O MILAGRE DA ESTRADA DE DAMASCO

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A conversão de Paulo, 1767 Nicolas-Bernard Lepicie; Óleo sobre tela. Caí por terra e ouvi uma voz que me dizia: ‘Saulo, Saulo, porque Me persegues?’. Eu perguntei: ‘Quem és Tu, Senhor?’. E Ele respondeu-me: ‘Eu sou Jesus Nazareno, a quem tu persegues’. (Act. 6-8)

Do milagre da estrada de Damasco, ou da semelhança entre Saulo de Tarso e D'Silvas Filho Por Pedro da Silva Coelho*

Ou de como o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990) mói, sem apelo nem agravo, até os próprios ‘acordistas’, desde que os mesmos leiam o dito Acordo e – incautos – sobre ele se ponham a pensar. ================================== O ACCORDO ORTHOGRAPHICO DA LINGUA PORTUGUESA SERÁ DA LINGUA PORTUGUESA, SERÁ DE 1990, SERÁ UM TRACTADO INTERNACIONAL, SERÁ UM ANNEXO DE UM TRACTADO INTERNACIONAL QUE TEM O MESMO NOME DO TRACTADO AO QUAL ESTÁ ANNEXADO, SERÁ UM TEXTO, SERÁ UMA REFORMA OU UMA DEFORMAÇÃO, SERÁ ESCRIPTO EM PORTUGUEZ, HAVERÁ SIDO ESCRIPTO Á MÃO, Á MACHINA OU AO COMPUTADOR, SERÁ FILHO DO MALACA E DO BECHARA E DOS OUTROS, SERÁ ATÉ LINGUISTICO, SERÁ TUDO ISSO E MUITO MAIS, SÓ NÃO É ACCORDO NEM É ORTHOGRAPHICO, QUE SÃO AS UNICAS COUSAS QUE DEVIA SER! MORRA O ACCORDO ORTHOGRAPHICO, MORRA!

PIM!

==================================== Fez Cecília Enes Morais chegar ao nosso conhecimento, através de um afixo de Teresa Ramalho, datado de 4 de Dezembro de 2011, que D’Silvas Filho – um defensor do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990) [doravante ‘A.O.L.P.90’, ‘Acordo’, ‘Acordo Ortográfico’ ou ‘acordo de 1990’], consultor do Ciberdúvidas, responsável por um prontuário de português publicado pela Texto Editores e por vários volumes dedicados a temas concernentes à língua portuguesa – haverá publicado o que de seguida se transcreve na sua página pessoal: «Uma das qualidades da língua é clareza na transmissão da mensagem (sem ambiguidades). [...] Depois de aplicar o Acordo nos meus livros, concluí que precisa de algum aperfeiçoamento nas suas imperfeições: As alterações ortográficas realizadas, algumas com violência dos hábitos de escrita, afinal pequena simplificação fizeram, e, inversamente, trouxeram

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incoerências, deixaram incertezas, nalguns casos provocam ambiguidades. [...]» [in “Problemas ortográficos, novo acordo (Assunto mais desenvolvido no «Prontuário» da Texto, 5.ª edição, 2010, anexo III, Quadros elucidativos na Parte V do livro: «Grandes Dúvidas da Língua Portuguesa» de A Esfera dos Livros. [...]”), D’Silvas Filho, 2011, publicado em http://www.dsilvasfilho.com/Problemas%20ortogr%C3%A1ficos.htm.] Estas afirmações requerem contextualização: note-se bem que as mesmas foram feitas por uma pessoa que chegou a escrever que, com o A.O.L.P.90 [essa «reforma ortográfica planetária da língua portuguesa», também nas suas palavras], a escrita iria deixar de ser o «segredo de abelha dos eruditos»... Enfim, voltemos atrás no tempo, recorramos aos muitos textos que a propósito da ‘questão ortográfica’ D’Silvas Filho escreveu e contextualizemos um pouco mais. [N.B.: todas as passagens da autoria de D’Silvas Filho que de seguida se citam estão disponíveis na página pessoal do seu autor: www.dsilvasfilho.com.]

