Revista Noz 3

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2009.1

Cartas Baianas

Cartas Luso-Brasileiras

Notas, alguns documentos diplomáticos e cartas da imperatriz Leopoldina

1821 - 1824 Subsídios para o estudo dos problemas da opção na Independência brasileira

1807 - 1821 A invasão francesa A corte no Brasil A Revolução Liberal

Luís Norton

Antônio Pinto da França Antônio Monteiro Cardoso

Antônio Pinto da França Antônio Monteiro Cardoso

Organização: Sonia Guarita do Amaral

revista de arquitetura

Paulo Leminski

Detalhe: Aires Mateus

Josep Maria Montaner

noz 3

descobrir o Brasil.

Noz 3

Cartas e costumes para você

O Brasil como Império

revista de arquitetura

A Corte de Portugal no Brasil

NOZ

2009.1

Coleção Brasiliana. Um dos mais importantes projetos editoriais em estudos brasileiros desde 1931. Agora em suas mãos.

A nova ruína

Ana Luiza Nobre Casas a domicílio Parque da água

Paisagens recicladas

Alday Jover

Cadu Habitante das nuvens

R$ 15,00 ISSN 1981-9412

NAs res meLhO s IA LIvrAr

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APOIO

Desvende o Brasil Império. Conheça em detalhes os aspectos desse período fundador da nossa história: a política, a sociedade, as artes, as instituições e os costumes.

www.editoranacional.com.br

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A revista Noz é editada por um grupo de estudantes de arquitetura da puc-Rio. Foi criada em 2007. ISSN 1981-9412

O conteúdo só pode ser reproduzido com a autorização dos autores.

Contato revistanoz@revistanoz.com www.revistanoz.com Editores Responsáveis Barbara Cutlak Caio Calafate Catarina Flaksman Marina Piquet Miguel Del Castillo Juliana Sicuro Vitor Garcez

Editores Executivos Catarina Flaksman Miguel Del Castillo Vitor Garcez

Assistentes Editoriais Francesco Bosch Marcella Moura Maria Luiza Vasconcelos Conselho Editorial Ana Luiza Nobre Andrés Passaro João Masao Kamita Otavio Leonídio Projeto gráfico Fernando Rocha João Doria Ilustração Raul Mourão

Logotipo Juliana Ceschini Revisão Barbara Hansen

Patrocínio ibep / Companhia Editora Nacional Apoio cau/puc-Rio

Colaboradores Ábalos & Herreros Aires Mateus Alday Jover & Dalnoky Ana Luiza Nobre André Gardies Claudio Lamas de Farias Eucanaã Ferraz Ismar Tirelli Neto Jacobo García-Germán Josep Maria Montaner Ligia Saramago Luiza Baldan Maria Isabel Palmeiro Maria Luiza Berwanger da Silva Nathalia Mussi Paulo Leminski Agradecimentos Alice Ruiz Alice Sant’Anna Ana Altberg Áurea Leminski Claudia Kehrig Consuelo Carvalho emaud puc-Rio Estrela Ruiz Felipe Kaizer Fernando Betim Gustavo Ferreira Helena Hawad Hermano Freitas Jordi Bernadó Kikah Bernardes Marcia Martins Maria Paula Frota Mauricio Kopke Miguel Nóbrega Nina Paim Paola Combat Paulo Henriques Britto Renato Anelli Ricardo Piquet Rodrigo Leme Silvio Dias Tatiana Rodrigues


Após sairmos de uma edição na qual os temas da imagem e do espetáculo conferiram um ritmo mais rápido à revista, esta Noz propõe uma caminhada que pede contemplação, atenção aos detalhes. Ao nos lançarmos na busca por discutir as fronteiras da arquitetura, a idéia de paisagem surge como linha que circunscreve esta discussão, pois trata da grande e da pequena escala, do entorno, de condições para o projeto e do projeto em si. Ao abordar a paisagem, optamos por não limitá-la à moldura que tradicionalmente lhe é imposta, mas apontamos para uma dissolução desses limites: a paisagem vista deve ser também vivenciada. Pensar a margem nos leva a pensar o que seria a paisagem sem um objeto e o objeto fora da paisagem. Ultrapassando os limites da arquitetura, buscamos o significado do termo paisagem na filosofia e seus desdobramentos no cinema, na literatura e nas artes plásticas. Isolar o objeto, por outro lado, nos levou ao campo do design, encaminhando o debate para problemáticas próprias do fazer construtivo e para o questionamento acerca do módulo mínimo de habitação. A idéia de desenho surge na revista como suporte para a discussão, unindo as diversas escalas através de uma linguagem comum entre as artes plásticas, o design e a arquitetura e, em todos os casos, tratando de projeto. Nesta terceira edição da Noz buscamos traçar seu próprio futuro, com uma revista que deixa de ser apenas de arquitetura. Na contramão da tendência à especialização, procuramos abordar os diferentes campos temáticos fundamentais àqueles que pensam a cidade, as pessoas, a imagem e a construção editoria Noz


64 Sem título Circulação branca Luiza Baldan

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A nova ruína Paulo Leminski 40 Paisagem poética e arquitetura Maria Luiza Berwanger da Silva

22 Por uma nova naturalidade (7 micromanifestos) Ábalos & Herreros

60 Ruídos por Eucanaã Ferraz e Ismar Tirelli Neto

28 A arte e a (re)criação da paisagem Ligia Saramago

8 Detalhe: Moura Aires Mateus

48 A paisagem como momento narrativo André Gardies


132 tfg: Arquitetura modular em plástico (AMP) Nathalia Mussi 114 Casas a domicílio Ana Luiza Nobre

142 Entrevista: Habitante das nuvens Cadu

98 Parque da água aldayjover Arquitectos & Dalnoky

80 Paisagens recicladas Josep Maria Montaner

154 TFG: Arquiteturas entre terra e mar Maria Isabel Palmeiro

124 Eletrodomésticos aerodinâmicos brasileiros Claudio Lamas de Farias

160 Ctrl C + Ctrl V: As dez paisagens de Robert Smithson Jacobo García-Germán


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A nova ruína

Paulo Leminski

Pareceu-me divertida a idéia de uma contra-engenharia, uma anti-arquitetura, onde se fosse da frente para trás, uma arquitetura onde o andaime fosse o fim, e o resto, vão parnasianismo de consumo fácil, uma engenharia onde o objeto arquitetural já fosse direto para seu estado último. Assim, o nome desta reflexão (odeio a palavra “crônica”, com que alguns costumam designar meus “textos-ninja”) era para ser “instruções para a construção de uma ruína”. A ruína é o maior abandonado no meio dos edifícios. Cabanas, palafitas, vilas, mansões, castelos, palácios, palacetes, apartamentos, kitchenettes, privadas de quintal, quartos de empregada, qualquer caverna habitável tem tido mais atenção do que as ruínas. E, no entanto, a ruína é o sentido de final de tudo, o significado dos quartos de empregada, das privadas de quintal, kitchenettes, apartamentos, palacetes, palácios, castelos, mansões, vilas, palafitas e cabanas. Foi em Brasília que tive essa intuição. A primeira vez que estive lá, fui ciceroneado pelo poeta Nicolas Behr, que me mostrou as belezas da arquitetura de Niemeyer, aqueles maravilhosos caixotes de cimento que o tempo, com sua habitual perícia e pontualidade, já está carcomendo e encardindo. Mas de tudo o que vi lá o que mais me impressionou foi o primeiro andar de um edifício interrompido, um começo de prédio com a ferragem interna aparecendo, saindo de dentro do cimento armado, como

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as tripas de um aborto ou a primeira quadra de um soneto inacabado. — Uma ruína? Aqui? Neste monumento futurista? Behr, que ama Brasília até a insensatez, me tirou do pasmo, explicando que realmente era um prédio interrompido, que assim foi deixado para dar um toque humano àquela paisagem sublunar de ficção científica. Arrebatado pela musa, ali mesmo desovei no ato um poema de dezoito andares chamado “Claro Calar Sobre uma Cidade sem Ruínas”. Desde então a idéia da construção de ruínas me persegue como uma obsessão. Dia desses, lembrei que já tinha tido essa idéia, quando garoto. Mais. Que eu já tinha construído, uma vez, uma ruína. Era num mato perto da minha casa, atrás do velho internato dos irmãos maristas, onde eu estudava. No meio desse mato, havia um resto de um velho poço, coberto por uma torre de tijolos. Eu gostava de vir ali de tarde e ficar lendo Deuses, Túmulos e Sábios, o livro que mais me marcou na vida. E no meu desvario de arqueólogo aprendiz, eu gostava de fantasiar que aquele resto de poço pertencia a uma civilização desaparecida, e tentava imaginar como aquele povo vivia, que técnicas conhecia, que língua falava. Um dia, caí em mim e me rebelei contra aquela ficção. E resolvi construir eu mesmo a minha própria ruína. Fabriquei tijolos de barro no riacho mais próximo, que eu enchi de inscrições ilegíveis, mesmo para o lingüista hábil que eu já era aos onze anos. Com os

tijolos, fui construindo dia após dia minha própria torre de Babel, fadada ao fracasso desde o nascimento. Abandonei a construção, quando ela já estava quase da minha altura, pois descobri que aquele povo sacrificava aos seus deuses sanguinários os arquitetos com mais de onze anos. Durante anos, meu amor pelas ruínas me levou ao ódio pela arquitetura. Eu queria ser um anarquiteto de desengenharias. Ainda hoje, quando vejo um belo caixote de vidro e cimento na avenida Paulista, ainda me consola pensar: — Calma, calma, rapaz. Imagine que bela ruína isto vai dar um dia. Mas eu não sou desses que acreditam em idéias individuais. Tenho certeza que essa minha obsessão deve estar presente em muita gente, neste país onde os projetos já nascem mortos, que é um projeto irrealizado senão uma ruína novinha em folha? Proponho, portanto, a introdução de uma nova cadeira em nossas escolas de Engenharia e Arquitetura, a de construção de ruínas. Só construindo suas próprias ruínas, lúcida e conscientemente, o Brasil poderá readquirir o prestígio arquitetônico que teve nos tempos de JK, aquela ruína do sonho de um país em desenvolvimento.

Publicado originalmente em Ensaios e Anseios Crípticos, Pólo Editorial, 1997.

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Aires Mateus & Associados Edifício de habitação e comércio, Moura, Portugal

Detalhe: Moura

Aires Mateus & Associados são vencedores dos prêmios Valmor e da II Bienal Ibero Americana de Arquitectura, finalistas na fad Architecture and Interiorism Awards e indicados ao prêmio Mies Van der Rohe de arquitetura contemporânea européia. Dentre suas obras recentes destacam-se o Museu de Sines e o projeto do Hotel e Residências Grand Canal Square, em Dublin, em construção.

Manuel Aires Mateus é formado pela Universidade Técnica de Lisboa em 1986. Leciona desde 2001 na Accademia di Architettura di Mendrisio, Suíça, e na Universidade Autónoma de Lisboa. Também em 2001 recebeu o 1º prêmio da Bienal Ibero-Americana na Cidade do México, em 2006 o prêmio enor em Vigo (Espanha) e o prêmio Contractworld em Hamburgo (Alemanha). Jorge P. Silva terminou em 1998 o curso de arquitetura na Universidade Lusíada tendo como professor do seu último ano o arquiteto Manuel Aires Mateus, que o convidou a integrar o atelier Aires Mateus & Associados.

Um edifício de habitação e comércio no centro histórico medieval da cidade de Moura, Portugal. Terreno de esquina em um quarteirão de densa ocupação envolto por ruas estreitas e edifícios baixos. Com olhar atento a esse cenário, a estratégia é a recomposição do perímetro da antiga quadra, guiado por pistas dadas pelo próprio lugar. Uma idéia de reestruturação urbana fica subjacente na medida em que se recupera o limite do casario existente, incorporando-o ao projeto, e tornando público o espaço interior da quadra. O piso térreo é dedicado ao comércio, enquanto a habitação ocupa o pavimento superior.


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detalhe: moura

A tipologia do edificado à volta e suas aberturas ao exterior definiram conceitualmente a forma do objeto: grandes e profundos vãos configuram a fachada e o tornam parte daquele lugar. Representa simultaneamente elemento diferenciado e reconhecível. O limite entre o vazio do céu e o cheio da arquitetura se faz por uma suave linha de aresta em seu limite superior. O projeto vem publicado na segunda edição da seção Detalhe da Noz. A prancha em encarte ilustra as preocupações executivas, uma vez que foi o desenho síntese enviado ao canteiro de Moura. É notável também que, devido ao baixo orçamento, a solução permitiu a execução do projeto com pouco esforço tecnológico.

O escritório Aires Mateus & Associados, formado em 1989 pelos irmãos Francisco e Manuel Aires Mateus, é referência quando se ouve falar da nova geração de arquitetos portugueses. Hoje, o escritório funciona sob a liderança de Manuel Aires Mateus e a coordenação de Jorge P. Silva. Trabalham com uma equipe de 25 arquitetos em uma casa recuperada pelos próprios, no bairro histórico de Campo do Ourique, em Lisboa. A produção incansável de modelos dita a dinâmica do atelier. Blocos de isopor são incessantemente manuseados ou cortados. Segundo Jorge P. Silva, o projeto não nasce apenas de um gesto, mas sim da contínua e recorrente auto-correção. A metodologia de trabalho passa pela experimentação até que se chegue ao resultado final, que expressa o raciocínio da volumetria no recorrente e expressivo contraste de cheios e vazios. É pela quase ausência da matéria que o espaço se faz protagonista. A pureza do resultado é, no entanto, obtida com um esforço invisível de pormenorização. Nesse sentido, o detalhe se faz imprescindível.


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AIRES MATEUS & ASSOCIADOS


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detalhe: moura


16 Implantação

N

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AIRES MATEUS & ASSOCIADOS Diagrama


18 Planta baixa pavimento inferior

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A

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detalhe: moura Planta baixa pavimento superior

B

A

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Corte A

Corte B


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AIRES MATEUS & ASSOCIADOS

Ficha técnica

Data de construção: Dezembro 2005 – Janeiro 2008 Autor: Manuel Aires Mateus Coordenador de projeto: Jorge P. Silva Colaboradores: João Esteves, Elisa Laval, Catarina Belo, Maria Vasconcelos Cliente: Meridies Engenheiro estrutural: Octávio Neves Engenheiro elétrico: João Fernandes Engenheiro hidráulico: Bernardino Oliveira Construtor: Meridies Área construída: 1130 m2 Área bruta: 2550 m2

Fachada Sul

Fachada Norte

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Por uma nova naturalidade 7 micromanifestos

1  O jardim latente

A única explicação para a proibição, ainda hoje, da palavra beleza nos debates acerca da profissão de arquiteto talvez seja um resquício puritano dos ideais da modernidade. Basta dizer que a vontade de construir uma nova noção de beleza é quase a única coisa que dá sentido à nossa profissão (se ela quer continuar sendo entendida como tal), para então imaginarmos um plano de ação contundente, nos distanciando das armadilhas nas quais vez após outra tendemos a cair. Se esta proposta é aceita, a própria obra transforma-se em anotações de um caderno de viagem. Constrói-se com ele um “atlas mental”, uma geografia imaginária capaz de iluminar cada lugar a partir do próprio projeto (invertendo o contextualismo tradicional) e dando forma, passo a passo, a um jardim latente. Esta visão remete, talvez, à vertente pitoresca, sobrevivente subterraneamente até hoje, encadeando nomes (Uvedale Price, Frederick L. Olmsted, Le Corbusier, Bruno Taut, Roberto Burle Marx, Lina Bo Bardi, Robert Smithson, Archigram, Cedric Price, entre outros). A fusão entre natural e artificial, a dissolução dos limites disciplinares entre arquitetura, arte, jardim e pensamento, a organização da experiência na forma de seqüências narrativas, a primazia do que é visual e do movimento, também no imaterial e no invisível, a construção de um espaço público e

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Ábalos & Herreros

de uma arquitetura que reflitam essas novas sensibilidades: são ingredientes que conduzem a um novo jardim, visível ou não, sem o qual não pode existir uma nova arquitetura, mas, na melhor das hipóteses, pequenas variações. Quem o concebe não se nutre somente de enunciados abstratos e nomes próprios; antes, deve construir uma cartografia paralela, que ilumine seus projetos procurando novas referências formais, novos símbolos, palavras e técnicas que lhe permitam abandonar os antigos que já não possuem os atrativos necessários. Também deve reconstruir o interlocutor, aquele a quem ele fala, o mundo ao qual se dirige (ver pontos 2, 3, 4 e 5). O caderno de anotações se configura, assim, com esboços (das obras e dos projetos), notas de pé de página, idéias emprestadas e originais, nomes, imagens, conversas, materiais dos mais variados que olham para si mesmos e refazem nosso próprio olhar. O trabalho do arquiteto assemelha-se ao do jardineiro: capinar, preparar o terreno, escolher as espécies e plantá-las de forma organizada, cuidando depois para que o tempo faça bem o seu trabalho.

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Iñaki Ábalos é aquiteto formado pela Escola Técnica Superior de Arquitetura de Madri (onde é professor) e Doutor em Arquitetura. É autor do livro A Boa Vida, entre outros, e é sócio do escritório Ábalos+Sentkiewicz Arquitectos. Juan Herreros é arquiteto formado pela Escola Técnica Superior de Arquitetura de Madrid e Doutor em Arquitetura. É Professor da Escola de Arquitetura de Madrid e sócio do escritório Juan Herreros Arquitectos. Ambos foram sócios do escritório Ábalos&Herreros entre 1984 e 2007.

