ACORDO ESTABANADO

Page 1

DANIEL SAMPAIO PORQUE SIM DESTINO INCERTO?

O

destino incerto é o de Portugal. Em 1974, quisemos definir o nosso rumo. Após um golpe militar, lutámos para construir um mundo novo. Desenvolver, Descolonizar, Democratizar, os 3 D do 25 de Abril, nortearam o desígnio de muitos. Passados quase 40 anos, os dois primeiros D foram cumpridos. Já não temos colónias e o país desenvolveu-se. Muita gente estudou, temos um Serviço Nacional de Saúde que acolhe os cidadãos, não somos presos por fazer ouvir a nossa voz. Mas o terceiro D está em dificuldades. É certo que temos uma democracia formal: há eleições, Presidente da República, Governo e deputados, mas a verdade é que quase ninguém acredita. O português assiste, perplexo, a manobras de fraca política que mostram apenas o apego ao poder, sem nunca ter em conta os verdadeiros interesses dos cidadãos. Os políticos de hoje falam entre si, afirmam estar preocupados connosco, mas cada vez mais sentimos como o que dizem está distante de nós. A força democrática que extravasou no 25 de Abril de 1974 parece ter adormecido. Os portugueses murmuram pelos cantos: sentem como tudo vai ser decidido sem a sua opinião e, não raro, contra os seus interesses legítimos. Olham em volta e vêem manifestações em países tão diferentes como a Grécia, a Inglaterra, a Suécia, a Turquia, o Egipto, o

Brasil… compreendem como um simples incidente desencadeou protestos de rara violência. Em toda a parte, o que sobressai é o descontentamento face à organização tradicional da sociedade. A democracia formal, esgotada pelos desacreditados dirigentes do momento, tenta encontrar novos caminhos. Perante os protestos, os portugueses interrogam-se: valeu a pena lutar? Conseguiram mudar para uma sociedade mais justa? Eu observo também e vejo como a revolta, clara ou escondida, é agora cada vez mais intensa. Apenas os militantes dedicados mantêm os partidos políticos, incapazes de perceberem como o mundo mudou. As pessoas já não se sentem representadas por dirigentes políticos oriundos de juventudes partidárias, sem mostrar consistência em trabalho persistente e dedicado na sociedade. A corrupção e o compadrio alastraram de tal forma que minam a credibilidade de quase todos os actuais agentes da política portuguesa. No entanto, a indignação moral perante tudo o que se passa não encontrou ainda a forma necessária à sua expressão, por isso as manifestações e greves não têm a força esperada, nem parecem abalar um regime adormecido. Observo Portugal e vejo que não é possível continuar assim. Quem, como eu, viveu na ditadura de Salazar e vibrou com a Revolução dos Cravos tem a

convicção íntima de que algo vai acontecer no mundo e em Portugal. Os cidadãos sabem que está na hora, não só de mandar “o Governo embora”, mas também de construir uma plataforma de entendimento global que nos devolva a construção do nosso destino. Nesta perspectiva, os dirigentes políticos de hoje são meros representantes de algo que já passou. Podem entreter-se a dividir, entre si, as migalhas que lhes restam do poder. Resolveram agora a questão do Governo, mas, em breve, os portugueses vão perceber que não podem continuar a abdicar da sua liberdade, pois ela está a ser perdida em cada instante que passa. E por isso eu tenho a certeza de que o nosso destino parece incerto, mas não está escrito. Como em 1974, haveremos de o construir de novo.

diferenças. A cena seguinte passa-se entre William Seward e Lincoln (14m29s). O primeiro queixa-se: “São os mesmos caipiras ignorantes que rejeitaram a emenda há 10 meses.” Lincoln diz: “Gosto de nossas chances agora.” Isto no tal “Brasileiro”. Em Português a frase é mais extensa: “É a mesma cambada de labregos e carreiristas sem talento que rejeitou a emenda há 10 meses. Perderemos.” E Lincoln responde: “Gosto das nossas probabilidades.” A mesma língua, sem dúvida, mas duas formas diferentes de usá-la em termos coloquiais. Querem “ouvir” diferenças maiores? Estão neste diálogo entre Latham e Bilbo, que Lincoln contrata para angariarem apoiantes para a sua 13.ª Emenda à Constituição (37m27s). Ao verem o debate no congresso, interrogam-se: “Quem é aquele homem todo suado que morde o polegar?” “Não o conheço. Parece inquieto.” Isto em Português. Em “Brasileiro” o diálogo é traduzido assim: “Quem é o suado mordendo o dedão?” “Desconheço, parece irrequieto.” Um pouco mais adiante (38m14s), ainda com os mesmos protagonistas e o mesmo cenário, primeiro na versão em “Brasileiro”: “O interessante é que o sr. Yeman parece irritado.” “Ele devia estar aplaudindo.” “Parece que comeu

