à existência da alma, quando se prepara para a Primeira Comunhão. A questão religiosa desafia-a pela vida fora, como estas memórias permitem compreender, o que terá sucedido a um enorme grupo de mulheres da sua geração, que se desco brem laicas e agnósticas sem contudo rejeitarem os valores católicos, serão as primeiras a abandonar a prática religiosa em nome da coerência. Um tema que terá sido sensível para quem acompanhou quotidianamente a Fé das Religiosas do Colégio Sagrado Coração de Maria.

O privilégio de pertencer a uma família alargada cúmplice e funcional, que foi capaz de constituir uma rede de inter-ajuda constante e estável, está por demais enfatizada na autobiografia. Aos 78 anos o eco dos quatro avós e dos tios, são matéria viva e fecunda, identitária e afectiva. Confessada pela autora a génese do livro, associada a um pedido da sua filha Marta, que se interessou por conhecer a proveniência de mobiliário da casa materna, não consigo deixar de sentir que as suas linhas em muito lhes prestam homenagem. Os familiares irão encontrar aqui uma passagem de testemunho, feita por quem terá perce bido que em si estava a possibilidade de salvar do esquecimento o que não era dispensável.

Uma outra camada de leitura será a que permite enriquecer uma História em escala micro, a da vida rural de Torres Vedras, a dos animados e elitistas Verões na Praia de Santa Cruz, o quotidiano do bairro de Alvalade, em que não poucas vezes perpassa uma ironia fina e algum sarcasmo, a par de um grande sentido de pertença.

A Memória é porto seguro de nossa identidade, junta o que fomos e o que somos. Nas Confissões de Santo Agostinho já esse poder se anunciava: Chego aos campos e vastos palácios da memória, onde estão tesouros de inumeráveis ima gens trazidas por percepções de toda espécie… Ali repousa tudo o que a ela foi en tregue, que o esquecimento ainda não absorveu nem sepultou… Aí estão presentes o céu, a terra e o mar, com todos os pormenores que neles pude perceber pelos sentidos, exceto os que esqueci. É lá que me encontro a mim mesmo (…).

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Novembro de 2022

Faço como Rómulo de Carvalho, que escreveu, sobre a sua vida e o seu tempo, para os netos dos seus netos lerem.

Assentando ideias

IPARA MIM, A ALMA SEMPRE TEVE A FORMA DE UM FEIJÃO. Seria assim uma coisa branca, macia, que se alojaria no tronco, algures perto do coração. A forma que sempre lhe atribui parecia-me adequada para o espaço referido, sem vértices nem arestas que pudessem rasgar ou ofender alguma ar téria ou algum órgão. E assim vivi sempre descansada, segura de que a minha alma estava fisicamente protegida.

Mas convenhamos que me intrigava tal existência, para que serviria real mente? E até me preocupava muito ter de garantir a sua salvação, viver de forma a que, quando morresse, ela, a alma, subisse direitinha para o céu. Afinal eu não tinha, desde que me lembro de ser gente, nenhuma curiosidade em saber o que me esperava no futuro, o presente era suficientemente bom para nem sequer pensasse em mudar. Quando se tem cinco, seis anos (quando comecei a ter ins trução religiosa), e se é feliz, cabe aos adultos darem o mote para começarmos a preocuparmo-nos com qualquer coisa mais importante do que com os brin quedos e com os carinhos da família.

E assim, nessa idade comecei a preparar-me para a primeira comunhão, e a tentar reconhecer os pecados na minha vivência de todos os dias. O infer no assustava, o diabo até assombrou a minha noite quando tive sarampo, mas verdadeiramente tinha dificuldade em atinar com o que podia fazer a minha alma ficar estorricada no inferno. E a pouco e pouco, praticando, embora aquilo que era suposto como membro de uma família tradicional católica e aluna de escolas privadas dentro do mesmo padrão, fora desta prática, que para mim

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tinha muito de social, nunca senti necessidade de uma prática religiosa, nem mesmo quando tive grandes desgostos. Ainda hoje tenho muita dificuldade em identificar, na minha vivência diária, os pecados que teria de confessar, no caso de o querer fazer.

Tinha de começar aqui este meu escrito, para ficar clara uma das caracte rísticas deste meu testemunho, que reflete o meu ponto de vista, e outras serão oportunamente salientadas.

Porque contar uma história, composta por muitas outras histórias, é uma tarefa que exige escolhas e comprometimentos e estes serão sempre orientados e decididos pela alma de quem a escreve. Por isso, que fique assente: além de ter a forma de um feijão e estar bem arrumadinha, a minha é predominantemente laica, mas, reconheço, muito agarrada aos valores cristãos. Respeitando-os e defendendo-os, vivi estes anos todos.

A minha vida profissional, de 40 anos, passou-se como professora de His tória num colégio de freiras. Depois da declaração atrás feita, parece estranha esta revelação; mas só para quem não conheceu as Religiosas do Sagrado Co ração de Maria, ali na Manuel da Maia, 2, mais exatamente em 1973. Sempre souberam da minha posição em relação à religião, assim como rapidamente perceberam os valores que me orientavam.

Comecei a trabalhar em fevereiro do dito ano, apenas com oito horas se manais (dava mais duas horas de História de Arte a guias intérpretes no Insti tuto das Novas Profissões). No ano seguinte trabalhei quinze horas, e depois já cheguei às vinte e três (e deixei as Novas Profissões). Daí para a frente passei a ser Diretora de Turma, Delegada de Disciplina, membro do Conselho Dis ciplinar, dei aulas a todos os ciclos, fui, durante sete anos, membro da Equipa Diretiva, e quase sempre Coordenadora de Departamento e Coordenadora do Secretariado de Exames, orientei um Estágio Pedagógico e fui até Diretora fun dadora de um Centro de Formação de Professores, com sede na Escola Secun dária Rainha D. Leonor.

Nunca a minha posição em relação à prática religiosa foi sequer mencio nada, visto que eu própria sempre fiz questão de colaborar, nesse contexto, em tudo que não implicasse um envolvimento explícito.

Nunca esquecerei a maravilhosa festa de despedida que me fizeram quan do me reformei, e o reconhecimento sempre presente do meu trabalho. A estes anos devo um grande número de amigos, entre colegas e alunos, os meus filhos e parte dos meus netos lá se formaram, e a minha nora, ainda há pouco, fazia

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parte do corpo docente. Eis um exemplo de como uma tolerância verdadeira em relação à posição dos outros pode estabelecer uma relação feliz e profícua. Bem hajam todos os colegas e as Irmãs, infelizmente já desaparecidas algumas que foram minhas grandes amigas, e de quem sinto muita falta. E devo reco nhecer que os Encarregados de Educação, de tantos alunos que pela minha mão passaram, também se relacionaram sempre comigo de forma cordial, mui to poucos são aqueles que me deixam más recordações, muitos os de que tenho boas lembranças, alguns até antigos alunos.

Ao longo da vida ouvimos muitas histórias, contadas por muitas e desvai radas gentes. Umas esquecemos, passam, não nos interessam. Vão, se calhar, ser lembradas por outras pessoas para quem significam mais. Outras, porque têm a ver connosco ou mexem com alguém de quem gostamos, ficam-nos na memória, surgem de repente a propósito de tudo ou nada, a despropósito mui tas vezes.

Além das histórias que ouvimos, há as histórias que vivemos. Tal como acontece com as outras, nem todas nos ficam na memória, embora de repente a assaltem, quando menos esperamos. As que ficam, e marcam por vezes toda a nossa vida, orientam-nos ou confundem-nos, conforme forem, sobretudo se não tivermos capacidade para as domesticar. As minhas histórias, de uma e de outra qualidade, não têm nada de extraordinário, apenas retratam episódios de vidas que, de um modo ou do outro, comigo se relacionaram, vidas felizes, in felizes, assim-assim, dependendo esta classificação do ponto de vista de quem a aplica.

A narração destas histórias, e partindo do princípio de que alguém estará nelas interessado, será o fixar de uma série de recordações, e como quem conta um conto acrescenta um ponto, não garanto, nem um pouco, o pleno rigor de todas elas. Haverá, certamente, alguma imaginação criadora, algum esqueci mento involuntário e algumas omissões propositadas. Os nomes e locais pode rão não aparecer, mas o que interessa é o reflexo que cada uma delas possa ter no espírito de quem as ler.

E descansem, não vou encher folhas com descrições de paisagens e de es tados de alma, meus ou de outras pessoas, tenho muito para contar, objetivo, factual, mesmo que por vezes com alguma, pouca, fantasia.

Apesar deste escrito estar dividido em capítulos, que apenas servem para ressaltar etapas, em cada um deles encontrarão descrições que porventura

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ficariam melhor num outro. Mas assim me surgem as ideias, assim as relaciono, assim as escrevo.

