O Hospital de Todos-os-Santos

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Assistência à pobreza em Portugal no século XVI

O HOSPITAL DE TODOS-OS-SANTOS

Assistência à pobreza em Portugal no século XVI A irradiação da assistência médica para o Brasil, Índia e Japão ANASTÁSIA MESTRINHO SALGADO

ANASTÁSIA MESTRINHO SALGADO

O trabalho apresentado constitui um projecto de pesquisa visando a História da Medicina durante os Descobrimentos, a estrutura hospitalar em Portugal e a sua irradiação para as regiões ultramarinas.

O HOSPITAL DE TODOS-OS-SANTOS

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ANASTÁSIA MESTRINHO SALGADO

É natural de Ciborro (Montemor-o-Novo), onde nasceu a 20 de Novembro de 1933. É viúva de Abílio José Salgado (Psicólogo e Historiador). Historiadora na área da Assistência e da História da Medicina em Portugal na época dos Descobrimentos, esteve destacada no Ministério da Saúde (1989‑2002), de cujos Ministros foi Assessora na área Histórico-Cultural, com a responsabilidade da inventariação e tratamento arquivístico do espólio documental do Ministério e dos Hospitais Civis de Lisboa (1996). Representou o Ministro da Saúde no Conselho Interministerial da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos (1989). Foi Docente de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1979-1983), onde leccionou várias disciplinas, após longa carreira no ensino oficial primário (1951-1962), escola industrial (1951-1964) e ensino liceal (1964-1973). A lista dos trabalhos publicados (Sociologia, Pedagogia e História) e conferências em Colóquios, Congressos e Simpósios pode ser encontrada em: https://amestrinhosalgado.wordpress.com

Outros títulos da By the Book: Escola Médica de Salerno (2014) Senhor Médico, nosso alferes (2014) Médicos Medievais Naturais de Al-Andaluz (2014) Cadernos de um cirurgião (2014) O “Espírito dos Hospitais Civis de Lisboa” (2013) Omnia Sanctorum : Histórias da História do Hospital Real de Todos-os-Santos e seus sucessores (2012) Podem ser adquiridos em www.bythebook.pt


© Edição

By the Book, Edições Especiais Título

O Hospital de Todos-os-Santos Assistência à pobreza em Portugal no século XVI A irradiação da assistência médica para o Brasil, Índia e Japão © Texto

Anastásia Mestrinho Salgado © capa

Rossio antes do terramoto de 1755 Água-tinta, desenho à pena a nanquim de Zuzarte, século XVIII fonte: Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa coordenação Editorial

Margarida Ataíde REVISÃO

By the Book Impressão

ACD Print ISBN

978-989-8614-31-5 Depósito Legal

393923/15

Edições Especiais, lda Rua das Pedreiras, 16-4º 1400-271 Lisboa T. + F. (+351) 213 610 997 www.bythebook.pt


Ao Abílio, que está sempre presente


7

Agradecimentos

9

Nota Prévia

11

Prefácio Elvira Mea

15

Prólogo Margarida Ataíde

17

INTRODUÇÃO I PARTE

21

Assistência em Portugal dos finais da Idade Média à Expansão

23

Assistência em Portugal nos finais da Idade Média

26

A atitude da Mulher Portuguesa perante os pobres na Idade Média

35

Lisboa nos finais do século XV

38

As pequenas unidades de assistência existentes em Lisboa nesta época

53

O contributo da rainha D. Leonor na implantação de uma nova filosofia assistencial

57

A Política Centralizadora na Assistência Hospitalar em Lisboa pelo Rei D. João II

62

Novo modelo hospitalar - O Hospital de Todos-os-Santos

65

O seu regimento

72

As razões que levaram à construção do edifício do Hospital

73

O porquê da localização do edifício

78

Os bens para a sua manutenção

84

Hospital – uma placa giratória de doenças trazidas e levadas O pelos navegadores portugueses

86

Que doenças eram tratadas

94

A decadência do Hospital de Todos-os-Santos – suas causas

96

Anexação do Hospital de Todos-os-Santos à Misericórdia de Lisboa


103

Anexação em todo o reino de alguns hospitais e misericórdias – as duas linhas evolutivas

109

A formação de médicos para o Ultramar a terapêutica médica seguida a bordo

115

II PARTE

A irradiação assistencial portuguesa por todo o mundo hospitais e misericórdias

119

Irradiação da Assistência Médica para o Brasil

151

Irradiação da Assistência Médica para a Índia

155

Irradiação da Assistência Médica para o Japão

155

A actuação dos Jesuítas no Japão

163

percurso pessoal de Luís de Almeida, cristão-novo, médico, O mercador, missionário-médico e finalmente apenas missionário no Japão do século XVI

165

acção de Luís de Almeida como médico e os condicionalismos A sociais, económicos, políticos e culturais do Japão no século XVI

173

CONCLUSÃO

175

GLOSSÁRIO

183

BIBLIOGRAFIA

193

ANEXOS



Nota Prévia O trabalho que ora lançamos resulta de anos de investigação efectuada quer por mim própria quer por, e em conjunto, com Abílio Salgado 1, hoje desaparecido, a partir principalmente do estudo e análise dos arquivos dos Hospitais Civis de Lisboa, e cujos resultados foram publicados em obras individuais e colectâneas diversas. Constitui igualmente o corpo de um trabalho de investigação destinado a fundamentar a minha Tese de Doutoramento. A não finalização desse objectivo primeiro levou-me a considerar a publicação de alguns elementos que considero inéditos e que contribuirão certamente para o avanço do conhecimento actual sobre a História da Medicina em Portugal, em geral, e para o estudo de todas as formas de assistência que a ela estão ligadas, assim como a influência marcada que tiveram nas instituições hospitalares das regiões ultramarinas (Índia, Brasil e Japão) em particular.