D'Silvas Filho, revelando um (aparente) módico de lucidez, expressou regularmente várias dúvidas sobre o acordo: ─ admitiu a existência de erros no texto, ─ reconheceu a sua inconsistência de critérios e a deficiência da sua fundamentação teórico-científica, ─ admitiu que o mesmo é 'ambiguigéneo', ─ afirmou que as «regras do hífen [iriam] continuar caóticas, não obstante o novo AO», ─ lamentou o «excesso foneticista» [o que quer que com isso queira ele havido dizer], ─ deu algumas outras provas de bom senso, quando escreveu: «Também não me parece aceitável que a comunicação social dispare a escrever no novo Acordo. A grafia normalizada no nosso país continua a ser a de 1945 [Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945, doravante C.O.L.B.45].» Mal ele sabia... A expectativa de bom senso nos órgãos de comunicação social rapidamente se revelou ser não mais que uma contradição nos termos. «Esperemos que os responsáveis pelo ensino tenham presente este problema, em particular no caso dos obreiros dos textos didácticos, dicionários e manuais escolares. Assim que houver um vocabulário actualizado português para o novo Acordo [sic], penso que os manuais deverão considerar a formação em paralelo para a nova ortografia. Haverá uma fase em que a formação será certamente 'biortográfica'.» Uma vez mais, mal ele sabia... Ou haver-se-á tratado de um lapsus memoriae et/aut calami: haver-se-á D’Silvas Filho temporariamente olvidado de que estava a falar de Portugal, onde o ensino é, enfim… [Para quem tiver dúvidas e questões a esse respeito, será melhor que

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leiam os textos de António Fernando Nabais, no diário-em-linha Aventar, ou a coluna de Santana Castilho no jornal PÚBLICO.] Não obstante, D’Silvas Filho mostrou sempre ser logicamente inconsistente, chegando mesmo a ser oximorónico e falso. D’Silvas Filho afirmou falsidades alucinatórias como «O povo português gostaria que cuidássemos da língua portuguesa como faz o Brasil, que conseguiu a uniformidade da língua em todo o seu imenso território». O que quis D’Silvas Filho dizer com ‘uniformidade’? Que uniformidade é essa que o Brasil tem e que nos falta aqui no jardiniano ‘rectângulo’ e ilhas? D’Silvas Filho criticou assisadamente os abusos de «politicocracia» em Portugal, ao constatar que o governo português impôs a aplicação do A.O.L.P.90 sem instrumentos de suporte adequados, como um verdadeiro vocabulário ortográfico de referência, deixando assim que se instalasse a confusão gerada pela publicação vários dicionários e dois vocabulários ortográficos privados, que consubstanciam diferentes interpretações do Acordo e preconizam soluções gráficas divergentes [Provavelmente depois vertidas nos manuais escolares das respectivas editoras, acrescento eu à laia de pergunta…]. Ao mesmo tempo, nunca manifestou qualquer oposição à «politicocracia» que insiste em fazer da ortografia matéria política, não parecendo incomodar-se com a ‘politicocrática’ imposição da reforma (A.O.L.P.90) que tanto defende(u), sem que os representantes eleitos dos cidadãos utilizadores da língua atendessem à opinião destes, sem que a estes se prestassem qualquer atenção ou contas (ignorando-os mesmo activa e soberbamente), D’Silvas Filho teceu elogios aos 'distintos' linguistas que elaboraram o A.O.L.P.90, escrevendo, por exemplo, e para mencionar o mais infame, perdão, famoso: «A língua muito deve [!!] ao Professor Malaca Casteleiro, pelo seu espírito de inovação [!!] e pelo esforço [!] que tem feito na elaboração dos projectos e acordos ortográficos, em colaboração com os também reputados cientistas do Brasil» Note-se, a este propósito, que num outro texto deste coevo, curiosamente, D’Silvas Filho invectivou a Academia de Ciências de Lisboa e o dicionário de Malaca Casteleiro (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea) com que a primeira se «desprestigiou». Enquanto tecia loas e encómios aos autores do A.O.L.P.90, D’Silvas Filho votava ao desprezo os linguistas que criticavam o Acordo, eruditos (os tais eruditos da abelha, vide supra) que insistem na defesa de bizantinices como a fundamentação teórica e científica sólida de um sistema ortográfico, a importância da estabilidade ortográfica, a primazia da escrita sobre a oralidade, a importância da forma escrita das palavras na aprendizagem, no correcto estabelecimento de nexos de conceitos e na estruturação do pensamento, etc. A propósito destes linguistas que se opõe ao conteúdo do A.O.L.P.90, escreveu D’Silvas Filho: «Diz-se que o acordo de 1990 apresenta os mesmos defeitos científicos que o projecto de 1986. Ora o argumento não é válido na comparação, pois um motivo (além do horror ao cágado sem acento, como lembro sempre) por que o projecto de 1986 foi abandonado era justamente ter soluções inaceitáveis nos poucos casos em que a procura da simplicidade foi imponderada (ex.: *bemaventurado, com possibilidade de retorno da grafia sobre a fonia [efeito que D'Silvas Filho opta por ignorar em outras situações,