Num conjunto de narrações, organizadas cronologicamente, num espaço de trinta anos, e que reflete uma determinada sociedade, situada numa deter minada época e num determinado contexto, com um determinado sistema de valores, irei, a propósito, introduzindo memórias mais recentes, de forma de sorganizada, aflorando épocas e situações que não poderiam ficar esquecidas.

Para já posso esclarecer: Portugal, segunda metade do século XX , com es preitadelas ao século XXI , sociedade de classes hierarquizada, valores de forte inspiração cristã, no entanto interpretados de acordo com a política eclesiástica do momento e com os interesses de cada um. E como já disse, não será respei tada a cronologia, se as histórias resolverem misturar-se. Elas é que mandam. E agora, virem este livro de pernas para o ar. Isso mesmo, nas costas está outro livro, com o título Com Raízes em Torres Vedras. Este é o livro que meu irmão escreveu uns anos antes de morrer, sobre os nossos antepassados dos vários ramos de que descendemos, passou muitas horas visitando on line livros de registo de casamentos e batizados, todos digitalizados. Foi uma investigação que lhe deu imenso gosto, comprovou muita coisa que já sabíamos, encontrou muitas outras informações importantes, e distribuiu por toda a família e por muitos amigos este resultado do seu trabalho. Agora que, infelizmente, o livro é meu, resolvi juntá-lo a estas minhas memórias, que afinal são a sua continua ção, e tenho muito gosto em deixar para os nossos familiares e nossos descen dentes todos os testemunhos e conhecimentos que aqui torno públicos.

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Começando pelo princípio

II

EU, MARIA LUÍSA SANTOS DA COSTA BASTOS BOUZA SERRANO, nasci na vila de Torres Vedras, a 5 de novembro de 1944, numa família está vel da média-alta burguesia local, o que foi um ponto de partida muitíssimo privilegiado.

Os meus apelidos ilustram a minha origem (Santos da Mãe, Maria Isabel, Costa Bastos do Pai, Alberto Manuel) e a minha escolha de vida, em boa hora feita: Bouza Serrano do meu marido, nome que, mesmo depois de viúva, me identifica, porque os primeiros que o tiveram, meu marido e meu cunhado, e os filhos de ambos que o continuam, tanto o honraram e honram, que tenho imenso orgulho em também o ter.

Só nunca consegui que me explicassem, e tenho muita pena, por que é que meus Pais, sendo a minha Mãe de solteira Santos Bernardes, não me puse ram este último apelido. E o curioso é que vários tios e primos de minha Mãe também o deixaram cair, até meu Avô que era apenas conhecido por Sr. Santos. Mistério que nunca resolverei.

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Filha única, durante cinco anos, de um casal novo (Mãe, 21 anos, Pai, 25 exatamente no dia em que nasci), durante esse tempo neta única de quatro Avós, sobrinha única de seis Tios, alguns ainda adolescentes, posso dizer que tive muito mimo, mas também muita gente a intervir na minha educação.

Se fosse rapaz teria sido Leopoldo, minha Mãe tinha muita pena desse rei dos belgas que perdera a mulher muito amada num trágico acidente. Fui rapari ga, chamaram-me Maria Luísa, como a minha Tia-madrinha, uma adolescente de 14 anos, única irmã de minha Mãe. Meu Padrinho foi meu Tio, Francisco Xavier (mais tarde conhecido em Torres por Dr. Chico, para grande desespero de meu Avô, que lamentava não lhe ter chamado antes Paulo, como chegara a pensar), de 16 anos, afilhado e irmão mais novo de meu Pai. De ambos falarei mais vezes, tiveram muita presença na minha vida. Todas as recordações que desse tempo tenho estão cheias de adultos e de muito poucas crianças, em verdade quase todas aquelas de que me lembro são minhas amigas até hoje. Mas esta situação nunca me incomodou, antes pelo contrário, era confortável ser o centro de atenções de tanta gente que para mim era tão importante. Há alguns anos que não havia crianças na família, poucos amigos mais próximos as tinham, por isso os adultos e os adolescentes, que a constituíam, acharam graça à novidade: andava eu de mão em mão, satisfeita e embalada. Revendo um filme que meu Pai fez, numas pequenas férias em Via na, em casa de umas tias, aí tenho um exemplo do que digo: neste momento sou a única viva. As outras pessoas que nele tomam parte, de duas gerações diferentes, são adultos. Até meu irmão nascer, tinha eu cinco anos, mais filmes refletem essa realidade.

As férias que refiro foram uns dias em que aproveitámos para ir assistir às festas de Nossa Senhora da Agonia, tínhamos acabado de comprar o Renault joaninha (falarei nele mais vezes), cama e mesa estavam garantidas, era um pas seio agradável, mas não contávamos com o grande calor que apanhámos pelo caminho, não havia ar condicionado no carro, modernice relativamente recen te, e na rua, na zona de Coimbra, até os pássaros tombavam das árvores, com as altas temperaturas. Eu levava um vestido vaporoso, com a respetiva combi nação, usava-se sempre. Tão quente estava, que a combinação foi promovida a vestido e este arrumadinho no saco, lembro-me como se fosse hoje. Depois, logo no primeiro dia da festa, choveu muito, e as minhas sandá lias, único calçado que tinha levado, ficaram encharcadas. A dona da casa, Tia Laura, prática, teve a ideia de as pôr a secar no forno do fogão de lenha que,

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já apagado, estava ainda suficientemente quente. Só que ninguém avisou disso a cozinheira que, a essa hora, já se tinha retirado. E no dia seguinte de manhã fui a Viana, às cavalitas do meu Pai, descalça, comprar umas sandálias novas; as minhas tinham ficado literalmente assadas, pois a cozinheira, madrugado ra, acendera o fogão bem cedo, era preciso fazer muitos pequenos almoços, mas nada seria feito no forno, que continuou fechado até que minha Mãe, de repente, se lembrou de o abrir.

Foi uma época muito feliz, uma infância muito acarinhada e protegida, a maior parte daqueles que nela participaram já desapareceram, os poucos que restam, embora muito idosos, reconhecem-me perfeitamente. A pouco e pouco vou tomando consciência de que sou a guardiã das mais antigas recordações da família, já não tenho a quem fazer perguntas quando, sobre qualquer assun to, me surgem dúvidas, pelo contrário, é a mim que fazem agora perguntas os meus primos e os nossos numerosos descendentes. Como diz a minha amiga Beni, Agora, em Santa Cruz, somos nós que enfeitamos as esplanadas.

Mas é curioso, todos nós, os vinte e um primos Bastos, cuja idade vai dos meus setenta e sete anos, até aos cinquenta e sete da Patrícia, começámos a remexer em fotos, cartas, papéis, memórias orais, dos avós e bisavós comuns. Quem primeiro mostrou trabalho, concreto, impresso, distribuído a todos e muito importante, foi o meu irmão que, entre a reforma e a morte, escreveu o livro que junto publico.

E os mais novos do nosso grupo familiar estão curiosos e vão-se infor mando. Deixamos-lhes o caminho aberto para continuarem onde nós fomos obrigados a parar. Temos tido algumas conversas interessantes, e constato que cada um de nós retém, dessas conversas, pormenores que, pensava eu, seriam facilmente esquecidos, assim como vamos reparando que as memórias de cada um, a maneira como recordamos os Avós, têm muito a ver com a respetiva ida de. Os mais novos têm do Avô, sobretudo, a ideia de um homem rabugento, diferente do que dele se lembram os mais velhos. É normal, a partir dos dez netos a idade era outra e a confusão maior.

Do lado de minha Mãe sou, atualmente, na minha geração, ou na gera ção anterior, a única representante da família, minha Tia não teve filhos, meu irmão também não. Tenho muitos primos filhos de primos direitos de minha Mãe, conheço muitos deles, mas não são primos direitos meus. É curioso por que sempre senti algum desequilíbrio nesta situação, e ao longo deste escrito não poderei deixar de o fazer notar, cresci passando fins de semana e férias em

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dois ambientes familiares estáveis, mas diferentes, embora socialmente equiva lentes e até com amizade antiga entre eles: uma das minhas bisavós maternas era afilhada de batismo de um dos meus bisavôs paternos.

Uma das recordações mais antigas que tenho, com três anos adiantados, refere-se a um chá em casa da minha Avó materna, em Torres Vedras, com algu mas das suas amigas, em que eu era apenas objeto do interesse inicial, passando para segundo plano quando começaram as conversas de senhoras adultas, com temas bem diferentes da minha existência. Entediada com a situação, sem or dem para deixar a sala, tinha de continuar sentada à mesa, mostrando como era educada e conversadora, se comigo quisessem conversar, o que manifes tamente ninguém queria. Resolvi então distrair-me cuspindo no açucareiro, mexendo vigorosamente para fazer uma papa. E de repente apanhei o merecido tabefe, o único que, durante os vinte e tal anos seguintes, a minha Avó me deu. Custou-lhe muito, com certeza, mas tinha de mostrar que havia lá em casa al guma disciplina, a tal boa educação que eu tão mal ilustrava. Hoje possuo o serviço de chá desse malfadado dia, de porcelana oriental, com uma cabeça de japonesa, translúcida, no fundo das chávenas, muito em voga na altura, há muito tempo que não o uso, mas recordo lindamente como gostava de olhar para dentro das chávenas vazias. Foi esta a imagem que me veio à cabeça quando, mais tarde, ouvi a história de Madame Butterfly, era a úni ca representação da mulher japonesa que para mim tinha algum significado.