2  Descampados / Áreas de impunidade

A dissolução da antítese natural/artificial que observamos, em todas as escalas, traz consigo um programa de trabalho que não é outro senão o de redescrever, através da arquitetura, a posição do homem contemporâneo frente ao mundo. As “áreas de impunidade” são, precisamente, lugares nos quais essa condição ambígua é produzida de forma excepcional, lugares cuja definição como “espaços públicos” ou “espaços naturais” é imprecisa. Lugares antes negativos, para os quais o olhar e as práticas dos novos sujeitos da sociedade têm dado uma nova urbanidade. Basta ver os descampados das periferias, e como nesses terrenos baldios tem-se construído quase todas as formas de socialização emergentes, mesmo sendo —ou precisamente por serem— territórios informais. Somos tentados a nos perguntar se haveria neles algum tipo de modelo metafórico, um quase-modelo, se seria possível pensar em seu complemento, o “desedificado”, pois a palavra “descampado” é, por si só, fascinante: um campo que perdeu seus atributos com a aproximação da cidade, que o esteriliza antes de ocupá-lo, mas que também lhe confere um papel transcendental em seu novo contexto. Perguntamo-nos se seria possível construir uma arquitetura assim.

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3  “Ecomonumentalidade”

Fomos acostumados a pensar a arquitetura em função do lugar, entendendo que nele poderíamos encontrar as chaves que supostamente nos ajudariam a abordar o projeto. São muitas as formas de ancoragem ao lugar desenvolvidas nas últimas décadas: desde a raiz fenomenológica (Anchoring é o título de um texto significativo de Steven Holl) até atitudes que partem da escola de Frankfurt (Kenneth Frampton e seu contextualismo), passando pela influência bergsoniana na obra de Rafael Moneo ou a estruturalista do genius loci em Aldo Rossi. Contudo, nos últimos anos, temos assistido a uma mudança significativa: todo lugar passou a ser entendido como uma paisagem em si, seja natural ou artificial, deixando de ser aquele fundo neutro sobre o qual se destacavam objetos arquitetônicos artificiais (quase que com uma vocação escultórea), tornando-se objeto de interesse primário, foco da atenção do arquiteto. Com essa mudança no olhar, a paisagem perde sua inércia e passa a ser objeto de transformações possíveis; a paisagem passa a ser aquilo que podemos projetar e que por isso se torna artificial.

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Ao mesmo tempo, a arquitetura começa, ainda que de maneira difusa, a perder suas definições tradicionais, um processo no qual fica claro um interesse crescente em incorporar uma certa condição naturalista tanto nos aspectos geométricos e compositivos quanto nos construtivos —a busca de uma sensibilidade em relação ao meio ambiente e de uma complexidade formal que respondam com precisão aos novos valores da sociedade. Um projeto é validado contanto que construa uma completa redescrição do lugar; que proponha, a priori, a invenção de uma topografia. Resgata-se, assim, com este duplo movimento —da natureza ao projeto e do projeto à natureza—, uma condição “ecomonumental” que começa a ganhar espaço, inexoravelmente, além de qualquer argumento oportuno, de tal forma que alguns não hesitariam em denominar “espírito dos tempos” ou “vontade de uma época”.

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por uma nova naturalidade

4  Material-mundo

Esse artefato-cidade de que falamos aparece como um amálgama, um material até agora desconhecido, um conglomerado de elementos naturais, artificiais e imateriais ou fluidos, simultaneamente poroso e fibroso, com áreas densas e estáveis, carregadas de memória e com vastas extensões dissolvidas, sem qualidades, quase líquidas; ele é constituído por elementos antitéticos que têm rompido a precisão dos limites tradicionais entre natural e artificial. Se fôssemos arquitetos modernos, pensaríamos esta cidade em termos morais, e dar-se-ia lugar a políticas reformistas. No entanto, parece mais necessário e, ainda, mais ligado à prática da arquitetura, encontrar nesse magma um substrato poético, entendê-lo como algo que nos convida a enxergar de forma nova e, através dele, alcançar uma dimensão crítica. Esse material, a dissolução da oposição natural/artificial em todas as escalas, traz consigo um programa de trabalho que, como dito antes, não é senão o de redescrever, através da arquitetura, essa posição do homem contemporâneo ante seu próprio mundo.

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5  Técnica híbrida, estética mestiça

A sensibilização que vemos hoje em direção às políticas ecológicas tem infuenciado os paradigmas técnicos, deslocando o interesse das experiências de alta tecnologia (um resíduo, sem dúvida, do espírito moderno) em direção a modelos híbridos, nos quais a tônica passa a ser a da interação entre materiais naturais (massivos e inertes energeticamente) e materiais artificiais altamente sofisticados (ligeiros e ativos energeticamente), sensíveis, em seu comportamento, às variações do entorno, gerando sistemas compostos nos quais os primeiros seriam acumuladores e redutores das trocas e os últimos geradores e captadores de recursos energéticos. Este novo modelo tecnológico pressupõe um deslocamento dos interesses, até então muito voltados para os aspectos de organização do material (produção em série, simplificação da montagem, otimização de tempo e custos etc.), em direção a uma organização racional da energia consumida tanto na produção quanto na manutenção do edifício. Essa mudança nos permite hoje conceber os “sistemas”, não mais a partir da coerência e da unidade dos materiais, mas a partir de sua coerência ambiental, abrindo, desta forma, o campo para experimentações nas quais a mescla coerente de materiais diferentes entre si passa a ser uma nova e característica marca visual. Uma materialidade híbrida que implica uma transformação profunda dos ideais estéticos, em sintonia com a mistura de nossas paisagens humanas.

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1  Na tradução do termo naturalidad optou-se por “naturalidade” por referir-se, entre outros significados, à “qualidade ou caráter de natural”, segundo o Dicionário Aurélio. A outra opção seria o uso da palavra “naturalismo”. Mantivemos, no entanto, a primeira, tendo em vista que o que o autor discute é, de fato, os critérios para denominar algo como natural, e que qualidade ou caráter esse natural tem. (Nota do editor). 2  “Cosmogonia: ciência afim da astronomia, e que trata da origem e evolução no Universo”, Dicionário Aurélio. (Nota do editor).

6  Uma nova naturalidade 1

De que forma o uso do termo “natural” tornou-se coloquial? Certamente, o uso efetivo que hoje fazemos dele, nas mais variadas línguas, só pôde tornar-se realidade na medida em que a natureza foi domesticada, compreendida, submetida a organizações taxonômicas que explicaram de forma racional o que antes era um mistério incompreensível e ameaçador; na medida em que ela passou a ser contemplada como algo digno de ser representado e uma concepção pitoresca se superpôs a uma certa ordenação cosmogônica 2, como resultado de múltiplas viagens que nos deram tanto a distância necessária quanto capacidade de observação. É uma hipótese plausível e não vale a pena o esforço de ratificá-la; basta enunciá-la para concebermos uma nova naturalidade que surja da profunda ambiguidade através da qual a natureza se apresenta para nós: como objeto de conhecimento e experiência estética, um conglomerado híbrido e mestiço, entrópico, humanizado, confundido com seu antigo inimigo (o artificial), enroscado no espaço político, advindo do que o espaço público foi um dia, um magma turbulento, líquido e imprevisível. A conclusão é paradoxal: uma nova naturalidade sem referências naturais. Talvez o que nos dê a chave para entendermos essa nova naturalidade da abertura do olhar sejam essas viagens, ainda por fazer, às zonas obscuras do “atlas do pitoresco”, a esses continentes que estão constantemente alheios ao jogo de percursos que os define. Uma nova naturalidade deveria partir da integração desses espaços, dando-lhes voz e vida, exigindo sempre arquiteturas

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capazes de fazer sentido tanto em Lagos e Quito quanto em Nova Iorque ou Düsseldorf, capazes de articular um sentido de beleza imediato e universal, dotado de simplicidade e intensidade e que nunca parecesse insultuoso ou prepotente (quem pode presumir haver alcançado isso, hoje?). Contudo, pode ser que essa viagem frutífera somente possa se dar na direção oposta à tradicional, desde os buracos negros até nós mesmos (reencarnados agora em novos indígenas, habitantes de um outro tipo de natureza selvagem). É possível que essas viagens já tenham começado e ainda não sejamos capazes de entendêlas; somos objetos, e não mais sujeitos, de uma beleza turbulenta que está por vir.

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ÁBALOS & HERREROS

Tradução de artigo publicado originalmente na revista 2G, número 22, editada pela Gustavo Gilli, 2003.

7  Nota final

Se pensarmos no que significa para a arquitetura um mundo hiperconectado, poderemos entender até que ponto a economia e a ecologia estão associadas, não só etimologicamente (oikos, a administração prudente dos recursos domésticos), mas também esteticamente. Os que hoje se auto-proclamam vanguardistas —e terminam por serem nostálgicos, em todo caso— pensaram que as novas tecnologias abririam os métodos projetuais a procedimentos pseudo-científicos e a formas associadas a uma liberdade sofisticada. A globalização parece correr em uma única direção, a de George Bush: mera intensificação do domínio dos de sempre sobre outros. Avaliada a partir de outras posições, essa conectividade do mundo só nos interessa caso possa ser pensada nos dois sentidos, como construção de um olhar mútuo, através do qual seja possível repensar o sentido da “tecnificação” nos modos de conceber a arquitetura. Estamos somente começando a entender que uma técnica híbrida, uma estética mestiça e uma nova naturalidade nos conduzem a emoções cuja simplicidade é muito mais profunda em relação ao que conhecíamos até agora (e que tem sido promovido pelos meios de comunicação). Universalmente conectados, os cânones tradicionais escorrem de nossas mãos, confrontados com escalas e interlocutores infinitamente diversos e com uma enorme gama de interesses. Quando vemos uma idéia feliz, ela resulta,

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felizmente, em quase nada, como se a arquitetura tivesse estado sempre ali, interferindo, como se um novo olhar sobre o mundo começasse a aparecer; não há pátrias, nem culturas, nem primeiro ou terceiro mundo: o que existe é a pura transmissão de uma beleza contemporânea que deixa todas as demais muito atrás no tempo. Queremos essa arquitetura que transcende tempo e espaço, que nos surpreende por ser simples, universal, feliz, barata e intensa. Esse é o jardim que vemos surgir e essa é a emoção que queremos capturar.

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O dossel do rio se rompeu: os derradeiros dedos das folhas / Agarram-se às úmidas entranhas dos barrancos. Impressentido, / O vento cruza a terra estiolada. As ninfas já partiram. / Doce Tâmisa, corre suave, até que eu termine meu canto. — T.S.Eliot, Terra Desolada

Automóveis emergiam disparando das ruas estreitas e fundas para a rasa claridade das praças. A mancha escura de transeuntes formava fios nevoentos. Onde riscos de velocidade maior cruzavam aquele ritmo negligente, os fios se adensavam, corriam mais depressa, retornando depois de algumas pulsações ao ritmo regular. — Robert Musil, O homem sem qualidades

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A arte e a (re)criação da paisagem Ligia Saramago

1  CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.44. Anne Cauquelin é professora de filosofia na França, autora de diversos estudos sobre arte e filosofia, e redatora chefe da Revue d’Esthétique.

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Arquiteta, artista plástica, doutora em filosofia e professora do cau e do Departamento de Filosofia da puc-Rio. É autora do livro A Topologia do Ser: lugar, espaço e linguagem no pensamento de Martin Heidegger.

A terra estiolada de que fala Eliot, assim como as ruas riscadas por luz e velocidade pelas quais transitava um homem sem qualidades, como narra Musil, revivem uma experiência das mais antigas: a experiência grega da explicitação, pela linguagem, de uma pressentida unidade da natureza, ou do mundo; uma unidade que, para os gregos, não se deixava apreender, originalmente, pelo olhar. A natureza, o mundo e seus arredores não eram, então, primordialmente percebidos como uma unidade visual, mas como um todo integrado pela palavra. E, mais do que isso, não teria sequer se manifestado entre os gregos a noção de “paisagem” como uma possível tradução dessa unidade. “É que não há, entre os gregos antigos, nem palavra nem coisa semelhante, de perto ou de longe, àquilo que chamamos ‘paisagem’ ”, como afirma Anne Cauquelin em sua obra A invenção da paisagem, em que a autora aborda a gênese de um conceito que hoje nos parece tão natural e originário quanto a própria natureza. 1 Se para os gregos a natureza —ou mundo visível— não se “organizava” na forma de uma paisagem, mas de uma experiência da ordem da linguagem, ou do logos como princípio unificador e coesivo, essa forma de percepção do todo se transformou substancialmente quando, na Renascença, uma nova forma de percepção trazida pela pintura e pela arquitetura, forjada a partir da invenção da perspectiva linear marcou, se assim podemos dizer, esta invenção da paisagem; e com isto quero dizer: da paisagem como imagem, como algo primordialmente visível.

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Mas em qualquer dos casos —tanto se pensarmos em termos da linguagem como da pintura ou da arquitetura— uma pergunta incontornável se coloca: seria a experiência paisagística uma experiência estética? Se assim fosse, seríamos alguma vez capazes de um olhar livre, “puro” em relação ao que contemplamos, ou cairíamos, já de saída, numa espécie de apreensão do entorno muito mais próxima de uma representação culturalmente produzida? Para o geógrafo francês Jean-Marc Besse, a noção de paisagem como fruto de “uma representação de ordem estética”, de origem pictórica, constituiu-se na modernidade como um dos pressupostos teóricos mais difundidos e menos problematizados.2 A concepção da paisagem como construção cultural marcaria sua radical diferença em relação à dimensão física do território, quer como natureza, quer como país: neste sentido, “a paisagem é da ordem da imagem, seja esta imagem mental, verbal, inscrita sobre uma tela, ou realizada sobre o território”.3 Como não poderia deixar de ser, este ponto de vista essencialmente moderno sobre a paisagem —e sobre a experiência que dela podemos ter— tem sido, segundo o autor, largamente questionado, até porque a própria definição de “cultural” não se restringe, em absoluto, ao pictórico, ao estético, ou mesmo à representação. Contudo, um dos pontos mais instigantes nas reflexões sobre a paisagem é o do estatuto do olhar (leia-se, da subjetividade), ou da visibilidade de algo que, por definição, ultrapassa em muito o âmbito do visível, como coloca Besse. E ele resume a questão nos seguintes termos: “Grosso modo: é o espectador que define a paisagem? Neste caso, o visível é relativo a um ponto de vista, a um enquadramento, é uma imagem. Ou há o visível, a paisagem, havendo ou não um olhar?” 4 Sabemos que, historicamente, o surgimento da pintura de paisagem coincide, não por acaso, com o do auto-retrato, o que nos leva a pensar que a exterioridade só é plenamente “percebida” quando a própria interioridade do sujeito se faz sentir e passa a se constituir como uma questão para ele. Ainda de um ponto de vista histórico, alguns estudiosos voltados para a temática da paisagem reconhecem como marco inicial destes estudos uma carta em que o poeta italiano Petrarca (1304-74) narra sua escalada do monte Ventoux. Nesta carta, sua experiência absolutamente pessoal de livre contemplação de uma paisagem que se abre diante de seus olhos, já parece trazer em si a marca da modernidade, isto é, da subjetividade que se coloca diante do mundo e o representa para si. Considerando-se ou não a carta de Petrarca como o marco inaugural da vastíssima historiografia sobre o tema da paisagem de que dispomos hoje, o fato é que a visão “moderna” da experiência

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2  Ver BESSE, Jean-Marc. “A Fisionomia da Paisagem, de Alexander Von Humboldt a Paul Vidal de La Blanch”. In: Ver a Terra: seis ensaios sobre a paisagem e a geografia. São Paulo: Perspectiva, 2006. 3  Ibid., p.61.

