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Infantil

“Tu me seduziste, Senhor, e eu me deixei seduzir.” (Jr. 20,7)

Foi-me solicitado um breve relato do ‘porquê’ de eu hoje ser padre e salvatoriano. A minha reação foi repentina e disse que ‘não faria’, pois me sinto sem graça de expor algo que é muito pessoal e íntimo, principalmente quando alguém pede para dar um testemunho. Perdoem-me, eu acho (não é o famoso achismo) que o testemunho é algo vivencial, faz parte do dia a dia da vida, do jeito e modo de ser de cada vivente nesta terra. Basta apenas perceber a rotina da pessoa. Às vezes os testemunhos que eu tenho ouvido e visto, são muito lindos e emocionantes diante de uma plateia ansiosa para bater palmas. Mas, e depois, o chão da vida irá confirmar ou não a veracidade dos fatos de um testemunho. E nem sempre são harmoniosos. Diante desta minha colocação, peço desculpas por minhas inconsistências e contradições ao tentar manifestar a gênese do meu itinerário vocacional. Tentarei ser sincero e real aos fatos que, muitas vezes, o tempo os fez empoeirar no esquecimento.

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Os meus pais José Retore e Assumpta Sonda Retore, netos de italianos, eram agricultores sobre as terras lindas e maravilhosas nas escarpadas montanhosas da Linha Travessão Bonito, comunidade pertencente à Paróquia Santo Antônio de Nova Pádua, cujo pároco era o Pe. Antonio Alessi, de Flores da Cunha, RS. Ali nascia um menino do recém casal José e Assumpta, o ‘piazinho’, Bruno. E lá fui batizado em 06/10/1948.

Sob promessas de terras mais planas em Videira, SC, meus pais colocaram num caminhãozinho todo o patrimônio material, eu e o meu segundo irmão Rosalino no ventre da minha mãe aos 6 meses de idade. Vieram com dois dias de viagem para se fixarem nas terras de Rio Tigre até o dia de hoje. Ano após ano a família Retore crescia em número de filhos até completarem 11 irmãos e 4 irmãs. Infelizmente tenho 4 irmãos falecidos e os meus pais.

O testemunho de vivência religiosa do seu José e Assumpta é marcante em todos os sentidos para mim e para os meus irmãos. Haja vista que o meu pai foi seminarista diocesano por alguns anos, isto vim a saber depois de padre. A lida na colônia, trabalhar nas terras rústicas, cheias de mata virgem, tudo a ser feito, sem recursos mecânicos, não era nada fácil iniciar quase do ‘nada’. As sementes eram escassas, lembro-me que das melhores espigas de milho ou de trigo e arroz, ou mudas de mandioca e vinhas, faziam-se reservas para o próximo plantio na primavera ou no frio do inverno. Nós, ainda crianças, quando começavamos a andar, já íamos com o pai para roça aprender a manusear o cabo da enxada ou o arado tracionado por uma égua e um burro. Outros iam com a mãe aprendendo a lidar com as coisas de casa, isto é, cuidar dos animais, da horta e outros serviços.

Vivi com eles até que, com 11 anos, entrei no Seminário de Videira. Até então, nunca, jamais havia sonhado em ser um dia padre ou coisa parecida. É verdade que o meu pai sempre foi contra eu entrar no seminário de Videira, ele achava que devia ser padre secular, que ele chamava de “circular”, e eu não entendia o porquê. Hoje entendo.

Um fato que me chama atenção foi quando, eu ainda pequeno com 7 a 8 anos, eu segurava um palanque de madeira em pé para o meu pai bater com a “mafa”, em português maio, feito de madeira, até o palanque penetrar na terra, e depois esticar o arame farpado para cercar o parreiral e soltar os porcos. Ocorre que, ao me levantar, apoiei com a mão esquerda e o pai com o maio nas alturas descia feito raio e lá se foi o meu polegar esquerdo em pedaços feito bife.

Em casa, deitado, o pai e a mãe choraram. Fomos de carroça ao hospital e o Dr. Mosa Quatro amputou 50% do polegar esquerdo. Na volta do último curativo, na tarde de inverno nevando, eu descalço já perto de casa um padre vinha a cavalo de Rio Tigre para Videira e ao encontrar meu pai disse “o que foi Bepe (José)?”. Aí a história foi contada, mas um detalhe me chama atenção, o padre disse que eu ainda poderia ser padre porque foi o polegar esquerdo, se fosse o direito não poderia. Não sei o porquê. Envergonhado, disse depois ao meu pai e mãe que não queria ser padre. Assim o pai ficou mais feliz, a mãe não.

Outro detalhe, demorei para aprender a falar, a primeira fala foi o italiano dialeto que nada tem a ver com o da Itália. Foi muito sofrido quando entrei na escola de Rio Tigre. Eles falavam, e eu? Quando cheguei em casa disse ao pai que não iria mais porque eles falam o brasileiro.

