Amberville - A Lista da Morte

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AMBERVILLE



AMBERVILLE

Tim Davys

Tradução de Otávio Albuquerque


Título original em sueco: Amberville Traduzido a partir da edição norte-americana [Amberville]. Copyright © 2009 by Tim Davys Corporation. Publicado mediante acordo com a HarperCollins Publishers. Amarilys é um selo editorial Manole. Este livro contempla as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil. Capa Hélio de Almeida Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)    Davys, Tim     Amberville / Tim Davys ; traduzido por Otávio    Albuquerque. -- Barueri, SP : Amarilys, 2010.    Título original: Amberville.    ISBN 978-85-204-2935-8    1. Ficção sueca I. Título. 09-12660                   CDD-839.73 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura sueca 839.73 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer processo, sem a permissão expressa dos editores. É proibida a reprodução por xerox. A Editora Manole é filiada à ABDR – Associação Brasileira de Direitos Reprográficos. 1a edição brasileira – 2010 Direitos em língua portuguesa adquiridos pela: Editora Manole Ltda. Av. Ceci, 672 – Tamboré 06460-120 – Barueri – SP – Brasil Tel.: (11) 4196-6000 – Fax: (11) 4196-6021 www.manole.com.br / www.amarilyseditora.com.br info@amarilyseditora.com.br Impresso no Brasil Printed in Brazil


AMBERVILLE LANCEHEIM TOURQUAI YOK



Capítulo 1

E

m uma manhã no fim de abril, batidas sacudiram a porta do apartamento de Eric Urso e Emma Coelho na Rua Uxbridge vermelho-tijolo. A chuva matinal havia dado uma trégua e o sol voltava a brilhar sobre Mollisan Town. — Cale a boca e pare de bater — resmungou Eric Urso para si mesmo, puxando o cobertor sobre a cabeça. Mas o cobertor era fino demais; as batidas na porta ecoavam com vigor dentro de sua cabeça. Seria impossível voltar a dormir. A noitada do dia anterior havia sido longa e confusa. O tipo de noite em que absolutamente todos os bichos de pelúcia parecem ter decidido sair de casa. Os restaurantes em Lanceheim estavam lotados. Na Pfaffendorfer Tor violeta-brilhante, os animais abarrotavam a rua desde a Sala de Concertos, e o congestionamento na Krünkenhagen amarelo-mostarda estava pior do que a Avenida Norte na hora do rush. Répteis e mamíferos, peixes e aves, animais imaginários e até alguns insetos: todos os tipos de bichos de pelúcia se amontoaram em Lanceheim. — Venham comigo! — bradou Eric quando o movimento na calçada ameaçou dividir o grupo. Estavam em cinco. Wolle Sapo, Nicholas Gato e um chefe de projeto da agência de publicidade Wolle & Wolle cujo nome ele não sabia.

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Mas era Philip Babuíno quem estava ao lado de Eric. Naquela noite, Babuíno era o centro de todas as atenções. Ele representava a fábrica de sapatos Dot. A empresa estava procurando uma nova agência de publicidade há vários meses, e a Wolle & Wolle estava prestes a vencer a disputa. Agora, faltava apenas um empurrãozinho. Eric Urso estava pronto para dar esse empurrão. Eric avistou um restaurante não muito distante dali. Ao longe, viu as letras amarelas grossas da placa de néon que diziam: “Papagaio’s Bar & Grill”. — Ah, o Papagaio’s — disse Eric para Philip Babuíno. — Nunca tive um minuto de tédio lá. Na verdade, Eric Urso nunca houvera sequer ouvido falar daquele lugar, e era bem provável que jamais conseguisse voltar a encontrá-lo. Mas as letras em néon de estilo manuscrito o lembravam da art decó de sua infância e, de todo modo, nenhum restaurante era muito diferente do outro por ali. — Só espero que não haja nenhuma dama decadente no Papagaio’s — disse Babuíno, com um riso nervoso. — Eu não saio há quase vinte anos e não gostaria de trombar com nenhuma... tentação... logo na primeira vez. Philip Babuíno estava com um terno cinza, uma camisa branca e uma gravata azul-escura. Durante o jantar, ele comentou que seus maiores interesses na vida eram balancetes, índices de renovação de estoque e os caramujos que ele pegava na praia em Hillevie. Babuíno ainda estava com sua maleta enquanto andava ao lado de Eric Urso. Ele a carregou durante a noite toda, como se fosse uma boia salva-vidas. Ficou óbvio para todos ali que tudo o que Philip Babuíno queria era encontrar damas decadentes. — Tentações? — riu Eric Urso. — Infelizmente, tenho certeza de que esse é o tipo de coisa que vamos encontrar no Papagaio’s, sim.