4  Ibid., p.65.

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5  ANDREWS, Malcolm. Landscape and Western Art. Oxford: Oxford University Press, 1999. p. 1. (Tradução da autora).

paisagística traz consigo uma série de questões profundamente associadas às abordagens desta pela arte, em especial pela pintura. O que pretendo aqui não é mais do que apresentar, de forma bastante sucinta, alguns aspectos envolvidos na complexa relação entre as artes visuais e a paisagem. Situando-se, assim, no ponto de vista da arte, este texto não enveredará por aquilo que, na paisagem, ultrapassa o âmbito estrito do visível. Se há paisagem para além do olhar, como indaga Besse, é uma pergunta que não encontrará resposta aqui, portanto. Mas é preciso, ainda nesta introdução, que se considere o que diz a palavra “paisagem”. A palavra alemã Landschaft, antes de adquirir conotações estéticas em função da pintura, principalmente, possuía um sentido mais topográfico, geográfico e mesmo territorial. A paisagem é o país, a pátria, a província, a região. É um local que se define também por suas vizinhanças que, por seu aspecto natural, podem ser mapeadas. Contudo, o termo Landschaft não tinha uma conotação primordialmente natural, mas aludia antes a uma certa área geográfica politicamente delimitada. A partir de fins do século xv, Landschaft, ou landscape, começou a designar também as terras em torno das cidades, ou suas periferias. Foi principalmente a partir dos séculos xvii e xviii que certas conotações propriamente estéticas passam a marcar a palavra paisagem, muito em função da pintura. O tópico que se segue envolverá algumas considerações a partir do que foi colocado pelo historiador inglês Malcolm Andrews em seu livro Landscape and Western Art. Pela variedade e relevância das questões tratadas por Andrews, penso que será interessante percorrê-las aqui. O problema da representação, crucial para a compreensão da abordagem da paisagem pela arte, está fortemente presente nas colocações do autor. No tópico final, serão apresentadas algumas das transformações —ou desconstruções— impostas à idéia de representação pela arte do século xx. O enquadramento do território Nossa percepção do território como “paisagem” seria, como afirma Malcolm Andrews em sua obra Landscape and Western Art, o primeiro movimento no processo nada natural que reúne arte e natureza. “Uma ‘paisagem’, cultivada ou silvestre, já é um artifício antes mesmo de tornar-se tema de uma obra de arte. Ainda quando simplesmente olhamos, já estamos dando forma e interpretando”, afirma ele.5 Segundo este ponto de vista, as diferentes leituras da natureza pela arte já partiriam, portanto, de uma artificialização anterior da natureza, operada pelo olhar humano, que teria desde sempre traduzido o território como paisagem, independentemente

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de qualquer intenção artística. Neste processo de tornar “paisagens” as visões do entorno, estariam presentes, ainda que nem sempre explicitamente nas obras de arte, uma série de preconceitos inerentes a tais visões, bem como a tentativa de cultivar uma familiaridade indispensável a esta “conversão” do território agreste em paisagem familiar. Para o autor, o processo se daria, então, num duplo desdobramento: do território (land) à paisagem (landscape) e da paisagem à arte. No que diz respeito ao primeiro movimento deste duplo desdobramento, Andrews aponta para duas possibilidades de aproximação do território. Primeiramente, um autêntico trabalho de “edição” levaria a cabo a transformação do território em paisagem: a seleção, supressão e valorização de determinados aspectos daquele estabeleceriam uma hierarquia (em grande medida estética) de seus componentes, organizando seus “fatos visuais” num arranjo, determinado, antes de tudo, pela imaginação de quem contempla. Neste sentido, o valor estético de um território não seria algo intrínseco ou essencial a ele, mas sim construído pelo observador. Por outro lado, poderíamos considerar que o que ocorre é justo o contrário: que a contemplação de um território é, como afirma o autor, “um dos poucos prazeres inteiramente simples” que se pode ter, um “ato quase espontâneo, do qual todos e qualquer um são capazes”.6 O olhar seria, portanto, uma resposta instintiva ao território, passível de alguma influência cultural, mas jamais originário desta. Em qualquer dos casos, porém, uma seleção, ou “enquadramento”, ocorreria invariavelmente no ato da visão do território. Este recorte —que já limitaria e organizaria o visível, atribuindo-lhe certa significação— seria o que, efetivamente, definiria e constituiria a paisagem como tal. No que tange às representações artísticas da paisagem —e aqui passamos ao segundo movimento, que leva da paisagem à arte—, a questão do “emolduramento” não é menos importante: o “Argumento”, ou seja, o tema ou a narrativa envolvida na paisagem, como coloca Andrews, é definido precisamente por este recorte, ou “passe partout” que, de fato, nada tem de marginal se considerado seu poder sobre o “Argumento”. Como resume Andrews:

6  Ibid., p.3.

“A presença do Argumento, a corporificação de um motivo temático principal, subordina a estrutura da paisagem. De fato, o Argumento era usualmente percebido em oposição à moldura (‘by-work’) ou parergon, o elemento acessório. Jacques Derrida questionou as suposições tradicionais sobre a marginalidade do parergon. Ele desafia, como lhe é característico, as antíteses dentro-fora, centro-periferia, implicadas no termo: par significa ‘ao longo de’ ou ‘contra’; ergon

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significa ‘obra’, isto é, o tema principal, o Argumento; então ‘moldura’ (‘by-work’) é uma tradução aceitável. ‘Um parergon vem contra, além, em acréscimo ao ergon… à obra, mas ele não decai para um lado, ele toca e coopera com a operação a partir de um certo fora’. Pouco a pouco, Derrida mostra o quão porosa é a barreira entre ergon e parergon (…)”.7

E o autor então conclui:

“Paisagem, como parergon ou como Argumento, é território mediado; é território que foi esteticamente processado. É o território que por si mesmo se organizou, ou que foi organizado pelo olhar artístico, de forma que está pronto para pousar para seu portrait.” 8

7  Ibid., p.7. Derrida abordou o tema do parergon em sua obra La Vérité en Peinture, de 1978 8  Ibid., p.7.

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O convívio com portraits da natureza, como pintura ou fotografia de paisagem, adiciona aos limites de nossas habitações uma abertura artificial para o exterior. Talvez mais do que qualquer outro elemento, o “quadro de paisagem”, emoldurado no interior doméstico, é, como afirma Andrews, o simulacro do real, o que traz também a uma vívida evidência a separação entre interior e exterior, lembrando-nos do quão distantes estamos da natureza. E ainda se considerarmos as aberturas reais para o exterior, como portas e janelas, o sentido de enquadramento permanece intacto: a paisagem sofre uma conversão em algo como “a vista de minha casa”, às vezes tão selecionada e editada pelo arquiteto quanto uma fotografia ou pintura. O prazer implícito na sensação de separação entre o exterior indomável e a segurança do interior constitui uma das mais expressivas experiências que o emolduramento da paisagem é capaz de nos proporcionar. No caso das representações da paisagem pela pintura, por exemplo, a presença da janela em inúmeras obras —ou seja, a inclusão de um emolduramento prévio no interior da própria tela— está ligada, ainda nas palavras de Andrews, a uma busca de “autenticação da paisagem”, no sentido de que aquilo é algo que realmente existe, e o artista, ele mesmo, esteve lá para testemunhar. Além disso, os limites materiais da janela mostrados pela pintura, atuariam como uma outra “edição” da paisagem, anterior àquela do pintor, o que facilitaria grandemente sua tarefa de impor um recorte ao panorama. A apropriação mediada da paisagem pela arte, ou seja, o fato de que a arte muitas vezes se vale de enquadramentos prévios antes de registrar, ela mesma, a paisagem é uma prática que remonta às pinturas renascentistas, que freqüentemente retratavam ambientes dotados de janelas que descortinavam o mundo. No século xviii, artistas e viajantes buscavam recortes artificiais da paisagem através

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9  Ignasi de Solà-Morales, em sua obra Territórios, comenta o uso do “espelho de Claude” nos seguintes termos: “Sabemos como, na pintura da paisagem natural, os primeiros pintores paisagistas se serviam do famoso ‘espelho de Claude’. Supunha-se que Claude Lorrain, o pai de todo o pitoresco, utilizava um pequeno espelho para demarcar sua visão da paisagem ilimitada. O espelho retrovisor era útil para organizar a visão e encontrar modos diferentes dos da perspectiva geométrica para captar a casualidade e a ordem fortuita dos acidentes na paisagem natural. O espelho, eventualmente, ao gosto do pintor, demarcava um conjunto de acidentes, encaixando-os na geometria do quadro. De fora, o olhar do pintor tinha a intenção de apropriar-se dessa acumulação de objetos e episódios que o olhar captava para torná-los seus, para que se sentisse seguro frente a eles, dominando-os e compreendendo-os, em uma apropriação ativa que muito tinha a ver com a experiência colonizadora de viver por si mesmo”. (pp.154-155)

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10  Ibid., p.127.

11  Como coloca Argan em sua obra A arte moderna, o termo “pitoresco” se refere, basicamente à jardinagem, ou seja, “a uma arte que não imita nem representa, mas (…) opera diretamente sobre a natureza, modificando-a, corrigindo-a, adaptando-a aos sentimentos humanos e às oportunidades da vida social, isto é, colocando-a como ambiente da vida. (…) Para o pitoresco a natureza é um ambiente variado, acolhedor, propício, que favorece nos indivíduos o desenvolvimento dos sentimentos sociais”. (p.12)

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do chamado “espelho de Claude”, um pequeno espelho portátil que, no que refletia o entorno do mundo em sua pequena superfície, sugeria, com sua moldura, as inúmeras composições possíveis a partir dos elementos da natureza. O uso do “espelho de Claude” evidenciava não apenas a ânsia do olhar por impor seu próprio recorte ao panorama, como a condição assumida pela arte —e, em especial, pela pintura paisagística— de ser um autêntico espelho da natureza.9 É neste sentido que se poderia mesmo falar de uma condição quase inescapável da cultura ocidental: a de que nossa percepção da paisagem dificilmente é livre da influência das visões criadas pela arte. Andrews ilustra este fato comentando a famosa tela de René Magritte, A condição humana, de 1933, onde um cavalete com uma tela se impõem entre o observador e uma janela aberta: a paisagem exterior, já enquadrada pela própria janela, se encaixa e se identifica perfeitamente com aquela que aparece pintada na tela, numa simultaneidade absoluta de percepções, como que apagando quaisquer distinções entre a natureza traduzida pela arte e natureza “em si mesma”, se assim podemos dizer, ou entre o original e a cópia. “Talvez o ‘original’, de certa forma, nunca tenha sido outra coisa senão uma construção”, conclui Andrews.10 O desejo, mais ou menos explícito, de “domesticação” da natureza em paisagens familiares, muitas vezes contidas nos limites do parergon, encontra na poética do sublime (da segunda metade do século xviii), um contraponto interessante, na medida que evidencia uma relação homem-natureza inteiramente outra. Um pouco posterior à poética do pitoresco, segundo Giulio Carlo Argan 11, o sublime artístico retrata uma natureza misteriosa e hostil, intensamente ameaçadora, que traz à luz “a desesperada tragicidade do existir”, de um existir profundamente individual e solitário. Mas ainda assim, e como não poderia deixar de ser, o sentimento do sublime —fruto de uma experiência radical da natureza— nos alcança principalmente pela via da arte; nos alcança como um sentimento mediado, produzido previamente pelo artista que recria suas condições. Em outras palavras, as relações entre arte e natureza, em especial as recriações da paisagem, ocorreram, até meados do século xx, como representações, ou seja, como “abstrações” a partir da paisagem “real”, que marcavam o efetivo distanciamento desta última em relação tanto ao observador como ao próprio artista. É a partir dos anos 1960 que os limites precisos entre arte e natureza começam a ser como que desconstruídos pelo impacto de algumas obras que puseram em questão estas mesmas categorias. Na esteira das discussões dessas fronteiras entre arte e natureza, a temática mais ampla que envolve as relações entre as obras de

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arte e seus lugares originais recoloca temas instigantes, que remontavam a antigas relações de mútuo pertencimento entre obra e lugar. No tópico que se segue, e a título de conclusão, caberia fazer aqui algumas observações a respeito de certos aspectos aí envolvidos, registrando, sem nenhuma pretensão de análise, alguns desdobramentos contemporâneos da questão inicialmente proposta, ou seja, da criação (ou recriação) da paisagem pela arte. A paisagem como (quase) obra As relações entre arte e natureza —ou melhor, o pensar a natureza pela arte— evidenciaram profundas transformações a partir de meados do século xx. Como coloca Edward Lucie-Smith em sua obra Artoday, o minimalismo nas artes visuais partiu, em certo momento de seu desenvolvimento, para uma existência fora dos limites das galerias e, inicialmente, fora também do espaço urbano, dominado principalmente pela escultura.12 O deslocamento aí envolvido não se restringiu apenas a mudanças “geográficas” no mundo das artes, mas, mais profundamente, a um deslocamento para fora dos limites da própria representação. Ou seja: a representação de recortes da paisagem pela pintura ou pela fotografia, por exemplo, começou a dar lugar a interferências na paisagem mesma pelos artistas, em um sentido físico. A transformação de lugares em obras de arte deu origem a novas categorias e novas linguagens, como, por exemplo, a chamada land art, em espaços abertos, ou as instalações, que ocupavam também ambientes fechados. As obras da land art —inspiradas em parte em monumentos históricos, em parte no paisagismo inglês do século xviii— constituíam-se como imensas configurações espaciais criadas na superfície da terra ou das águas. Sua retirada de seus sítios originários era, obviamente, impensável: elas faziam parte do próprio solo, e dialogavam com a paisagem como um todo. As obras da land art em territórios urbanos eram igualmente inseparáveis de seus lugares de origem. Por serem projetos grandiosos e de difícil execução, como lembra Lucie-Smith, mobilizavam, invariavelmente, autoridades locais, dependiam de grandes financiamentos e de dedicada mão de obra voluntária; circunstâncias estas que —pelos imensos esforços aí envolvidos— traziam à tona um forte senso de comunidade e de realização coletiva. A reunião de uma coletividade em torno de uma obra de arte, não obstante sua efemeridade, era algo que se arraigava vivamente na memória comum. O impacto deste tipo de obra sobre o ambiente alterava de forma marcante a percepção do todo circundante. Haveria uma tentativa, por parte destes artistas, de resgatar o sentido de unidade da obra com seu sítio, tal como normalmente ocorria com as obras

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12  LUCIE-SMITH, Edward. Artoday. Oxford: Phaidon Press Limited, 1996. p.113.

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13  Esta declaração de Robert Smithson encontra-se inserida na obra de Rosalind Krauss, Caminhos da escultura moderna, p.336, tradução modificada.

anteriores ao Renascimento, que, literalmente, pertenciam ao seu lugar? Talvez as obras da land art pudessem ser compreendidas como um ato de resistência à ditadura dos museus e galerias, e como a busca de uma fusão plena com a paisagem, fora do âmbito fechado daqueles. Talvez evidenciassem a tentativa de uma relação mais radical com o território, interferindo diretamente nele, com o objetivo de revitalizar uma percepção já banalizada de suas possibilidades. Contudo, por demandarem um longo período de execução e, ao final, situarem-se em locais quase inacessíveis e serem de curta durabilidade —em função de fatores ambientais de todo tipo— estas obras criavam uma vital dependência dos registros de sua existência: registros fotográficos que, retendo todo o processo de criação em suas imagens, acabavam, invariavelmente, exibidos nos museus e galerias. É principalmente nestes espaços que ainda se tem acesso à land art. Este é o caso de uma das primeiras e mais expressivas obras desta categoria, a Spiral Jetty (1969-70), de Robert Smithson; uma espécie de península em espiral, composta de terra, rocha, cristais de sal e algas, que avança sobre a superfície do Great Salt Lake, no estado de Utah, nos Estados Unidos. As palavras do próprio Smithson, ao descrever a primeira visão do lugar onde sua futura obra se instalaria, não deixa dúvidas quanto ao poder decisivo —e mesmo arrebatador— da própria paisagem no ato da criação da obra. Disse ele: “Contemplando o local, ele reverberava para os horizontes sugerindo um ciclone imóvel, enquanto a luz bruxuleante fazia com que a paisagem inteira parecesse sacudir. Um terremoto dormente propagava-se por uma imensa circularidade. Desse espaço giratório surgiu a possibilidade da Spiral Jetty. Nenhuma idéia, conceito, sistema, estrutura ou abstração podiam sustentar-se diante a realidade daquela prova fenomenológica.” 13

Não restam dúvidas de que não se tratava de uma obra “sobre” paisagem, mas de uma paisagem percebida como quase-obra; como algo vivo e movente, em permanente processo, do qual a Spiral Jetty parece ter sido uma conseqüência natural. A presença de um sentido de circularidade que marca tanto a própria obra como o depoimento do artista é, para Rosalind Krauss, resultado não apenas da circularidade natural do lago, mas também daquilo que ela chama sua “ambientação mitológica”, referindo-se ao fato de que a existência mesma de um lago salgado interior foi tida, durante séculos, como uma “excentricidade da natureza”. Um dos mitos criados para explicar tal fato era de que o lago estaria, desde sua

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origem, ligado ao Oceano Pacífico por um imenso curso d’água que teria gerado perigosos redemoinhos no lago. “Ao utilizar a forma da espiral para imitar o redemoinho mítico dos colonos, Smithson incorpora a existência do mito ao espaço da obra”, afirma Krauss.14 Intervenções marcantes na paisagem, tanto em ambientes urbanos como fora deles, foram realizadas pela dupla de artistas Christo e Jeanne-Claude. Ao envolver monumentos arquitetônicos com gigantescas extensões de tecido, embalando-os, eles introduziam em alguns dos mais conhecidos trajetos de grandes cidades o elemento estranho: a súbita ocultação de um referencial usual era capaz de convertê-lo num elemento perturbador da familiaridade própria da paisagem, obrigando quem por ela passava a uma inesperada reorganização de certos parâmetros tidos como permanentes, como, por exemplo, a uma releitura das escalas dos monumentos e de seu “peso” na paisagem. A Wrapped Pont Neuf (1985), em Paris, e o Wrapped Reichstag (1995), em Berlim, são algumas das obras que desencadearam experiências dessa natureza. As Surrounded Islands (1983), em Biscayne Bay, na Flórida, constituem um dos mais belos exemplos do trabalho de Christo e JeanneClaude, onde as ilhas presentes nesta baía foram circundadas por largas fachas de tecido rosa-choque, transformando por completo a percepção não apenas das próprias ilhas como de toda a paisagem ao redor. Ainda em território urbano, destaca-se o instigante Arco inclinado (1981), de Richard Serra, que permaneceu durante algum tempo na Federal Plaza, em Nova Iorque. A escultura de Serra resumia-se a um grande arco de chapa de aço que cortava o espaço da praça, inclinando-se ameaçadoramente para frente. O choque da obra no entorno é descrito por Alberto Tassinari em seu estudo O espaço moderno nos seguintes termos:

14  Ibid., p.341.

15  TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2001. p.77.

“O espaço da escultura torna-se elástico, dinâmico, e mede forças com a inércia do espaço da praça. Caminha-se próximo à obra sem jamais tê-la sob os olhos como um espaço interiorizado. As visões fragmentadas indicam que há sempre mais a ver. Não porque, como muitas esculturas naturalistas, ela teria frente e verso, mas porque, como um corte no espaço, a escultura é, em seu todo, uma espécie de não-todo. Grandiosa, não deixa de ser um fragmento, uma secção do espaço. Sua totalidade ou sua inteireza não está isolada do espaço fora. A praça a acolhe, e ela a redimensiona.15”

O que se pode constatar, nestas e em muitas outras obras é a possibilidade, por parte da arte, de recriar leituras da paisagem a partir da própria paisagem, indo muito além das visões produzidas

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por suas representações, sejam estas representações pictóricas, narrativas ou simplesmente imagens que povoam nossas mentes. O artista brasileiro Vik Muniz, que produziu alguns Earthworks no Brasil, e uma série de trabalhos em Nova Iorque que tinham nuvens como matéria prima de desenhos ultra efêmeros no céu de Manhattan, fez, contudo, um instigante comentário em seu livro Reflex. Este comentário, a propósito da Spiral Jetty, de Robert Smithson, nos faz refletir sobre a questão de, no que diz respeito à paisagem, podermos, afinal, escapar de todo à representação, quando, não sem poesia, ele relata:

“Embora muita gente conheça fotos de Spiral Jetty de Smithson, são pouquíssimas as pessoas que viram a coisa real. Smithson não construiu uma forma numa remota lagoa em Salt Lake City, construiu um monumento em nossas mentes. Eu mesmo sou obcecado pela obra: em imaginação, vejo sua estranha beleza à luz do luar e sob chuvas torrenciais. Também penso nos peixes que são apanhados pela sua lógica.16”

16  MUNIZ, Vik. Reflex: Vik Muniz de A a Z. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p.157.

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Se a arte é capaz de inventar ou de recriar a paisagem, ou de construir monumentos duradouros em nossas mentes a partir do efêmero da natureza; se ela pode, de fato, fugir à representação identificando-se por completo a seu argumento, são questões que, como muitas outras, parecem pertencer a um território que ainda espera por ser percorrido, de paisagens cambiantes que resistem a mapeamentos definitivos.