Voltemos, eu nunca senti um chamado do alto como muitos falam, não há um fato marcante no meu despertar vocacional, a não ser àquele do padre a cavalo, até pode ser. Apenas sei que o pai estava muito envolvido com a catequese, sempre ligado ao Pe. José Mathias Wild, sds, nas formações catequéticas, nas associações rurais e cooperativas e nas formações aos colonos, isso causava muita ausência na família e desgosto à minha mãe, com uma penca de filhos, todos eles cheios de energia. Ainda bem que nessa época existia o “anjo da guarda”, pois eles eram o alívio da minha mãe. Ouvi várias vezes da mãe se queixando que o pai estava mais com os padres e menos em casa, especialmente na época das safras de colheita. E eu entrar no seminário?

Sei lá quais foram as razões, comecei a pensar nessa tal coisa de entrar no seminário. Talvez por causa daquela imagem ainda viva em mim do pai a pé e de botas, eu descalço voltando sob fraca neve de inverno e o padre a cavalo “o que foi Bepe, ele ainda pode ser padre”. Será isso? Não poderia ter tido um sinal com incenso, velas e vestes bonitas? Não foi o meu caso. Enfim, comentei com a minha mãe, e ela ficou feliz. Mas... fale com o teu pai. Eu? Não vou. Não vai dar certo. O pai precisa de mim, pois o mais velho sou eu com 11 anos, o Rosalino ajuda a mãe, o Ivo nasceu e faleceu no mesmo dia, Clemente (falecido em 1963), Nelson, João, Maria, Arlindo e Gentil eram muito pequenos. E agora? Voltei e pedi conselho à mãe. “Filho, tente falar, diga ao teu pai que você quer entrar no seminário”. Lá fui e disse “pai quero ir pro seminário”, tudo isso em dialeto. O pai não disse nada, não me respondeu, olhou-me assustado e lá fui eu, catei a enxada e fui limpar o milho.

Passaram-se uns dias, o pai disse-me se eu queria mesmo ir para o seminário e deixar os demais irmãos em casa. “Nós não temos dinheiro para pagar a mensalidade no seminário. Tem que comprar roupa, só tinha sapato da primeira comunhão, cadernos e roupa de cama”, ele disse. Em casa tudo era em comum, irmãos dormiam no sobrado da casa de madeira e as irmãs no quarto térreo. Só me lembro que um belo dia, o pai disse que estava tudo certo, mas queria que entrasse no seminário diocesano. Aí eu disse que entraria no seminário de Videira, onde nós íamos a pé descalços todos os domingos de manhã à missa, e perto da bica d’água da cantina do Andreazza, lavávamos e enfiávamos os pés nas sandálias ou alpargatas. Assim foi.

Quando tudo estava pronto, fui de carroça cheia de dornas (bigunchos) de uva e uma mísera mala completava um biguncho. Era o dia 01/03/1960, entrava solenemente no último ano de seminário feito de madeira em Videira. Aos domingos, nós

seminaristas íamos em fila para missa na Igreja Matriz, e lá via o pai, a mãe e meus irmãos, mas não podia sair da fila. Isso era um sacrifício. Muitas vezes achei que o pai estava com a razão, “seminário? Em casa é melhor”. E a coragem me faltava para pegar a pequena mala e voltar para Rio Tigre. Aliás, certos medos são coisas do Espírito do alto.

Nas férias? Aí o pai cobrava de mim, porque no seminário se aprendia muita coisa e precisava ensinar aos meus irmãos menores. Ele sabia, porque no seminário dele aprendeu o que eu não sabia. As férias eram repletas de trabalho na enxada, na foice, no arado, na colheita, fazer taipas, cerca de arame farpado e aí vai. O maior sustento na minha família era a Fé, a Oração, o Catecismo, a reza do terço todas as noites, as rezas na capela de Rio Tigre, e isso tudo me deu força para continuar. Muitas vezes, nas férias, em conversas com meus irmãos dizia que voltaria para casa. A resposta sempre foi contrária. Agradeço a cada um deles pelos “nãos” recebidos.

A história não para. Dois anos de Videira, e faço questão de citar o Pe. Humberto Scopel que me acolheu no seminário perto da Igreja Matriz. Também o Pe. Zago que deu continuidade no novo seminário, antigo hospital. Estes dois padres e os demais marcaram a minha trajetória. Com mais coragem, apesar da dor e distância, despedi-me dos pais e dos 6 irmãos. Nunca imaginei viajar de trem por 40 horas feliz, junto com os outros colegas, num vagão de luxo com bancos de madeira super duros da RVPSC, à frente ia a furiosa e fogosa Maria-Fumaça, toda feliz soltando ora fumaça preta ou branca, ora centelhas de carvão, até parecia um enorme turíbulo agitado nos trilhos para não se distrair do destino que estava levando os seminaristas cheios de saudade.