ostra podre.” E agora em Português: “O mais interessante é o aspeto carregado e descontente do sr. Yeaman.” “Ele devia estar a aplaudir.” “Parece que comeu uma ostra estragada.” Viram o “aspeto”? Se na versão brasileira fosse incluída tal palavra, escreveriam “aspecto”. No espeto, só os portugueses. Por fim, só mais um exemplo, ainda com Latham e Bilbo (44m23s), desta vez a explicarem a Lincoln quem haviam conquistado para a causa anti-esclavagista. Ao falarem de Giles Stuart (Stuart está a levantar dinheiro do banco, dão-lhe um encontrão, as notas espalham-se pelo chão e, enquanto eles o ajudam a apanhá-las, mostram-lhe a proposta de 13.ª Emenda), comentam (em Português): “Que trapalhão.” E em “Brasileiro”: “Bem estabanado.” Bem estabanado??? Será Tupi? Guarani? Sertanejo? Gaúcho? Nada disso. A palavra virá do latim tabanu, espécie de moscardo, que deu origem a tabão ou tavão. Ora, cruzando informações de vários dicionários, a picada de tal moscardo fazia com que a vítima ficasse tresloucada, descuidada, desastrada. O estabanado (ou estavanado) vem daí. Pois bem: que tabão terá mordido a quem acha que pode “unificar” diferentes modos de falar e escrever uma mesma língua (o Português) num acordo ortográfico que apenas finge que é tudo igual, já que continuará a haver traduções diferenciadas (em filmes, livros, peças de teatro) para Portugal e para o Brasil? Que desvario moverá tais criaturas, contra todas as evidências, argumentos e protestos? Quem caça o moscardo e o neutraliza, para evitar os malefícios de tão estabanado acordo?

As pessoas já não se sentem representadas por dirigentes políticos oriundos de juventudes partidárias, sem mostrar consistência em trabalho persistente e dedicado na sociedade

NUNO PACHECO EM PÚBLICO LINCOLN, BRASIL E O ACORDO ESTABANADO

32 | Domingo 14 Julho 2013 | 2

J

á nestas crónicas se escreveu sobre isso, há três anos, mas como a coisa se mantém não é mau voltar a lembrar. Na edição de filmes em Blu-ray ainda se menciona “Brasileiro” como língua para legendas. Mas só na capa dos filmes, porque lá dentro, nos discos, vem claramente escrito Portuguese e Portuguese (Brazil) ou Brazilian Portuguese, tal como aliás sucede com o Espanhol, quando é subdividido em Castilian Spanish e Latin Spanish. O que leva então os portugueses a imprimirem capas com “Brasileiro” escrito? Enquanto não se descobre a razão de tal teimosia, comparem-se, por curiosidade, algumas legendas de um filme que muitos terão visto no cinema e agora já podem ver ou rever em casa: Lincoln, de Steven Spielberg. Acertando as legendas para “Brasileiro”, Mary Todd Lincoln diz (aos 10m12s) ao marido: “Lembra que Robert [filho de ambos] vai estar aqui para a recepção? Sabia que ia esquecer.” Em Português, a tradução é assim: “Lembras-te que o Robert vem a casa para a receção? Eu sabia que ias esquecer-te.” Muda-se o tipo de tratamento, de “você” para “tu”, respeitando o uso de cada país, e a palavra “recepção”, que em Portugal se abastardou. Pouco depois (13m10s), Lincoln apresenta-se em público para dizer umas palavras e hastear a bandeira. Em “Brasileiro” diz assim: “A mim cabe hastear a bandeira. Se não houver falha no maquinismo eu o farei.” E em Português: “O papel que me cabe é hastear a bandeira. O que, caso não haja falha de equipamento, farei.” Mesmo escritas, “ouvimos” as

Nos filmes em Blu-ray ainda se menciona “Brasileiro” como língua para legendas


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.