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como no caso de certas consoantes ditas mudas, com estranhos matizes, vide infra]). Isto não se verifica no acordo de 1990.» «Quanto ao aspecto científico na generalidade, os detractores do novo Acordo sabem bem que há especialistas idóneos [!] a afirmarem que este acordo não tem problemas linguísticos.» Hum... «[E]specialistas idóneos [!] a afirmarem que este acordo não tem problemas linguísticos»... Quem serão estes «especialistas idóneos» que acerca do A.O.L.P.90 hão melhor opinião que os próprios autores do dito? Recordemos, a propósito, que Evanildo Bechara – académico numerário da Academia Brasileira de Letras e promotor do AOLP no Brasil – divulgou em Maio de 2008 um manifesto intitulado «Considerações em torno do MANIFESTO-PETIÇÃO dirigido ao senhor Presidente da República e aos Membros da Assembléia [sic] da República contra o Novo Acordo Ortográfico de 1990”, no âmbito do 3.º Encontro Açoriano da Lusofonia (Lagoa, S. Miguel, Açores, 8 a 11 de Maio de 2008)». No ‘Manifesto Bechara’, subscrito que foi por João Malaca Casteleiro, académico numerário da Academia das Ciências de Lisboa e co-autor do AOLP, e por 34 outros professores presentes no referido encontro, reconheceu-se explicitamente a existência de problemas graves no AOLP e que não poderia o mesmo constituir a base de uma norma ortográfica. Citemos: «Só num ponto concordamos, em parte, com os termos do ManifestoPetição quando declara que o Acordo não tem condições para servir de base a uma proposta normativa, contendo imprecisões, erros e ambigüidades. Os doutos lingüistas da Universidade de Lisboa e professores de ambas as margens do Atlântico e especialistas das línguas africanas já apontaram falhas e sugestões.» Isto será certamente apenas um assomo de modéstia por parte dos doutos, esforçados e abnegados autores do A.O.L.P.90, porquanto pares seus há que afirmarão que o A.O.L.P.90 «não tem problemas linguísticos». Curiosamente, D’Silvas Filho é bem prolífico no apontar de defeitos e «problemas linguísticos» ao A.O.L.P.90... E as palavras de Bechara são fortes: «não tem condições para servir de base a uma proposta normativa». Será D’Silvas Filho um ‘antiacordista’ encapotado? Sê-lo-ão Evanildo Bechara e Malaca Casteleiro?! [Sinto um estado confusional agudo abater-se sobre mim, qual ponderosa bruma...] [A propósito dos muitos e desastrosos erros contidos no A.O.L.P.90, recomendo a leitura de uma breve análise focada no número 7 Base X do A.O.L.P.90, «Da acentuação das vogais tónicas/tônicas grafadas i e u das palavras oxítonas e paroxítonas» – um pequeno fragmento apenas das vinte e uma bases que o A.O.L.P.90 soma – da autoria de António Emiliano, acessível em http://issuu.com/roquedias/docs/ae_nota_xlix/1.]

Voltando a D’Silvas Filho, o mesmo afirmou: «Os detractores [do A.O.L.P.90] invocam outros linguistas (que se debruçaram sobre o de 1986…) para apresentarem opinião contrária. Repete-se que a ortografia de 1990 é meramente um acordo entre pátrias, com o objectivo de terem uma ‘comum língua’ [!], planetária [!!]. Nesta objecção, estamos na esfera das opiniões e não das fundamentações, válidas num universo científico.» Segundo D’Silvas Filho, se bem percebo, os linguistas que defendem o A.O.L.P.90 são bons cientistas e os outros serão ou não. Mas isso não interessa, porque o Acordo é político, logo matéria de opiniões, pelo que argumentos científicos contra o mesmo – que tem fundamentação científica, embora profundamente deficiente – não colhem nem são chamados à colação. [Talvez até nem necessitasse de ser feito por cientistas, acrescento…]