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Philip Babuíno tremeu de empolgação. Uma nova saraivada de violentas batidas ressoou da porta de entrada. Por que não usam a campainha como bichos de pelúcia normais? Eric Urso se virou na cama. Sob o cobertor, sentiu o próprio hálito. Martíni com gim e vodca. Havia fumado ontem? Pelo gosto em sua língua, parecia que sim. Quando saíram do Papagaio’s Bar & Grill, — uma vez que não havia nenhuma dama decadente o bastante para o gosto de Babuíno por lá — já estavam completamente bêbados. Os cinco acabaram em um clube de jazz. Um porão escuro que não deveria ficar em Lanceheim, mas sim em Tourquai. — Sei que não deveríamos falar de negócios... — disse Eric Urso. Esforçou-se muito para falar sem gaguejar. Ele e Babuíno estavam sentados um de frente para o outro em uma pequena mesa redonda em um canto do lugar. Eric se sentou em uma cadeira, e Babuíno ficou encostado em um banco duro contra a parede. Um saxofone ululava de um palco ao fundo, e talvez até houvesse alguém sentado no colo de Babuíno. Estava tão escuro, era ­difícil ver direito. — Sei que não deveríamos falar de negócios, mas estamos a sós agora, certo? Você já se decidiu quanto à Wolle & Wolle? — Na terça-feira — disse Babuíno. Pelo menos foi o que Eric pensou ter ouvido. — Terça-feira? — Mas vamos exigir um teto — disse Babuíno. Ou talvez ele tenha dito alguma outra coisa. No palco, o saxofone agora estava acompanhado de um trompete, e era impossível ouvir a conversa. — Tem uma panda sentada no seu colo, Babuíno? — perguntou Wolle Sapo.

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Urso não sabia de onde o sapo havia surgido. Ao ser pego em flagrante, Babuíno se levantou do banco, mas logo depois voltou a se sentar. Com a panda por cima. — Eu nunca pus as patas em panda nenhuma! — gritou ele. Foi quando Eric soube que a Dot seria a mais nova conta da Wolle & Wolle. “JÁ ESTOU INDO!” Eric se livrou do cobertor e sentou-se na cama. O quarto estava girando. O barulho na porta estava ficando mais alto. Ele tinha uma vaga lembrança de que Emma tinha saído de casa quase uma hora atrás. Ela havia alugado um estúdio na zona sul de Amberville, perto do Swarwick Park. Lá, ela trabalhava até o sol parar de brilhar no leste, e gostava de sair logo cedo de manhã. Eric era mais lento. Mais preciso, diria ele. Mais inútil, diria ela. O urso se levantou e pegou a cueca e a camisa que estavam caídas no chão ao lado da cama. Eram suas roupas de ontem. Elas estavam fedendo a suor, cigarro e álcool amanhecido. Com um suspiro, atravessou lentamente a sala de jantar. As cortinas estavam fechadas no quarto, mas o sol brilhava alegremente no alto de um céu azul pelas janelas da sala de estar. As narinas do nariz de pano de Eric se dilataram e, por instinto, suas pequenas orelhas arredondadas se projetaram para a frente. Ele preferia nem tentar adivinhar quem poderia estar ali na porta; eles muito raramente recebiam visitas inesperadas. Enrugando suas sobrancelhas de ponto cruz, ele pôs a pata em sua cabeça que latejava. Ao mesmo tempo, havia certa curiosidade em seus pequeninos olhos de botões pretos. A vida de Eric Urso sempre lhe proporcionava surpresas agradáveis. Chegou ao corredor assim que as batidas voltaram a ecoar e, a esta altura, o animal do outro lado da porta já havia perdido

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a paciência. As dobradiças estremeciam; a força por trás daquelas batidas era inconfundível. Eric hesitou. Ele ficou estático ao lado de um pequeno sofá de veludo rosa que Emma Coelho havia comprado em um leilão por um preço bem salgado há pouco mais de um ano. Talvez fosse melhor não abrir. De repente, Eric percebeu que não queria mais saber quem estava do outro lado da porta. Soltando um suspiro inaudível, sentou-se no sofá rosa. Houve um instante de silêncio. Logo em seguida, a porta voou com tudo corredor adentro. A pancada foi barulhenta e distinta, seguida por um desagradável som de trituração. Entre a nuvem de lascas de madeira e reboco da parede, Eric identificou o contorno de um pequeno pássaro entrando com passos cuidadosos sobre os destroços no chão. Atrás do pássaro, duas enormes figuras despontavam uma de cada lado. Nicholas Pombo e seus gorilas estavam ali para uma visita. — Eric, meu amigo — disse Pombo com sua monótona voz estridente enquanto a poeira baixava. — Vejo que cheguei em uma hora muito inconveniente. E o pombo apontou para as pernas nuas de Eric. O pássaro em si vestia um jaquetão impecável e trazia um lenço de seda rosa no pescoço. Eric se levantou do sofá como se estivesse em posição de sentido assim que a porta foi arrombada, e agora estava olhando para a própria cueca. Seu coração martelava no peito, e ele estava chocado demais para sentir medo ou raiva. — Eu... — começou ele. — Não tem problema — disse Pombo, passando por Eric sem ser convidado e entrando na sala de estar. Os dois gorilas ficaram de guarda no corredor, no espaço onde há pouco tempo havia uma porta. Escapar seria ­impossível.

