Bailarino pesquisador intérprete

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Bailarino-Pesquisador-Intérprete © 2018 Copyright Graziela Rodrigues EDIÇÃO

Solisluna Design Editora Enéas Guerra Valéria Pergentino PROJETO GRÁFICO E DESIGN

Enéas Guerra Elaine Quirelli Valéria Pergentino TRATAMENTO DAS IMAGENS

Elaine Quirelli REVISÃO

Edmilson de Almeida Pereira Maria da Consolação G. Cunha F. Tavares CAPA E ILUSTRAÇÕES

Enéas Guerra FOTOGRAFIA DA CAPA

Nara de Moraes Cálipo Dilly Espetáculo Flor do Café (2008-2011) Foto: Beeroth de Souza FOTOGRAFIA DA CONTRACAPA

Mariana Jorge Espetáculo Coraci Mirongá (2012-2013) Foto: Natália Ranhel FOTOGRAFIA DA ORELHA DA CAPA

Larissa Turtelli Espetáculo Fina Flor Divino Amor (2011-2014) Foto: Débora Branco A maior parte do material fotográfico refere-se ao acervo de pesquisa da autora. Esta é a terceira edição deste livro, impresso em 2018. A edição original de 1997 foi publicada pela Furnarte e teve uma reimpressão em 2005. A pesquisa deste livro contou com o apoio da Bolsa Vitae de Artes.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Vagner Rodolfo CRB-8/9410

R696b

Rodrigues, Graziela Bailarino-Pesquisador-Intérprete / Graziela Rodrigues Lauro de Freitas - BA : Solisluna, 2018. 232 p. : il. ; 20cm x 27cm. Inclui índice, bibliografia e anexo. ISBN: 978-85-89059-86-2 1. Dança. 2. Dança Contemporânea. 3. Dança do Brasil. 4. Pesquisa em Dança. 5. Criação em Dança. I. Título.

2017-104

CDD 792.80981 CDU 793.31(81)


A vida e a dança São dádivas de Deus Cabe a cada um Saber conduzi-las

Ilustração baseada em foto de Pierre Verger

Maria Padilha

O paradoxo nessa história de descobertas, e também de ocultamentos, diz respeito a alguém teimosamente não descoberto: o brasileiro que nem eu... Marlyse Meyer


Graziela Rodrigues Espetáculo Coração Vermelho 1985 Arquivo Multimeios/Divisão de Pesquisas – IDART Foto João Caldas


Dedico este trabalho aos novos bailarinos que se aventuram na arte de procurar a si mesmo.


Agradecimentos Aos núcleos de pesquisa de campo: comunidades, terreiros e aldeias. À Carlos Alberto da Costa. À Comunidade dos Arturos. A todos que direta ou indiretamente contribuíram para a realização deste trabalho.

Foto ao lado Sebastiana Umbandista e Capitã de Moçambique Bom Despacho MG, 1987 Arquivo da autora