O grande boneco de papelão, que a Avó me ofereceu como desculpa pelo tabefe, acabou, no fim de semana, amolecido na banheira, como aliás vários ou tros semelhantes, que a minha fúria de limpeza ia sacrificando. Havia, na rua Aleixo Ferreira, em Torres, duas lojas, uma era a do Sr. Gregório, a outra não me lembro de quem era, os bonecos compravam-se numa delas. Eram rapazes, de um tamanho razoável (talvez meio metro de altura), baratos, feitos em papier maché , lustrosos e cuidadosamente pintados, bem penteados e de feições defi nidas. Com os membros articulados, presos por elásticos, eram muito fáceis de vestir e despir, a Avó adorava arranjar as roupinhas todas necessárias, mas como já disse, nas minhas mãos as suas vidas acabavam geralmente dentro de água.

Para brincarmos, havia também os bonecos de papel, que recortávamos de folhas de cartolina A4, assim como as roupas que lhes prendíamos ao corpo por tirinhas recortadas junto, estrategicamente colocadas, que se dobravam e permitiam tirar e colocar as peças variadas, que eram desenhadas para várias ocasiões, o que ajudava também a educar o gosto das meninas (ou a deseducar,

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dependia) e a ensinar-lhes como vestir, elas próprias, os vários modelos, um dia mais tarde. Digo das meninas porque os rapazes jamais brincariam com bone cos, mesmo de papel, ou, pelo menos, nunca o reconheceriam. Fáceis de manu sear, estas figurinhas proporcionaram horas de distração a muitas crianças do meu tempo, até porque eram baratas, e havia quem as criasse e desenhasse, não precisando de as comprar.

Para quem tinha imaginação e jeito de mãos, havia as bonecas de trapos, cortadas e cosidas em casa, aproveitando os restos de pano que sobravam das várias costuras que em todas as famílias se faziam. Mais bonitas ou mais sim ples, eram resultado da imaginação e da matéria prima de cada um, mas foram para muitas meninas as melhores amigas, provocando grandes desgostos quan do, por alguma razão, se descosiam e deixavam sair a serradura que, quase sem pre, as enchia. Hoje em dia ainda as há, as crianças continuam a gostar delas, mas são sobretudo de fabrico industrial, poucas pessoas já têm máquina de co ser e tempo para a usar. E quase acabaram as costureiras que iam a casa, fazer os arranjos e peças novas, almoçando, lanchando e ganhando um magro salário diário. O espaço que dantes era para a máquina de costura faz agora falta para os computadores e outros devices, o teletrabalho é cada vez mais uma realidade. Além disso, o pronto a vestir é muito abundante e para todas as bolsas, já se encontram poucas lojas onde se venda tecido a metro. São as mudanças dos tempos, como cantou Camões, uma nova qualidade que não sabemos muito bem aonde nos levará, só sabemos que vamos em grande velocidade.

Eram inúmeros, além disso, os objetos aproveitados do dia a dia que po diam ser usados como brinquedos, como os carrinhos de linhas, em madeira que, quando vazios, usando elásticos e paus de fósforos, conseguíamos pôr a rolar, chegando a fazer corridas uns com os outros. Até os cordéis dos embru lhos (não havia sacos de plástico), formados em colar e entrelaçados nos dedos de uma determinada maneira, criavam figuras que se sucediam de acordo com o modo como os passávamos das nossas mãos para outras mãos. Ou o quantos queres, uma folha de papel com escritos ou bonecos, dobrada, que, mexido o resultado com dois dedos de cada mão, permitia encontrar uma frase ou um desenho conforme o número pedido. Era muito usado pelas meninas, na ado lescência, para confirmar se aqueles que catrapiscavam (e que muitas vezes não faziam disso a mínima ideia), estavam ou não interessados nelas. Substituíam o mal-me-quer, que nem sempre estava à mão.

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E para brincar na rua, os rapazes faziam com trapos, bolas para jogar, e com caixotes, carrinhos de rolamentos com que desciam rampas, em, por ve zes, vertiginosas corridas. E saltavam ao eixo (algumas raparigas também). E, sobretudo as meninas, saltavam à corda, jogavam ao Mamã dá licença, à malha, etc., etc. Para muitos destes jogos, que a pouco e pouco vão sendo esquecidos, eram precisas pelo menos duas pessoas, crianças ou adultos, que assim comu nicavam e se entretinham, além de poderem dar largas a alguma criatividade.

É claro que havia lojas de brinquedos, umas melhores do que outras, e nelas se vendiam réplicas miniaturais de muitas das coisas que povoavam o mundo dos adultos, brinquedos pensados para distrair e instruir rapazes, uns, para distrair e instruir raparigas, outros. Também havia aquilo a que podemos chamar brinquedos unissexo, sobretudo os que se relacionavam com a prática de desportos e de atividades ao ar livre, ou os chamados jogos didáticos, de salão. Mas não significa que fossem usados da mesma maneira por meninos e meninas, as brincadeiras eram muitas vezes diferentes. Era a época do Clube do Bolinha, Menina não entra . Comprar brinquedos em lojas era caro, grande parte dos portugueses não se podia dar a esse luxo, mas, além daqueles que mencionei antes e que depen diam muito do engenho de quem os produzia, vendia-se, em feiras semanais, mensais e até anuais, grande variedade de brinquedos de fabrico mais simples e baratos, que fizeram as delícias de muitas crianças, até as minhas, como sabe rão mais à frente.

Os meus Pais eram ambos originários de famílias radicadas em Torres Vedras, com raízes mais antigas no Oeste, a da minha Mãe, e por isso, no dia em que meu Pai fazia 25 anos, lá nasci, em casa, ao fundo da rua Paiva de Andrade, do lado esquerdo de quem desce, com a melhor parteira da altura, a Saúde (que tinha acabado de fazer o parto do meu amigo Rodolfo). E nasci na cama em que nasceu a minha Mãe, era a mobília de casamento dos meus Avós, que tinha sido substituída no seu quarto por uma antiga, D. Maria, que estava na Almiara, e que agora é minha, no meu apartamento em Torres. Curiosamente, a mobí lia que me acolheu, de cerejeira com aplicações leves em madeira mais escura, anos vinte, é agora muito apreciada por quem a vê, no nosso Casal Cecília, onde enche um quarto.

Minha Mãe sempre disse que durante toda a gravidez não fez uma única análise, nem foi vista por algum médico, a não ser em conversa familiar, pois médico era meu Avô Bastos, Pai de meu Pai. Mas tudo correu bem, embora

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eu tivesse nascido com a cabeça muito bicuda, o parto foi demorado, e meu Pai voltou para Lisboa muito preocupado, mas tinha de trabalhar, e por isso fartou-se de telefonar a saber notícias, para o 59 de Torres Vedras. Este era o telefone de casa do Avô Bastos, que tanto servia para uso da família como para as chamadas relacionadas com a sua vida de médico, razão porque dava pouco descanso às telefonistas que operavam o PBX (Private Branch Exchange), pois ainda não havia comunicações telefónicas automáticas. E, já agora, eu tinha 2.750 Kg e 48 cm, a minha Mãe achava que a minha gestação era de pouco mais de oito meses.

A Avó Teresinha e o Avô Zé só tiveram telefone bem mais tarde, já eu era crescida, era o número 702 de Torres Vedras. Quando queria falar connosco, a Avó ia a uma das lojas da redondeza que a autorizavam a usar o telefone, me diante o pagamento do tempo gasto nessa utilização, que era contado em perío dos, e quase todas as lojas tinham um contador para esse efeito. Era costume, quando as pessoas não queriam ir aos correios, fazer a chamada nas cabines telefónicas que para isso lá havia.