1. Abílio Salgado, falecido em 2004, psicólogo e historiador da Medicina no período dos Descobrimentos, publicou variadíssimos trabalhos sobre o mesmo tema, que são devidamente referidos na bibliografia que se publica no final deste trabalho.

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Prólogo margarida ataÍde

A elaboração de uma Tese de Doutoramento implica um sem número de trabalhos de investigação e um compromisso, igualmente em termos de tempo dedicado, na reunião de todos os elementos a ter em conta e na sua análise. Ora é esse tempo particular e esse trabalho de investigação que se encontram patentes nesta obra, mesmo que o trabalho de redacção não tenha sido então finalizado. Representam a mesma dedicação que a autora, a Dr.ª Anastásia Mestrinho Salgado, colocou em tudo o que fez ao longo da sua vida, secundada ou secundando o seu marido. De notar o percurso excepcional efectuado ao serviço dos Arquivos dos Hospitais Civis de Lisboa, e o manancial de informação inédita com que foi confrontada. Cumpriu assim o sonho de qualquer investigador: o de estar em primeira linha no contacto com documentos originais e na sua maioria inéditos, poder tratá-los, classificá-los, analisá-los e deles extrair o que eles dão de melhor – a informação. A longa produção científica que a Dr.ª Anastásia nos lega constitui o incentivo para que outros doutorandos continuem a desenvolver novos (ou revisitar antigos) campos de investigação. Foi o conhecimento que tenho da sua obra e o rigor que vi colocar na exposição da mesma que me levou a insistir com a Dr.ª Anastásia para que a investigação desenvolvida ao longo de muitos anos de contacto com os Arquivos dos Hospitais Civis de Lisboa não ficasse em letra morta, independentemente da elaboração de uma Dissertação ou de publicações posteriores. – 15 –


E parece-me que a reunião num mesmo repositório de informação publicada em revistas da especialidade, algumas hoje já desaparecidas, pode permitir um processo evolutivo e um incentivo a novas leituras de uma mais recente geração de historiadores, ávidos de conhecimento sobre um dos temas menos explorado da nossa História: a evolução da Assistência Médica no período do Renascimento. Um período histórico em que o Homem (e a Mulher) passou a estar uma vez mais no centro das atenções, passou a ser o objecto de novos cuidados, de novas preocupações. É, pois, com um sentimento de dever cumprido e de grande amizade que vejo a finalização de uma obra que, espero, não seja a última.

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introdução Falar da assistência durante a Idade Média e princípios da Idade Moderna implica necessariamente que se façam largas referências aos hospitais, a funcionarem, pelo menos até ao século XV, mais como instituições de solidariedade social do que como instituições especialmente vocacionadas para a prestação de cuidados médicos 2. De facto, várias das fontes consultadas, incluindo a documentação relativa ao Hospital de Todos-os-Santos e a outros pequenos hospitais que a ele foram anexados, permitem-nos concluir que o conceito moderno de Hospital não existia nessa altura, a não ser, talvez, como Oliveira Marques refere, na ideia ou imagem geral do que seriam as enfermarias dos conventos e o seu funcionamento; que os hospitais não passavam, “(…) em regra, de recolhimentos ou hospícios, permanentes ou temporários, com assistência médica reduzida ou nula (…)” (MARQUES, 1974: 103, 104). Permitem-nos também concluir, por outro lado, que no século XV já poderemos falar de hospitais propriamente ditos. No entanto, só “(…) a partir da grande reforma da assistência nos reinados de D. João II e D. Manuel (…)” (MARQUES, 1974: 103, 104) é que se iniciaria verdadeiramente a história dos hospitais portugueses, embora continuassem a manter, durante algum tempo, uma acentuada polivalência, ou seja, um amplo e variado leque de funções, para além da sua especificidade própria, tal como hoje a entendemos. 2. Excerto de Formas de Sensibilidade na Assistência em Portugal nos Finais da Idade Média, Anastásia Salgado e Abílio Salgado, pp. 9-12.

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I PARTE


ASSISTÊNCIA EM PORTUGAL DOS FINAIS DA IDADE MÉDIA À EXPANSÃO



Assistência em Portugal nos finais da Idade Média

Numa primeira abordagem gostaríamos de analisar o conteúdo

ético que se tem entendido por pobreza na Idade Média e estabelecer os parâmetros de uma sensibilidade geral, revelada através de grande variedade de atitudes e práticas sociais incidindo no âmbito da assistência a essa mesma pobreza 3. Numa primeira fase, na Idade Média, a sociedade teria tendência a rejeitar os pobres, os indigentes, os incuráveis “(…) por vezes com uma crueldade inaudita (…)” (SALGADO, 2008). Atitude diferente é a da Igreja, onde transparece, mau grado o formalismo ritualizado, um pouco da misericórdia cristã. E é talvez por intermédio da esmola virtual 4, entregue em ocasiões sagradas, que desperta a responsabilidade colectiva pelos indigentes que se vai difundindo pouco a pouco. Por isso, ao referirmo-nos à assistência à pobreza na Idade Média não poderemos restringir-nos a esta delimitação, pelo que teremos necessariamente de a alargar, incluindo nela o sentido de auxílio ou de socorro. Assistência a famintos, sedentos, desabrigados, doentes, tristes, cativos, alienados, desesperados, transviados, pobres de pão – tudo isto são aspectos de pobreza. 3. Excerto de A Mulher e a Pobreza, comunicação apresentada em Colónia, em Abril de 2008, por Anastásia Salgado. 4. Denomino de “esmola virtual” a esmola dada a um pobre com o intuito de agradar a Deus e não destinada especificamente a suprir a necessidade imediata do primeiro (de onde a expressão antiga “Quem dá aos pobres empresta a Deus”).