Bรณia fria Ribeirรฃo Preto, SP 1979 Foto Vicente Sampaio


Um percurso de reflexão, pesquisa e interpretação

F

ui aluna de Graziela na década de 80: nosso primeiro encontro. Eu não tinha qualquer dom para dança, mas sim um infinito apreço por essa arte tão completa. Na sua sala, com colegas muito mais hábeis, deixando-me levar pelos exercícios e orientação da jovem professora, o mundo indígena da floresta, que eu começava a pesquisar na Amazônia, nascia inteiro, real, partindo do meu interior com o movimento, com o aprendizado do corpo, no silêncio, no som, na música. Nunca tive uma sensação tão forte, na cidade, de estar nas ocas, ao pé do fogo, nas redes e balanços musicais com meus amigos SuruíPaiter. Demiurga, ela criava dentro de nós a humanidade, com imagens que tomavam forma pelos nossos passos e gestos bailarinos, algo próximo a um transe. Só agora, ao reler o presente livro de Graziela, cuja primeira edição é de 1997, percebo como era deliberado o seu ensinamento, resultado de um percurso de reflexão, de pesquisa, de interpretação, no qual corpo, alma, autoconhecimento emocional e intelectual, busca de tradições, em especial as do Brasil e afro-brasileiras, combinam-se para transmitir em espetáculo uma expressão visceral. Graziela gosta desse adjetivo – “escola visceral dos rituais”, como ela diz do maracatu, uma das muitas vertentes da religiosidade popular por ela estudadas, observadas, nas quais ela bebeu inspiração. Desde cedo tivemos afinidade na nossa paixão por mergulhar no povo brasileiro, na História visível na arte, feita com teimosia por grandes personagens, homens e mulheres humildes, capazes de transformar a pobreza em feitos de beleza, em portas para o além em geral vedadas para nós. Não por acaso o primeiro (modesto) recurso financeiro recebido pelo IAMÁ (Instituto de Antropologia e Meio Ambiente, não governamental na qual trabalhei por dez anos) destinou-se a contribuir para um vídeo da dança e canto do candombe da Comunidade dos Arturos, em Minas Gerais, colaboração de Graziela no projeto e pesquisa de Núbia Pereira de Magalhães Gomes e Edimilson Pereira, que haviam publicado o livro Negras raízes mineiras, Os Arturos, para o centenário da Abolição. O foco do IAMÁ era indígena e ambiental, mas foi simbólica de sua filosofia a escolha da dança e de uma tradição negra. Os capítulos do livro de Graziela trazem a cada página uma surpresa, libertando orixás, memória da escravidão, caboclos, porta-estandartes, bandeiras, mastros unindo terra e céu, pomba-giras, saias voando e rodando como dervixes, cerimônias, santos, altares, congás, terreiros, afoxés, capoeiras, pontos de umbanda


e até mesmo um demônio... Entre muitos assuntos, Graziela aprendeu e conviveu com mulheres boias-frias, com suas duras condições de vida e de trabalho esboroando a resistência física, mas, espanto, combinadas com a festa e o domínio do corpo, movidas que são elas por vontade inquebrantável. Lembro de ver Graziela andando majestosa na corda-bamba, ou criando a personagem de Maria Padilha, ambas, intérprete e figura, modelo para mulheres sem amarras, voltadas para a liberdade. Graziela menciona repetidas vezes Marlyse Meyer, amiga de minha família, cujo livro magistral, Maria Padilha e toda sua quadrilha é ao mesmo tempo pesquisa histórica, literária e novela, antropologia e voo imaginário. Não sou estudiosa de dança nem conheço as muitas maravilhas, escolas e experiências nesse campo, não posso aventurar-me a comentários. Parece-me raro, porém, o caminho de Graziela, concretizando o amálgama de movimento, de estudo de cada pedaço e membro do corpo humano nas diferentes tradições de dança, de som, música, forma, conteúdo, história social, pesquisa de campo e laboratório na produção de espetáculos, disciplina, exercício, expressão e emoção, interpretação e criação – nenhuma esfera fica fora do que os bailarinos têm que vivenciar. Ela usa a expressão “ouvindo o corpo e vendo o som”, “tocar e cantar” na dança, “pronúncias do corpo” e assim por diante. Fundem-se corpo e o sopro que o move, origem imaterial; música, voz e dança; reflexão, pensamento, expressão; arte e transe. Lindos depoimentos registrados nas pesquisas, fotos, citações permeiam o texto, fazendo imaginar o que ela viveu. Se fosse possível ver ao vivo, ou se tivessem sido filmados todos os espetáculos interpretados, produzidos ou dirigidos por Graziela, arrolados nas últimas páginas... Fica esse livro-texto, iluminações mais que encadeamento lógico, indispensável a todas as artes, incluindo a da escrita, que poderia ser dançante. Betty Mindlin Antropóloga