Lembro-me de que, quando morávamos na Av. Almirante Reis, no mes mo prédio que os nossos amigos, como mais adiante contarei, enquanto não tivemos o nosso telefone, a Avó ligava para casa deles, chamavam a minha Mãe e estava o assunto resolvido. Porém, um dia, quem atendeu a chamada foi a miúda da casa, que tinha três anos e achou muito engraçado conversar com mi nha Avó, que ela conhecia, e por mais que esta lhe dissesse, e a menina do PBX também – Vá chamar a Mãezinha ela não foi, a Avó desligou ao fim de um quar to de hora e a telefonista teve pena dela e não lhe cobrou a chamada; coisas de terras pequenas, quem teria hoje pachorra para uma operação tão complicada! Eu fui a primeira de uma longa lista de bebés que retomaram o uso do lin do berço de madeira suspenso, estilo D. Maria, do Avô Bastos, que ainda está ao serviço dos seus trinetos que vão nascendo cá em Portugal; já há uma candidata para breve, os que nascem no estrangeiro não gozam deste privilégio. Como sua primeira reutilizadora, após um interregno de 15 anos (os últimos da gera ção anterior foram os meus Tios gémeos), sou eu que o guardo com muito cari nho. E o meu filho e a sua mulher, primos, tiveram, os dois, este mesmo berço. Por coincidência, a minha cama de solteira, na qual comecei a dormir aos seis anos, tem a cabeceira igual à do berço, salvaguardando as devidas proporções. Depois, em janeiro fui para Lisboa, meu Pai era 2.º tenente, Piloto Avia dor na Aviação Naval, minha Mãe, como se dizia, doméstica, o soldo era curto,

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fomos viver para uma casa que meus Avós paternos tinham alugada, na rua Fi lipe Folque, pois os meus Tios estavam em Lisboa a estudar. Meu Pai, que era o mais velho dos irmãos, tinha frequentado no Liceu de Camões os últimos anos, e os preparatórios para a Escola Naval, na Escola Politécnica, mas ficara em casa dos seus Avós maternos, o Avô Almirante, Vitorino Gomes da Costa, e a Avó, Gertrudes Ribeiro da Costa.

A minha Mãe contava que os dois ou três anos, que na casa da Filipe Fol que vivemos, foram bem passados, jovens irmãos, amigos e bem-dispostos, tanto que uma das vizinhas mais velhas perguntava se tanta animação não fa ria mal à menina, que era eu. Tenho muita pena de já não poder conversar com ninguém sobre estes anos, há muitas recordações que gostaria de esclarecer, mas nenhum dos meus primos me pode ajudar, a maior parte nem sequer era nascida quando a casa foi fechada.

Connosco havia mais duas mulheres importantes, que, de uma forma ou de outra, me acompanharam até mesmo durante a minha vida de casada: a Maria do Carmo e a Leonor, a cozinheira interna, e a mulher a dias, que tomavam conta e apoiavam os moradores, visto que meus Avós não estavam lá, sendo, afinal, as pessoas um pouco mais velhas e experientes que por lá andavam. Eram duas mulheres amigas e dedicadas, ótimas trabalhadoras, de inteira confiança, que tiveram um papel muito importante no bem-estar de todos nós. Tinham vindo das Beiras, quase da mesma zona, muito novinhas, e por cá iam labutando.

A Leonor, sobretudo, teve uma vida difícil, um casamento frustrado, que lhe deixou duas filhas que educou praticamente só, e com quem viveu até mor rer. Inteligente e ótima trabalhadora, era analfabeta porque, sendo a mais velha de vários filhos, os Pais não a puseram na escola, trabalhavam os dois, tinha ela de ficar em casa tomando conta dos irmãos, situação vulgar ainda no meu tem po de aluna. Tinha uma enorme resistência, nunca faltava, e bem se via, quando já tendo passado os sessenta, o esforço que fazia para continuar connosco, as pernas pesavam-lhe, mas nem se queixava.

Era uma excelente cozinheira, qualquer jantar, feito por ela, era sempre um sucesso, passava a ferro maravilhosamente e atacava o tanque de lavar como ninguém, fazia todas as semanas uma sabonária a preceito. Esta era uma operação que envolvia sabão azul e branco, aos pedaços, em muita água, aque cido numa grande cafeteira exclusiva para tal, mistura esta que se deitava sobre a roupa branca, dentro do tanque, a qual, algum tempo depois, era lavada e

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esfregada na tábua do mesmo, e passada por várias águas. Quando se estendia, bem torcida, estava branca e desinfetada. No fundo, algo parecido com o que as máquinas de lavar agora fazem. Mas para torcer os lençóis, molhados, pesados de água, eram precisos braços fortes e ágeis, capacidades que se adquiriam ao longo de muitos anos de trabalho, sem outra alternativa.

Quando a minha filha estava para nascer, tendo em vista a quantidade de fraldas que haveria para lavar (felizmente tinha muitas, primeira bisneta, neta e sobrinha neta) pensámos em comprar uma máquina de lavar roupa. Mas depois preferimos pedir à Leonor que fosse para nossa casa mais um dia, ela precisava muito do dinheiro, e eu ficava muito contente por ter quem tomas se conta da criança enquanto eu saía, coisa que a máquina manifestamente não faria. Para mim foi muito difícil arranjar quem preenchesse o seu lugar quando ela resolveu deixar de trabalhar, mas tive sorte, mais tarde conto.

A Maria do Carmo viveu toda a vida na família, aliás já tinha vindo da terra trabalhar para casa do Avô Almirante, com treze anos. Foi sempre mais ou menos doente, mas isso nunca impediu que fizesse o seu trabalho, os Avós apoiavam-na e apoiavam-se nela, o que lhe deu um certo estatuto, permitindo -lhe refilar e, por vezes, contestar uma coisa ou outra. Mas fazia-o por amizade, nunca por achar que podia disso tirar algum proveito. Afinal, ajudou a criar os tios mais novos, acompanhou o crescimento de todos os 21 netos, e ainda conheceu os meus filhos, a minha filha lembra-se muito bem dela. E quando fiz dez anos ofereceu-me de presente uma forma de pudim e uma dúzia de for minhas de queques, oferta a que a minha filha também teve direito! Assim nos introduzia cedo à nossa futura qualidade de donas de casa, apresentando-nos o que melhor conhecia, porque se relacionava com a sua atividade diária, com o seu ganha pão.

Por escolha sua, quando a Avó morreu, foi para casa da Tia, foi de lá que partiu para o hospital de onde não voltou a sair. No fim já via mal e estava fraca, mas continuava a querer cozinhar, o que aliás fazia muito bem. A Tia contava que, um dia, estavam a comer cozido ao almoço e a Maria do Carmo, vinda da cozinha, perguntou A menina sabe onde está o esfregão verde? A Tia deu um pulo da cadeira, foi direita ao fogão e encontrou o dito esfregão dentro de panela, misturado com as couves. Já tinham comido a sopa, e afinal ninguém adoeceu.

Estas duas mulheres que recordo com gosto e com saudade, representam uma legião de outras que, desde cedo, muitas vezes ainda crianças, trabalharam ganhando mal, com vidas difíceis, sendo consideradas socialmente inferiores,

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nem sempre acarinhadas pelas famílias que ajudaram a criar. Ainda pequenas eram tiradas das suas casas para terras, por vezes, bem distantes, e postas pe rante hábitos diferentes e desconhecidos, com novos trabalhos, por vezes pe sados e até de responsabilidade. Se havia patrões que tinham estes aspetos em conta, ensinando-as com alguma paciência, integrando-as a pouco e pouco na sua nova vida, até apoiados por criadas mais antigas, outros não tinham esse cuidado, e davam origem a momentos bem infelizes na vida dessas raparigas. Elas, evidentemente, não eram santas, e por vezes retaliavam como podiam, mas estavam, seguramente, em desvantagem. E não vamos entrar pelo assunto das que eram sexualmente abusadas por patrões e por adolescentes da casa. Muitas destas mulheres, que casaram e formaram as suas famílias, utili zaram, nas suas vidas de donas de casa, os conhecimentos e competências que adquiriram na sua vida de serviço, contribuindo com isso, muitas vezes, para uma promoção social dos filhos, o que beneficiou não só os mesmos como a sociedade em geral. No fundo era, nos séculos anteriores, o significado da pa lavra criado, aquele que ia para casa de alguém socialmente mais importante, onde se criava, retribuindo essa criação com serviços que prestava, tudo de acordo com o seu estatuto social, devendo contribuir para que perdurasse a sociedade de ordens. Foi o advento da sociedade de classes que modificou essa situação, alterando o tipo de relações que anteriormente existiam, por vezes desumanizando-as.

Outra pessoa que circulava nesse pequeno mundo da rua Filipe Folque, era a porteira (geralmente os prédios deviam ter porteiro, e via-se emoldurado e pendurado na entrada, o Regulamento dos Porteiros de Lisboa), a Sr.ª Marce lina, que vivia num tugúrio de vão de escada, mesmo junto ao nosso r/c. Como os meus Avós paternos mantiveram a casa durante alguns anos, lembro-me muito bem desta mulher, franzina e doente, a quem o sol nunca alumiava, e até hoje nunca percebi que tipo de casa de banho tinha. Estava geralmente de porta aberta, e sempre tinha uma palavra simpática para quem circulava na escada. Era o tipo de mulher só, de carrapito e vestida de escuro, de idade indefinida, a quem ninguém dava atenção a não ser que dela necessitasse. Tinha um ar resignado, e de dentro do seu quarto saía um cheiro adocicado e velho, mistura de mofo e de pouco arejamento, com alguma hipotética tentativa de limpeza. É um dos cheiros cuja memória mantenho, e que relaciono sempre com pobreza e vida triste.