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Procuraremos então determinar as necessidades mais prementes da época, e quais as soluções que a sociedade procurava, no sentido de as minorar, pois o problema de atacar nas suas causas profundas o conjunto lato dos males sociais não era equacionável para a sociedade medieval. Entre o vasto leque de carências inerentes à multiplicidade de situações existentes na altura (já atrás referenciadas) temos a considerar as principais: a invalidez, a velhice, a orfandade, a fome, a pobreza por doença, o flagelo da lepra, a viuvez, o cativeiro, dificuldades e perigo nas viagens motivadas pela destruição de pontes e caminhos, etc… De todo este conjunto de situações e ainda da própria mentalidade vigente resulta um acentuado polimorfismo na prática da assistência à pobreza, de onde resulta uma multiplicidade de instituições que vão progressivamente aumentando com a finalidade de colmatar essas formas de pobreza. Na verdade, Portugal tem uma grande parte da sua população a viver na miséria entre os séculos XII e XIV. Mas porquê este estado de miséria? Portugal adquire a sua independência na batalha de São Mamede com D. Afonso Henriques, em 1128. As suas fronteiras estendiam-se do rio Minho ao rio Mondego. Esta fronteira sul oscilava sempre que a reconquista de terras aos muçulmanos era favorável ou desfavorável. A reconquista de terras aos muçulmanos que ocupavam o sul da Península Ibérica só irá terminar no século XV, no reinado de Afonso IV. São 300 anos de avanços e recuos na formação do território que iria ser Portugal. Este longo período de guerras é constituído por conquistas – a cidades como Coimbra, Santarém, Lisboa, Évora, Setúbal, Palmela, Beja, Silves e Faro – onde morre muita gente, quer da parte de quem ataca, quer da parte de quem é atacado. Daí derivam, por um lado, muitos mortos que, deixados abandonados pelos campos e estradas, provocam epidemias; e, por outro, feridos que necessitam de cuidados; mas

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ainda a falta de braços para a agricultura, originando grandes fomes que assolaram o território. Podemos afirmar que a formação e o início de Portugal são períodos gloriosos no campo político. Simultaneamente a essas glórias colhidas em batalhas e conquistas existem períodos de guerra que por sua vez trazem epidemias. Se contarmos com todas as intempéries que houve, os terramotos que aconteceram, concluímos que o desenvolvimento agrícola não foi igual à reconquista realizada e que a fome e as doenças graves alastraram por todo o território. Surgem, pois, manchas de miséria em várias regiões do país. Talvez seja por isso que, desde o princípio da nacionalidade, vemos atitudes de auxílio e socorro a essa miséria, que se traduzia em várias formas de pobreza manifestada quer no aspecto individual quer no aspecto colectivo. No campo individual vemos o colmatar das necessidades dos pobres no cumprimento das obras de misericórdia – “Dar de comer a quem tem fome”; “Dar de beber a quem tem sede”; “Vestir os nus”; “Visitar os enfermos e remir os cativos”, etc. – obras estas que eram feitas quer pelas mulheres quer pelos homens e efectuadas sobretudo ao domicílio, quando eram solicitadas. Destas atitudes caritativas baseadas no Antigo e no Novo Testamento raramente nos aparece o nome de quem as efectua. Já no campo colectivo temos assinalado atitudes de bem-fazer que ficaram registadas em documentos das várias épocas. Essa assistência poderia ser efectuada nos domicílios ou em algumas Instituições de Assistência. Estas Instituições foram as albergarias, as gafarias, e também os hospitais e mercearias, entre outras. O que foram as albergarias? Foram instituições que se destinavam a albergar ou receber gratuitamente com fim caritativo, instituídas por benfeitores para socorrerem viajantes pobres, forasteiros perdidos e desconhecidos. Numa terra inóspita (como era Portugal nesta época), sem unidade e sem policiamento, as albergarias tiveram um papel importantíssimo. – 25 –


Também são fundadas gafarias ou hospitais para leprosos. Estas instituições destinavam-se a socorrer os infelizes doentes atacados pela lepra – horrível flagelo de espantosa contagiosidade que nestes rudes tempos, com a falta de higiene, com o tipo de vestuário de lãs e peles mal curtidas, com falta de profilaxia ou terapêutica adequada, atingiu de forma alarmante a população medieval. Multidões de homens e mulheres viviam como manadas de animais escorraçados, fugindo de terra em terra afugentados à pedrada pelas populações. Acolhiam-se em cavernas, dispersos em montes e bosques, morrendo de frio e à míngua de alimentos. Ninguém lhes dava acolhimento, fugindo deles e desprezando-os totalmente. Fogem à regra luminosas figuras de Rainhas e Princesas Portuguesas em defesa dos leprosos ou lazarentos, despojando-se de lençóis de linho e outras peças do seu rico enxoval e vendendo jóias para socorrerem as feridas e fome destes miseráveis. Para melhor tratamento, mandaram construir as gafarias e pequenos hospitais para os albergar, matar-lhes a fome, resguardá-los do frio… (porque segundo a sua crença essas criaturas desamparadas têm coração como os outros). Sobre este assunto falaremos um pouco mais adiante.

A atitude da Mulher Portuguesa perante os pobres na Idade Média Estão claramente referenciadas na documentação dos finais da Idade Média não só as iniciativas femininas no âmbito da Assistência Médica em Portugal, como a presença ou participação das mulheres na prática terapêutica então realizada, desde a cirurgia até ao tratamento de alienados, passando por outros cuidados de saúde normalmente exercidos pelos Físicos e que hoje, salvaguardadas as devidas distâncias, poderíamos inserir no âmbito da clínica geral.