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Paisagem poética e arquitetura

Maria Luiza Berwanger da Silva

Formada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ufrgs), com pós-doutorado na Université Paris III (Sorbonne-Nouvelle). É autora de diversos artigos sobre alteridade, paisagem poética e literatura francesa, e atualmente é pesquisadora da pós-graduação da ufrgs, com foco em Literatura Comparada.

“El paisaje – como todas las cosas en sí – no es absolutamente nada. La palabra “paisaje” es la condecoración verbal que otorgamos a la visualidad que nos rodea, cuando ésta nos ha untado con cualquier barniz conocido de la literatura. Desgraciadamente no hay gran acervo de barnices (…)” – Jorge Luis Borges 1 “¿Buscan los hombres, a través del paisaje, aquello que no son?” – Claudio Guillén 2

Ausência, busca de completude, certeza de multiplicidade e de sublimação, como imagens que traduzem certo diálogo de dom e de troca da Literatura com a Arquitetura, evidenciam, sob o traçado de vestígios deixados pela construção de formas, o desenho da paisagem poética à espera de inusitadas cartografias. Arquitetura da palavra ou palavra da Arquitetura? Neste sentido, o capítulo El Hombre Invisible: Literatura y Paisaje, da obra Múltiples Moradas, de Claudio Guillén, configura o lugar dos estudos sobre a paisagem no estudo das relações da Literatura com o espaço considerado como fabricação de figuras arquitetadas. “Espaço de sentido e de linguagem”, o sentimento da distância e a representação do horizonte infinito e móvel configuram a paisagem como produto da “mirada más allá de la realidad” 3, compondo as múltiples moradas. Nelas, o significado da subjetividade diversa e infinita dissemina-se sobre a paisagem, como se a presença do Eu devesse marcar o conjunto de nuanças e matizes líricos produzidos pela voz, dentro e fora das fronteiras e limites textuais. Trata-se de compor a paisagem produtiva na transparência de diálogos articulados entre disciplinas e culturas nos quais a dissolução de fronteiras dá a ver o processo de travessia da linguagem. Movimentos de simultaneidade, de superposição e de renovação do olhar gravam na paisagem o traço de “disponibilidade polissêmica”, tornando-a receptiva a outros campos do saber com os quais compartilha singularidades. Efeitos de complementaridade

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1  BORGES, Jorge Luis. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p.100-101. “A paisagem – como todas as coisas em si – não é absolutamente nada. A palavra paisagem é a condecoração verbal que outorgamos à visualidade que nos rodeia, quando esta passou em nós qualquer verniz conhecido da literatura. Infelizmente não há um grande acervo de vernizes (…)” (Trad. do editor). 2  GUILLÉN, Claudio. Múltiples Moradas. Barcelona: Tusquets, 1998, p.158. “Acaso os homens buscam, através da paisagem, aquilo que não são?” (Trad. do editor).

3  Ibid., p.154. “olhar para além da realidade” (Trad. do editor).

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4   Ibid., p.23.

5  PROUST, Marcel. À La Recherche Du Temps Perdu. Paris: Gallimard, 1954, p.5. “O imenso edifício do saber” (Trad. do editor)

6  “eu interior” (Trad. do editor).

7  GUILLÉN, Claudio. Múltiples Moradas. Op. cit., p. 164. “A paisagem onde o homem é aparentemente invisível pode ser a alavanca deste dinamismo imaginativo e desta busca.” (Trad. do editor). 8  “caledoscópio do obscuro” (Trad. do editor).

9  PROUST, Marcel. À la Recherche du Temps Perdu. Op. cit., p. 5. “Muito tempo me deitei cedo.” A frase que abre o livro de Proust é citada pela autora por ser emblemática, imprecisa em sua temporalidade. Com o termo longtemps (muito tempo) sem maior especificação e a conjugação do verbo se coucher (deitar-se) no passé composé (relativo ao pretérito perfeito), a frase deixa seu significado em aberto. Portanto, optou-se por não utilizar a tradução já existente de Mário Quintana, “Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo.” (Nota do editor). 10  “gigantes” (Trad. do editor).

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e revitalização são captados destes entrelaçamentos que re-situam e renovam o prazer do sujeito —fabricador de formas. Portanto, aquém e além desta paisagem transfigurada pela linguagem, o traçado da voz como marca da figura humana, se, de um lado, articula a composição de paisagem do “vasto” baudelairiano, de outro, o próprio projeto dessa paisagem da totalidade aponta, contrariamente, para certas acomodações espaciais que privilegiam mais o trânsito da composição do que a composição das “províncias finitas de sentido” 4. Desse modo, a reflexão deste crítico espanhol converge com a de Jean Pierre Richard na percepção do “grão do texto” (ou do grão da paisagem), indício exemplar da produtividade textual. Múltiples Moradas, contudo, agrega à teoria francesa o olhar que se concentra ao mesmo tempo na percepção do próximo e do longínquo e na projeção de um sobre o outro, ou seja, do olhar que não incide em harmonização ou conjunciones, as disjunciones moldam a paisagem comparatista de Guillén, que rememora “l’édifice immense du savoir” 5 de Marcel Proust. Multifacetado e móvel, na transparência do “moi profond” 6 de À la Recherche du Temps Perdu, o Eu constrói uma relação significativa com o mundo, a qual não se ajusta ao molde estreito da figuração humana e da unicidade do Eu. Nas palavras de Guillén: “El paisaje donde el hombre es aparentemente invisible puede ser el revulsivo de este dinamismo imaginativo y de esta búsqueda” 7. Assim, o paralelismo que se estabelece entre a iluminação do “kaléidoscope de l’obscureté” 8 prousteano e a prática da paisagem configurada pelo “hombre invisible” confluem justamente nessa suavidade da ausência, máscara emblemática que se tece e se re-tece ao longo da obra de Proust, cuja vastidão do significado não se polariza entre a frase inaugural do primeiro tomo, “Longtemps je me suis couché de bonne heure” 9 e o desejo final no último tomo, onde a superposição da imagem dos “hommes géants” 10 à do “hombre invisible” surpreende pelo desdobramento do “moi profond” que imprime, no acréscimo de traços, a fisionomia da universalidade, diversa, mas complementar. Entrelaçadas, a decifração incessante do Eu múltiplo e a permanente reconstrução do significado textual especificam a teoria da paisagem pela errância, cuja oscilação incidirá na paisagem intervalar, produtiva, mas redutora, segundo Guillén. Preocupa a este crítico a diversidade de tendências que não se cristalizam tão somente no espaço intermediário: reconfigurar a paisagem acompanhando-lhe a respiração descompassada, mas que, por isso mesmo, sorve traços não só do constante movimento progressivo, mas, sobretudo, do recuo; eis, em síntese, o itinerário proposto por Guillén, ao configurar o sentimento da paisagem, no rastro do conceito de literatura como espaço transnacional e

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paisagem poética e arquitetura

11  “fonte simbólica” (Trad. do editor).

12  COLLOT, Michel. “Les Enjeux du Paysage”. In: Paysage et Altérité. Paris: Seuil, 2000, p. 163. “O poeta deve se desprender de todos os traços de cultos e culturas, resistir à sedução das imagens para penetrar aonde todas as figuras se desfazem e reencontram sua essência.” (Trad. do editor).

13  COLLOT, Michel. Pensée Paysage. Notas da conferência de encerramento ao Colloque de Cerisy: Paysage. État des Lieux, 1999. “sentinela de horizontes” (Trad. do editor). 14  “paisagem pensada” (Trad. do editor).

15  COLLOT, Michel. “Points de vue sur la Perception du Paysage”. In: La Théorie du Paysage en France, s.d., p. 212. “Todo objeto percebido no espaço possui uma face velada.” (Trad. do editor).

16  GUILLÉN, Claudio. Múltiples Moradas. Op. cit., p.174. “O homem, a vida e a leitura são movimentos – e por serem o mesmo tanto na penumbra quanto na luz” (Trad. do editor).

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transdisciplinar. Assim perspectivada, a teoria comparatista da paisagem não se contrapõe ao legado de Jean Pierre Richard, conquanto, extrai de Microlectures I e II, de Pages et Paysages e, igualmente, de Terrains de Lecture, uma de suas últimas produções, esse “solo da experiência sensível”. Nele, o ritmo da incessante busca, com vistas à composição da paisagem do Mesmo pela recriação do Outro, favorece a poética da passagem, básica para o processo de constituição/desconstituição dos limiares críticos na abordagem comparatista. Paralelamente, Guillén dialoga com a reflexão teórico-crítica de outro crítico francês, Michel Collot, tanto no que se refere à representação paisagística do horizonte infinito (source symbolique 11), quanto àquela que busca registrar a inclinação da teoria da paisagem ao cultural. Se traços marcantes da produção finissecular encontram seu ponto de origem no apagamento da unicidade do sujeito pela polissemia e pela diversidade, na tentativa de captar a verdade da paisagem, diz o crítico francês: “Le poète doit effacer toutes les traces de cultes et de cultures, récuser la séduction des images pour accéder au fond où toute figure s’abîme et prend sa source.” 12, por outro lado, a curva da reflexão em Collot transitando do perfil do “guetteur d’horizons” 13 à síntese lapidar da pensée paysage 14, via de acesso ao diálogo com outros campos do saber (geografia, filosofia, antropologia, sociologia e arquitetura, a título de amostragem), sulca, intensificando, eixos nucleares do pensamento comparatista de Guillén. A afirmação de Collot de que “tout objet perçu dans l’espace comporte une face cachée” 15, ao reiterar o aporte da percepção para a teoria da paisagem, também reincide no simbolismo do hombre invisible de Guillén, calcada sobre a representação exemplar de Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa, quando diz: “Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra”, ao que completa Guillén: “El hombre, la vida, la lectura son movimientos — y por serlo, lo mismo en la penumbra que en la luz” 16. Como se a invisibilidade do homem, travestido em figurações múltiplas do espaço externo, colhesse dessa aparente prática de diluição o significado da permanência (o da memória da paisagem) a que se soma o da continuidade (o da superposição como nova forma de transformação e de passagem). Nesse processo, a consciência do incessante recartografar legitima a aproximação de paisagens artísticas a não-artísticas, campos do saber, em uma palavra, para os quais construir, edificando e reconfigurando, constitui a certeza da continuidade; como se o apego a uma forma percebida subtraísse do sentimento de vertigem, provocado pela dispersão contemporânea, a negatividade do fazer e do dizer. Espécie, pois, de imagem mediadora do novo, a paisagem recorta da percepção espacial os grãos fertilizadores da palavra que virá.

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Visto deste ângulo, o fio condutor desta reflexão encontra em Maurice Merleau-Ponty o grão seminal e de continuidade da pesquisa sobre a paisagem. Se a leitura simbólica de Cézanne fornece a este teórico da fenomenologia a percepção da diversidade, brinda igualmente os leitores com esta imersão na subjetividade de que o sujeito colhe o prazer da passagem e das fronteiras atravessadas: “Sua pintura não nega a ciência e não nega a tradição. Em Paris, Cézanne ia diariamente ao Louvre. Ele pensava que se aprende a pintar, que o estudo geométrico dos planos e das formas é necessário. Informava-se sobre a estrutura geológica das paisagens. Essas relações abstratas deviam intervir no ato do pintor, mas reguladas a partir do mundo visível. A anatomia e o desenho estão presentes, quando ele dá uma pincelada, como as regras do jogo numa partida de tênis. O que motiva um gesto do pintor nunca pode ser apenas a perspectiva ou apenas a geometria, as leis da composição as cores ou um outro conhecimento qualquer. Para todos os gestos que aos poucos fazem um quadro, há um único motivo, é a paisagem em sua totalidade e em sua plenitude absoluta. Ele começava por descobrir as bases geológicas. Depois, não se mexia mais e olhava com os olhos dilatados. Ele “germinava” com a paisagem. Esquecida toda ciência, tratava-se de recuperar por meio dessas ciências a constituição da paisagem como organismo nascente.” 17

17  MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. Trad. de Paulo Neves e Maria Hermantina Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 132.

18  RICHARD, Jean-Pierre. Roland Barthes, dernier paysage. Paris: Verdier, 2006. 19  “lavrador” (Trad. do editor).

Romper limiares textuais e disciplinares, substituindo-os pelo entrelaçamento de campos artísticos e não-artísticos, eis, em síntese, o trânsito por onde circula a voz dos estudos paisagísticos na recepção da modernidade em recentes publicações, como Dernier paysage 18, para exemplificar, produções nas quais o diálogo da Literatura com a Arquitetura faz-se relação substancial; aproximam-se estes dois saberes pela busca de territórios do imaginário a percorrer e a tecer. Na obra poética de Michel Collot, a imagem-síntese do laboureur 19, como aquele que fertiliza e torna a fertilizar a terra, traduz o ritmo desta paisagem de múltiplos fazeres, significando que a projeção do Eu múltiplo sobre a paisagem guarda, sob a aparente desfiguração, a certeza do espaço a reinventar. Em síntese, a confluência no que se refere à composição da paisagem pela errância que revitalizou o estudo das relações Mesmo/Outro, amplia a reinvenção das faces do Outro: em Múltiples Moradas, a incorporação desses processos contempla o local sempre na transparência da prática da reinvenção do Outro. Guillén busca somar e, pois, redimensionar a identidade do Mesmo, modelando-a tanto pelo

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Maria Luiza Berwanger da Silva

20  GUILLÉN, Claudio. Múltiples Moradas. Op. cit., p. 163. “especificidade de uma experiência singular” (Trad do editor)

21  MENDES, Murilo. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.1276. 22  MALLARMÉ, Stéphane. Oeuvre Complete. Paris: Gallimard, 1945, p.304. “A dançarina não é uma mulher que dança.” (Trad. do editor).

23  VALÉRY, Paul. Oeuvre Complete. Paris: Gallimard, 1960, p. 1173

24  Ibid. p.1298. “Uma sequência de transformações da forma no espaço, que ora se desloca sem realmente ir a lugar algum, ora se modifica num mesmo espaço, revelando todas as faces de seu ser.” (Trad. do editor). 25  “vida interior” (Trad. do editor).

26  “A dança cria uma plástica própria: o prazer de quem dança se desdobra no prazer de quem vê dançar.” (Trad. do editor). 27  “imagem singular do instável” (Trad. do editor).

28  VALÉRY, Paul. Oeuvre Complete. Op. cit., p.1171. “Consiste em ordenar nossos movimentos de dissipação.” (Trad. do editor).

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movimento do “eterno retorno” transformador quanto pela interação que, revigorado, o Mesmo efetivará no “entorno”, ao traduzir a “especificidad de una experiencia singular” 20. Imita a paisagem o movimento da dança, poética de constante reinvenção do próximo e do distante. Sob esse prisma, na poesia brasileira, um fragmento crítico do poeta Murilo Mendes sobre Nijinski sela a função da dança para a paisagem vista:

“Nijinski como lugar de transferências simbólicas e não-simbólicas: atrai a força do universo. Escreve um livro por meio de sinais inventados, registra os passos da dança (…). Em que território sem galáxia ou escadas rolantes penetrou Nijinski? Desfeito o apetite da terra? Suspenso o disfarce do céu (…) Nijinski sonhará que é dançado pela dança?” 21

Lembrança inapagável de Mallarmé e de Valéry, o simbolismo da dança concretiza o exercício de disseminação do Eu no espaço paisagístico, do mesmo modo que pontua o movimento de transgressão dos limites do corpo. Nesse sentido, a imagem decisiva da dança em Mallarmé como representação da neutralidade do Eu (“la danseuse n’est pas une femme qui danse”)22, na releitura de Paul Valéry em Degas Danse Dessin (Pièces sur l‘Art) 23, recupera para a teoria da paisagem a imagem da subjetividade múltipla, modulada por uma “suite de transformations de la forme dans l’espace; qui tantôt se transporte, mais sans aller véritablement nulle part, tantôt se modifie sur place, s’expose dans tous ses aspects” 24. A fluidez desse estado dançante é compensada pela constituição do que Valéry denomina de “vie intérieure” 25, conjunto de ressonâncias representativas do entrelaçamento do Eu com o espaço circundante cujos limites foram apagados: “la danse engendre toute une plastique: le plaisir de danser engage autour de soi le plaisir de voir danser.26 Image singulière de l’instabilité” 27 e, ao mesmo tempo, atividade que consiste à “ordonner nos mouvements de dissipation” 28, a dança faz-se registro de “disjunções”, “complexidades” ou de “sistemas de tendências” a que aludia Guillén, tentando recompor o rastro do

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hombre invisible, o qual, na reflexão de Collot, recobre a energia lírica que o diálogo interdisciplinar sopra na paisagem. Deste modo, o final daquele fragmento citado sobre Nijinski, por Murilo Mendes, parece condensar, na poesia brasileira, o canto de celebração da outra margem que, ao não apagar o ponto de origem, o lugar matricial de partida, remete a versos do poeta-arquiteto do Modernismo, Mário de Andrade, quando diz:

29  ANDRADE, Mário de. Poesias Completas. São Paulo: Itatiaia, 1987, p. 97.

30  ANDRADE, Carlos Drummond de. “As impurezas do branco” (1984). In: Obra Poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 2005. p.95.