Brincante de Maracatu Rural Arquivo da autora


Graziela Rodrigues Espetáculo Coração Vermelho I Foto João Caldas


Os cristais do espelho

A

busca de uma realidade gestual como proposta estética dentro da poética de um corpo flexibilizado, escrito, musicado e entendido como humano, sobretudo, eis o que Graziela Rodrigues nos propõe. Mas não só. Propõe a busca da realidade gestual na poesia do cotidiano dos pés rachados em campos agrestes, garras substituindo presumíveis dedos, pés cravados na terra, raízes, rochas fortes como as almas de mulheres que sabem atravessar batalhas perdidas sem saber de derrotas. Que sem dispor de sonhos, pois os ignoram, agarram a terra com os pés e com ela esculpem meninos e meninas banhados na saliva do amor. Ventres e pés redentores, recriando pulsares de gentes paridas por lobas famintas, jibóias flutuantes, quem sabe. O desafio de Graziela nesta obra não está nos preceitos de uma receita que não se cumpre, nem jamais foi prometida. Nem uma única imagem, um só reflexo a ser imitado – palavra proibida. Os espelhos foram quebrados e seus cristais espalhados ao vento – encontre você mesmo o seu cristal! Não há sinais nem informações das trilhas a serem seguidas, nestas veredas. A salvação está nas descobertas pessoais, em geral custosas e muito sofridas, mas inevitáveis. Que simples, que fácil e quão estúpido deixar-se escravizar por regras impostas de impérios estrangeiros para aguardar, no final de cada ano, as examinadoras que surgem do nada e em reuniões secretas conferir centímetro por centímetro os corpos impossíveis, poses e piruetas criadas por hábeis bailarinos que jamais pensaram as pessoas dos seus países, nada que viesse perturbar a serenidade das noitadas em palácio. Graziela até aceita o peso das sapatilhas enquanto exercícios disciplinares, jamais enquanto estética do previsível, o circo na sua exibição mais primária de resistência e equilíbrio, isto é, a estética sob medida tanto para bailarinos robotizados como para focas engraçadinhas. Graziela deixa os caminhos abertos. Não se propõe como modelos, não fornece soluções. Não patenteia um receituário a ser leiloado no balcão das franquias diante do cortejo de natimortos. Forjada no trabalho metódico e duro, na crença de que só a técnica apurada pode levar à expressão modulada e sutil, ela oferece o seu exemplo apenas como uma possibilidade, ou melhor, daquilo que foi a sua possibilidade. As crenças dos humildes, a vida familiar nos desvãos de uma pobreza que insistimos em ignorar, as brasilidades desconhecidas, o coração da mulher – qualquer e por isso, de todas, os tesouros envergonhados da nossa cultura popular.


A busca, a investigação da verdade das pessoas, da ciranda humana à volta de todos e que poucos enxergam. E a sua tradução em gestos autênticos, ritmos, cores e desenhos de um novo espaço por corpos suarentos e expressivos. A recusa ascética das seduções. A pesquisa de perfil científico como comportamento vital para o artista. A inquietação e a renovação permanente de suas fontes e de seus meios. As crenças dos humildes, a vida familiar nos desvãos de uma pobreza que insistimos em ignorar, as brasilidades desconhecidas, o coração da mulher – qualquer e por isso, de todas, os tesouros envergonhados da nossa cultura popular. A busca, a investigação da verdade das pessoas, da ciranda humana à volta de todos e que poucos enxergam. E a sua tradução em gestos autênticos, ritmos, cores e desenhos de um novo espaço por corpos suarentos e expressivos. A recusa ascética das seduções. A pesquisa de perfil científico como comportamento vital para o artista. A inquietação e a renovação permanente de suas fontes e de seus meios. O melhor dos nossos melhores. Dança, teatro, folclore, antropologia cultural, sociologia da arte. A dança como vida em si mesma e em relação a. Poesia em estado bruto e a dança como sua escrita e escritura. Graziela, mais ainda que excelente professora: uma educadora pioneira, uma incentivadora de artistas criadores voltados para a vida que sofremos hoje, neste pedaço de chão onde, parece, só os artistas verdadeiros se apresentam para enfrentar os dragões da maldade. Fausto Fuser Diretor de Teatro e Crítico de Dança


Sumário

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Prefácio desta edição

21

Introdução

29

Algumas questões fundamentais

33

De que corpo se fala: a fonte, a escola, o referencial

51 52 54

Estrutura física Anatomia simbólica O movimento das partes

75 79

As passagens do sensível – o movimento interior Um recorte significativo

87 87 91 93

Características da linguagem Fatores essenciais da linguagem Dinâmicas específicas Incorpora/Desincorpora