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Quanto ao primeiro aspecto, não podemos de modo algum omitir as iniciativas levadas a cabo pela Rainha D. Leonor, cujo impacto se sentiu não só em Portugal como nas diversas partes do mundo a que os portugueses chegaram, tal como será mais adiante referido. Convirá no entanto realçar que já antes da fundação da Nacionalidade a acção das mulheres se fazia sentir no âmbito da Assistência em geral, intimamente relacionada com uma assistência em sentido mais restrito: a prestação de cuidados de saúde. É o caso, por exemplo das albergarias, onde temos a destacar as iniciativas de D. Teresa, a quem se devem as Albergarias de Mesão Frio, Moledo, Amarante, Marco de Canaveses e Albergaria-a-Velha. Esta última, fundada em 1120, situava-se num ponto de intercepção de onde partiam vias para Lisboa, Porto, Aveiro e Viseu, sendo destinada aos viajantes pobres que aí eram tratados se estivessem doentes. As albergarias acumulavam, pois, as funções de abrigo e de prestação de cuidados de saúde. Daí que Maximiano de Lemos (LEMOS, 1991) afirme mesmo que os primeiros hospitais que possuímos foram as albergarias. Outro exemplo caritativo é o da mulher de D. Afonso Henriques, D. Mafalda: por todo o território já conquistado pelo marido, que ia até ao rio Tejo, nas localidades e sítios ermos onde os viandantes mais carecessem de socorro e descanso nas suas peregrinações, fundou albergarias e também gafarias. A albergaria mais antiga fundada por D. Mafalda teria sido a de Canaveses no Douro. Ali havia camas para nove peregrinos com lume, água e sal. A Rainha teria mesmo deixado alguns bens pessoais a esta albergaria para que ela pudesse sobreviver, como, por exemplo, uma quinta, rendas, moinhos e foros. Teria igualmente fundado em Penacova outra albergaria de pobres, um pequeno hospital e uma gafaria para doentes leprosos. Também em Eregos, na Beira Alta, D. Mafalda fundou uma gafaria. Na Ameixoeira, próximo de Lisboa, teria instituído outra albergaria para romeiros. As Princesas Santa Teresa e Santa Sancha (filhas de D. Sancho I) teriam dedicado a sua vida a tratar dos pobres e doentes, sobretudo leprosos. A elas se deve a fundação da gafaria de Coimbra. – 27 –


Outras Princesas e Rainhas, como a Rainha D. Brites (mulher de D. Afonso IV) e a Rainha Santa Isabel (mulher de D. Dinis), ampliaram estas instituições e fundaram outras novas. Santa Isabel fundou a albergaria de Alenquer em 1320. Esta albergaria era ao mesmo tempo hospital onde a própria Rainha tratava e curava os enfermos. Além das albergarias, criou vários hospitais e gafarias, como as de Leiria, Óbidos e Odivelas. Socorria com esmolas e dotes as raparigas pobres. Dotava e protegia as órfãs. Visitava em suas próprias casas os enfermos desvalidos. Em alturas de fomes que assolaram o Reino, mandava distribuir nos Paços Reais roupas, pão e víveres para matar a fome aos pobres. Os Paços da Rainha Santa Isabel tornavam-se um verdadeiro asilo de pobres. Santa Isabel deixou mesmo, no seu Testamento (feito em Coimbra em 1327), cem libras de ouro aos gafos de Santarém. D. Leonor de Lencastre também fundou, em São Pedro de Penaferrim, concelho de Sintra, um hospital para gafos, cujas rendas se dividiram mais tarde pelas Misericórdias de Sintra e Cascais. Outras instituições de assistência à pobreza na época medieval foram as mercearias com fins caritativos, tendo geralmente um pequeno hospital anexo onde se recolhiam pobres inválidos de ambos os sexos, viúvas e órfãs, ou pobres de idade avançada – de “bons costumes e boa fama” –, tendo apenas como obrigação rezar pela alma dos seus benfeitores. Assemelhavam-se ao que hoje chamamos lares para a terceira idade. D. Brites, mulher do Rei D. Afonso IV, instituiu as mercearias de El-Rei. Também D. Leonor, mulher do Rei D. Duarte, fundou em Torres Novas uma mercearia para viúvas ou donzelas pobres que fossem de bons costumes e naturais daquela terra. D. Leonor de Lencastre, que já mencionámos pela fundação de uma gafaria no concelho de Sintra, residindo há algum tempo na vila de Óbidos, teve um papel importante na assistência à pobreza. Foi após o doloroso transe da morte do seu filho único que a Rainha se dedicou exclusivamente a obras de caridade, as quais imortalizaram o seu nome. Na vila de Óbidos instituiu uma mercearia para cinco merceeiras. – 28 –


Vimos, pois, como a piedade das Rainhas e Princesas, muitas vezes com o auxílio dos monges e confrarias, deram apoio em Portugal aos primeiros institutos de caridade pública: albergarias, gafarias, mercearias e hospitais. Mais tarde, outras mulheres de média condição económico-social, certamente ao verem a atitude que mulheres da nobreza tinham perante a classe mais desfavorecida, mostram também a sua preocupação pela pobreza, instituindo igualmente várias albergarias anexadas a hospitais que elas próprias fundaram. É o caso de Sancha Dias, Maria Esteves e Maria Boim ou Aboim (SALGADO, 1994). Sancha Dias

A ela se deve o Hospital de Sancha Dias, situado na antiga Rua dos Fornos, na Freguesia dos Mártires. Além da Albergaria (com 11 camas), tinha ainda uma mercearia 5 incorporada. Acabou por ser anexado ao Hospital de Todos-os-Santos. MARIA ESTEVES

Funda o hospital com o mesmo nome, no ano de 1343, no antigo Largo de Santo André (à Graça). Tinha 6 camas e uma albergaria anexa, a Albergaria de Maria Esteves. MARIA BOIM OU ABOIM

Funda o respectivo hospital em 1375. Situava-se na actual Rua das Portas de St.º Antão e tinha anexada uma mercearia com 10 merceeiras 6. No actual n.º 19 podemos observar no pequeno quadrado existente por cima da respectiva porta, um “S” invertido que pode significar “Spirital” (hospital) ou pode ainda indicar que se trata de uma propriedade do Hospital de Todos-os-Santos, no qual foi incorporado. 5. Instituições de beneficência, cujos beneficiados eram os merceeiros ou merceeiras. 6. Ver nota anterior.