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Não tenho a certeza de haver entendido… Tenho a certeza, no entanto, que tentar entender a lógica que preside à argumentação de D’Silvas Filho está a causar-me cefaleias. Continuemos... D’Silvas Filho: ─ elogiou o «carácter democrático» [!] do A.O.L.P.90, porquanto o mesmo permitiria mais «liberdade [!] na prática escrita», ─ atacou a C.O.L.B.45 – que apodou de «autoridade absoluta» – com falaciosos argumentos. Escreveu, v.g., que a C.O.L.B.45 permitia duplas grafias, recorrendo ao falso exemplo de 'ervanário' vs. 'herbanário' e cognatos, casos que são não de dupla grafia mas de cognação divergente: na primeira instância, está presente o radical popular 'erv-', na segunda, o radical culto 'herb-'. Pior ainda, afirmou barbaridades como a que se segue: «[...] o nosso léxico já está repleto de duplas grafias, tendo-se adiantado, num cálculo rápido, que deverão ser de vários milhares. O impacto ambiental é uma falácia, pois mais um ou dois milhares nas ‘centenas’ de milhares de palavras do léxico não traz [sic] grande perturbação e, além disso, a frequência de utilização num discurso, em relação à frequência de uso das palavras do vocabulário fundamental será negligenciável.». Decomponhamos esta passagem e analisemos com cuidado: «[...] o nosso léxico já está repleto de duplas grafias, tendo-se adiantado, num cálculo rápido, que deverão ser de vários milhares. A sério? Espantoso! Pergunto: Quem fez tais cálculos, em que corpus ou corpora se baseou e que definição de ‘dupla grafia’ empregou? «O impacto ambiental é uma falácia, pois mais um ou dois milhares Ora, o que são mais um ou dois milhares de duplas, triplas ou multigrafias a mais... Uma gota no oceano... Peanuts! D’Silvas Filho pensa em grandes números, é magnânimo, qual Rei-Sol... Segundo ele, a C.O.L.B.45 é má porque permitia ‘milhares’ de duplas grafias (o que é falso. D’Silvas Filho chama dupla grafia àquilo que é divergência na cognação, na etimologia). Porém, o A.O.L.P.90, ao introduzir mais ainda, é bom... Conclui-se, então, que, para D’Silvas Filho: a C.O.L.B.45 era autoritária, ao permitir ‘milhares’ de duplas grafias; o A.O.L.P.90 é ‘democrático’, ao introduzir mais ‘um ou dois milhares’ de duplas, triplas e multigrafias; maior confusão é melhor do que menor confusão; há confusões filhas (vide a provocada pelo A.O.L.P.90) e há confusões enteadas (vide a ‘bagunça’ prévia à reforma de 1911 – vide infra). Lógica inatacável! Para quê darmo-nos ao trabalho de conceber normas ortográficas, então? «nas ‘centenas’ de milhares de palavras do léxico Qual foi a razão que o levou a colocar centenas entre aspas simples, D’Silvas Filho? «não traz [sic] grande perturbação Ah, sim? Concretize, D’Silvas Filho... Onde está o estudo que sustenta tal afirmação? «e, além disso, a frequência de utilização num discurso, em relação à frequência de uso das palavras do vocabulário fundamental será negligenciável.»

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Esta passagem, desculpe-me D’Silvas Filho, é ininteligível (ou sê-lo-á, pelo menos, para mim). D’Silvas Filho não é sério, e este exemplo, por si só, prova-o. [Quanto à questão do impacto das alterações gráficas introduzidas pelo AO, recomendo a leitura de dois textos da autoria de Francisco Miguel Valada: 1) «AOLP 90 ‐ A impossibilidade linguística de um instrumento político», acessível em http://issuu.com/roquedias/docs/comunica__o_valada_uniao_latina/1; 2) «Os lemas em ‘‐acção’ e a base IV do A.O.L.P.90» ‐ o único estudo quantitativo que sobre esta questão se realizou ‐, acessível em http://issuu.com/roquedias/docs/fmv_diacritica24‐1‐1/1. A propósito do impacto do A.O.L.P.90 na linguagem científica, recomendo o texto «Acordo Ortográfico: SOS pelas matrizes profundas da Língua Portuguesa», da autoria de Fernando Paulo Baptista: http://issuu.com/roquedias/docs/fpcb_sos_pelas_matrizes_profundas/1.]

Continuemos... D’Silvas Filho: ─ afirmou que «A unidade da língua portuguesa na lusofonia é obtida com o novo Acordo [!] pois passa a haver um único [!] dicionário no universo da língua. A unidade é também conseguida no facto de deixar de haver necessidade de duplos textos em documentos oficiais [!!!].» Notemos, a este propósito que, e.g., o Dicionário Aulete – brasileiro –, registava, em edições pré-acordo, as formas portuguesas de muitas palavras em que a grafia brasileira e a portuguesa divergiam: encontravam-se lá formas portuguesas como ‘acção’ e relacionadas, ‘afecto’ e relacionadas, ‘arquitecto’ e relacionadas, ‘baptismo’ e relacionadas, etc., etc. Tínhamos aqui um embrião de Dicionário Universal da Língua Portuguesa! Fácil, simples barato e sem ‘traumas’! [A propósito da falácia dos duplos textos oficiais, recomendo a leitura do que sobre isto escreveu João Roque Dias: «O acordo ortográfico, o português nas Nações Unidas ou uma história (muito) mal contada», acessível em http://issuu.com/roquedias/docs/jrd_aolp_onu/1.]