101 101 105 108 109 115

Elementos confluentes Tocar-cantar: pronúncias do corpo O ato de investir-se As construções do espaço-tempo Paisagens e cenários Desdobramentos coreográficos

141 141 144 148

Olhando por uma fresta O corpo trabalhado O “diabo” e o santo Na Gira da Pomba-Gira – A dança de Maria Padilha

159 163

O processo de construção do bailarino-pesquisador-intérprete A fala dos bailarinos em desenvolvimento no processo

167

Conclusão

176

Anexo – fotografias dos espetáculos

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Referências bibliográficas


Mariana Jorge Espetáculo Coraci Mirongá Foto Vanessa Laís Melo Nascimento

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Prefácio desta edição

O

livro Bailarino-Pesquisador-Intérprete: Processo de Formação foi publicado em 1997 e no ano de 2005 teve uma edição revisada, ambas realizadas pela Fundação Nacional de Arte – Funarte – do Ministério da Cultura. Neste momento temos a grata satisfação de uma nova publicação pela editora Solisluna, cujo minucioso projeto gráfico, presente nas edições anteriores, e também neste livro, ganha um maior refinamento. Este livro é a síntese das sínteses das pesquisas realizadas desde 1980 e introduz o Método Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI). Cada parágrafo é uma porta que se abre provocando – o que posteriormente foi feito – uma maior explicitação do conteúdo enunciado. Após a primeira publicação deste livro, inúmeros trabalhos foram escritos, tais como teses, dissertações, artigos, comunicações e livros. Todos eles têm este livro como primeira referência. Ao longo deste tempo, este livro tem se mostrado uma realidade nos corpos das pessoas que dele se utilizam para a sua prática e reflexão cotidiana. A coerência de percurso nos impôs que privilegiássemos a escritura nos corpos dos intérpretes que se colocaram em nossas mãos para dirigi-los em inúmeras criações artísticas através do método BPI. Desta maneira, o livro é vivo e também realidade na originalidade que é expressa em cada corpo. As pesquisas de campo foram contínuas, ampliando-se para outros estados brasileiros, vindo mais uma vez confirmar os dados aqui expostos. O conteúdo expresso foi visto e revisto no cotidiano atestando a veracidade e atualidade da pesquisa. Não temos como alterar o que aqui está descrito e analisado. Este livro é mater. Em breve será publicado em outro livro uma continuidade deste, contendo uma maior explicitação do método BPI. A importância desta publicação que agora apresentamos vem ao encontro do significado deste trabalho: portas abertas e fluxo contínuo na interação do corpo que se descobre a cada movimento.

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Folia de Reis Heliodora MG, 1992 Arquivo da autora


Introdução

A

construção do bailarino-pesquisador-intérprete foi organizada a partir de duas fases inter-relacionadas. Na primeira fase, vivenciei a crise em relação ao meu conhecimento sobre dança, que incluía o trânsito nas áreas de dança clássica, moderna, contemporânea, de técnicas ligadas à dinâmica corporal e de técnicas de interpretação teatral. Essa relação de crise não significou a rejeição dos conhecimentos anteriores, mas a sua reinterpretação a partir da interação com minhas descobertas pessoais e com os conhecimentos adquiridos nas pesquisas de campo sobre manifestações culturais brasileiras. Da pesquisa de campo com as mulheres candangas1 de Brasília – após a interação entre minhas descobertas pessoais com o universo da realidade investigada – desencadeei a formulação da linguagem do corpo do bailarino-pesquisador-intérprete. O resultado final desta fase foi a montagem de vários espetáculos, entre os quais, Graça Bailarina de Jesus, Coração Vermelho I e II. Na segunda fase do Processo de construção do bailarino-pesquisador-intérprete, desenvolvi o seguinte roteiro (ver capítulo 8): • autoquestionamento do bailarino sobre a sua relação com o corpo e com a própria dança; • realização de experiências iniciais com manifestações culturais brasileiras em laboratório; • contato direto do bailarino com as fontes em pesquisa de campo; • retorno ao laboratório para articulação do trabalho criativo. É bom observar que as etapas acima podem ser entremeadas por outras decorrentes das exigências de cada bailarino. O Processo está sujeito ao acréscimo de outras etapas após a elaboração do trabalho criativo, isto na medida em que se encaminhe para a constituição de um corpo vivo, flexível, individualizado e aberto às diferentes realizações da dança. As referências que farei quanto à trajetória pessoal, deve-se ao fato de o Processo do bailarino-pesquisador-intérprete ter sido instaurado em meu próprio corpo. A minha formação na área da dança foi marcada pelo rigor da disciplina. Enquanto externamente seguia todos os passos da formalidade da dança (iniciados em 1967), interiormente meu corpo era uma tormenta, pois os questionamentos galopavam além do que o físico poderia saltar, girar, expressar. Uma grande porção de sensações e sentimentos não cabiam naquele corpo que eu construía. Afinal, o que era o meu corpo? O que era o corpo do outro instituído para ser o meu modelo? 21