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Novo modelo hospitalar O Hospital de Todos-os-Santos Como surge o Hospital de Todos-os-Santos? A 15 de Maio de 1492 “mandou el rey per ante si fundar e começar os primeiros alicerces do Espritall grande de Lisboa da invocação de todo los Santos” – palavras com que Garcia de Resende, na sua Crónica de D. João II, se refere ao Hospital e ao lançamento da sua primeira pedra. Este acontecimento enquadra-se em determinados condicionalismos e em certas características estruturais. De facto, a posição geográfica de Portugal caracterizou ou condicionou o desenvolvimento económico do país, orientando-o para aqueles aspectos mais intimamente relacionados com o mar. A própria capital é influenciada no seu desenvolvimento pela proximidade do rio que orientou a sua expansão no eixo Este-Oeste. O Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém reflectem uma expansão da cidade, no mesmo eixo, mas apontando para ocidente. No sentido oriental temos o Convento da Madre de Deus e o Palácio de Xabregas (ARAÚJO, 1990: 23). O Hospital

Foi nos estados mais desenvolvidos da Itália, como Florença (Hospital de Santa Maria Nuova, com origem no século XIII, mas ampliado e modernizado no século XV), Siena (Hospital de Santa Maria), Milão (Hospital Maggiore) ou Roma (Hospital do Espírito Santo) – os dois últimos apresentando planta em forma de cruz –, que teriam surgido os primeiros grandes hospitais centralizados que vão servir de modelo, tanto no que respeita à planta como ao seu funcionamento, àqueles que se irão edificar em muitas das maiores cidades europeias no decurso dos séculos XV e XVI. Não foi, certamente, por acaso que D. João II, no seu testamento, feito em Setembro de 1495, em Alcáçovas, quando viajava para Alvor, onde veio a falecer em Outubro, ao recomendar ao seu testamenteiro sucessor a conclusão da obra do Hospital Grande de

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Lisboa, exprimiu o desejo de que o seu Regimento se inspirasse no dos modelares hospitais de Florença e Siena. A concretização da ideia da fundação do Hospital por um período que nos pode parecer demasiado longo (pois que, germinada em 1479, quando D. João II era ainda Príncipe – este soberano sobe ao trono em 1481 –, só começou a ser executada a partir de 1492) justifica-se por delongas impostas pelas sucessivas crises políticas que marcaram o reinado do Príncipe Perfeito e pelas demoras com a obtenção das autorizações papais. Com efeito, a primeira autorização concedida pelo Papa Sisto IV, através da bula Ex debito sollicitudinis officio pastoralis, datada do mesmo ano de 1479, perdeu a validade por, entretanto, haver falecido este papa, tendo sido confirmada em 1486 pela bula Iniunctum nobis desuper de Inocêncio VIII. Além disso, há ainda a ter em conta as dificuldades que um processo complicado como o da transferência dos legados das numerosas instituições de beneficência devia ter levantado (por força da bula papal estes passariam a constituir o principal suporte material do novo hospital central). Inclusivamente, algumas dessas instituições teriam, por certo, oferecido resistência. Por outro lado, as obras, que sabemos já se encontrarem adiantadas em 1495 quando morre D. João II, prolongaram-se ainda por mais alguns anos. Apesar da determinação de D. Manuel I de cumprir as disposições testamentárias do seu antecessor – entre as quais se encontrava a conclusão do “Hospital Grande” de Lisboa –, não foi possível evitar naturais atrasos, primeiro em virtude das dificuldades da retoma dos poderes pelo novo soberano e, depois, pela ausência de D. Manuel I que, em 1498, acompanhou a Rainha sua mulher, Dona Isabel, filha dos Reis Católicos, a Espanha, onde foi jurada herdeira do trono. Foi pois enviado em 1479 o pedido de autorização de D. João II ao Papa Sisto IV para fundar um grande Hospital em Lisboa. Tendo em vista a sua sustentação, além dos rendimentos próprios com que pensava dotá-lo, necessitava da permissão papal para concentrar nele os bens de cerca de 43 instituições de assistência existentes em Lisboa

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e arredores (que já descrevemos), prática já experimentada em casos idênticos como, por exemplo, no Hospital Maggiore em Milão, que lhe é pouco anterior. Data, porém, de 15 de Maio de 1492 a cerimónia de lançamento da primeira pedra para a construção do Hospital Real de Todos-os-Santos que Garcia de Resende, repetindo e ampliando o que já fora relatado por Rui de Pina, descreve nos seguintes termos: “No anno de mil e quatrocentos e noventa e dois, a quinze dias do mez de Maio, mandou El Rei perante si fundar e começar os primeiros alicerces do Esprital Grande de Lisboa, da invocação de Todoslos Santos, na maneira em que ora está feito, o qual lugar era horta do mosteiro de São Domingos. E nos primeiros alicerces El Rei por sua mão por honra de tão Santo, tão grande e tão piedoso edifício, lançou muitas moedas d’ouro, e esse dia andou todo ali vendo como se começava, e comeo em casa do conde de Monsanto, que é pegada com a horta do dito Esprital” (RESENDE, 1622: 93). A decisão de incorporar numa só instituição a quase meia centena dos hospitais dispersos pela cidade de Lisboa, que se regiam por regulamentos antigos, desactualizados, e por isso mesmo dificilmente adaptáveis aos condicionalismos dos finais do século XV, era uma medida que se impunha, tanto mais quanto é certo que algumas dessas pequenas unidades, à falta de um regulamento interno, eram administradas arbitrariamente com as consequentes irregularidades que a falta de normas mais facilmente permitia. Daí que essa deficiente organização e mau funcionamento, agravados ainda com a escassez de recursos normalmente verificada nesses pequenos hospitais, impusessem a necessidade de canalizar toda a diversidade de rendimentos para um só organismo que, sob a protecção e fiscalização do poder central, estaria em condições de prestar um serviço social mais eficaz. Os desmandos e abusos vinham de longe. Já o Infante D. Pedro, na célebre carta de Bruges, alerta o irmão, o Rei D. Duarte, denunciando as irregularidades que se verificavam nas albergarias e hospitais portugueses. – 64 –