“São Paulo é um palco de bailados russos, Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os crimes e também as apoteoses da ilusão… Mas o Nijinsky sou eu! E vem a Morte, minha Karsavina! Quá, quá, quá! Vamos [ dançar o fox-trot da desesperança, a rir, a rir dos nossos desiguais.”29

Versos reiterados ao longo da produção poético-crítica de Mário de Andrade e na poesia brasileira em geral, inscrição singular, em uma palavra, que remete às “províncias finitas de sentido” de Guillén, encontrando, na convergência da poesia com o espaço e com a dança, formas e modos de captação da intimidade mais profunda. Formas e modos que percebem em arquiteturas do corpo e da letra figurações infinitas as quais visam fixar a produtividade que campos, aparentemente díspares, quando aproximados, doam-se reciprocamente. No caso específico do entrelaçamento da Literatura com a Arquitetura, o olhar cúmplice que estes saberes se projetam reciprocamente guarda, sob o aconchego de formas decantadas, o fio residual da memória a retecer. Assim, àquela antecipação do traço paisagístico a construir traduzido pelas epígrafes, tanto na negação da Paisagem em Jorge Luis Borges quanto na indagação sobre a completude em Claudio Guillén, responde uma das vozes-síntese da poesia brasileira, nos versos: “Esta paisagem? Não existe. Existe espaço vacante, a semear de paisagem retrospectiva (…) Paisagem, país feito de pensamento da paisagem, da criativa distância espacitempo, à margem de gravuras, documentos quando as coisas existem com violência mais do que existimos: nos povoam e nos olham, nos fixam. Contemplados submissos, delas somos pasto, somos a paisagem da paisagem.”30

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paisagem poética e arquitetura

31  COLLOT, Michel. “Paysage et Architecture”. In: SAINTGIRONS, Baldine; LAROQUE, Didier (Org). Paysage et ornement. Paris: Verdier (ArtArchitecture), 2005. p.187.

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Paisagem poética e Arquitetura encontram-se neste desejo de, uma vez constituído o arquivo de formas singulares, que estas sejam relocalizadas aquém e além de espaços e temporalidades circunscritos, e que nelas sejam impressos o traçado de transferências artísticas, culturais e inapagáveis. Transferir, não apenas como mediar, facilitando a passagem de um a outro espaços de perceber o mundo e de se auto-perceber; transferir como tradução da subjetividade plena e lúcida que investe na emergência de novas construções humanas, mundializando-as. Na síntese lapidar de Michel Collot, justamente no texto intitulado Paysage et Architecture, ao dizer: “A paisagem não é uma simples projeção das categorias do julgamento e da sensibilidade, ela contribui para moldá-los; constitui o lugar de uma conjunção em duplo sentido do espírito humano e do mundo” 31, este crítico francês afirma a irredutibilidade da paisagem ao traço figurativo, equivalendo a sublinhar o acréscimo que a experiência paisagística proporciona ao sujeito que a contempla. Sob este movimento de ampliação do olhar, a evidência da constante soma recicla o visto, o sentido e o figurado. Dito de outro modo: toda paisagem percebida e filtrada pela subjetividade faz-se imagem pluralizada que representa o próximo, o distante e o virtual ao mesmo tempo. Com base nesta reflexão, vislumbra-se, pois, a Paisagem como lugar de transgressões que dão a ver a inclusão do individual em construções espaciais novas. Territorial e extraterritorial, nacional e transnacional, sujeito e comunidade simbólica imprimem, nesta saída de si à procura de percepções arquitetônicas diversas, a convivência harmônica de composições díspares e inesperadas, já que, além da previsibilidade temporal, ausência e presença, incompletude e completude são moldadas pelo gesto de trocas irrestritas: a paisagem poética restitui às matrizes doadas pela arquitetura modulações sonoras de rara visualidade. Arquitetura da palavra e palavra da Arquitetura, pois, com que a Arte brinda todo leitor e espectador, desde sempre.

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1  Ainda que este termo possa fazer referência à escola francesa de filmologia, eu o utilizo por comodidade, a fim de evitar o recurso a fórmulas do tipo: “teórico do cinema” ou “analista de filme”.

Doutor e professor de estudos cinematográficos e audiovisuais na Universidade Lumière-Lyon II. É autor de diversos livros e artigos sobre cinema, como Le cinéma de Robbe-Grillet, Le Récit filmique e L`Espace au cinéma. Atualmente dedica-se a escrever romances.

André Gardies

A paisagem como

m

No cinema, ao menos para aquele que se baseia na imagem químico-ótica, a paisagem está sempre em segundo plano: o fílmico, aquilo que o espectador vê, é apenas a imagem de uma realidade pró-fílmica. A paisagem não existe; existe somente a imagem da paisagem, como se estivéssemos em um nevoeiro. Se ela é evidente, essa afirmação tem sobretudo como objetivo situar claramente o lugar da reflexão. Apesar do vocabulário, o geógrafo e o filmólogo1 não trabalham com o mesmo objeto. Não é certo, então, que as noções, métodos e características largamente desenvolvidos por um sejam diretamente aplicados pelo outro. Entretanto, há ao menos um ponto no qual o recurso ao trabalho do geógrafo é extremamente necessário: quando se trata, para o filmólogo, de apreender no fluxo indefinido das imagens fílmicas aquelas que dependem da paisagem. Ainda que, nesse caso, o método deva ser prudente e controlado. Duas grandes questões, ao que me parece, são levantadas: o que é que, como imagem, caracteriza a paisagem no cinema? Como esta intervém no funcionamento discursivo do filme e, mais particularmente, no filme de ficção? Embora minhas propostas tentem solucionar principalmente a segunda pergunta, elas não poderiam ignorar a primeira, ainda que seja por razões metódicas.

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NOZ 2  ROGER, Alain. (Ed.). La Théorie du paysage en France (19741994). Champs Vallon: 1995.

3  CHENET-FAUGERAS, Françoise. Le paysage comme parti pris, ibid., p. 273-283.

4  GARDIES, André. L’Espace au cinéma. MéridiensKlincksieck: 1993.

momento narrativo A paisagem como figura do espaço

Em A teoria da paisagem na França2, parece-me que um ponto comum permeia a diversidade das abordagens: para o geógrafo, o paisagista, o militar ou o urbanista, a paisagem tampouco possui uma existência real. Ela resulta de um olhar singular dirigido ao espaço (um espaço real, e não representado) em função de interesses metódicos, estéticos ou estratégicos. É “uma visão do espírito”, para retomar a expressão de Françoise Chenet-Faugeras3. Isto significa que é a partir de um gesto deliberado que o espaço físico e humano se vê erigido em texto a ser lido ou composto. No cinema, a situação inicial é muito diferente: sob a presença necessária do espaço representado, quem deve “ler” a paisagem, o realizador ou o analista? É claro que certos filmes, mais precisamente certos momentos em alguns filmes, são deliberadamente oferecidos ao espectador como paisagens (filmes de promoção turística, numerosos documentários etc.); no entanto, o mais freqüente é uma representação do espaço que se insere na tela, sob a forma de lugares múltiplos e multifacetados, e que o filmólogo deve eventualmente ler como paisagem. O primeiro ato metódico consiste, então, na distinção desses três termos de contornos semânticos relativamente imprecisos: espaço, lugar e paisagem. Com relação aos dois primeiros, eu retomarei, de maneira esquemática, as propostas já feitas em outras ocasiões4. Exatamente como Ferdinand de Saussure distinguia o idioma, como construção de um sistema,

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5  ROGER, Alain op. cit., p. 88-108; ibid., p. 5-20.

da palavra como ato mobilizador dos recursos deste sistema, ao meu ver é pertinente considerar o espaço como um sistema que pode ser atualizado pelos lugares. Um, que seria de ordem virtual, estaria oposto ao outro, como uma forma de atualização. A propósito, é preciso levar em conta dois tipos de atualização. Uma como segmentação da continuidade espacial física (é o “dito-local” do cartógrafo), a outra, mais abstrata, como seleção de valores do sistema espacial: da mesma maneira que conhecemos, por exemplo, a escola como “local do saber”. Nesta perspectiva, a paisagem se revela mais complexa. Seria ela de ordem sistemática ou constituiria uma forma de atualização? Os dois estudos de Georges Bertrand e Roger Brunet5 são, a este respeito, bastante reveladores. No cinema, isto acontece de outra maneira. A imagem de um canyon com um trem passando ao fundo não é, para mim, espectador de um filme de ficção, sinal de uma estrutura geológica e climática singular; ela me remete mais a uma organização dramática do espaço representado. A paisagem, assim como os lugares, atualiza alguns dos dados espaciais colocados em jogo pela narrativa em curso. Como atualização do sistema espacial, lugares e paisagens pertencem à mesma categoria. Então o que é que os distingue? Certamente não é o “espaço-visto”, isto é, a “extensão de região vista sob um único ângulo”, para me referir ao artigo de François-Pierre Tourneax e ao senso

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6  North by Northwest. Direção de Alfred Hitchcock. EUA: 1959.

comum que ele assim resume, a partir de múltiplas definições de dicionários. O lugar é tanto “espaçovisto” quanto o é a paisagem. A grande planície descampada onde Cary Grant tem um encontro marcado em Intriga Internacional 6 deve ser lida como lugar, paisagem ou espaço? É claro que as três perspectivas são possíveis, mas cada uma privilegiará aspectos diferentes. Cada uma supõe um olhar específico. Assim sendo, é provavelmente a partir da qualidade do olhar que convém pesquisar. O senso comum já faz referência a isso: “a extensão de região vista sob um único ângulo”. Entretanto, convenhamos que a fórmula “sob um único ângulo” não é identificada pelo seu rigor metodológico. Mais úteis se revelam os complementos semânticos demonstrados mais adiante por François-Pierre Tourneaux. Três critérios da (bela) paisagem são colocados em evidência: a dominação, a amplidão e a variedade. Observa-se que, destes três traços, apenas um se refere ao objeto observado: a variedade. Os dois outros definem a posição do olhar: à distância e em posição elevada. A partir daí indica-se a característica dominante da paisagem: ela só tem sentido —diferentemente do lugar— quando relacionada ao olhar que ela atrai e com relação a sua própria constituição. Compreende-se, então, que a paisagem seja tão freqüentemente pensada como espetáculo, com seus corolários, que são o valor estético, e os sentimentos que ela é capaz de produzir.

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É claro que estas características são encontradas no cinema, embora um tanto deslocadas: a paisagem torna-se, aí, um espetáculo dentro do espetáculo. São as leis do primeiro espetáculo que vão determinar as características e as funções do segundo. Neste sentido, a paisagem deve ser pensada como um objeto construído, capaz de atrair o olhar do espectador e participar de uma estratégia discursiva que a engloba. Compreendemos que se existem paisagens no cinema (paisagens concebidas pelo senso comum ou descritas pelos geógrafos) elas não são a paisagem do cinema, embora façam parte dele. Esta última resulta menos da natureza do objeto representado (paisagem rural ou urbana, predominância da natureza e do meio-ambiente sobre o homem, configuração harmoniosa dos elementos espaciais, etc.) do que do olhar do espectador que constrói o discurso fílmico. Em termos mais simples, ela está mais para o lado da enunciação do que do enunciado.

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A paisagem como momento narrativo

7  Referente à diegese, conjunto de ações que formam uma narrativa. No cinema, diz-se que algo é diegético quando está presente dentro da trama. (Nota do editor). 8  Les Orgueilleux. Direção de Yves Allégret e Rafael E. Portas. França/México: 1953.

9  La Veuve Couderc. Direção de Pierre GranierDeferre. França/Itália: 1971.

Funções discursivas da paisagem

Parece-me criterioso, assim, analisar a paisagem sob o ângulo de sua funcionalidade discursiva, mais do que de sua essência; de avaliar como ela intervém mais do que dizer o que ela é. Sob a diversidade de suas figurações e a multiplicidade de relações que ela estabelece com os outros componentes da narrativa, acredito que é possível distinguir seis modos de manifestação da paisagem no interior do filme de ficção. Naturalmente, este referencial não poderia pretender nem uma listagem exaustiva (outras modalidades funcionais são provavelmente desejáveis), nem uma tipologia qualquer: os critérios e traços distintivos estão ausentes, além do que nenhum texto significativo foi escrito. Trata-se, antes, de hipóteses a desenvolver, de pistas a traçar e de um primeiro gesto para preparar o terreno. A paisagem-fundo A função mais comum da paisagem —e também a mais familiar— é intervir como “fundo”, como se diz de um pano de fundo no teatro. Ela atesta a fixação espacial do mundo diegético7, ao mesmo tempo em que sua presença se justifica apenas a partir do desaparecimento por trás do desdobramento da ação. De certo modo, poderíamos dizer que a paisagem está lá para não ser vista, ou pelo menos para não ser notada por si mesma. Sua função dominante busca reforçar o efeito de realidade.

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Assim, a vila de pescadores, e depois a praia que Nellie percorre no momento em que reencontra Georges, no final de Les Orgueilleux 8, comportam todos os signos de uma “latino-americanidade” esperada, da qual tirou partido o conjunto do filme. Em La Veuve Couderc9, a modesta paisagem rural francesa se enquadra ao clima de ciúme mesquinho no qual se inscreve o amor escandaloso. Poderíamos multiplicar os exemplos, pois nos encontramos aqui em presença da locação realista, a mais convencional. Pouco importa que o cenário seja “natural” ou construído em estúdio, tendo em vista que uma regra essencial é respeitada, aquela que pretende que os componentes da paisagem estejam de acordo com a idéia que se faz dela. A paisagem deve ser verdadeira, ou pelo menos deve produzir o sentimento de sua própria verdade. Isto implica também em uma relação de concordância, senão de harmonia, estabelecida com os outros componentes diegéticos. Nesta perspectiva, o cinema de Pagnol é exemplar. A paisagem mediterrânea comporta todos os traços conhecidos e esperados: luz, calor, seca, vegetação característica, pântano ingrato, mas com vales profundos e férteis, habitat de pedra calcária, etc. O mesmo número de traços se harmoniza com outros componentes do universo diegético, como o gestual, a eloqüência e o sotaque dos personagens, por exemplo. De tal modo que estes

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10  L`Immortelle. Direção de Alain Robbe-Grillet. Turquia/ Itália/França: 1963.

11  Apenas retomo o termo utilizado por Christian Metz (1972) a propósito dos truques e efeitos no segundo capítulo de sua obra A significação no cinema para designar a função espetacular (e duplicadora) de certos truques. A semelhança parece se impor aqui.

12  Kagemusha. Direção de Akira Kurosawa. Japão: 1980.

13  Ivan Groznyy. Direção de Sergei Eisenstein. Rússia: 1944.

últimos participam —como poderia ter dito Roland Barthes— de uma espécie de “mediterraneidade” essencial, a tal ponto que esta poderia definir a paisagem fílmica: ela seria a própria “mediterraneidade”. Então a manifestação cinematográfica da paisagem não se confundiria mais com a concepção do geógrafo ou do urbanista. O principal traço da paisagem-fundo depende de sua função de confirmação: ela participa da consolidação referencial do mundo diegético. Neste sentido, freqüentemente a paisagem-fundo se organiza de modo a ser reconhecida pelo espectador ao privilegiar os componentes esperados. A propósito, é o que representa Robbe-Grillet em L’Immortelle10, quando indica o cenário de opereta ao qual se presta a verdadeira Istambul, onde filmou. A paisagem-expoente À paisagem-fundo, cuja presença parece óbvia, opõese o que chamarei de paisagem-expoente11. O adjetivo deve ser aqui entendido em seu sentido matemático de multiplicador. A superprodução hollywoodiana, por exemplo, será um dos lugares privilegiados da paisagem-expoente. Desmesurada, espetacular, ela fala da grandeza da história narrada. Compreende-se que ela seja também um forte marcador de gênero: epopéias, aventuras e tragédias heróicas são, com freqüência, caracterizadas pela força de sua paisagem.

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Existe ênfase na paisagem-expoente. Isto feito, ela se mostra, se faz espetáculo, duplicando o espetáculo. É ela que os trailers louvam com termos como “grandiosa”, “gigantesca”, “prodigiosa”, “selvagem”, “magnífica” e, claro, “inesquecível”. Recorre-se ao seu poder de sedução e mesmo de estupefação. Ápice da máquina hollywoodiana, a paisagem não deveria, no entanto, ser reduzida a isso. O excesso que a caracteriza faz sentido na força que ela tem de levar ao poder superior a grandiosidade da narrativa que a acolhe. Penso, mais particularmente, em Kurosawa ou Eisenstein, sobretudo Kagemusha12 e Yvan, o Terrível13, onde a paisagem participa totalmente da dimensão épica. No primeiro caso, pelo ordenamento rigoroso de um excesso de cores e sons do enquadramento e, no outro, por uma forma de minimalismo tirando partido da antítese, a multidão negra sobre a imensidão branca da neve, por exemplo. Espetáculo por si, a paisagem-expoente leva a seu ponto de incandescência a dimensão espetacular do filme. Compreende-se que ela sempre esteve no centro da indústria cinematográfica (a produção Lumière, sobretudo com os panoramas, já abria caminhos), possibilitando formas e manifestações de extrema riqueza, ainda a serem estudadas.