A busca foi sem fronteiras: na dança, no teatro e nas minhas atuações como bailarina e coreógrafa, querendo eu crer que as respostas poderiam estar nas técnicas e linguagens. As perguntas não respondidas se agruparam em uma só: Sou ou não uma intérprete?2 A rota indicava uma procura no interior da bailarina. As experiências profissionais vividas na Europa (1977/1978) indicaram uma questão fundamental sobre a relação da cultura de um país com a própria criação artística. Em Israel a dança exercia um forte papel aglutinador de identidades. Na Espanha, período em que convergiam artistas de nacionalidades variadas, eram evidentes as diferenciações culturais em meio a um anseio de unificação dentro da arte. A minha própria adesão a estes movimentos e os convites recebidos para a permanência de trabalho nestes países inquietaram-me ainda mais quanto a uma resposta à pergunta sobre a minha própria identidade cultural. Diante de realidades internas – que cada vez mais impulsionavam o meu corpo para a construção de um caminho próprio – retomei ao Brasil, especificamente Brasília, com o objetivo inicial de implantar um projeto compartilhado com outros profissionais3. Findo o projeto coletivo, cuja maior importância foi a troca de experiências num nível de igualdade de relações, via-me num estado que exigia novas resoluções individuais. Graziela Rodrigues Espetáculo Coração Vermelho I Foto João Caldas

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Os sentidos acusavam nitidamente que um processo se desenvolvia. Encontrava-me sob forte pressurização do que até então havia vivenciado. Uma necessidade, que poderia dizer vital, impelia-me a colocar à prova minha efetiva resposta como intérprete. O que este corpo – (o meu) depois de tantas voltas e reviravoltas, possuidor de habilidades técnicas e expressivas – teria a deflagrar com organicidade na criação artística? Neste momento eu abria mão de tudo o que já havia construído para obter a resposta. A busca de uma personagem apresentava-se como um caminho; porém, a procura através de textos foi em vão, pois tudo se apresentava muito distante da minha própria realidade, de minha necessidade de me localizar. Esta conjuntura trouxe a convicção de que a personagem estava viva nas ruas, incitando à pesquisa da mulher candanga. A força do momento e a convicção intuitiva indicavam a imediata realização da pesquisa, não fazia sentido a sistematização de um projeto e nem tampouco havia tempo para a busca de financiamento. O momento exigia uma entrega por inteiro para viver a experiência, com liberdade de ação. Mostrava-se coerente o seguinte procedimento: A bailarina “construída” se “desconstruiria” na medida em que fosse interagindo com o universo da pesquisa. Para tal, era necessária uma acuidade na observação dos fatos sem nenhum tipo de interpretação. A vivência de campo e a escrita de diários consistiram nas únicas atividades a serem desempenhadas sem, a priori, determinar por quanto tempo. A proximidade geográfica foi o que determinou a escolha da mulher candanga, uma vez que a necessidade era colocar meus pés no encalço de uma personagem em “carne e osso”. A pesquisa de campo: nas viagens de ônibus urbanos que partem da rodoviária do Plano Piloto (Brasília) para as cidades Satélites encontro um grande número de mulheres trafegando. No meio delas permaneço observando, sem nenhuma crítica ou interpretação, com todos os sentidos abertos e um referencial interno de neutralidade e concentração absoluta. Durante as inúmeras viagens de ônibus, identifiquei que as mulheres eram, quase que na sua totalidade, empregadas domésticas. Segui uma delas no Plano Piloto, que acabou se dirigindo a uma agência de empregos domésticos. Passei a frequentar a agência, procurando permanecer a mais incógnita possível. Nunca me perguntaram quem eu era, também não havia perguntas de minha parte, e isto foi gerando uma cumplicidade. A intimidade foi levando-me a aprender o corpo sentido destas mulheres, que eu começava vagarosamente a receber no meu corpo. Os pés sujos de barro que elas teimavam em esconder, tamanho era o gesto de encobrir que ressaltava às vistas. Elas percebem e são tomadas de tanta vergonha que se revoltam contra a miséria. Por isso, Diante da vida do povo sofrido, a gente não fala, só sabe calar; esquece as ideias do povo sabido e fica humilde, começa a pensar...4 Um mundo de dor, de lutas, de desencantos ao lado de uma força de vida e de uma forte crença mística ia sendo revelado nesta experiência de campo. Uma história de grande desilusão era concluída com frases como: Mas eu tenho a força 23