A fundação do Hospital das Caldas, sem incorporar nenhuma unidade hospitalar anterior e portanto sem ferir interesses alguns, seria um estímulo para a criação em Lisboa de uma nova unidade hospitalar. Demonstrar-se-iam assim as vantagens de uma outra concepção em termos de assistência médica (combatendo as resistências dos que se opunham a uma fusão da multiplicidade de unidades hospitalares em hospitais com uma estrutura administrativa mais racional), de que o Hospital das Caldas serviria como modelo exemplar (SALGADO, 2007), não obstante o seu compromisso ser posterior (1512). É neste enquadramento que temos de situar a fundação do Hospital de Todos-os-Santos, marco importante na história da medicina em Portugal e, também ele, verdadeiro modelo da nova filosofia hospitalar.

O seu regimento O Regimento publicado em 1992 (SALGADO e SALGADO, 1992) em edição fac-similada com transcrição, notas e glossário de alguns termos hoje em desuso, é uma cópia do manuscrito original (século XVI), trasladado num códice que existe no acervo documental do Hospital de São José e designado por Daupiás de Alcochete como um “Registo geral dos reinados de D. João II e D. Manuel I”. Façamos pois uma listagem do seu conteúdo. Constam dele: 1. O Regimento das Capelas; 2. Regimento das penas Hospitalares; 3. Disposições sobre os bens dos Judeus, Mouros e Cristãos novos 4. A ordenação das armas; 5. Várias disposições sobre os bens dos Tangomanos 25; 6. A proibição de se desfazerem navios na ribeira de Lisboa e o regimento do Almirante do Mar; 25. Ver glossário e notas.

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7. A ordenação sobre a equiparação das moedas – “Ordenaçom nova sobre soldos, livras e ceptijs”; 8. Os privilégios das amas; 9. O Regimento do Hospital de Todos-os-Santos; 10. A transferência da sua administração para os Lóios; 11. Excertos do testamento de Fernando de Aragão – o Rei Católico; 12. Vários tipos de contencioso. Feito este enquadramento prévio, passemos agora a um brevíssimo apontamento, referente ao Regimento do Hospital, focando resumidamente as seguintes alíneas: 1. A Estrutura Administrativa Fazer uma análise ou radiografia da administração de Todos-os-Santos, atendendo à complexa teia de interesses que a ele estavam ligados, à multiplicidade das fontes de rendimento, aos litígios que se arrastavam e multiplicavam devido à grande confusão quanto ao posicionamento ou enquadramento legal dos respectivos bens, é tarefa ingrata que mais difícil se afigura se atendermos também à multiplicidade de funções ou encargos que sobrecarregavam, na altura, não só esta, como outras instituições congéneres: assistência aos enjeitados, aos pedintes andantes, às merceeiras e merceeiros 26. Tudo isto, a par das funções hospitalares, tal como hoje as entendemos. A indefinição e interpenetração de funções, assim como o labirinto legal a que a acção disciplinadora das ordenações Manuelinas não conseguiu inteiramente pôr cobro, aumenta ainda as dificuldades apontadas. Limitar-nos-emos, por isso, a fazer uma breve alusão à sua organização interna. Posto isto, e respeitando estes limites, diremos apenas que o vértice da estrutura administrativa era a Provedoria, sendo o seu titular coadjuvado pelo vedor do hospital que o substituía nas suas ausências. Segundo o próprio regimento, era sobre o vedor que recaia “a principal 26. Pedintes andantes, merceeiros e merceeiras (ver glossário, pp. 178 e 179).

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parte do governo do dito Esprital e da boa ordem e conservação das cousas delle”. 2 . Definição das funções inerentes aos diversos oficiais e ao pessoal menor Ainda quanto à administração interna, convirá referir o hospitaleiro, nas suas funções de fiscalização do pessoal menor e de serviço dos enfermeiros, superintendendo ainda nos serviços de limpeza e na disciplina e administração da casa dos “pedintes andantes”. O almoxarife, por outro lado, tinha competência de tesouraria, incluindo o encargo de receber não só as rendas em dinheiro como em espécie. Interferia também, sob a orientação do provedor que superiormente controlava e dirigia as actividades fundamentais do hospital, em vários outros aspectos que seria fastidioso enumerar. Pode-se ainda considerar como tendo funções de superintendência no economato. Quanto à definição das várias funções inerentes aos diversos oficiais e ao pessoal menor, ela consta ou é feita nos respectivos títulos. Começando pelo título dos capelães e acabando no título do barbeiro/ sangrador, especificam-se sucessivamente as diversas competências e indicam-se os proventos anuais. 3. Preceitos de Higiene e Cuidados Terapêuticos O Regimento faz várias alusões à higiene que deveria reinar no Hospital: limpeza das camas, dos bacios (“camareiros”, na linguagem da época), dos urinóis, arejamento dos aposentos, para evitar o “maao cheyro”, a limpeza das “necessárias” (sentinas), etc. Há ainda referência aos banhos a aplicar, à mudança de roupas, camisas, lençóis, etc. que devia ser feita de 8 em 8 dias ou menos, caso o “físico” o determinasse em função das características inerentes às respectivas enfermidades. Chama também a atenção para o asseio que as enfermarias devem apresentar, porque, tal como é opinado, a limpeza “he hüma das primcipaes cousas que aproveita aos doentes e de que os enfermeiros devem ther mayor cuydado”. Outra coisa curiosa que o regimento revela – 67 –