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E sabemos que a maioria das casas de porteiros não tinha muito melho res condições, e nelas se criaram muitas crianças, filhas de quem exercia essa profissão, exceptuando as de muitas casas do Bairro de Alvalade, na altura em construção, pelo menos em dois ou três casos que conheci. Pena que hoje, a maioria dessas casas estejam transformadas em arrecadações, deixando de ne las haver porteira, figura que bom apoio poderia dar aos moradores, evitando até alguns conflitos entre condóminos sobre a manutenção das partes comuns.

Esta nossa casa tinha uma distribuição característica das casas do início do século passado: corredor comprido, interrompido pela porta de entrada, di visões de um lado e de outro e ao topo. Fatalmente havia um saguão para onde davam dois quartos e a casa de banho, e, em frente, pegado com o tugúrio da porteira, um quarto interior. Além disso, um dos quartos, que dava para a rua principal, quase na esquina com a rua Tomás Ribeiro, tinha passagem pela sala, onde estava o cadeirão romântico que agora está na minha sala. No outro topo do corredor, virado para as traseiras, havia, de um lado, a casa de jantar, e do outro, a cozinha. Ambas davam para um pequeno jardim. Tenho perfeita lem brança de toda esta distribuição.

No quarto interior havia, numa prateleira e entre muitas outras coisas, um busto em gesso, de tamanho natural, da Vénus de Milo, pertencente o meu Tio Zé Vitorino, que se treinava para entrar em Arquitetura. Apresentaram-ma como sendo a tia Vénus, criando na minha cabeça, de quatro anos, a grande dúvida: como poderia ela tricotar (como eu via minha Mãe fazer, esperando o meu irmão) os casaquinhos para os meus futuros primos, se não tinha braços? Curiosamente, a falta do resto do corpo não me incomodava.

Um pouco mais tarde, o meu Padrinho que fazia na altura as contas da casa para apresentar aos meus Avós, registou uma parcela ossos para mim , era um esqueleto, entrara em Medicina. E os ossos lá enfeitaram o quarto da frente, onde ele dormia e estudava, numa secretária romântica, de tampo extensível e prateleira incluída, que a minha Avó me deu mais tarde e que, agora, é o local de trabalho da minha filha, na sua casa.

Na cozinha, a Maria do Carmo estendia por cima do fogão, a metro e meio de distância, um pano preso nos quatro cantos para evitar que da chami né caísse lixo na comida. E, sempre que fritava batatas, defendia-se, com o garfo em punho, de quem tentava roubá-las mal saíam da frigideira, o que lhe difi cultaria obter uma porção suficiente para o jantar. O mesmo acontecia com os

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croquetes e os rissóis, e a situação tornou-se mais dramática quando, encerrada esta casa, ela passou a cozinhar em Torres, e nós passámos a ser muitos mais. Lembro-me também da preocupação que foi quando, mais tarde, o meu Tio Zé Vitorino, nesta casa, teve uma meningite, e eu o vi na cama, prostrado e com alucinações, queixando-se de que tinham pendurado por cima dele uma corda com camisas a secar. Curou-se, como já se tinha curado da tuberculose que lhe apareceu quando quis concorrer à Escola Naval, e que o meu Avô tratou com bifes e ar do campo. E tão bem ficou que viveu até aos noventa e dois anos, para alegria de todos, pois era um homem encantador, que tinha um fraquinho por mim e de quem eu gostava muito.

Quando a televisão apareceu, muito mais tarde, em 1957, os meus Pais não a compraram, gostavam dos serões em família. Mas eu descobri que este meu Tio tinha comprado uma, morávamos na mesma rua. Já na Faculdade, ia a casa dele ver os filmes que queria, as peças de teatro, e no fim, perto da meia noite, o Tio acompanhava-me a casa. Na altura ainda não se falava em assédio sexual, mas que havia, havia, e era esse o problema se eu, com dezoito anos, andasse na rua sozinha a hora tão tardia. Mas era sempre com boa vontade que o meu Tio saía de casa para me proteger nessa curta caminhada; bem sentia a falta dele quando, a pé e de dia, ia para a Faculdade de Letras, e os machões que comigo se cruzavam davam um ar da sua graça, às vezes até de dentro dos carros.

Sendo um homem muito culto e com interesses que ultrapassavam a ar quitetura, embora com ela relacionados, dedicava-se este meu Tio ao estudo das civilizações primitivas, nelas procurando as raízes da nossa. Foi grande o apoio que me deu durante todo o meu curso de História, no que respeita à bi bliografia da sua vasta biblioteca e à companhia para visitas a sítios (Castro de Pragança, Grutas do Escoural, Castro do Zambujal, Museu de Odrinhas, etc.) importantes para a realização de trabalhos académicos. Quando morreu, a Tia e as primas puseram à minha disposição, para eu escolher, os livros que quisesse daqueles que não pensavam conservar. Fiquei com dois ou três, não ti nha espaço para mais, e também com alguns postais antigos. Uma das maiores recordações que me deixou foi o filme, em 8 mm, que fez do meu casamento, pois o meu Pai, como Pai da noiva, tinha um papel importante na receção aos convidados, não podia estar atento ao que de mais importante se devia fixar. Há pouco anos o meu Pai contou-me que a entrada do Tio para Arquite tura não tinha sido pacífica: nos anos quarenta o curso era considerado inferior

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ao de Engenharia Civil, e o Avô quis que fosse este último o escolhido, já que a entrada na Escola Naval estava fora de questão por causa de tuberculose. O Tio entrou para engenharia, frequentou durante um ano, mas não era de cididamente o que queria e pediu ao meu Pai que falasse com o Avô, na sua qualidade de filho mais velho. O meu Pai assim fez e, contou, o Avô ouviu cala do e atento tudo o que lhe disse, sem deixar transparecer se estava a ficar con vencido; acabaram a conversa e o assunto ficou em suspenso. No dia seguinte, encontrando-se no corredor comprido da casa de Torres, o Avô disse: Podes dizer ao teu irmão que se matricule então em Arquitetura. E assim foi, ainda bem, perdia-se um excelente arquiteto, que deixou obra um pouco por todo o país. Em Santa Cruz, por exemplo, tem construídas dez moradias por ele planeadas e algumas transformações noutras. Em reconhecimento do seu trabalho, a Câ mara Municipal deu o seu nome a uma praceta perto da zona em que as ditas casas se concentram, e a placa ficou colocada mesmo no muro da casa da Inês, sua afilhada.

O meu Avô, José Alberto de Bastos, era pai de seis filhos, cinco rapazes, os dois mais novos gémeos, um deles o meu Padrinho e o outro o Avô da minha nora, e uma rapariga. O meu Pai, o mais velho, nasceu em Lisboa, a Avó veio tê-lo a casa dos Pais, talvez por se sentir mais acompanhada, primeiro filho, é normal. Os outros nasceram em Torres, na casa da rua Serpa Pinto. Sei que o parto do Tio Zé Vitorino, que se apresentou de pés, foi magistralmente feito pelo seu futuro sogro, o Dr. Afonso Vilela, grande amigo.

Os gémeos também nasceram em Lisboa, não sei porquê. Contou o Avô que recebeu no dia 15 de fevereiro de 1928 um telegrama, da cunhada Bia, que dizia: Tens cá um rapaz que vale por dois. Quando chegou a Lisboa e entrou no quarto, falou à Avó e à família, recebeu os parabéns, feliz, viu o bebé e sentou-se na cadeira a conversar. Mas alguém disse: - Já olhaste bem para o fundo do berço?. Estava lá outro!

Nesse momento, o Avô ficou contente, mas ansioso: só o preocupava como iria educar tantos rapazes! Porque sendo médico, ele tinha em grande apreço a obtenção de um diploma para a definição de uma carreira profissio nal, pois, embora possuidor de alguma fortuna, sabia a importância do trabalho para uma vida de realização e desafogo, mais segura do que a baseada em he ranças e fortuna pessoal. E conseguiu; mais tarde, orgulhava-se muito de todos os filhos, incluindo da minha Tia, por terem tirado os seus cursos, obtido uma ferramenta para a vida. E ainda mais orgulhoso ficaria se soubesse que os vinte

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e um netos que teve também o fizeram, e que o estão fazendo os já numerosos bisnetos, encabeçados pela minha filha, o meu filho e a minha nora. Sim, por que o meu filho casou com a filha de um dos meus primos direitos (já atrás dei duas pistas). E até os meus netos, trinetos do meu Avô, por enquanto os únicos crescidos dos muitos que já nasceram, continuam trilhando o caminho que ele nos traçou (os dois netos da Rita também estão muito perto). Mas ainda há pri mos da geração dos meus filhos a entrar para a Universidade, são os netos mais novos do meu Tio Chico, as gerações misturam-se e convivem bem.