─ apodou as consoantes ditas 'mudas' de inúteis, mas com estranhos matizes: ora não reconhecia a sua função diacrítica (de marcação do timbre da vogal precedente), por exemplo, em ‘acção’ (cuja forma brasileira, inalterada pelo A.O.L.P.90, é ‘ação’) ou em ‘excepção’ (cuja forma brasileira, inalterada pelo A.O.L.P.90, é ‘exceção’), mas já a reconhecia em ‘acepção’, ‘concepção’, ‘recepção’ (cujas grafias brasileiras, inalteradas pelo A.O.L.P.90, são, respectivamente, ‘acepção’, ‘concepção’, ‘recepção’). Dito de outro modo, pretendia mantê-las em Portugal, apenas quando pronunciadas no Brasil... Este último aspecto é particularmente interessante e revelador. Ora atentemos no fragmento que se segue: «Uso das duplas grafias. «O novo AO, parecendo muito inovador [!], deixa várias questões em aberto. Não diz que, enquanto não houver um VOLP DC [Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa – Dicionário Comum], é recomendável não utilizar numa comunidade linguística grafias só usuais noutras comunidades, pois não existe na língua documento de suporte para essa mistura. Não é por o Brasil escrever comumente, conosco e hifens, que em Portugal se pode escrever já assim, com desculpa no novo AO (no VOLP PB [português do Brasil] não estão, por exemplo, as variantes portuguesas ém/én, óm/ón das proparoxítonas, formas com estes acentos desaconselhadas no Brasil, bem como desaconselhadas em Portugal as formas com acento circunflexo).

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O problema agudiza-se nas consoantes mudas. Há uma série de palavras nas quais o VOLP PB regista, na sequência consonântica, a consoante que será muda em Portugal e, por isso, a vai perder no VOLP PE [português europeu] (ex.: acepção, afecto, apopléctico, céptico, coarctar, concepção, contracepção, epiléptico, espectro, excepcional, infecção, interceptar, percepção, prospectivo, recepção etc., etc.). Então, o senso comum [!] pergunta [veiculado através de D’Silvas Filho, claro está... Como numa sessão espírita.]: É aceitável ser-nos recomendado, agora, Portugal deixar de usar as consoantes mudas nestas palavras com o novo AO, se vamos ser autorizados a usá-las de pleno direito quando houver uma grafia universal válida, objectivo do acordo de 1990? A conclusão lógica [Indutiva, dedutiva, astrológica ou ‘mirabológica’, D’Silvas Filho?!] é que estas formas não devem aparecer agora num VOLP PE só como variantes brasileiras, mas já como variantes também portuguesas.» Pergunto: seguindo a mesma linha argumentativa, não poderíamos manter todas as nossas consoantes 'mudas', as quais uma vez incluídas num VOLP PB, passariam a ser variantes também brasileiras? Não seria mais simples deixar tudo como está e, p. ex. aceitar que um Brasileiro escrevesse em Portugal segundo a norma brasileira e que um Português escrevesse no Brasil segundo a norma portuguesa? Poderíamos até repor o trema na norma portuguesa, sinal com função grafémica bem importante. Enfim, bem vistas as coisas, o que D'Silvas Filho propõe (ou propunha) é (ou era) a adopção em Portugal de uma norma brasileira, independentemente da sua adequação ou não às características do português europeu. Notemos, no entanto, que mesmo aqui, D'Silvas Filho vacila (ou vacilou), porquanto não quer (ou não queria) que formas brasileiras como 'indenizar' e 'anistia' fossem consideradas válidas em Portugal... Atentemos nestoutro fragmento: «Não tenhamos ilusões [!]. As pessoas que se opuseram à assinatura do Protocolo e ao novo Acordo não vão ficar caladas [Gandulos!]. Descobrirão mais várias objecções à nova ortografia e poderão mesmo continuar a acusar de incompetentes os linguistas que o elaboraram, neste desaforo com que os estudiosos da língua são tratados pelos seus pares.» Pois é, D'Silvas Filho, malditos e desaforados linguistas [maus colegas e invejosos, acrescentaria!], aqueles que se atreveram a emitir aquela chusma de pareceres técnicos negativos a respeito do A.O.L.P.90... Não há respeito nenhum, no mundo da Linguística... É um mundo cão! Ainda por cima, têm esses linguistas desaforados a desfaçatez de emitir pareceres técnicocientíficos sobre um Acordo Ortográfico que é matéria de opiniões e para o qual a Ciência não é nem foi chamada! Cáspite, haja topete! [Os pareceres técnicos sobre o A.O.L.P.90 são numerosos e todos eles de leitura recomendada: http://www2.fcsh.unl.pt/docentes/aemiliano/AOLP90/index.html. À falta de tempo ou vontade para ler todos eles, sugiro‐vos que leiais «Uma reforma ortográfica inexplicável. […]», da autoria de António Emiliano, acessível em http://issuu.com/roquedias/docs/10_parecer‐ae‐1‐texto/1.]