é aquilo que hoje designaríamos pela percepção dos aspectos psicossomáticos da doença. É o que acontece quando se fala de “Caridade e comsollaçam pera os doemtes”, não por motivos piedosos, mas sim porque, “allem da vertude da mezynha” os doentes receberiam com isso proveito. Por outro lado, “se o comtrairo dyso fosse”, “serya couza muyto dapnosa a saude dos emfermos” (fól. 120 v). 4. Normas quanto à assistência aos “meninos enjeitados” A sua recepção e encaminhamento obedeciam a um certo número de preceitos (fól. 103), mas o que nos interessa quanto a este aspecto salientar, são as diligências efectuadas no sentido de os integrar no mundo do trabalho. Assim, ao atingirem a idade de 7 anos que é a idade a partir da qual se considerava que já estavam “criados”, havia duas hipóteses a considerar: ou eram dados “a soldada” (postos a trabalhar por conta de outrem), ou então iniciavam uma aprendizagem profissional de acordo com as suas capacidades. Neste caso, o provedor punha-os a “aprender allguns offycios segundo que elle melhor visto for e da abellidade de cada hum moço lhe parecem” (fól. 114 v e 103 v), o que pressupõe uma certa (embora larvar) tendência para aquilo a que hoje chamaríamos, de certo modo, uma incipiente forma de orientação profissional. Nos nossos dias é notoriamente chocante a precocidade quanto ao ingresso no mundo do trabalho. Trata-se no entanto de uma prática que não era exclusiva do Hospital, mas que era geralmente seguida na sociedade da época. Eram obrigados a usar vestuário de pano azul, marcados com um “S”, como indicação de que pertenciam ao hospital. Essa mesma obrigação era extensiva aos escravos e a todas as pessoas a quem, pelo regimento “se ouver de dar” o referido vestuário. 5. Alguns aspectos disciplinares Quanto a esse aspecto, temos dois tipos de actuação: um, relativamente aos utentes, digamos assim, como por exemplo se verifica na

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actuação do Hospitaleiro no que se refere ao bom funcionamento e harmonia que deveria reinar na casa dos pedintes andantes 27. Caso essa harmonia não existisse, e esgotados todos os recursos, os prevaricadores seriam expulsos. Outro tipo de actuação haveria, como por exemplo aqueles que incidiam sobre a actividade dos capelães, controlada pelo “apontador” que comunicava superiormente possíveis negligências, sancionadas por descontos no salário, suspensão, ou, em certos casos graves, demissão. 6. Referência à Sífilis (casa das boubas) A palavra bouba, ou buba, era, nesta época, a designação de sífilis ou pústula sifilítica. Designava ainda um pequeno tumor cutâneo, ou uma intumescência dos gânglios linfáticos da virilha. Acabou no entanto por ser usada na acepção de Sífilis ou pústula sifilítica, como inicialmente se disse. Ruy Diaz de Ysla, que trabalhou no Hospital de Todos-os-Santos na primeira metade do século XVI, desde 1511 até aos anos 30, dedicou uma obra a esta enfermidade: Tractado cõtra el mal serpentino: que vulgarmente en España es llamado bubas... Etc.. É datada de 1539. Ysla especializou-se no seu tratamento, durante a actividade profissional exercida em Todos-os-Santos. Foi, pois, a partir dessa experiência que ele obteve o material clinico que lhe serviu para a elaboração da obra atrás citada. No entanto, a primeira referência entre nós, a esta doença, parece ter-se verificado no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Mais tarde e relativamente ao Brasil, já na segunda metade do século XVI, temos a considerar as alusões de José de Anchieta e de Gabriel Soares de Sousa. Quanto à historiografia portuguesa relativamente a esta época e à enfermidade, não podemos omitir Costa França, Augusto Silva Carvalho e Costa Santos. Este último com a obra, O Tratamento das boubas no Hospital Real de Todos-os-Santos, em princípios do século XVI. 27. Pedintes andantes – Ver glossário e notas (p. 179).

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F.3 : O Tratado das Boubas, do Cirurgião Diaz de Ysla, escrito entre 1510 e 1520 e dedicado a D. Manuel de Portugal. A capa é da raríssima edição única de Lisboa, 1539 (cópia fotográfica da colecção E. Duarte).

Quanto ao conjunto documental agora publicado, há referências às “boubas”, aos “doentes das boubas” e, ainda, ao sector do Hospital onde esses doentes eram tratados. No capítulo IV do Regimento, “título do fizico do Esprital e da maneira q hade ter em servir seu officio”, indica-se uma das suas funções: “Será obrigado de curar e vizitar os doentes das boubas em todo aquello q à Fizica tocar, e remedialos há, e curará o melhor q poder na casa apartada q para oz ditos doentez hordenamos no dito Espritall”. Há ainda referência mais pormenorizada quanto aos cuidados a ter neste sector do Hospital, nomeadamente no que diz respeito às roupas atribuídas a cada leito. É o que consta no título alusivo às funções do Espritaleiro (Hospitaleiro). – 70 –


7. Referência ao ensino da cirurgia Estava a cargo do cirurgião ao qual competia, além, das visitas e observação dos doentes, devidamente regulamentadas, a obrigatoriedade de ler “cada dia huna liçam aos seus dous moços que há de ter e que ham de ser pagos das remdas do espritall pera aprenderem theorica e pratica e poderem ficar ymsinados pera o serviço do dito espritall” (fól. 127). 8. A dieta alimentar São apenas referidas duas refeições, o jantar e a ceia, que correspondem ao nosso almoço e jantar. Por outro lado, o consumo médio dos produtos alimentares por parte daqueles que em virtude do regimento deveriam comer no refeitório é também indicado nesse mesmo regimento (fól. 105), assim como alguns desses produtos: frangos, galinhas, carneiros, ovos, aves, etc. ... Quanto às quantidades médias indicadas, elas são as seguintes 28: Pão: Consumia-se por pessoa e por mês, aquela quantidade que seria obtida a partir de três alqueires e meio de grão, o que correspondia a 1.300 gramas por dia. Vinho: 3 quartilhos por dia, ou 7,5 dl, o que equivalia, por refeição, a 3,75 dl. Carne ou peixe: 1 arrátel, o que equivalia a 459 gramas. Esta dieta era também seguida pelos doentes, mas apenas quando “nam esteveram em cura”.