da Pomba-Gira, ou a noitinha minha sereia penetra a fresta de meu barraco, cheia de luz trazendo um recado. Abria-se um “novo espaço”: os terreiros de umbanda e vários outros espaços frequentados por essas mulheres. Passei a co-habitar com a fonte, como nos faz pensar Carlos Mesters em A parábola da porta. Entrando pela porta da frente, olhava a riqueza e a beleza da casa de um ângulo novo que ainda não conhecia... A casa revelava coisas lindas que os livros não ensinavam e as máquinas não descobriam... Passava a ser conhecido e acolhido pelo povo que não distingue as pessoas que nele se misturam.5 Foram três meses de intensa convivência diária, até o dia em que na agência de empregos uma madame, como quem escolhe uma roupa, revistou a fileira de mulheres dos pés à cabeça e me apontou: “Escolho essa”. Finalizava a principal etapa da pesquisa de campo. De volta ao espaço da sala de dança, antes tão familiar, a sensação que me vinha era de um enorme vazio. Os laboratórios, conduzidos pelo diretor6, tiveram como referência os diários de campo. Pouco conversávamos e com um mínimo de palavras, ele propunha ações e situações em cena. No início o corpo não respondia, mas aos poucos foram emergindo registros emocionais, somatória do universo vivenciado na pesquisa de campo com a minha própria memória afetiva. O corpo foi assumindo várias sensações e configurações decorrentes das imagens de lugares vividos em campo e das imagens “desconhecidas” situadas em mim mesma. Estas imagens conjugadas apresentavam uma nova configuração de paisagem – espaço onde se desenvolvem experiências de vida, que se instaurava no corpo. Esta fase continuou até o dia em que me foi perguntado sobre a revelação do nome da personagem. Ou seja, ela começava a nascer, síntese de todas as mulheres da pesquisa. Os dados da personagem que vinham em laboratório apresentavam uma coerência considerável em relação ao universo em questão. Graça, foi o nome escolhido para a personagem, fato que marcou a inauguração de sua existência no espaço do corpo que deveria dançar a realidade das mulheres candangas. Esta Graça, em meio a tantos sonhos, carregava o sonho de bailar. O resultado, síntese de um fértil processo, foi apresentado na forma de espetáculo: “Graça Bailarina de Jesus ou Sete Linhas de Umbanda, Salvem o Brasil” 7. O seu principal significado está na diferenciação da maneira em que atua o bailarino-intérprete: há uma dádiva do sujeito, ele está inteiro em cada fragmento da cena, o conteúdo do espetáculo faz parte dele. No entrelaçamento sujeito-personagem o bailarino não interpreta, mas vive no seu corpo a vida dimensionada pelo espetáculo, sem restrições. De toda a experiência do espetáculo “Graça Bailarina de Jesus”, onde se somaram várias pesquisas complementares, trabalhos técnicos e outras etapas até a sua síntese final, ressaltaria como fase principal a Incorporação da personagem. 24