No entanto... Agora reparo: D’Silvas Filho lamenta que mal-intencionados e soezes linguistas lancem contra o A.O.L.P.90 competentes ataques, técnica e cientificamente bem fundamentados, manifestando assim total e desaforada falta de respeito pelos seus esforçados pares que o elaboraram; mas, ao mesmo tempo, não se coíbe, ele próprio, de criticar intensa e extensamente o A.O.L.P.90 e de chegar ao ponto de afirmar que a Academia de Ciências de Lisboa se «desprestigiou» com a publicação do Dicionário da

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Língua Portuguesa Contemporânea, coordenado por Malaca Casteleiro, autor-mor do A.O.L.P.90... Ó D’Silvas Filho, o que o diferencia a si, então, dos desaforados? Algo me está a escapar... Vejamos um outro fragmento. «5. Risco de bagunça «Qualquer simplificação ou sistematização tem de ser feita considerando que a nossa língua, embora versátil, é muito sensível (exemplo: a aglutinação de “indo-chinês” [da Índia e da China] dá “indochinês” [da Indochina]; outro exemplo: a frase “dependo do meu braço-direito” [em quem confio para me substituir] é bem diferente de “dependo do meu braço direito” [que ainda me dói]). O risco de se tomarem agora liberdades imponderadas, sem a busca de um consenso para que as formas diferentes sejam reduzidas ao mínimo, é que passemos uma bagunça semelhante àquela que havia antes da Reforma de 1911, com prejuízo da unidade desejada. Quando se evolui da autoridade absoluta [!!] para a liberdade democrática [!!], a liberdade em excesso pode ser perniciosa, se não houver responsabilidade para evitar os abusos (é o que se passa nas democracias políticas [Haverá democracias apolíticas? pergunto eu, boquiaberto...] nas quais os meliantes andam à solta).» Hã?! Meliantes da língua?! Deverá haver sido isso o que acaeceu antes da reforma ortográfica de 1911: havia liberdade a mais e os «meliantes» da língua andavam «à solta» na «democracia política» da língua, cometendo, impunemente, duros crimes como «duplicações de consoantes iguais, que pretensamente embelezavam a escrita dos eruditos: dd, ff, gg, ll, mm, nn, pp, tt.» Ah, Garrett! Ah, Camillo!, Ah, Anthero! Ah, Eça! Ah, Pessoa! Seu bando de meliantes e empinados eruditos, cada um escrevendo à sua maneira e pretensamente embellezando a immortal escripta com a decorativa applicação additiva de redundantes, excessivas, innúmeras e diffíceis lettras consoantes … Cáfila! Vilões! «Na liberdade agora consentida na língua [!], é preciso atender a que ela deve ser usada com bom senso, sem protagonismos.» O que significa usar a língua sem (ou, já agora, com) protagonismos? Não compreendo bem o que D’Silvas Filho que dizer com protagonismos no uso da língua... [Lá vem a cefaleia outra vez...] «A língua é um património precioso, que devemos conservar em toda [!] a sua riqueza.» Deduzo que a ortografia não faça, então, parte dessa riqueza… Entendi bem, D’Silvas Filho? «Mesmo excluindo imposições etimológicas (hoje talvez sem justificação, ex.: cará[c]ter e cara[c]teres porque no latim havia diferença de pronúncia entre o singular e o plural), a língua dos nossos dias traz consigo virtualidades [sic e hã?! Quereria D'Silvas Filho escrever virtudes?] que é um desperdício perder.» A estabilidade do sistema ortográfico não será, então, uma virtude, pelo que se pode perder sem desperdício. Certo, D’Silvas Filho? «Lembra-se que a Academia Brasileira de Letras, com o seu VOLP de 2009, representa “a lei na língua para o novo AO”, em todo o imenso Brasil [Pois,