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André Gardies 14  Les vacances de Monsieur Hulot. Direção de Jaques Tati. França:1953.

A paisagem-contraponto Ao contrário desta força de exaltação própria à paisagem expoente, está a paisagem-contraponto. Se uma multiplica, a outra divide; a menos que não se trate de um expoente negativo, e neste caso estaríamos diante da forma inversa do mesmo fenômeno. Por contraponto pretendo designar a relação de distanciamento sobre o qual atua o filme, entre a paisagem e o personagem. Não se trata da figura conhecida da paisagem grandiosa e selvagem sob a qual o herói aparece momentaneamente esmagado, mas talvez de uma impossibilidade de mudança de forma, como se o que um diz fosse desmentido pelo outro. O melhor exemplo disto é dado, me parece, por Jaques Tati. Mesmo evoluindo no centro de uma paisagem urbana, rural ou marítima, o herói (e também alguns personagens secundários) raramente está em sintonia com a paisagem que o cerca. Esta é, evidentemente, uma das fontes essenciais do cômico de Jaques Tati. Embora sejam inúmeros, citarei apenas dois exemplos; ambos tirados de As férias de Monsieur Hulot14. Todos se lembram da entrada em cena do personagem: numa estradinha sinuosa do campo francês aparece sacolejando, ao longe, um velho carro cujo motor a todo momento parece vomitar a alma. Levando isto em consideração, o cômico estaria simplesmente ligado ao pró-fílmico, isto é, à escolha de um veículo um tanto ridículo. Na realidade, o cômico resulta de um efeito de contraponto.

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Desde os primeiros planos, o filme mostra o exército invasor dos cidadãos em férias. O próprio trem que os conduz à praia prometida acaba de entrar no campo, aproximando-se até ocupar todo o quadro. Visivelmente, o espaço é representado sob o signo da conquista devastadora. Monsieur Hulot, ao volante de seu insignificante veículo, foge do esperado. Há em sua conduta como que o desejo de não perturbar a serenidade da paisagem. Um pouco mais adiante, é um casal de personagens secundários que ilustra exemplarmente esta função de contraponto. Uma vez que Monsieur Hulot se instala na pensão de família, descobrimos alguns dos pensionistas em suas atividades cotidianas, principalmente o velho casal, sempre a passeio, ela adiante, ele atrás. Lembramos do momento em que, à beira da praia, entre os rochedos, a esposa se extasia com a descoberta de uma concha, depois de outra, passando-as uma a uma ao seu marido que, indiferente, as lança por sobre o ombro. Aparece aqui a representação do contraponto. A paisagem marinha está presente, quase palpável, o que torna ainda mais sensível o caráter deslocado e ridículo da emoção exibida pela esposa, esta “defasagem” sendo, por sua vez, ampliada pelo gesto do marido. Não é de se espantar que o cinema cômico faça uso excessivo da paisagem-contraponto (poderíamos pensar também em Chaplin, Keaton, Jerry Louis e muitos outros): o personagem no mesmo nível que os seus

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15  Manon des sources. Direção de Claude Berri. Itália/França/Suíça: 1986.

sapatos (para dizer de maneira educada) leva sempre ao riso, mas o contraponto e a discordância que ele instaura são suscetíveis de traduzir muitas outras emoções. A grandiosidade patética da declaração de amor de Ugolin a Manon (em Manon des sources15, de Pagnol) não se deve ao contraste entre a imensa beleza selvagem das falésias e a agitação desesperada de Ugolin encarapitado lá no alto, tão distante? A paisagem-expressão Na paisagem-expressão, ao contrário da última, uma forma de osmose e mesmo de fusão se estabelece entre personagem e paisagem. Talvez não seja necessário insistir sobre esta modalidade; exatamente como a paisagem-fundo, ela depende de uma prática retórica bastante antiga: aquela que pretende estabelecer entre a paisagem (por vezes, aliás, assimilada à natureza) e o herói alguma troca secreta da alma. Podemos reconhecer aqui o topos, muito caro aos românticos. Esta relação de troca, tão presente (já vista na paisagem-fundo, de outra maneira), leva a se interrogar menos sobre exemplos (são inúmeros) do que sobre o que a fundamenta e, como conseqüência, sobre a funcionalidade narrativa da paisagem. Na realidade, é com ela, e não com os lugares, que a troca se instaura. Aprofunda-se aí a diferença entre estes dois “atualizadores” do espaço.

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Aos lugares, que estariam no centro da atividade denotativa, opõe-se a paisagem, como vetor da atividade conotativa do filme. Ignoro até que ponto esta oposição é simplificadora, mas ela me parece amplamente fundamentada. Para levar ainda um pouco mais adiante esta lógica, eu estaria tentado a adiantar que a paisagem no cinema é o momento em que os locais resvalam em direção à atividade conotativa. Tal hipótese oferece a vantagem de definir a paisagem com relação à escrita textual e, assim, fixá-la junto à enunciação. A paisagem não se reduz, então, aos objetos do mundo relacionados como “paisagens”, mas está aberta às configurações fílmicas mais diversas, até permitir falar, por exemplo, de “paisagem interior”. É a atividade discursiva do filme que a produz. Mas o que valida esta hipótese? A meu entender, o caráter fantástico da paisagem é o fato de que ela não existe sem o olhar e a parte de subjetividade que este supõe, como deixava transparecer o artigo de Pierre-François Tourneaux. É o meu olhar de espectador, compartilhando ou não o dos personagens, que vai, sob a base das propostas fílmicas, ler a melancolia, a solidão, a quietude, a doçura ou a violência que surgem da paisagem. Mais precisamente, seleciono do espaço representado traços suscetíveis de produzir tais significados. Isto feito, leio o espaço como uma paisagem, e esta se torna como que o rosto do território. Isto posto, posso

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NOZ

A paisagem como momento narrativo 16  Persona. Direção de Ingmar Bergman. Suécia:1966.

17  A Clockwork Orange. Direção de Stanley Kubrick. Inglaterra/USA:1971.

18  Duel in the sun. Direção de King Vidor. USA: 1946.

articular estes efeitos de subjetividade sobre a paisagem que empresto aos personagens, relação esta que define a paisagem-expressão. A paisagem-catalisadora A paisagem catalisadora participa de um processo similar, porém com efeitos diversos, no sentido de que estes efeitos atuam no centro do mundo diegético. Poderíamos definir sua função da seguinte maneira: colocado na presença de um certo tipo de paisagem, em condições favoráveis, o personagem sofre uma transformação. Não é o que ocorre a Elizabeth, em Persona16, de Bergman? O isolamento da paisagem costeira não parece favorecer a transferência que se opera entre ela e Alma, sua enfermeira? Não é ainda o que diz, de maneira alegórica, Laranja Mecânica17, de Stanley Kubrick, por ocasião do tratamento de Alex? Lembramos das imagens de paisagens maravilhosas e paradisíacas que o bombardeiam durante sua terapia, a fim de ativar sua mutação. Aqui também, como na paisagem-fundo ou paisagem-expressão, um processo de troca se instaura, no entanto a paisagem-catalisadora se distingue por seu caráter ativo. Ela é um componente da diegese, suscetível de produzir ou favorecer a transformação de um outro componente desta mesma diegese. Neste sentido, ela participa do próprio processo narrativo. Mas, observamos, o lugar e o espaço não seriam

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capazes de intervir de maneira idêntica? O espaço psiquiátrico e o hospital não seriam operadores de transformação? É que eles são, de fato, o local de um fazer terapêutico exercido por um personagem; eles acolhem a ação de transformação. A paisagem-catalisadora é agente desta mesma transformação, pelo fato de perceber o personagem. A paisagem-drama Com a paisagem-drama percebemos a presença de um funcionamento narrativo ao mesmo tempo da mais vasta amplitude e complexidade. Trata-se de ver como a paisagem pode intervir na mise en scène dramática e participar das estratégias discursivas desenvolvidas pelo filme. Vasto programa que não poderia ser cumprido em algumas linhas. De imediato parece-me conveniente, a fim de simplesmente identificar algumas modalidades deste funcionamento (mas já será muito), analisar em detalhe uma seqüência fílmica. Isto constituirá a última parte da minha intervenção.

O amor, a morte, o sol

A célebre seqüência final de Duelo ao Sol 18 servirá de ponto de referência. Conhecemos a trama ficcional do filme: o senador McCanles tem dois filhos, Jesse e Lewt – um, brilhante; o outro, malandro. Ele se vê obrigado a acolher Pearl, mestiça índia, por quem Jesse se apaixona, enquanto que ela ama Lewt em

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vão. Após múltiplas peripécias e lutas interiores para escapar à violência perturbadora da paixão, Pearl aceita o encontro com Lewt no deserto, com a intenção de matá-lo. Ao longo deste duelo final, ambos vão se ferir mortalmente antes de morrer nos braços um do outro. A cena se coloca sob o signo da grandeza trágica: Pearl enfrenta a morte com toda lucidez, aquela que dará fim a uma paixão impossível, enquanto que o fatum se manifesta sob a forma de um alvoroço irônico e irreversível: é no momento da morte, quando é tarde demais, que Lewt revela a Pearl toda a força de seu amor. Ápice do filme, este final revela todas as origens da mise en scène dramática, cuja paisagem desértica é um dado essencial. Esta última não é apenas um cenário; é apresentada como uma espécie de ator do desfecho. É o deserto como local de encontro e de conflito entre duas civilizações (indígena e ocidental) que fundamenta o drama. A aridez da terra flamejante ao sol assume, evidentemente, todo o seu valor simbólico, o da nudez na qual se revela a verdade das paixões, no instante da morte pelo sangue derramado. Desde o início da ação é o valor conotativo da paisagem que se manifesta, sinal de sua importância para as imagens posteriores. Seguimos, por longo tempo, a aproximação de Pearl, a cavalo, fuzil em punho, avançando decididamente em direção ao esconderijo de Lewt. Os amplos

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enquadramentos alternam os planos fechados, reforçando a determinação da personagem pela sua inserção no centro do espaço vazio. Se é justificada pela causalidade diegética (sabe-se que Lewt se esconde fora da cidade), a escolha do deserto como teatro do drama final permite também, e sobretudo, explorar toda sua força conotativa e metafórica. Além da aridez e do despojamento que denotam a verdade do sofrimento (trapacear não é possível), a ausência de qualquer outra presença humana revela, ironicamente, que os apaixonados estão sós no mundo e que, tragicamente, nada nem ninguém pode suspender o enfrentamento inevitável. Quanto à amplidão grandiosa da paisagem, ela indica a dimensão heróica da ação posterior: a mestiça desprezada e o malandro marginal, pela própria auto-superação, cumprem seu destino de heróis. Estes valores ligados à paisagem permanecerão presentes ao longo de toda a seqüência, às vezes reforçados por novos elementos do cenário, outras, reduzidos por conta do jogo das intensidades dramáticas. Quando Pearl consegue chegar perto do esconderijo de Lewt, o enquadramento se fecha ainda mais, enquanto que a areia é substituída por montes de rochas. A presença acentuada do mineral reforça a indigência trágica e o isolamento, sublinhando o caráter implacável do duelo que virá. Nenhuma outra vida, além dos amantes-inimigos, habita este espaço.

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NOZ

André Gardies

As modulações conotativas introduzidas pela paisagem continuam assim até o plano final. E não vou mais detalhá-las; o essencial, me parece, está na ênfase desta função primordial na estratégia da paisagem-drama. Além disso, o que importa agora é evidenciar um segundo componente, certamente desenvolvido nesta seqüência, mas suscetível a uma maior generalização. Quero falar do processo do envolvimento do espectador. Cada um terá observado, suponho, a forte evolução do enquadramento à medida que a seqüência avança. Os largos planos do início logo cedem lugar aos quadros fechados, até a multiplicação dos planos abertos, quando os dois amantes estão finalmente juntos. O olhar do espectador está então mais próximo ao drama, segundo um procedimento clássico que atua sobre um desejo de identificação. Mas o que resta da paisagem? Em função do plano aberto, ela não seria ampliada para fora do campo visual e, então, afastada da mise em scène? Num sentido sim, mas na realidade não, pois se trata de uma transformação. Um dos recursos estratégicos essenciais da paisagem-drama consiste nesta transformação. A paisagem, até então conhecida, mesmo familiar, aparece pouco a pouco modificada. Sua configuração, seus componentes, seu valores se modificam até produzir, eventualmente, um efeito de estranhamento, de mistério ameaçador. Assim que a noite ou o nevoeiro se apoderam da paisagem, por exemplo.

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O filme policial ou de suspense se mostra grande consumidor desta figura. Na seqüência que abordamos, a transformação é de outra ordem: ela acontece quando a paisagem muda de padrão. De aliada, ela se torna adversária da busca em curso. Até o momento em que a heroína fere mortalmente Lewt, a paisagem funcionou como um coadjuvante. Na realidade, o isolamento do local permite o confronto que busca Pearl; além disso, se ele favorece o afastamento de Lewt, o desmoronamento das rochas, ao multiplicar as barreiras protetoras, facilita a aproximação de Pearl, permitindolhe ferir mortalmente seu amante. Quando os dois heróis confessam a verdade de sua paixão e tentam aproximar-se apesar de seus ferimentos, a paisagem se torna um verdadeiro oponente. Depois dos homens, é a própria natureza o obstáculo ao seu amor. Lembramos dos inúmeros planos abertos sobre a terra que se desfaz nas mãos de Pearl, rochas escorregadias intransponíveis, sangue que se mistura à poeira, subida que se torna um verdadeiro calvário. Pearl passa por uma provação física, ao preço de seu corpo destruído e ferido, componente da paisagem que apenas o olho, até então, havia avaliado. A distância é bruscamente reduzida, a paisagem não está mais ao alcance do olhar, mas ao alcance do corpo. Ao menos, trata-se aqui da experiência vivida pelos personagens. Para o espectador do filme, contudo, a postura é diferente.

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Certamente, através do jogo das identificações, ele compartilha dos mesmos infortúnios, mas sem, no entanto, perder o distanciamento como espectador. Na realidade, o dispositivo geral através do qual o filme se dirige ao espectador não se anula no jogo de planos abertos e na carga emocional que provocam. A regulagem descritiva da cena visa manter o equilíbrio entre a percepção global da paisagem e o olhar agudo dos planos fechados. Mesmo quando vejo as unhas de Pearl arranharem inutilmente as rochas, não esqueço a configuração da paisagem. Sei que o fragmento de espaço que vejo não passa da metonímia de um conjunto mais vasto. E isto não apenas porque minha memória de espectador armazenou esta informação anteriormente, mas sobretudo porque o regime descritivo me colocou em situação de observação privilegiada. Uma passagem específica da seqüência traduz exemplarmente esta estratégia discursiva. Enquanto Pearl avança ao abrigo das rochas, buscando a melhor localização para atirar em Lewt, alguns planos em câmera subjetiva me fazem compartilhar de seu ponto de vista, permitindo-me avaliar o perigo que ela corre. O ato de enunciação se esvai com a demonstração interna. Entretanto, em alternância, notam-se outros planos que não correspondem a nenhum ponto de vista “diegetizado”, em particular àqueles em que Pearl se aproxima dos amontoados de rochas. No primeiro plano, ocupando quase a metade do quadro, recortase a massa rochosa, enquanto que a heroína abre

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passagem cuidadosamente. Evidentemente que este enquadramento se dirige a mim, sobretudo em razão da presença ostensiva do primeiro plano. Ele reforça, a partir de outro ponto de vista, o perigo exposto. Se, pelo jogo dos planos abertos e enquadramentos subjetivos, fico mais perto dos personagens e partilho de seus sofrimentos, jamais perco totalmente o sentimento de minha posição de espectador, pois o filme tem o cuidado de me colocar em excelente posição de observação. Neste sentido a paisagem continua presente para mim, até nos momentos em que o enquadramento a afasta do campo visual. Observamos que a dramatização da seqüência não se atém, evidentemente, somente ao caráter trágico dos acontecimentos; ela procede de uma estratégia discursiva que visa fazer da paisagem o ator maior da mise en scène. Para isto, três procedimentos foram mobilizados: a ativação do poder conotativo da paisagem, a transformação progressiva de sua percepção, que passa do olhar à experiência quase sinestésica, e enfim o trabalho sobre o modo de se dirigir ao espectador e suas diversas modalidades de implicação. Sem chegar a pensar que estas três operações bastam para definir a paisagem-drama, entendo, no entanto, que são fortes características dela. Restaria, para um estudo mais sistemático, verificar quais outros procedimentos são suscetíveis de serem encontrados, uma vez que a paisagem-drama toca o centro da atividade narrativa.

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A paisagem como momento narrativo

Conclusão

A partir do momento em que a paisagem no cinema é, de início, imagem de paisagem, seu estudo não se satisfaz apenas com as abordagens e métodos aqui demonstrados. A primeira necessidade será, então, de pertinência. Como conceber a paisagem como realidade fílmica? Ao situá-la, primeiro, em relação ao espaço e aos lugares; ao inseri-la, em seguida, no discurso propriamente fílmico. A atividade conotativa através da qual tentei caracterizá-la me parece responder a estas duas exigências. Ao fazê-lo, a análise da funcionalidade narrativa da paisagem se torna, ao mesmo tempo, possível e prioritária. Pela diversidade e riqueza de seus modos de intervenção no centro das estratégias discursivas, a paisagem mostra que não poderia ser considerada como um simples coadjuvante, ainda que decorativo, mas que ela é o ator verdadeiro da mise en scène, mesmo que o filme não tenha a intenção de explorar suas possibilidades dramáticas. Ela é, na realidade, um momento, como se diz em mecânica, da narração.

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Tradução de artigo publicado originalmente no livro Les paysages du cinéma, organizado por Jean Mottet. Ed. Champ Vallon, 1999.