A personagem é fruto da pesquisa de campo, do co-habitar com a fonte e do que esta vivência despertou no próprio intérprete. No trabalho de laboratório, o corpo do bailarino-intérprete passa a assumir um corpo imaginário, “como se não fosse o dele”, gerando uma liberdade de expressão e uma permissividade na dança de experimentar a fala e o canto, sem a preocupação de responder a padrões convencionados. A dança passa a se organizar a partir de uma história que vem da personagem. O corpo está a serviço de uma idéia onde o bailarino-intérprete encontra-se sem o tolhimento de ser naquele momento o que realmente é. Tornam-se cristalinas as suas necessidades, passando a ter um referencial de continuidade de trabalho quanto à ampliação de seus recursos técnicos de uma forma mais sensível. A saída do espaço e do tempo (delimitados principalmente pelo universo da dança) para entrar numa realidade circundante, passando a ver de dentro de uma cultura à margem da sociedade brasileira, significou um eixo de contato para que o meu corpo sofresse interações. Aí se encontram as bases que propiciaram desenvolver uma linha de trabalho do intérprete na dança. De início eu via o trabalho de Brasília como uma experiência isolada. As experiências profissionais que se seguiram foram de questionar o próprio trabalho e verificar, na prática, certas maneiras de chegar ao processo do intérprete. Duraram pouco estas experiências. O processo estava instaurado organicamente, querendo-o eu ou não. Logo eu estava de volta às pesquisas de campo, que foram ininterruptas. As danças ritualísticas exigiam uma investigação mais profunda do movimento, conduzindo-me ao estudo das artes orientais chinesas no sentido de compreender vivencialmente a utilização do movimento interno dos circuitos de energia. O rigor da técnica passou a ocupar o espaço da intencionalidade, por estar intimamente ligado à elaboração cada vez mais exigente da performance e a uma superação dos próprios limites do bailarino-intérprete. Os treinamentos técnicos cotidianos tornaram-se mais instigantes, pois havia ocorrido uma mudança de foco. A técnica adquiriu um caráter de pesquisa, possibilitando o refletir-me e o ter, em vários momentos, insights do desenvolvimento do Processo. O aperfeiçoamento pessoal como intérprete levaram-me a um constante aprofundamento não apenas das técnicas do corpo, como também da voz e da interpretação aliadas às pesquisas de linguagens cênicas. A criação de espetáculos, junto a minha atuação como intérprete, sempre significou a integração de vivências. Vivi na própria pele umas tantas “mulheres obscuras”, bem ditas por Cora Coralina, provindas de universos urbanos, suburbanos e rurais do Brasil. Elas me ensinaram a rebojar. O rebojo é a parte do rio onde as águas se agitam, rodando, pela presença de uma parte funda e afunilada de pedras. O perigo é denunciado pela efervescência das águas, cuja agitação atinge a superfície. Quando algum objeto ou pessoa cai no rebojo, vem à tona! rodando! antes de desaparecer. Rebojar é exatamente sair do fundo do rebojo até a veia d'água. (Núbia Gomes).8 25