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Eric se lembrou vagamente de um dos gorilas, o que era vermelho vivo, de um passado distante. Aquela era uma cor muito ­incomum para um macaco. Na sala de estar, o pombo já havia se acomodado em uma das poltronas. Desconfiado, Eric se sentou no sofá ao lado. Apesar de praticamente todos os bichos de pelúcia de Mollisan Town terem o mesmo tamanho, alguns pareciam mais delicados e outros, um tanto mais brutos. Pombo se encaixava na primeira categoria e os gorilas, na segunda. — Já faz tanto tempo... — disse Eric. — Tanto... — Tempo demais — respondeu Pombo. — Tempo demais, meu amigo. Mas não foi por culpa minha. Você sempre soube onde me encontrar. E era verdade. O ninho de Nicholas Pombo sempre ficou no Cassino Monokwski. Diziam que Pombo raramente ou até mesmo nunca saía de seu confortável escritório, de onde, através de janelas escuras, vigiava o cassino lá do alto. No entanto, Eric sabia que a pintura à esquerda da mesa — um cavalo com armadura de batalha — era na verdade uma porta para o apartamento particular de Pombo. Era dali que ele fazia suas visitas ao mundo lá fora, o que era necessário para manter o equilíbrio do poder. Aquele pássaro era uma das figuras mais perigosas de Amberville e, direta ou indiretamente, controlava a maior parte do crime organizado do distrito. — Mas, sem dúvida, você também sabia onde me encontrar — respondeu Eric, tentando manter sua voz em um tom suave. — Você cuida dos seus amigos — disse Pombo. — E, é claro, devo lhe dar os parabéns por todo o seu sucesso. Eric acenou com a cabeça, sorrindo, mas sentiu um ­arrepio na espinha. Não sabia onde Pombo estava querendo chegar. Eric estava no auge de sua vida, e achava que tinha muito do que se orgulhar. Talvez Pombo tivesse lido alguma coisa sobre a Wolle & Wolle. Desde que se tornara o chefe acima de Wolle

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Sapo e Wolle Lebre, muito vinha sendo escrito a seu respeito na imprensa. — Obrigado — falou Eric. — Você tem uma bela casa — continuou Nicholas Pombo. Mais uma vez, um estrondo foi ouvido no corredor. Não foi tão violento quanto o que derrubou a porta, mas era um som do mesmo tipo. Eric se virou e viu que os macacos estavam estraçalhando seu adorável sofá rosa. “Emma”, pensou ele, em uma onda de pânico que subiu de sua barriga até a garganta. “Emma. Ela vai ficar arrasada.” — Por quê...? Eric tentou parecer tranquilo e acenou com a cabeça na direção do corredor onde os gorilas continuavam a chutar e socar o que havia sobrado do móvel. — Eles estão descansando um pouco — disse o pombo. — Muita energia acumulada. É melhor eu ir direto ao ponto antes que eles destruam seu lindo apartamento. Eric engoliu seco e assentiu. O suor escorria pelas suas costas, mas podia muito bem ser só por conta da ressaca. Ele não queria soar materialista, mas aquele sofá rosa não tinha saído barato. E Emma nunca entenderia. Ela não sabia nada sobre os anos rebeldes de Eric; ele nunca ousou contar a ela que um dia já havia trabalhado para Nicholas Pombo. Para os outros, ele deixava algumas pistas aqui e ali, por achar que isso lhe conferia uma aura mais interessante. Mas Emma não era do tipo que se impressionava tão fácil. Os gorilas terminaram seu serviço no corredor. Com passos decididos, eles atravessaram a sala de estar até a de jantar, onde voltaram a descarregar suas frustrações na mobília: a mesa e as cadeiras. “Só espero que não vejam o lustre de cristal”, pensou Eric. Era a cópia de uma peça do século XVIII assinada por de Clos, da qual só existiam quatro exemplares no mundo todo.