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por Eucanaã Ferraz e Ismar Tirelli Neto

Ruídos

Eucanaã Ferraz no rio

Frias as luzes, a praça, o pátio sob a chuva, podiam ver, de dentro daquele aquário ao avesso, em movimento, onde boiavam, erravam ternuras absurdas, breve teatro de sombras, gota a gota luzes verticais caindo, podiam ver, no interior daquela crônica de amor — amor? — e desencontro, que o motorista lia pelo espelho: espinhos, relâmpagos, respiração. Estavam perdidos. Vamos pela praia, por favor.

in: Cinemateca, Companhia das Letras, 2008, São Paulo.

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água-forte

À beira de você, toda a paisagem se resume a isto: nenhuma urgência que seu rosto brilhe, mas ele arde como se quisesse compensar em luz o seu silêncio. Gastaria a vida assim, à orla do céu que se reflete na água quieta que brota no intervalo entre nós. Demoro-me aqui, à roda desse engano, dessa infinitamente triste alegria.

piscina

Nem solidões, nem navios. Netuno menino brinca no quintal do vizinho, no jardim, no terraço do edifício: praia de bolso, praia na bolsa, água e paredes de louça. Doido, o verão não tem destino certo, mas o desatino nesse oceanoretângulo deixa-se emoldurar em nuvens de vidro. Paisagem breve. A calma aguarda tempestades – trampolim! – em copo d’água.

E quanto mais me sinto afogar, mais permaneço, se o amador a nadar para fora prefere morrer na coisa amada.

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Mundo como vitral partido

Ismar Tirelli Neto pois eu aqui falo lentíssimo enunciado caco por caco retalho por retalho – rapsódia

dentro em que pese a rédea solta é costume eu falar bem lento comigo mesmo

– talvez por isso mesmo; não me quero dar ao susto – é costume eu falar dentro bastante lento e contra o que me em-puxa a tantos ventos cidade fora que eu já nem sei se a persigo ou se é ela que vem rugindo atrás de mim rugindo essas coisas duras de asfalto e que também são luz

aqui ao que me faço (uma delicada arquitetura de álbuns) e as palavras bem miúdas não do que trazem não nunca mas bem miúdas de si

nenhum cantar possível de poste?

in: Synchronoscopio, 7letras, 2008, Rio de Janeiro

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NOZ

Ruídos

Rufus

você – como tantos outros – acabou não morrendo. Nem aqui nem em Bruxelas parte alguma. A questão do apartamento permanece pendente (estar-se em plena obra). Sem diploma não tem como. Você passou sem cura de repouso você não contraiu uma afecção misteriosa você não botou os pulmões pra fora de tanto tossir num banheiro de hotel cheio de flores. Você segue com esse estranho hábito de não lembrar em nada a Barbara Stanwyck, ah, que se há de fazer? Eu me mudaria para uma fonte em Amsterdã algemado aos clarões de água entra dia, sai dia injuriando assistentes sociais – mas pense bem pense bem. Não dou corda no despertador e é o próprio tempo que nega fogo. Manhã – ungüento geral – espalha pelo Rio um brilho rouco – na frente do Edifício Argentina me parece capital saber o nome das coisas – precisamos de um plano. Um projeto. Um projétil estou cheio de prédios voltas hélices passarelas o metrô corre atrás do próprio rabo um tranco, não tem quem fique em pé você me diz: nunca dês um nome a um trem sempre é outro trem a passar eu digo: ha. Ha ha ha ha você está de dieta ou desistiu, afinal, de descortinar uma grande verdade interior? Teus olhos têm um ar de perda, pendem, como os seios de uma mãe antiga. Tanto tempo passado em ônibus que a gente aprende à força o prazer do caminho chegar lá é sempre um pouco desorientante precisamos de um plano. Um projeto. Um projétil

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Sem título

Nascida no Rio de Janeiro em 1980, Luiza Baldan é formada em Artes Visuais (Fotografia) pela Florida International University (Miami, EUA – 2002), onde recebeu prêmios e bolsas como "Color Express Award" e "Brown L. & Marion Whately Scholarship". Atualmente cursa o mestrado em Linguagens Visuais na EBA/UFRJ e leciona no Ateliê da Imagem, Rio de Janeiro. Recentemente foi premiada no edital do Centro Cultural São Paulo — Galeria Olido, e selecionada na Bolsa da Fundação Iberê Camargo para receber destaque na Revista Digital. Do seu currículo também se pode destacar a participação nas exposições "Nova Arte Nova", no Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro e São Paulo (2008-2009( e "BAC!" (Festival d'Art Contemporani de Barcelona), no Centre de Cultura Contemporània de Barcelona (2007), além da individual no Anexo da Galeria Laura Marsiaj, Rio de Janeiro (2007).

Luiza Baldan


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O arquiteto e filósofo francês Paul Virilio sustenta, em seu livro-entrevista El Cibermundo: la política de lo peor, que “é preciso reinventar uma dramaturgia da paisagem”, e acrescenta: “Uma cenografia da paisagem com atores e não simplesmente com espectadores. A paisagem rural que perdemos com o abandono da agricultura era uma paisagem vivenciada…” Com o consumo e o empobrecimento dos territórios, surgem projetos de reconstrução e revitalização. No entanto, ferramentas como o Google Earth ou o gps, ainda que deixem o mundo mais acessível, tornam-no simples e planificado e, assim, convertem-no em um todo visível e homogêneo, eliminando os valores e a diversidade da paisagem. Ao mesmo tempo, presenciamos atualmente uma grande defasagem entre as imagens que consideramos representativas de nossos países e a complexidade de suas realidades. Torna-se necessária, portanto, uma atualização crítica das imagens emblemáticas de cada lugar; precisamos repensar e descobrir quais são as referências contemporâneas da coletividade para podermos propor novas paisagens, com as quais a sociedade se identifique de fato. O que predomina cada vez mais em nossos territórios não são mais as

Paisagens recicladas

Sistemas morfológicos para a condição pós-moderna Josep Maria Montaner

El arquitecto y filósofo francés Paul Virilio sostenía en su libro-entrevista El Cibermundo. La política de lo peor, que “hay que reinventar una dramaturgia del paisaje” y añadía: “Una escenografía del paisaje con actores y no simplemente con espectadores. El paisaje rural que hemos perdido con el abandono del cultivo era un paisaje de vivencias…” Mientras que el territorio se consume y se empobrece, surgen proyectos de reconstrucción y revitalización. Sin embargo, herramientas como Google Earth o como los gps, aunque hagan más accesible el mundo, lo simplifican y aplanan, lo convierten todo en visible y homogéneo, eliminando los valores y la variedad del paisaje. Al mismo tiempo, en nuestra época vivimos un desfase entre imágenes que consideramos representativas de nuestros países y la complejidad de su realidad. Es necesaria, entonces, una puesta al día crítica de las imágenes emblemáticas de cada lugar; hay que repensar y descubrir cuáles son los referentes colectivos contemporáneos, proponiendo nuevos paisajes con los que la sociedad se identifique. Mas allá de los paisajes míticos y sentimentales, y junto a los lugares que aún señalamos con su nombre, su topónimo, lo que domina cada vez más en nuestros territorios son las manifestaciones de fenómenos globales y genéricos, lo

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Professor catedrático da Escola de Arquitetura de Barcelona (etsabupc) e autor dos livros Sistemas Arquitectónicos Contemporáneos, Depois do Movimento Moderno, Arquitetura e Critica, entre outros.

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paisagens míticas e sentimentais, nem mesmo os lugares aos quais ainda nos referimos pelo nome (seu topônimo), mas sim as manifestações de fenômenos globais e genéricos, as quais poderíamos denominar, por exemplo —inspirando-nos em textos de Dolores Hayden, Rem Koolhaas ou Zaida Muxí—, explosão suburbana, entulhos urbanos, planeta automóvel, nação asfalto, ilhas, fronteiras etc. Estamos hoje no ritmo da sociedade industrial, baseada no desenvolvimentismo, no consumo do território e em uma contínua substituição, mas já caminhamos para a sociedade pós-industrial e para a condição pós-moderna. É uma nova etapa —ameaçada pelo aquecimento global e pela contaminação e esgotamento dos recursos naturais—, que deveria ser pautada por uma transformação total, atenta às medidas ecológicas e à reciclagem urbana. Herdamos da modernidade uma dificuldade conceitual que entra em conflito com essa mudança de mentalidade: a incapacidade de relacionar as novas intervenções arquitetônicas com as preexistências e o impulso de só saber construir destruindo. Contudo, podemos ver ao longo da história —desde o Renascimento, passando pelo Neoclacissismo e pelo Ecletismo— que sempre houve uma relação natural e de respeito entre as novas intervenções e as preexistências.

que podríamos denominar, por ejemplo, si nos inspiramos en textos de Dolores Hayden, Rem Koolhaas o Zaida Muxí, suburbio explosión, trasteros urbanos, planeta automóvil, nación asfalto, islas, fronteras, etc. Nuestro presente se sitúa en el paso de la sociedad industrial, basada en el desarrollismo, el consumo de territorio y la substitución continua, a la sociedad postindustrial y a la condición posmoderna. Una nueva etapa amenazada por el calentamiento global, la contaminación y el agotamiento de los recursos, que debería estar basada en una total transformación atenta a las cautelas ecológicas y al reciclaje urbano. Para afrontar este cambio de mentalidad hemos heredado una dificultad conceptual de la modernidad: la incapacidad de relacionar las nuevas intervenciones arquitectónicas con los estratos existentes; el impulso proteico de solo saber construir destruyendo. Sin embargo, a lo largo de la historia, desde el renacimiento hasta el neoclasicismo y el eclecticismo, había existido una relación natural entre las nuevas intervenciones y el respeto por las preexistencias. Por ello, en la actualidad, el reciclaje de las infraestructuras obsoletas tiene un doble sentido: el sentido funcional del reuso y el sentido simbólico de revalorizar la memoria de la colectividad. Y para llevarlo adelante ha sido necesario crear una nueva cultura de la intervención en los paisajes existentes. La condición contemporánea debería basarse en la aplicación del necesario replanteamiento de los procesos y las dualidades convencionales como objeto/contexto, natural/artificial, campo/ciudad, tal como

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Desta forma, o que hoje se entende por reciclagem de infra-estruturas obsoletas tem um duplo sentido: o sentido funcional, do reuso, e o simbólico, de revalorizar a memória da coletividade. Sentidos esses que, para serem levados adiante, tornaram necessária a criação de uma nova maneira de intervir nas paisagens existentes. A condição contemporânea deveria abordar de forma nova os processos e as dualidades convencionais (como objeto/contexto, natural/artificial, campo/cidade), assim como a teoria científica, a filosofia, a sociologia e outras ciências humanas têm proposto, especialmente autores como Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Edgar Morin e Niklas Luhmann. Trata-se de desconstruir o antagonismo entre natural e artificial, imposto como verdade pela revolução industrial nas paisagens ocidentais, mas que, apesar disso, nunca se deu nem nas culturas orientais nem na evolução do pensamento ocidental (da filosofia grega até a ciência do período barroco). Pode-se perceber uma nova concepção acerca do paisagismo, relacionada ao respeito pelas preexistências, à busca de um novo tipo de equilíbrio ambiental e a uma vontade de recriar a memória coletiva; uma nova concepção que leva em conta as arquiteturas industriais, os eixos fluviais, a infra-estrutura de transportes, os portos, as pedreiras e outras preexistências da sociedade industrial que, apesar de estarem em desuso, sobrevivem. E não é por acaso que este renascimento e esta confluência se dêem no território da paisagem. A grande característica do tema “paisagem” é sua interdisciplinaridade, já que constitui uma

la teoría de la ciencia, filosofía, la sociología y otras ciencias humanas han propuesto, especialmente autores como Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Edgar Morin y Niklas Luhmann. Se trataría de deconstruir el antagonismo entre naturaleza y artificio, que fue creado por la revolución industrial en los paisajes occidentales, pero que no forma parte ni de las culturas orientales ni de la evolución del pensamiento occidental desde la filosofía griega hasta la ciencia del período barroco. Se puede demostrar que aflora una nueva concepción del paisajismo, relacionada con el respeto por las preexistencias, la búsqueda de nuevos equilibrios ambientales y la voluntad de recreación de la memoria; una nueva concepción que tiene en cuenta las arquitecturas industriales, ejes fluviales, líneas infraestructurales de transporte, puertos, canteras y otras preexistencias de la sociedad industrial en desuso que sobreviven. Y no es casual que este renacimiento y esta confluencia se produzcan en el territorio del paisaje. La gran característica del tema del paisaje es su interdisciplinariedad, ya que constituye una actividad interpretativa y creativa que no está sujeta a un campo homogéneo, sino que su condición esencial es, precisamente, la transversalidad. En este texto, a partir de la recurrencia a ejemplos emblemáticos, vamos a conceptualizar la diversidad de intervenciones en paisajes degradados y en transformación, siguiendo criterios morfológicos que nos van a mostrar distintas posiciones para pensar y proyectar sistemas de objetos. El proyecto es la herramienta desde la cual se afronta en este

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Paisagens recicladas

atividade interpretativa e criativa que não está circunscrita a um campo homogêneo, mas cuja condição essencial é, precisamente, a transversalidade. Neste texto, partindo de exemplos emblemáticos, vamos conceituar diversos tipos de intervenções em paisagens degradadas e em transformação, seguindo critérios morfológicos que nos mostrarão distintas posições para pensar e projetar sistemas de objetos. O projeto é a ferramenta que usaremos para confrontar, no presente texto, a questão multidisciplinar da paisagem; o projeto se entende, portanto, como pensamento reflexivo, criativo e técnico que atua dentro da complexidade da realidade existente. E seguindo a premissa de Paul Virilio, trataremos das “paisagens de acontecimentos”, ou seja, aquelas que não foram pensadas para espectadores passivos ou para o consumo de imagens, mas se baseiam na experiência e fomentam a criação de significados coletivos. Pode-se observar uma conscientização sistêmica a respeito de nossa natureza artificial e o entendimento de que os sistemas ecológicos devem ser o principal referencial de toda e qualquer ação. As correntes artísticas, bem como as disciplinas politécnicas da arquitetura e da engenharia, possuem grandes possibilidades sociais no que diz respeito à renovação dos entornos em sintonia com a paisagem, a partir de uma visão holística do mundo que tenta demonstrar que o horizonte da sustentabilidade pode coabitar com o desenvolvimento e o bem-estar de forma justa e igualitária.

texto la cuestión multidisciplinar del paisaje; el proyecto se entiende, por lo tanto, como pensamiento reflexivo, creativo y técnico que actúa dentro de la complejidad de la realidad existente. Y siguiendo la premisa de Paul Virilio, vamos a tratar los paisajes de acontecimientos, es decir, no los ejemplos pensados para espectadores pasivos o para el consumo de imágenes, sino que se pondrá énfasis en aquellos ejemplos que más se basan en la experiencia y que más fomentan la creación de significados colectivos. Se constata la toma de conciencia sistémica de nuestra naturaleza artificial y el entendimiento de que el referente esencial de toda acción han de ser los sistemas ecológicos; se parte de las grandes posibilidades sociales que poseen tanto las corrientes artísticas como las disciplinas politécnicas de la arquitectura y las ingenierías para renovar los entornos en sintonía con el paisaje; desde una visión holística del mundo que intenta demostrar que pueden cohabitar el horizonte y la esperanza de la sostenibilidad y con el desarrollo y el bienestar, justos y equitativos.

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1  Ecotopos1

Quando aparecem projetos que, por sua escala e objetivos, intervêm recuperando e tornando visíveis as estruturas ecológicas, descobrimos que o primeiro grande referencial são os ecotopos; mais precisamente, são as formas dos ecossistemas, a estrutura dos ecotopos ou biotopos2, o sistema espacial delimitável, relativamente fechado e coerente, no qual a vida dos organismos se desenvolve, a biocenose3. Foi o que o paisagista brasileiro Roberto Burle Marx começou a fazer em seus parques, inspirados de maneira pictórica na estrutura ecológica, em forma de dedos, do Amazonas. Uma “morfologia de dedos” procedente dos ecotopos que já apareciam também nos patterns de Christopher Alexander. Encontramos exemplos contemporâneos disso na reestruturação de cinturões verdes nas regiões metropolitanas de cidades como Roma, Vitória ou Barcelona, nos quais cada cidade tenta recompor ecossistemas revitalizando parques naturais, refa-

zendo fragmentos de bosques, entrelaçando parques e potencializando corredores ecológicos. A idéia dos cinturões verdes vem da proposta do Green Belt no plano da Grande Londres (1944) de Leslie Patrick Abercrombie, inspirado no sistema de círculos concêntricos proposto por Ebenezer Howard em sua idéia de cidade-jardim e na proposta de cidade viva de Patrick Geddes. Este urbanismo dos ecotopos se manifestou também no Plano para Copenhague (1947), que adota a forma de cinco dedos gigantes que definem a estrutura de crescimento controlado e de descentralização, respeitando o entorno paisagístico. Um dos princípios do novo paisagismo desse início de século XXI é a preocupação com os ecossistemas naturais e as paisagens transformadas historicamente pelo ser humano. É o que Rafael Aranda, Carme Pigem e Ramon Vilalta tiveram em mente ao projetarem uma intervenção mínima no acesso e nos percursos em La Pedra Tosca, em Les Presses, perto de Olot (1998-2004). A intervenção visa revalorizar os antigos campos de cultivo, em um local cuja geografia é marcada pela presença de vulcões e no qual confluem as morfologias dos ecotopos e das malhas agrícolas. La Pedra Tosca, Les Presses Rafael Aranda, Carme Pigem e Ramon Vilalta

1  Ecotopo: região que apresenta regularidade nas condições ambientais e nas populações animais e vegetais, das quais é o habitat. (Nota do editor).