Por volta de 1986 percebi a importância deste trabalho na área da dança. Decidi abrir mão da minha carreira enquanto intérprete, para perseguir e desenvolver esta idéia de um Processo onde o bailarino não se encontra na condição de objeto, mas na condição de sujeito. Realizei uma ampla reflexão das minhas vivências como bailarina-pesquisadora-intérprete, elaborando as principais sínteses. Estruturei os princípios fundamentais provindos das manifestações populares brasileiras, até então pesquisadas, vindo a criar um instrumental técnico de dança para o trabalho de sala de aula baseado na decodificação dos elementos essenciais que estruturavam este corpo. São também considerados os aspectos simbólicos contidos nas danças de rituais brasileiros e a importância de se fazer o inventário da história pessoal. Para a aplicação prática foram criadas dinâmicas diversificadas, incluindo-se a quebra dos espaços convencionais da dança, direcionando o trabalho para a pesquisa de campo e laboratórios. Os projetos que decorreram a partir desta fase, visaram a ampliação das pesquisas de campo das manifestações populares brasileiras, tendo o objetivo de decodificar este universo a partir da visão do intérprete.9 A experiência que tenho vivido desde 1987, enquanto professora da Unicamp, no Departamento de Artes Corporais, tem trazido gratificações incalculáveis, advindas do contato com os “novos” bailarinos, A abertura do Processo, fundamentalmente, proporcionou a estes alunos olharem em nova dimensão a sua dança enquanto intérprete-sujeito. É através deles que a cada dia de trabalho o Processo vai sendo desenvolvido e sedimentado. Os resultados têm sido demonstrados em diversas sínteses de pesquisas na forma de espetáculos como: Bailarinas de Terreiro, Interiores, Diante dos olhos, entre outros. A satisfação reside não propriamente nos bons resultados destes espetáculos, mas no que estes vêm possibilitando enquanto exercício para os seus intérpretes, pois eles estão germinando. A questão do bailarino-intérprete continua sendo o principal eixo de meu trabalho. São atributos do bailarino-intérprete a condição de estar liberto de estilos e técnicas, porém sem destituí-los. A instrumentalização do corpo deve criar condições para que o bailarino seja um “organismo vivo”, pronto a responder aos conteúdos emergentes da realidade pessoal e da realidade que o cerca. Considero as manifestações populares brasileiras, que contenham o sentido de resistência cultural, a moldura onde irá ocorrer o desenvolvimento do bailarino-intérprete que se encontra na contingência inerente de também ser pesquisador. Como afirma Harvey Cox: “Não podemos enxergar realmente uma coisa quando ela preenche totalmente nosso horizonte visual. Precisamos dum anti-horizonte contra o que projetar o seu perfil. O fundo ou campo visual representa um elemento essencial na percepção. Necessitamos de uma moldura”.10 Fez-se necessário penetrar esta moldura, isto é, co-habitar com estas fontes de nossa cultura, quebrando preconceitos, abrindo-me interiormente para relacionar-me com um mundo

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onde a devoção vivida e expressa pelo corpo é uma habilidade de sobreviver como ser humano. No meu caminho como intérprete houve uma ruptura em função dessa nova idéia que surgiu de minha própria vivência nesta caminhada. Por alguma coisa que se deve assumir, abro-me para novas rupturas, pois o caminho do intérprete assim me tem ensinado, Não se trata de uma pesquisa com princípio, meio e fim, pois não foi premeditada, não foi planejada neste sentido. Ela foi feita dentro de uma história de vida, onde a Dança está inserida. Situado o bailarino em seu contexto vivencial, encontra-se a passagem que conduz ao seu desenvolvimento como intérprete. A evolução da Dança depende de seu Processo.

NOTAS 1

Os candangos, assim são chamados, vieram desbravar uma nova terra, sem heroísmo, e ainda hoje lutam nessa paisagem de concreto e beleza futurista. Dentro dessa massa de subempregados, as domésticas (mulheres candangas) constituem um dos segmentos mais numerosos e problemáticos.

2

Saliento a importância dos trabalhos desenvolvidos no Ballet Stagium pelo diretor teatral Ademar Guerra, no ano de 1975, dos quais participei como aluna, pois levantaram questões profundas sobre a função do intérprete na dança.

3

A Ensaio Teatro Dança – Escola Núcleo de esquisa e Produções Artísticas. Carlos Mesters – “A Parábola da Porta” – Por trás das Palavras, 1984

4e5

6

7

Apresentações realizadas: Teatro Santo Antônio – Salvador, 1980 Tenda Xangô Ayra do Caboclo Itajaci (Casa de Candomblé) – Brasília, 1980 Teatro Dulcina – Rio de janeiro, 1980 Teatro Dulcina – Brasília, 1980 Teatro Goiânia – Goiânia, 1980 Teatro Ruth Escobar – São Paulo, 1980

8

Edmilson Pereira – Rebojo, 1995.

9

O projeto “Trilhas e Veredas da Dança Brasileira” (1987) inaugurou esta fase, contando com o imprescindível apoio do IAMÁ (Instituto de Antropologia e Meio Ambiente, SP).

10

Harvey Cox, A Festa dos Foliões – um ensaio teológico sobre festividade e fantasia, 1974.

O diretor teatral João Antonio de Lima Esteves acompanhou todo o processo, tendo sido o diretor do espetáculo Graça Bailarina de Jesus.

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