28. Este consumo médio deverá ser encarado, supomos, em termos dos quantitativos globais adquiridos e a distribuir pelo conjunto das pessoas. Daí que nalguns casos as quantidades referidas, descontadas as “quebras” e previsíveis desvios, não pudessem ser rigorosamente, as que se apresentaram.

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As razões que levaram à construção do edifício do Hospital Coube a D. Manuel I, pois, concluir as instalações hospitalares e também construir toda a fachada voltada para o Rossio, pois, segundo Damião de Góis, aquele soberano “fez nelle todallas casas que estam na face do roxio des na rua da betesga, ate o mosteiro de S. Domingos” (GÓIS, 1749: 596). Que algumas casas desta ala (ou da ala que entestava com o Mosteiro de São Domingos) já em finais de quatrocentos estavam operacionais, é prova ter-se aí reunido a Câmara em 1498 e o Provedor por ali despachar pelo menos desde 1497. O Hospital Real de Todos-os-Santos surge em Lisboa numa época em que em toda a Europa, como consequência do centralismo do poder (movimento que se processa através dos séculos XIV e XV e que, entre nós, é protagonizado por D. João II), as pequenas e rudimentares instituições de beneficência medievais – um misto de albergarias, hospícios e hospitais, sustentados por conventos ou legados pios deixados por beneméritos – dão lugar a grandes hospitais centrais. Estes, dependentes do rei, tinham dotações próprias, em muitos casos, como o do Hospital de Todos-os-Santos, acrescidas dos rendimentos dos pequenos hospitais nele incorporados. Sendo um dos mais antigos da Europa que adoptou a planta cruciforme e as inovações introduzidas em estabelecimentos congéneres italianos no decurso do século XV, não há dúvida que o Hospital Real do Todos-os-Santos, para a sua época, constituiu uma grandiosa, moderna e bela instituição. Disso mesmo dão testemunho alguns dos viajantes estrangeiros que descreveram a nossa capital no século XVI. Também Damião de Góis, o português mais viajado desse século, ao referir-se-lhe, não hesita em afirmar “que tudo (nele) se faz de tal maneira que o nosso hospital pode muito bem reivindicar a primazia sobre todos os hospitais reais, embora muito numerosos e célebres, que se encontram através da Espanha ou das restantes regiões do mundo cristão” (GÓIS, 2001: 49).

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José de Vasconcelos de Menezes (MENEZES, 1987) alude a uma interligação entre o hospital e as navegações. E embora afirme não ter encontrado documento que incontestavelmente comprove que Todos-os-Santos foi construído como consequência directa da expansão marítima, inclina-se no entanto, para essa hipótese.

O porquê da localização do edifício Para a escolha do local onde veio a edificar-se o Hospital Real – a horta do Convento de São Domingos, lado Oriental do Rossio, sítio que por ser baixo e alagadiço não apresentava as melhores condições para uma fundação destinada a proteger a saúde pública –, concorreu certamente, além da sua situação central e acessível, o facto de ser terreno “despejado”, isto é, sem quaisquer outras construções. A circunstância de, tratando-se de um terreno doado por D. Afonso III ao Convento para cultivo, ser fácil ao rei retomá-lo em troca de compensações por si concedidas, também devia ter pesado nesta decisão. Vejamos agora a localização deste hospital e ainda a maneira como as referidas formas de sensibilidade se exprimiam ou revelavam, não só no conjunto arquitectónico das suas instalações, como ainda na ornamentação do seu interior. Construída na Praça da Figueira, a planta do Hospital de Todos-os-Santos era em cruz, talvez baseada no exemplo dos hospitais italianos e espanhóis que eram cruciformes, tendo os mesmos sido projectados, na sua grande maioria, pelo arquitecto Henrique Egas; eventualmente terá sido ele também o autor do projecto do nosso Hospital Real de Todos-os-Santos. Os degraus da escadaria que dava acesso ao respectivo templo, situavam-se a 8,6 metros do Rossio, na sua actual configuração. Vestígios desses degraus chegaram até nós e foram descobertos em 1953 no interior do restaurante “Irmãos Unidos” (CARMONA, 1954). – 73 –


Quanto ao aspecto exterior do edifício, restam-nos hoje algumas gravuras e ainda um painel de azulejos que nos apresenta uma vista do Rossio tal como ele era em 1699. Uma estampa de Zuzarte mostra em toda a extensão do lado oriental do Rossio uma arcada, desde a esquina da Betesga até ao limite norte do Convento de São Domingos, apenas interrompida, mas só aparentemente, por uma ampla escadaria de cinco faces e um largo patamar poligonal precedendo a entrada da igreja (ver F.4).

F.4 : Hospital Real de Todos-os-Santos, painel de azulejos (c. 1740) reproduzindo estampa de Zuzarte (fonte: Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa).

De notar não só a monumentalidade da escadaria que dava acesso ao templo, como da própria fachada, e ainda o espaço que este ocupava, relativamente ao conjunto da área disponível. A escadaria referenciada dá acesso ao interior da igreja do hospital. Tudo isto reflecte, ao nível da assistência hospitalar da época, a justificação ou referencial básico de uma sensibilidade profundamente influenciada pela Igreja que por sua vez veiculava, nem sempre de uma forma correcta, o conteúdo ético-doutrinal do Cristianismo. – 74 –


F.5 : Estudo preparatório da decoração de um dos tectos do Hospital Real de Todos-os-Santos, elaborado por Fernão Gomes (fonte: Biblioteca Nacional de Portugal, http://purl.pt/14998). – 75 –


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