No primeiro ou segundo andar da casa da Filipe Folque, já não me lembro bem em qual, vivia um casal novo, com dois filhos, um rapaz e uma rapariga, com quem convivi durante alguns anos. Chamava-se Leninha e a Mãe era Ce leste. Tenho um filme, já colorido, de um passeio que fizemos todos ao Jardim Zoológico, tínhamos quatro anos, e estamos as duas de vestido bonito e laça rotes na cabeça, brincando numa das casinhas, que se alugavam, entrávamos nelas, tinham alguma mobília, havia quem lá fizesse festas de aniversário.

E visitámos todos os animais com grande entusiasmo, sobretudo o ele fante que tocava o sino quando lhe púnhamos alguma coisa na tromba, os ma cacos que não paravam quietos, mas o que sempre me encantou foi o ocapi, um animal africano, de tamanho médio, relacionado com a girafa, mas com listas na parte traseira, como a zebra, e com uns olhos pestanudos e muito doces. Todas as vezes que fui mais tarde ao Zoo de Lisboa nunca deixei e o ir ver, e durante toda a vida poucas pessoas encontrei com um olhar tão doce que mo fizesse lembrar.

Estes dois irmãos fazem parte das poucas crianças amigas de que me re cordo e que nunca mais vi. Já várias vezes tenho pensado como lhes terá corrido a vida, o que têm feito com ela, ou o que ela tem feito com eles, gostava mesmo de saber, afinal demo-nos lindamente. Mais uma vez não tenho a quem per guntar, se porventura lerem estas linhas façam o favor de aparecer, temos mui to para conversar. Se calhar até já nos encontrámos, por aí, quem sabe, afinal Lisboa é uma ervilha.

Não sei se foi nesse dia de passeio ao Zoo que o meu Pai me tirou uma foto a andar de baloiço, tendo como fundo uma treliça que limitava o espaço. Curiosamente, cerca de 25 anos depois, o meu marido fotografou a minha filha, a preto e branco, a andar de baloiço exatamente no mesmo sítio e com a mesma idade. A minha fotografia, mais antiga, é a cores (era, agora já esmaecerem).

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Até 1948 não pusemos casa, meu Pai esteve oito meses em Moçambique, na missão hidrográfica, a fazer fotografia aérea do curso dos rios Limpopo e Zambeze. Foi então que minha Mãe e eu tirámos uma linda foto as duas, no fo tógrafo, para lhe enviar. Nela está uma bonita mulher de vinte cinco anos, que devido à forma de se arranjar, característica da altura, parece, aos olhos de hoje, ter mais dez, e uma miúda de vestido de organdi, e de caracóis, resultado estes dos papelotes que só foram tirados no estúdio fotográfico. Corresponde a uma moda burguesa, muitos homens e mulheres da minha idade têm parecidas.

Os papelotes eram tiras de papel, geralmente papel higiénico, em que se enrolavam madeixas de cabelo, húmido, torcendo depois as pontas de cada uma das ditas tiras juntas, de forma a que se mantivessem presas uma na outra. O ondulado que se obtinha durava um dia, quando se quisesse o mesmo era preciso repetir a operação, por isso havia quem dormisse de papelotes, se não em toda a cabeça, pelo menos em zonas escolhidas de acordo com o penteado. Várias publicações satíricas e jocosas da época o ilustram. E há outra foto mi nha, da mesma idade, tirada na quinta, com o cabelo penteado em canudos, coisa tão rara e difícil de acontecer (vivam os papelotes!) que todos os Tios a tiveram, como recordação.

Estávamos longe das Polaroides instantâneas e das fotos que hoje se fa zem de tudo e de nada, guardando na nuvem tantas imagens que acabamos por perder nelas o interesse. Os antigos álbuns de fotos, alguns com homens e mulheres ainda vestidos à moda do século XIX , ajudam-nos a dar identidade aos bisavós, até trisavós, de quem os mais velhos nos falaram. Em certa me dida, as fotos serviam para fixar momentos importantes, para oferecer como recordação às pessoas que nos eram queridas, e deviam ter qualidade, eram identificadas e cuidadosamente guardadas em álbuns, que se reviam de vez em quando, ótimos para manter distraídas as crianças que adoravam ver, em casa dos avós, fotos de quando os pais eram pequenos. Muitas eram expostas em molduras, elas próprias cuidadosamente escolhidas, e colocadas bem à vista, demonstrando o orgulho de quem as expunha.

As atuais molduras eletrónicas, que passam sem cessar fotos nem sempre escolhidas e frequentemente substituídas, traduzem, em parte, a pouca fixação destes nossos dias, a corrida permanente de quem procura sempre o mais re cente. E ainda pior, a forma como se pode adulterar uma foto, com o photoshop, permite que se guardem imagens que não correspondem à realidade, mas sim aos desejos de quem as adulterou. Como será daqui a cinquenta anos? Quem

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quererá saber quem fomos nós, quem nos irá procurar lá na nuvem? E será que conseguem encontrar-nos e identificar-nos, no meio de tantas imagens?

Da época africanista de meu Pai, tenho alguns filmes preciosos, de 8 mm, por ele feitos sobre temas moçambicanos, muito documentais. Neles se veem autoridades militares que por lá andavam, as respetivas mulheres e famílias, nos seus tempos livres; veem-se também indígenas a trabalhar, e até alguns em formatura e a marchar descalços, e algumas cenas passadas no recém-inaugura do Hotel Polana, meu Pai de fato e gravata, muito jovem e muito elegante, alto, alourado e muito bonito. Mas o mais significativo é o que mostra a passagem da imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima por Quelimane. De acordo com o autor, que filmou cuidadosamente a missa campal na altura celebrada, quase todos os presentes eram muçulmanos.

E tenho também uma boneca de loiça, que diz mamã, com olhos de vidro e cabelo natural, que sempre pensei ter vindo de Moçambique, mas que meus Pais acabaram por confessar, bem mais tarde, que tinham comprado numa excelente loja de brinquedos da Baixa, a Kermesse de Paris, cuja montra era o paraíso sonhado de qualquer criança. É a Rosita, que viveu sempre no alto da estante do meu quarto, com ela só brincava em dias de festa, para não se estra gar. E como não cabia na minha casa de bonecas, habituei-me a gozá-la só de vista, bem vestida e com uma capa branca de pele de coelho, cabelo arrumado em carrapito, boca vermelha e sorridente, olhos pestanudos, e dizendo mamã quando a abanávamos Mais sorte teve a boneca de celuloide, que por essa altura me deram, a Lalá, que a minha Avó materna vestia com bibes iguais aos meus, e com a qual tenho várias fotografias, assim como o bebé de borracha, que até teve direito a batizado, no quintal em Torres, com madrinha e criadita de crista para nele pegar. Esses eram aqueles com que me entretinha, vestindo e despindo, dan do banho e pondo a dormir, numa pequena cama D. Maria, antigo brinquedo da minha bisavó, e que ainda conservo, assim como a respetiva cómoda, onde guardo lenços e bijuteria. De acordo com as mudanças dos tempos, nem a mi nha filha nem a minha neta deram grande importância a tais móveis, maior abundância de brinquedos tiveram, maior dispersão de atividades.

Até mesmo a casa de bonecas, que acima menciono, nunca despertou nelas grande interesse, mas foi um dos brinquedos que mais me encantou e entreteve. É um caixote com um metro de comprimento, sessenta centíme tros de altura e quarenta de profundidade, tem quatro divisões do mesmo

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tamanho, com um telhado inclinado, que se levanta criando o sótão, e duas grandes portas que, ao abrir, deixam ver todo o resto do interior. As portas pe quenas e proporcionais ao tamanho da casa, que tem também quatro janelas, não abrem. Pintada de branco e encarnado, estava cuidadosamente mobilada, com alguns móveis de madeira, comprados, e sofás e poltronas à escala, feitos com cartão e cretone pela Tia Mariazinha. Tinha bonecas pequenas que nela cabiam, loiça para usar, e passei horas sossegada a brincar.

Brinquedo de menina, começava cedo a educação das futuras donas de casa, mas que me diverti muito, diverti. Está um bocadinho estragada, vou mandá-la arranjar, com o revivalismo que se vai instalando como reação às modernices tão vertiginosas, pode ser que alguma bisneta goste de com ela brincar, algum dia. De qualquer modo, é o testemunho de uma época, agora as meninas brincam com aplicações várias, nos tablets e similares.