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e porventura devia sê-lo em Portugal também, não é D'Silvas Filho?...]” (uma unidade que pode expandir-se além-fronteiras...).» Exactamente, D'Silvas Filho! Já percebemos. É mesmo para escrevermos de acordo com a norma brasileira. «As alterações contra o espírito do Acordo de 1990 são particularmente de recear agora em Portugal.» Então e o Segundo Protocolo Modificativo, D'Silvas Filho? E a publicação unilateral do VOLP brasileiro? E o...? E a...? E todas as outras violações do 'espírito' e da letra do A.O.L.P.90, em Portugal e no Brasil? «Seria conveniente que superiormente se estabelecesse com urgência qual o Vocabulário que vai ser lei [!] na língua para o português europeu. Caso contrário, poderemos ter ortografias diferentes até no nosso próprio país.» Implicitamente, concluímos que D’Silvas Filho admite que em Portugal havia uniformidade ortográfica. O que queria, então, D'Silvas Filho dizer quando escreveu que «O povo português gostaria que cuidássemos da língua portuguesa como faz o Brasil, que conseguiu a uniformidade [?!] da língua em todo o seu imenso território»] e, paradoxalmente afinal, caminharmos para uma língua cada vez menos comum.»? Enfim, D'Silvas Filho, já para lá caminhamos há muito tempo, e a ortografia é o menor dos factores de divergência. Dispensar-me-ei de comentar adicionalmente o fragmento intitulado «Risco de Bagunça» que acabo de decompor, porquanto o texto já vai longo, a cefaleia aperta e comentar devidamente tal fragmento implicaria toda uma tese. Para que ninguém note a falta do tradicional argumento ‘acordista’ segundo o qual uma ortografia 'unificada' aumentaria o prestígio internacional da língua portuguesa – ao qual se poderia chamar a falácia do nó górdio do português-língua-oficial-da-ONU –, reproduzo um fragmento em que D'Silvas Filho, noblesse oblige, o invoca: «É preciso ter sempre presente que o Acordo de 1990 pretende construir responsavelmente [!] uma língua universal [!] do ponto de vista ortográfico, respeitada por isso [!] nas instâncias internacionais, que todos na lusofonia a consideremos sua [sic], na riqueza das suas variantes [continua]» Língua única, mas com variantes... Desde que não sejam ortográficas... Mas permitindo multigrafias (porque é democrática)... As quais podem gerar desagregação ortográfica, heterografia, 'bagunça' intra e internacional, com divergência adicional da língua... Mas aumentando o prestígio internacional da língua (quiçá por ser democrática, digo eu)... Mas podendo resolver-se a 'bagunça' aceitando variantes brasileiras como portuguesas (mas não todas, só aquelas de que D'Silvas Filho gosta)... Mas NUNCA ‘impondo’ variantes portuguesas ao Brasil... Será que percebi bem? [E a cefaleia que me não larga...], «[continuação] e de que todos nos orgulhemos do seu presente e do seu honroso passado.» D'Silvas Filho não faz qualquer referência ao futuro... Será um assomo de modéstia, recato, dúvida, escrúpulo...? Terá sido olvido? Ou haverá sido propositada? De qualquer das formas, creio que fez bem em omitir qualquer referência ao futuro... Se este ‘bicho’ do A.O.L.P.90 pega, o futuro não será bonito de se ver...

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Curiosamente, consultando a sua página pessoal, constata-se rapidamente a enorme diferença de extensão entre as críticas que faz à Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945, C.O.L.B.45 (poucas dezenas de linhas) e as que faz ao A.O.L.P.90 (umas centenas)... Não deveria isto causar estranheza até ao próprio? Em suma e em jeito de conclusão, estaremos, assim e agora, a presenciar uma (tardia) epifania. D'Silvas Filho esteve parcialmente cego e agora verá claramente (ou começará a ver). Esperemos que a lucidez seja permanente. Se evoluir da mesma forma que Saulo de Tarso, mudará de nome (talvez para D'Silvas Neto) e passará a ‘antiacordista’ militante. A ver vamos. [Não posso deixar de recomendar também a leitura de «O impossível acordo», da autoria de António Guerreiro (http://issuu.com/roquedias/docs/aguerreiro_o_impossivel_acordo/1), e de «Acordo Ortográfico: visita guiada ao reino da falácia», da autoria de Fernando Venâncio (http://issuu.com/roquedias/docs/ao90_reino_da_falacia/1).]