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Logo em seguida, centenas de prismas de cristal choveram sobre o assoalho de madeira. — Eric, você me conhece — disse Pombo, ajeitando seu lenço. — Não sou do tipo que gosta de rodeios, e pretendo ir direto ao assunto. Eu estou na Lista da Morte. — Na Lista da Morte? — repetiu Eric, meio abobado. — Exatamente — confirmou Pombo, sem hesitar. — Mas... — disse Eric, sem saber ao certo se o pombo estava brincando. — Você tem certeza de que... de que existe mesmo... Digo, eu sei que... Eric ficou em silêncio. — Isso faz alguma diferença? — perguntou Pombo sem muito interesse. Eric ouvia boatos sobre uma Lista da Morte desde a pré-escola. Mas, como adulto, era difícil acreditar que ela realmente existisse. Os Choferes operavam segundo princípios conhecidos apenas por eles mesmos, o que, é claro, só aumentava as especulações. Com sua caminhonete vermelha, os Choferes pegavam os bichos de pelúcia velhos, “os desgastados e desanimados”, como dizia o ditado. Ninguém sabia para onde os velhos animais eram levados, mas eles desapareciam e nunca mais eram vistos. Não era de se estranhar que os Choferes fossem temidos, nem que as pessoas até esperassem que existisse mesmo alguma lista; qualquer coisa que pudesse fazer os ataques noturnos dos Choferes parecerem menos aleatórios. Falava-se que o Ministério do Meio Ambiente estava ligado a esse assunto, já que era responsável pelo transporte municipal e pela assim chamada Lista de Filhotes. Mas era pouco provável que alguém do ministério tivesse a incumbência de distribuir sentenças de morte entre os bichos de pelúcia. — Talvez faça, sim, alguma diferença — disse Eric com ­cautela. Ele não queria desviar seus olhos para a sala de jantar; os sons já lhe bastavam para entender o que estava se passando.

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— Se a Lista da Morte não existir, então é claro que você não pode estar nela. — Essa — redarguiu Pombo — é uma linha de pensamento hipotética que não me interessa. Eu vim até aqui por um único motivo. Quero que você encontre essa lista e tire o meu nome dela. O silêncio que se seguiu durou apenas um instante. Os gorilas na sala de jantar estavam completamente ocupados com as cadeiras, que pelo visto tinham uma estrutura bem mais sólida do que aparentavam. — Mas por que especificamente eu? — Você me deve alguns serviços — lembrou Pombo. — Pelo menos alguns. — Mas isso foi há séculos! — Sim, e com os juros acumulados, você está numa péssima situação — sorriu Pombo, logo voltando ao seu tom sério. Essas mudanças abruptas eram uma de suas especialidades. — Como bem disse, Eric, você é especificamente adequado. Levando em conta a sua mãe... O fato de Edda Rino ter sido indicada como diretora do Ministério do Meio Ambiente — o mais importante dos três ministérios de Mollisan Town — estava por trás de vários cargos de confiança que Eric Urso havia recebido ao longo dos anos. Mas agora, ele devolveria tudo só para que esta conversa não estivesse acontecendo. — Sr. Pombo — disse Eric —, eu lhe garanto que nem o Ministério do Meio Ambiente nem minha mãe ficam por aí criando Listas da Morte que... — Tudo bem, tudo bem — disse Pombo, rebatendo as desculpas enquanto aproveitava a oportunidade para ajustar a manga de seu paletó. — Não me interessa como você vai fazer isso. Quanto menos eu souber, melhor. Adoraria poder lhe dar mais informações, mas... o gato... que afirmou saber que meu nome

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estava na lista... infelizmente... desapareceu. Então, suponho que possa começar por onde bem quiser. — Mas eu... Nicholas Pombo o interrompeu, levantando-se da poltrona. Um estrondo terrível foi ouvido. Eric presumiu que a estante de vidro com os copos de cristal tivesse caído no chão. — Vamos embora! — gritou o pombo. O silêncio caiu imediatamente sobre a sala de jantar, e os dois macacos vieram trotando até a sala de estar. Pombo deu alguns passos até o corredor, mas se lembrou de algo e então deu meia-volta. — É muito simples, na verdade — disse ele, lançando um olhar frio para Eric Urso que continuava sentado no sofá. — Se os Choferes me pegarem, meus gorilas irão pegar a sua amada Emma Coelho. E parti-la em pedaços. O pombo não ficou ali para ver que efeito sua ameaça causaria no urso e saiu na frente dos gorilas pelo corredor. Eric não conseguiu sequer sair do lugar. — Boa sorte! — disse a voz estridente já nas escadas.

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