Nunca esqueci o presente que minha Avó materna, Maria Teresa, me deu quando fiz dez anos: um serviço de jantar da Vista Alegre, miniatura, para bo necas (mas grande demais para a dita casinha), e uma peça de linho para fazer uma toalha de mesa, início do meu enxoval. Abria-se, assim, a minha condição de futura noiva, com tempo e calma para organizar um enxoval consentâneo com a minha situação na sociedade. E no ano seguinte o Pai Natal trouxe-me o Isalita , livro de receitas simples e boas, que me serviu de apoio nos primeiros tempos de casada. Que menina de onze anos ficaria, hoje, contente com um presente destes? Eu fiquei.

O serviço de jantar para as bonecas só saía da caixa de vez em quando, para não se partir, e hoje está, numa pequena vitrine, a enfeitar uma mesinha de apoio na sala de jantar, junto com um serviço de chá, do mesmo tamanho e da mesma fábrica, que herdei da minha Madrinha que com ele brincou; a peça de linho foi oportunamente mandada bordar em Viana do Castelo, fez uma toalha rica, branca e cinzenta, que tem sido muito usada para festividades várias. O Isalita é consultado sempre que quero fazer o pudim de laranja e a torta de carne.

Também a minha Avó paterna, Mariana, passou a dar-me, de presente de anos, lençóis e toalhas bordadas: a que eu mais estimo é uma toalha de chá, de linho, bordada por ela, com uma larga renda feita pela Avó Gertrudes, sua Mãe e minha Bisavó. Tem sido muito útil durante todos estes anos, e sempre que a uso lembro-me das duas (a Bisavó não a conheci). E, mesmo antes do casamen to, a Avó ofereceu-me uma linda colcha de crochet, feita por ela, que guardo

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religiosamente, apesar de ter aderido aos edredons com as suas capas bonitas. Todas estas coisas são importantes para que muitas vezes recorde o que as trou xe à minha vida, a eternidade também é isto, ter a lembrança frequente de pes soas que morreram há tantos anos... …

Quando meu Pai regressou de Moçambique, alugámos uma casa na rua Latino Coelho, mesmo em frente à nunciatura (sem nos afastarmos dos que deixávamos na Filipe Folque), um quinto andar recuado, com terraço, sem ele vador, que representava um suplício para meu Pai, sempre que voltávamos dos fins de semana em Torres Vedras, carregados de batatas e outros produtos da quinta da Almiara (metade dela era do meu Avô Zé), que era preciso levar para cima, juntamente comigo, que durante a viagem adormecia profundamente. O mesmo aconteceria, vinte e tal anos mais tarde, com os ditos produtos e os meus filhos, ambos a dormir na mesma situação, para um quinto andar em Benfica. Apenas com a diferença de que tínhamos dois elevadores…

Como já disse, sendo meu Pai militar e minha Mãe não trabalhando fora de casa, o dinheiro não abundava. Mas tínhamos uma excelente estrutura fa miliar, os meus Avós participavam no nosso dia a dia oferecendo muito do que dele fazia parte: além dos produtos da quinta que já referi, de Torres vinha, todas as semanas, a carne que consumíamos, oferta de Avós paternos e mater nos. Estes, que só tinham casada e com filhos a minha Mãe, ofereciam também manteiga, margarina, arroz, bacalhau, bolachas, chocolates, que minha Avó comprava e que punha na conta para meu Avô pagar.

O meu Avô Zé, Pai de minha Mãe, era um homem difícil. Nada aberto a mudanças, cristalizara, tanto em hábitos como em ideias, numa época ante rior à primeira guerra, na qual participara muito contrariado. Era um dos três rapazes de uma família com muitas posses; seu Pai, Francisco Santos Bernar des, enriquecera negociando em aguardente, de marca Alfazema, (a origem da alcunha da família, que ainda persiste), que vendia para todo o país, tendo até um vagão de comboio para tal efeito. Descendente de uma linha de almocreves torreenses, casou com uma menina bonita, altiva e muito religiosa, oriunda da melhor sociedade local, mas com poucos rendimentos.

Meu Avô, apesar de ter cursado o Curso de Comércio, só esteve emprega do uns anos, depois de voltar da guerra de 14-18. Assim que recebeu a herança da sua Mãe, e depois de seu Pai, passou a viver dos rendimentos, orientando a exploração das terras agrícolas que passou a ter.

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Meus Bisavós, além dos três rapazes tiveram cinco raparigas, só de uma delas me lembro muito pouco, e conheço uma parte dos primos deles descen dentes, da minha geração. De acordo com as criadas que para eles trabalhavam, tinham quartos separados, mas a almofada dele estava quase sempre, de ma nhã, na cama dela. E como era um homem muito dado, lá foi tendo um ou outro filho fora do casamento. Corria por Torres o boato, não sei com que funda mento, de que até teria tido um caso com a Maria Cachucha, mulher que vestia casaco de homem e era magarefe. Quando ele morreu parece que, para os lados da sua quinta da Almiara, apareceu alguém que, além de ser parecido com o meu Avô e com um dos seus irmãos, tinha algo que podia confirmar ser ele fi lho deste meu Bisavô, e, por isso, recebeu qualquer coisa da herança. Memórias familiares, que passaram de boca em boca, mas das quais não tenho nenhuma comprovação e das quais não posso garantir a autenticidade.

Meu Avô Zé foi interno para o Colégio jesuíta de Campolide (onde meu Avô Bastos, seu amigo, mais velho, já estava há alguns anos), e aí fez a primei ra comunhão em 1906, segundo reza a fita de seda bordada a ouro que nesse dia usou, que eu possuo, e que meu neto Zé Maria usou, no Colégio jesuíta de S. João de Brito, atada à vela da sua primeira comunhão. Em Lisboa, tirou o Curso de Comércio, como já foi dito. Fez parte do Corpo Expedicionário Por tuguês, partiu para a Flandres a 17 de setembro de 1917 (para onde o Avô Bas tos já partira como médico a 22 de abril), e ficava doente quando lhe falávamos nesse tempo. Voltou a 22 de junho de 1919, (o Avô Bastos tinha voltado um ano antes) fez a corte à minha Avó que, sendo órfã e estando a viver um desgosto de amor, a aceitou. Como ela me contou, devido a uma situação pouco clara na relação, no mesmo dia escreveu ao namorado a acabar e ao meu Avô a aceitar namoro; tinha de casar, não era herdada, os Pais tinham morrido, mas os Avós, de quem herdaria mais tarde, felizmente estavam vivos. Casaram, minha Avó teve de aprender a lidar com o feitio difícil do ma rido, e depressa percebeu uma coisa: ele não gostava de que ela tirasse do cofre dinheiro para nada que não fosse estritamente necessário, mas pagava todas as contas que lhe apresentassem de compras que já tivessem sido feitas. Isto porque era um homem profundamente honesto e, perante um facto consuma do não hesitava. Por aqui já ficamos a saber que a Avó tinha conta aberta em grande parte das principais lojas de Torres. Era o caso de uma cooperativa de consumo, que existia defronte da casa da rua Paiva de Andrade, onde eram

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compradas todas as coisas que vinham, bem arrumadinhas, num cesto de ver ga, para Lisboa, e que o Avô pagava sem pestanejar.

Quando não íamos passar os fins de semana a Torres, havia sempre a ce rimónia de ir buscar o dito cesto à camioneta do Capristano, e mais tarde dos Claras, ali numa transversal da avenida Almirante Reis. Além disso, quando íamos a Torres nos fins de semana, que era muitas vezes, a Avó dava ao meu Pai o dinheiro para a gasolina, que ele fazia sempre menção de não querer, mas que lhe dava muito jeito e acabava por aceitar. E, tanto de uma Avó como da outra, recebíamos presentes de roupa no mudar da estação.

A Avó Teresa tinha conta na Casa Lafaia, uma das casas de modas mais conhecida em Torres Vedras, juntamente com a Casa Luís Pereira, a Casa Emes e o Jardim de Modas, hoje todos desaparecidos. O Sr. Lafaia tinha relações co merciais estreitas com duas grandes lojas em Lisboa (desaparecidas no grande incêndio do Chiado), de características diferentes: a Casa Eduardo Martins, na esquina da rua Nova do Almada com a rua Garret, um grande armazém, com produtos sobretudo de uso diário, de qualidade, e a Casa Aguiar, no cimo da rua do Carmo, dirigida a um público mais sofisticado, com uma linha de moda atual e geralmente apreciada. E para comprar os presentes que nos dava, ou alguma coisa que em Torres podia não haver exatamente como queria, a Avó pedia ao Sr. Lafaia que passasse uma carta para cada uma das casas menciona das, nós comprávamos e o Avô pagava na sua conta em Torres. Assim, não tinha de dar o dinheiro nem saía do seu hábito de pagar as contas. Era este o esquema perfeito, nunca nos preocupámos em perceber por que o Avô preferia assim.