Os padres Egídio e Eugênio nos acolheram no Jordaniano em 1962. Fiz os estudos ginasiais até a 3ª série em regime de internato. As mudanças vinham aos poucos. A 4ª fiz no atual Colégio de Jundiaí. Nossa, que alegria estudar fora do Jordaniano, mesmo fazendo, nem sempre, 5 a 7 km a pé. Nesse período do Ginásio, quando ia de férias sempre conhecia um irmão novo, assim foi com Gentil, Pedro (falecido em 1962), Zélia, Lino, Alcides e Izabel. O Colegial Clássico eu fiz da mesma forma, Jordaniano e Jundiaí. No 3º ano, com o novo formador, o Pe. Claudino Vanz, novas ideias, e com surgimento de vocações adultas, experiência nova, fomos morar em uma casa pequena, em comunidade. Houve sim conflitos sérios de relacionamento com vocacionados adultos. Aliás, fui convidado a sair (dispensado) do seminário. Parei, pensei e concluí que os argumentos apresentados não eram suficientes para eu aceitar o dito “você não serve para vida religiosa”. Da mesma forma aconteceu com o parecer de um psicólogo.

Para acalmar os ânimos da minha turma, nesta época estávamos em Campinas (1970), inventaram um estágio. Lá fui eu e o João Bressan (permita-me citar teu nome) para Videira fazer estágio. Os outros foram para outros locais. Pensei comigo “é agora que não voltarei nunca mais”. Enquanto lecionava à noite, uma aluna minha, enfermeira no hospital, disse que a minha mãe estava tendo uma filha, a Clarice, minha irmã caçula. E eu continuei a aula com medo da bronca da diretora. Após a aula, lá fomos eu e os alunos.

Chegada a hora de voltar ou ficar, algo me dizia para eu voltar. Aliás, os meus familiares estranharam a minha decisão de voltar. Acreditavam que o meu irmão Nelson, seminarista, fosse seguir até o fim, mas não eu.

Fiz o noviciado no antigo Escolasticado de Indianópolis, concluindo no Instituto Padre Jordan, Vila Mariana, cujo mestre foi o Pe. Lauro Spohr, sds. Votos religiosos e suas renovações ocorreram sempre de forma simples e sem muita cerimônia. Hoje tudo mudou. Durante o primeiro ano de Teologia foi complicado. Colega meu disse-me que estava voltando à Videira e eu no corredor do ITESP, disse “vou embora agora”, e que o Pe. Spolti, nosso formador, não saiba. Quero manifestar publicamente a minha gratidão ao Pe. Spolti pela sua dedicação a nós formandos. Apesar de algumas divergências, ele nunca fugiu ou se omitiu na condução do IPJ.

Retiro de Ordenação, aqui foi o meu cálice da amargura. Naquela semana que antecede à Ordenação, fui a Tangará fazer o Retiro. Numa quintafeira, após andar entre os trilhos de ferro contanto dormente por dormente, eu me perguntava: “vale a pena se ordenar? E se não der certo? O que farei?”. Na volta do almoço fiz esse questionamento ao Pe. Romero, santo padre. Ele calmamente me pergunta: “agora, neste momento o que pensa?”. “Eu quero me ordenar, mas se não der certo, como fica? Veja, Pe. Romero, muitos formadores meus deixaram o sacerdócio, inclusive alguns me aconselharam a não seguir”, respondi eu. E ele disse: “Bruno, futuro não importa, o que importa é hoje, e se hoje você tem certeza, ordene-se. Amanhã é outra história. Apenas confie em Deus”. Respirei fundo e o restante do retiro foi muito leve.

Hoje estou com 49 anos de vida religiosa e 45 de sacerdócio, apesar de muitas crises, altos e baixos. Muitos apostaram na minha saída durante a teologia, mesmo após recém ordenado em Conchas. Aliás, tentaram me dispensar durante a Filosofia. Outros achavam que não chegaria a um jubileu. Enfim, bem ou mal, entre inquietações, posso dizer que estou aqui. E ninguém está “aqui” de graça, algo sempre está me seduzindo, como diz Jeremias em 20,7 “tu me seduziste, Senhor, e eu me deixei seduzir”, foi o lema que escolhi e, eu o recordo sempre e das palavras do Pe. Romero.

Finalizando, ninguém se faz padre ou religioso sozinho. Aos meus falecidos pais e quatro irmãos que estão na casa do Pai, a minha gratidão pelo testemunho e vida deles para eu perseverar. Aos dez irmãos e irmãs, com suas esposas, esposos e filhos, manifesto a minha gratidão. Recebam as bênçãos do Bem-aventurado Francisco Jordan. E aos meus confrades formadores, falecidos e vivos, minha gratidão. Aos demais confrades, amigos, benfeitores e colaboradores posso dizer, sem medo, se sou padre salvatoriano é graças às orações dedicadas para a minha continuidade como Salvatoriano e Sacerdote. “Bem ou mal, o que importa é que estou aqui”, assim me dizia um diretor espiritual que eu tinha, “tu me seduziste, Senhor e eu me deixei seduzir”

Pe. Bruno Retore, sds