================================== Parecer médico sumário (porquanto pareceres linguísticos a D’Silvas Filho não interessam minimamente, porque a Ciência Linguística nada tem a ver com o A.O.L.P.90 que é político e matéria de opiniões, embora verse uma área da ciência linguística e contenha elementos de base científica… além de que os linguistascientistas que avaliam negativamente o A.O.L.P.90 são uns desaforados porque criticam os seus esforçados colegas que tanto trabalharam no A.O.L.P.90, cujos sentimentos assim são magoados e etc.) Como médico e após analisar o caso aqui exposto, não posso senão concluir que o A.O.L.P.90 é provável causa degradação cognitiva aguda evolutiva a crónica, potencialmente irreversível – ressalve-se que o sujeito aqui analisado aparenta encontrar-se em estádio inicial tendente a restitutio ad integrum, embora tal constatação penda de continuada observação, quiçá usque ad finem diebus suis – e, como tal, recomendo o evitamento absoluto de qualquer exposição ao mesmo – particularmente de crianças, as quais poderão ser mais sensíveis em virtude de se encontrarem em fase crítica de desenvolvimento cognitivo. Mais recomendo que sejam encetadas medidas emergentes com vista à sua erradicação e que seja o mesmo classificado como agente infeccioso sujeito a medidas de bio-segurança máximas – biosafety level 4, BSL-4 dos estado-unidenses Centers for Disease Control, o mesmo aplicado ao vírus Varíola, ao vírus Ébola, ao vírus Marburg, ao vírus Lassa, entre outros. ================================== Nota biográfica sumária de D’Silvas Filho Para ilustração de quem não conheça a personagem, um agora – ao que parece – exacordista – ou não-tão-acordista, ou acordista heterodoxo, ou acordista protestante, ou acordista reformado, ou anacordista, ou acordista gnóstico, ou acordista dos Santos dos últimos dias, ou membro da Igreja Universal do Reino do Menos-Acordismo, ou qualquer outra denominação –, deixo nota biográfica escrita pelo próprio, publicada na sua página pessoal (http://www.dsilvasfilho.com), e com grafia por mim revertida à norma de 45/73, em reconhecimento à sua epifania e iminente conversão (ou não): «D´Silvas Filho é o pseudónimo literário, registado oficialmente na InspecçãoGeral dos Espectáculos e dos Direitos de Autor (em 1990-06-19), de um estudioso da língua de há mais de 30 anos. Como autor textual, D´Silvas Filho é membro do Conselho Científico da Sociedade da Língua Portuguesa, membro do Concelho Científico (linguística) do Pedro da Silva Coelho – Do milagre da estrada de Damasco... / Pág. 10


ICEA, mais de mil respostas a consultas em Ciberdúvidas, sócio da Associação Portuguesa de Escritores, sócio já `cooperador´ e medalha de honra da Sociedade Portuguesa de Autores. O autor real licenciou-se com 16 valores numa das mais reputadas universidades públicas portuguesas, de que foi assistente ainda era aluno. Mais de 30 anos de docência, sendo 20 no ensino superior, onde desempenhou vários cargos em órgãos de gestão e ascendeu à categoria final de professor coordenador. Na actividade técnica privada foi funcionário durante 35 anos numa conhecida empresa, com nível internacional. Teve a responsabilidade de projectos significativos.» ================================== [Nota inserida a posteriori: o artículo “Problemas ortográficos, novo acordo [...]”, parcialmente transcrito no início desta minha peça e leitmotiv da mesma, estava acessível em http://www.dsilvasfilho.com/Problemas%20ortogr%C3%A1ficos.htm, pelo menos, até à data de 4 de Dezembro de 2011, havendo posteriormente sido movido ou obliterado. Uma versão mais aprofundada do mesmo texto fará parte, segundo o autor, da 5.ª edição da obra «Prontuário - Erros Corrigidos de Português» da autoria do mesmo D'Silvas Filho, ISBN 9789724742618, publicado em Julho de 2010 pela Texto Editores.] ================================== Fonte: Facebook do autor (23 de Agosto de 2012) * Médico interno de Hematologia Clínica no agora Centro Hospitalar de São João (exHospital de São João), no Porto e estudante de doutoramento no Radboud University Nijmegen Medical Centre, em Nimega, nos Países Baixos. ______________________________________ Publicado na Biblioteca do Desacordo Ortográfico a 26 de Agosto de 2012 http://www.jrdias.com/acordo-ortografico-biblioteca.htm

Subscreva a Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico http://ilcao.cedilha.net/docs/ilcassinaturaindividual.pdf

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