A Avó gostava muito de, de vez em quando, vir a Lisboa, geralmente para ir a uma consulta médica, mais ou menos de rotina, ou até para acompanhar a Tia Lu com a mesma intenção. O Avô ficava, geralmente não tinha nada para fazer cá, só vinham todos quando se tratava da venda da fruta ou do vinho: nes sa altura o Avô, que não gostava de conduzir em Lisboa, alugava um carro de praça que os trazia e depois os vinha buscar. Quando a Avó vinha só com a Tia Lu era certo que tínhamos saída para jantar fora e ir ao Teatro. A avó adorava a Laura Alves e as sua peças no Monumental, e nós adorávamos ir, percebía mos que era uma aproximação aos banhos de civilização que ela tinha tido, em jovem, quando a Mãe vinha com o Padrasto de S. Tomé e tinha camarote no S. Carlos (mais à frente explico).

Um episódio a que assisti, num dia em que a conversa foi diferente, revela bem a relação deste meu Avô com o dinheiro. A Avó tinha herdado, do Avô

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Moura Guedes, juntamente com o irmão, uma quinta na Régua, a quinta do Canal, perto da Penajoia, que acabou por ser vendida. Bem pensado, o dinhei ro que lhe coube da venda foi aplicado na compra de um bom pomar e mais alguma terra, junto à Almiara, a quinta de que o Avô herdara metade e que administrava diretamente. Nesse dia que referi, o Avô chegou a casa contente, e, fora do comum, em que só falava de desgraças agrícolas, comentou que tinha vendido a pera e o resto da fruta, por grosso e a muito bom preço, aliás o com prador era o de sempre, parecia que o mercado estava em alta. Também fora do costume, a Avó, bem-disposta, comentou: Fizeste bom negócio, pelos vistos, compraste o pomar com o dinheiro da quinta do Norte, que era minha, e nunca me deste um tostão da venda da fruta para os meus alfinetes, estava divertida a picá-lo. O Avô olhou, admirado, encolheu os ombros, deu meia volta, precisava de pen sar. Deve ter ido para o café Império, era lá que se refugiava quando não queria conversas. Passado um bocado voltou, nós já nem nos lembrávamos da história, e disse, puxando da carteira, e virando-se de costas para a abrir: Dizes que nunca te dei nada, toma lá cem escudos, e estendeu uma nota à Avó, que olhava para ele divertida.

Isto passou-se no início dos anos setenta, já eu estava casada e, com cem escudos a Avó não faria extravagâncias. E o virar-se para abrir a carteira, evitan do que quem estava presente visse o seu conteúdo, era um hábito bem burguês que eu reparei em muitos homens das gerações mais velhas, incluindo o meu Sogro, que era um homem muito generoso.

Mas o meu Avô também sabia ser generoso, de vez em quando. Depois de feita a mudança da Paiva de Andrade para a moradia nova da Carlos França, a casa deixada foi arrendada ao grupo desportivo da Casa Hipólito, e assim se manteve até ao encerramento desta, passando por funções várias. A renda mensal era de 1200$00 e, talvez por influência da Avó, o Avô passou a dar todos os meses 600$00 a cada uma das filhas, minha Mãe e minha Tia Lu. Bem jeito lhes fazia este dinheiro!

A origem nortenha de minha Avó, que poucas vezes tinha ido ao Norte, mas que mantinha contacto com uns primos que viviam perto de Lamego, fa zia com que todos os anos houvesse uma permuta engraçada, Norte-Sul, uma cerimónia familiar que acabou não sei porquê nem quando, mas de que me lembro bem: de Resende vinham cavacas, cerejas e vinho do Porto; de Torres iam vinho, pastéis de feijão e marmelada.

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Todas as ajudas que tínhamos eram preciosas para tornar a nossa vida mais fácil, e, no caso dos meus Avós paternos, repetiam-se por mais cinco fi lhos e por todos os netos que iam nascendo, até aos ditos 21. Aqui está uma característica do espírito de família que agora, os meus primos e eu, conser vamos com muito empenho e dedicação, procurando sempre apoiarmo-nos, a vários níveis.

Hoje pode parecer ridículo o que vou dizer, mas nos anos cinquenta o Avô Bastos estava contente por ver que todos os filhos tinham carro e frigorífico, e muito contribuiu financeiramente, ainda em vida, para que, na década se guinte, todos pudessem ter casa na praia, pois quando morreu a tia Conceição, a cunhada viúva a quem ele dava uma pensão indexada ao preço do trigo, cláu sula da herança que recebera do falecido, seu irmão Francisco Alberto, o Avô vendeu a casa onde ela vivia, em Torres, na avenida 5 de outubro, e distribuiu o dinheiro pelos filhos, que o empregaram na compra das ditas casas na praia. Até o meu Pai, que tinha acabado de estrear a nossa, comprou outra para alugar, que vendeu quando percebeu que o Manel e eu nunca a usaríamos (era essa a ideia dele), pois a casa dos meus Sogros era (e ainda é) muito boa, e foi cres cendo à medida que a família ia aumentando, sem prejudicar o jardim relvado.

A criatividade deste meu Avô paterno, que era um artista e um homem muito sensível, como bem o demonstrou na sua longa vida de médico e cida dão, assim como nos vários quadros que pintou (tenho um), revelava-se tam bém, por exemplo, na forma como dava o presente de Natal a cada um dos seus seis filhos, como o fez, pelo menos, algumas vezes que eu presenciei. Mal a Mis sa do Galo acabava, na igreja de S. Pedro, saía rapidamente, para colocar junto ao presépio os seis pacotes nos quais tinha estado a trabalhar secretamente nos últimos dias. Quando todos chegavam, a mesa estava posta, dava-se início a uma pequena ceia e à entrega dos ditos pacotes, rigorosamente iguais, a cada um. E eram os filhos que tinham de descobrir onde estava a nota de 1000$00 que já sabiam que iam receber. Eu assisti a três destas distribuições, numa de las o dinheiro estava escondido na palmilha dupla de um sapatinho feito em cartolina e cheio de libras de chocolate. O Avô divertia-se tanto a fazer estas charadas como a ver os filhos a resolvê-las.

Outra importante recordação, a Missa do Galo, em Torres, na igreja de S. Pedro, onde só comecei a ir a partir dos onze anos, depois de ter entrado para o Instituto de Odivelas (pormenores mais à frente), depois de ter feito o crisma e a Profissão de Fé, com Bispo e vestido de organdi.

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Quando mais tarde estudei o Barroco como estilo da Contrarreforma, com tudo o que o caracterizou, sobretudo a maneira com foi utilizado para atrair fiéis à igreja, lembrei-me logo do que sentia na Missa do Galo da minha pré-adolescência, era exatamente aquilo de que ouvia a professora falar: uma igreja, reconstruída no século XVI , com lindos azulejos na parede, e altares de talha dourada acrescentados mais tarde, nos quais, várias imagens de santos, de ar devoto e até quase em êxtase, nos atraíam. Depois o ambiente criado: a riqueza dos paramentos dos celebrantes, as lindas flores, cujo aroma se confun dia com o do incenso, que no ar pairava, a música, muita música, suavemente cantada, tudo isto me embalava, sentada nos degraus do altar no topo da nave lateral direita.

Quando tudo acabava, seguia com a família para casa dos Avós Bastos onde ceava com os adultos, mais uma vez o privilégio de ser a mais velha dos netos, com cinco anos de diferença dos que a seguir a mim vieram. Aí recebia um presente. De manhã, em casa dos outros Avós, quando acordávamos tínha mos o pequeno almoço com os sapatinhos junto à chaminé cheios de presen tes, mandados pelo Menino Jesus, nunca me interessou saber como. Árvores de Natal não havia numa casa nem noutra, só presépios, e lindos.

Ainda sobre o Barroco, há poucos anos estive em Roma, onde como todos sabem o Barroco abunda. Várias obras dessa época, de Bernini, vi e recordo muitas vezes: as colunas salomónicas, do baldaquino na Basílica de S. Pedro, que deram o mote para todas as que invadiram as igrejas da cristandade, como suporte, ou como decoração; em Santa Maria della Vittoria , a imagem de Santa Teresa d’Ávila em êxtase, tão realista e teatral que, embora não seja muito gran de, enche o altar em que se encontra; e as maravilhosas estátuas, em tamanho natural, expostas no Palazzo Borghese, em que o mármore se transforma em carne, se molda e palpita. Bernini está sepultado numa campa rasa, na igreja de Santa Maria Maggiore , merecia repousar no Pantheon, junto de Rafael.

O meu Avô, José Alberto de Bastos, era descendente de uma linhagem de homens com o mesmo apelido que, nos fins do século XVIII , vindos da re gião de Viseu, se fixaram em Torres Vedras, onde se afirmaram como bons comerciantes e proprietários, e que, após as mudanças provocadas pela im plantação do liberalismo, passaram a ter sempre um elemento da família na governança local. Seu pai, Alberto José de Bastos e Silva, trabalhando com seu Tio solteirão, Francisco José, que, como ele dizia, lhe aturou os verdores de rapaz, manteve-se solteiro até que o Tio, aos setenta anos, resolveu casar com

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