1  Ecotopos

2  Biotopo: Lugar onde se encontra vida. (Nota do editor).

3  Biocenose: relacionada a fatores físicos e químicos do meio ambiente que proporcionam a geração de vida. (Nota do editor).

Cuando hay proyectos que, por su escala y objetivos, intervienen recuperando y haciendo visibles las estructuras ecológicas, constatamos que el primer gran referente son los ecotopos; es decir, las formas de los ecosistemas, la estructura de los ecotopos o biotopos, el sistema espacial delimitable, relativamente trabado y coherente en el que se desenvuelve la vida de los organismos, de la biocenosis. Fue lo que inició el paisajista brasileño Roberto Burle Marx en sus parques inspirados de manera pictórica en la estructura ecológica, en forma de dedos, del Amazonas. Una morfología de dedos procedente de los ecotopos que ya aparece también en los patterns de Christopher Alexander. Encontramos ejemplos contemporáneos en la reestructuración de anillos verdes en las regiones metropolitanas de ciudades como Roma, Vitoria o Barcelona, en los que cada ciudad intenta recomponer ecosistemas a base de revitalizar parques naturales, rehacer

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fragmentos de bosques, entrelazar parques y potenciar corredores ecológicos. La idea de los anillos verdes procede de la propuesta del Green Belt en el plan del Gran Londres (1944) de Leslie Patrick Abercrombie inspirado en el sistema de coronas propuesto por Ebenezer Howard en su idea de Ciudad jardín y en la propuesta de ciudad viva de Patrick Geddes. Este urbanismo de los ecotopos se manifestó también en el Plan para Copenhague (1947), que adopta la forma de cinco dedos gigantes para definir la estructura de crecimiento controlado y de descentralización, respetando el entorno paisajístico. Tener en cuenta los ecosistemas naturales y los paisajes transformados históricamente por el ser humano es uno de los principios del nuevo paisajismo de principios del siglo XXI. Es lo que se ha tenido en mente en la mínima intervención en el acceso y en los recorridos para revalorizar los antiguos campos de cultivos en una geografía de volcanes, La Pedra Tosca en Les Presses, cerca de Olot (1998-2004), de Rafael Aranda, Carme Pigem y Ramon Vilalta; un lugar en el que confluyen las morfologías de los ecotopos y de las tramas agrícolas.

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2  Malhas agrícolas: paisagens rurais

Além das formas dos ecotopos existem outros referenciais, que fazem a ponte entre o mundo natural e o mundo da cultura: o sistema ortogonal que há séculos o ser humano introduziu com fins produtivos sobre paisagens planas, criando malhas agrícolas, e o escalonamento, com o qual transformou as paisagens inclinadas em terraços potencialmente férteis para a agricultura. São formas que procedem do esquema ortogonal inventado para criar os campos de cultivo, baseado no ângulo reto e em sua facilidade para calcular e distribuir as áreas. Se o referencial são as malhas agrícolas, tratam-se de intervenções que tentam recuperar antigos sistemas agrários, isto é, a malha ortogonal dos campos de cultivo. Logo de saída, a Broadacre City (1932-1958), de Frank Lloyd Wright, surge como exemplo de uma proposta de cidade baseada na estrutura agrária. Em países como França, Alemanha, Portugal e Itália tem-se cada vez mais tomado consciência de que a raiz da paisagem européia são as antigas malhas agrícolas, e que é vital proteger e revitalizar desde os planos territoriais até os projetos concretos.

No projeto de Claire e Michel Corajoud, situado nos campos e muros de pessegueiros em Montreuil (19982001), conserva-se o traçado medieval dos muros e propõe-se áreas urbanizáveis estruturadas pela permanência de boa parte desses campos. Assim, o projeto se baseia na interpretação das morfologias medievais e renascentistas dos campos de cultivo (hortos, ervanários4, pomares), subdivididos em retângulos dentro das cidades muradas, nos monastérios ou nos campos do período renascentista. Tudo isso tem a ver com uma crescente consciência de que mundo agrário está sumindo, ele que, durante séculos, definiu a morfologia da Europa e que agora se tenta manter, inclusive com subsídios, para conservar a paisagem européia. No bairro de Malagueira, em Évora, Álvaro Siza Vieira, com a colaboração dos paisagistas João Gomes da Silva e Inés Norton, criou, entre 1985 e 1991, uma gradação entre o rural e o urbano, valendo4  Herbolarios (espanhol). Jardins de ervas medicinais. (Nota do editor).

Montreuil Claire e Michel Corajoud

2  Tramas agrícolas: paisajes rurales

Además de las formas de los ecotopos existe otro referente, un puente entre el mundo natural y el mundo de la cultura: el orden cuadriculado que hace siglos introdujo el ser humano con fines productivos sobre el paisaje llano creando tramas agrícolas, y el orden escalonado con el que ha transformado el paisaje inclinado en terrazas para volverlas fértiles con la agricultura. Son las formas que proceden del esquema ortogonal inventado para crear los campos de cultivo, basado en el ángulo recto y en su facilidad para calcular y distribuir las áreas. Si el referente son las tramas agrícolas, se trataría de intervenciones que intentan recuperar antiguos sistemas agrarios, es decir, la cuadrícula de los campos de cultivo. De hecho, la Broadcare City (1932-1958) de Frank Lloyd Wright, fue una propuesta de ciudad basada en la estructura agraria. En países como Francia, Alemania, Portugal e Italia se ha asumido la conciencia de que la raíz del paisaje europeo está en la pervivencia de las tramas agrícolas, que es vital proteger y revitalizar, desde los planes territoriales hasta los proyectos concretos. En el proyecto de Claire y Michel Corajoud, situado en los campos y los muros de melocotoneros en Montreuil (1998-2001),

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se conservan las trazas medievales de los muros para proponer unas áreas urbanizables estructuradas por la pervivencia de una buena parte de dichos campos. Es decir, el proyecto se basa en interpretar las morfologías medievales y renacentistas de los campos de cultivo (huertos, herbolarios, campos frutales), subdivididos en rectángulos dentro de las ciudades amuralladas, en los monasterios o en las campiñas del Renacimiento. Todo ello tiene que ver con una creciente conciencia de la pérdida de un mundo agrario que ha definido durante siglos la morfología de Europa y que ahora se intenta mantener, incluso con subvenciones, para conservar el paisaje europeo. En el barrio de la Malagueira en Evora, Alvaro Siza Vieira con la colaboración de los paisajistas João Gomes da Silva e Inés Norton, se creó entre 1985 y 1991 una gradación entre lo rural y lo urbano, tomando el agua como hilo narrativo y articulador. De esta manera, el espacio público, que recrea un origen rural, se sitúa como intersticio, como vacío cualificado y estructurador. Lo urbano se entiende como un espacio de continuidad con el paisaje, estableciéndose una nueva relación de conciliación entre el gran vacío que son los campos y la naturaleza alrededor de la ciudad. El diseño va de la gran escala del

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se da água como fio narrativo e articulador. Desta maneira, o espaço público que recria a origem rural situa-se como interstício, um vazio qualificador e estruturador. O urbano é entendido como um espaço que dá continuidade à paisagem, estabelecendo uma nova relação de conciliação entre o grande vazio dos campos e a natureza ao redor da cidade. O projeto passa por diferentes escalas: sai da grande escala do conceitual e do vazio e vai até a pequena escala na qual se resolvem os contatos com o campo, os itinerários, os desníveis, os muros e as escadas, a inclusão das propriedades5 existentes, a consolidação do espaço aberto que o curso do rio gerou – servindo como espaço de uso social – e a construção de diversas plataformas que permitem a convivência entre as pessoas de cada bairro. Existem muitas obras de land art que também se inspiram nos ecotopos, como o Il Grande Cretto, na antiga Gibellina, na Sicília, cidade que foi destruída por um terremoto em 1968. Esta magnífica obra de land art, realizada nos anos oitenta pelo artista italiano Alberto Burri, é um memorial da cidade ausente e marginal, um imenso sepulcro, conformado por ruas

e quadras maciças de cimento branco com 1,7 metros de altura, gerando como que campos ondulados e solidificados em forma de cidade, entre os quais as plantas se infiltram. Em Barcelona, o projeto do Parc Agrari del Baix Llobregat tenta refazer e reestruturar a antiga trama agrária do Delta, um lugar privilegiado da região metropolitana e que tem um papel transcendental na busca por um equilíbrio ecológico. A antiga estrutura dos campos – com sua malha, suas unidades agrícolas e seus caminhos de água e de terra – é a matriz do projeto.

concepto y del vacío a la pequeña escala en que se resuelven los contactos con el campo, los itinerarios, desniveles, muros y escaleras, la inclusión de las quintas preexistentes, la consolidación de la brecha provocada por el paso del río como espacio de uso social y el proyecto de distintas plataformas que permiten la convivencia entre la gente de cada barrio. Existen muchas obras de land art que se sitúan en esta posición que se inspira en los ecotopos, como Il Grande Cretto, en la parte de la antigua Gibellina, en la isla de Sicilia, ciudad que fue destruida por un terremoto en 1968. Esta magnífica obra de land art, realizada en los años ochenta por el artista italiano Alberto Burri, es un recordatorio de la ciudad ausente y marginada, un inmenso sepulcro, conformado por calles y manzanas macizas de cemento blanco de 1.7 metros de alto; una especie de campos ondulados y solidificados en forma de ciudad entre los que se infiltra la hierba. En Barcelona, el proyecto del Parc Agrari del Baix Llobregat intenta rehacer y reestructurar la antigua

trama agraria del Delta, un lugar privilegiado de la región metropolitana y con un papel trascendental en la búsqueda de un equilibrio ecológico. La antigua estructura de campos, con su retícula, sus unidades agrarias, caminos de agua y de tierra, es la matriz del proyecto.

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5  O termo em espanhol é quintas, cujo significado remete às casas de campo que são arrendadas em troca da quinta parte do que produzem. (Nota do editor).

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Paisagens recicladas

3  Pedreiras

Lugares fortemente arraigados ao terreno, espaços definidos por seu caráter de vazio escavado nas rochas; formas feitas de ausência. Existem muitos casos de antigas pedreiras que foram sendo recuperadas e transformadas em parques e espaços públicos. A cidade de Curitiba, no Brasil, modelo por dedicarse ininterruptamente há trinta anos a ser uma cidade ecológica, adotou a conversão das pedreiras em parques como um dos elementos centrais de sua política de cidade sustentável. Isso fez com que conseguisse, além do mais, potencializar alguns pontos-chave necessários para a drenagem do tecido urbano. Na Catalunha temos exemplos como o Fossar de la Pedrera (1983-1986), projetado pela arquiteta Beth Galí, uma das obras mais emocionantes e intensas de Barcelona; o Parque de la Creueta del Coll, também em Barcelona (1981-1987), de Martorell-BohigasMackay, em uma antiga pedreira e com um reservatório-piscina em cuja extremidade está suspensa uma escultura de Eduardo Chillida; ou ainda a restauração paisagística das antigas pedreiras e depósitos de lixo da Vall d’en Joan em Begues (2003), de Joan Roig, Enric Batlle e Teresa Galí-Izard. São três exemplos emblemáticos.

Pedreira S’Hostal, Menorca Lithica

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Em Menorca, a pedreira S’Hostal, perto de Ciutadella, foi transformada em um monumento público através de uma intervenção mínima do coletivo Lithica (1996), formado por María Isabel Bennasar, Virginia Pallarès, Joan Enric Vilardell e Laeticia Sauleau. Potencializando os percursos, o projeto termina por valorizar os dois conjuntos: as antigas pedreiras e as mais recentes. O lugar de onde se extraía massa natural para construir, passa a ser, assim, um lugar maravilhoso que evidencia o vazio na pedra, as imensas esculturas, passeando no limite entre natural e artificial. Conseguese, definitivamente, que aquela terra ferida, que havia se tornado inóspita, seja agora hospitaleira.

3 Canteras

Como lugar fuertemente arraigado al terreno y como espacio definido por su carácter de vacío excavado en las rocas, de formas hechas de la ausencia, existe gran cantidad de casos de antiguas canteras que se han ido recuperando y convirtiendo en parques y espacios públicos. La ciudad de Curitiba, Brasil, modélica por sus treinta años dedicados sin interrupción a ser una ciudad ecológica, ha adoptado la conversión de las canteras en parques como uno de los elementos centrales de su política de ciudad sostenible, consiguiendo, además, potenciar unos puntos clave y necesarios para el drenaje del tejido urbano. En Cataluña tenemos ejemplos como el Fossar de la Pedrera (1983-1986) proyectado por la arquitecta Beth Galí, una de las obras más emocionantes e intensas de Barcelona; el Parque de la Creueta del Coll, también en Barcelona (1981-1987) de Martorell-Bohigas-Mackay, en una antigua cantera y con un estanque-piscina en cuyo extremo está suspendida una escultura de Eduardo Chillida; o la restauración paisajística de las antiguas canteras y depósito de basuras de la Vall d’en Joan en Begues (2003) de Joan Roig, Enric Batlle y Teresa GalíIzard, son todos ellos ejemplos emblemáticos.

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4  Parques lineares: estações e eixos de transporte

Estruturas urbanas e mesmo territoriais que antes eram consideradas linhas de separação e geradoras de fronteira podem, agora, ser reconvertidas em parques que ajudem a costurar tecidos e paisagens. Referimo-nos a infra-estruturas, eixos fluviais ou barrancos que são transformados em parques lineares. Como exemplo de parque linear temos o parque Riera Canyadó, em Badalona (1997-1999), de María Isabel Bennasar. Formado por uma série de faixas curvas tingidas pelos solos naturais e pela vegetação, que se misturam com a topografia, a intervenção consegue converter em um eixo verde o que outrora era o leito de um antigo rio que segmentava e conferia à área um caráter residual, unindo dois bairros e chegando até o parque de Ca l’Arnús. Também é emblemática a Promenade Plantée, em Paris (1987-1999), que vai da praça da Bastilha até o Bois de Vincennes, ao longo de quatro quilômetros, aproveitando a antiga linha de trem elevada, em desuso desde 1969. A intervenção cria um eixo de pedestres que, em sua extensão, comporta

En Menorca, la cantera S’Hostal, cerca de Ciutadella, según el proyecto del colectivo Lithica (1996) formado por María Isabel Bennasar, Virginia Pallarès, Joan Enric Vilardell y Laeticia Sauleau, ha conseguido convertirse en un monumento público con una mínima intervención, potenciando recorridos que ponen en valor los dos conjuntos: las canteras antiguas y las modernas. El lugar de donde se extrajo la masa natural para transformarla en construcción se convierte, así, en la maravilla que muestra el vacío en la piedra, las inmensas esculturas, entre la naturaleza y el artificio. Se consigue, en definitiva, que aquella tierra herida, que se había vuelto inhóspita, sea ahora hospitalaria.

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diversas situações: está a oito metros do solo quando passa sobre a rua que, por sua vez, foi renovada através da reutilização dos espaços debaixo das abóbadas para criar o Viaduc des Arts, instalando ali artesãos e artistas; em outros momentos, está enterrado; e, por fim, encontra-se também no nível do solo e em túneis ou trincheiras. Onde necessário, incorporaram-se novas pontes, passagens, passarelas e escadarias, que atravessam o novo conjunto residencial do bairro de Reuilly, em uma das extremidades do percurso. A Promenade Plantée é obra do arquiteto Philippe Mathieux e do paisagista Jacques Vergely, e a revitalização do viaduto é do arquiteto Patrick Berger. Outros eixos podem ser criados nas margens dos rios, sistemas riquíssimos que podem ser transformados em parques fluviais, como o dos rios Ter, Segre, Ripoll e Besòs. Ou lugares como o rio Gállego no trecho da cidade de Zuera (1999-2001) que, através do projeto de Iñaki Alday e Margarita Jover Biboum, foi convertido em um magnífico parque, flexível às inundações do rio quando enche.

4  Parques lineales: estaciones y ejes de transporte

Antiguas estructuras urbanas y territoriales, que antes habían sido líneas de separación, de frontera, ahora pueden reconvertirse, mediante el proyecto, en parques que ayudan a suturar tejidos y paisajes. Nos referimos a infraestructuras, torrentes o barrancos que se convierten en parques lineales. Parques lineales, como Riera Canyadó en Badalona (1997-1999), de María Isabel Bennasar, que está formado por una serie de franjas curvas, policromadas por los suelos naturales y la vegetación, que se van cosiendo a la topografía, y convirtiendo el que fue lecho de una antigua riera que separaba y que otorgaba un carácter residual en un precioso eje verde que une dos barrios y llega hasta el parque de Ca l’Arnús. También es emblemático el Paseo Plantado en París (1987-1999) que va de plaza de la Bastille hasta el Bois de Vincennes, discurre a lo largo de cuatro kilómetros aprovechando la antigua línea elevada del ferrocarril en desuso desde 1969. La intervención ha comportado recrear un eje peatonal que a lo largo de su recorrido pasa por distintos tramos: sobre el viaducto elevado 8 metros

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Os parques lineares têm, de fato, uma grande capacidade de conexão, de recuperação da biodiversidade, e de atravessar infra-estruturas fechadas que criam ilhas. Aquilo que fora fronteira, divisão ou muro, pode converter-se em enlace, lugar de passagem. Uma boa prova disso é a riqueza dos ecossistemas lineares que vivem às margens dos rios.

5  Sistemas industriais

Por sorte, são muitos os casos de remodelação do patrimônio industrial, desde edifícios individuais até grandes conjuntos industriais. Estes últimos, autênticos sistemas de objetos, têm enorme capacidade para aceitar novos usos: sua estrutura aberta, articulada, que tende a abrigar edifícios de tipologias distintas, seus espaços funcionais e de planta livre, seus sistemas de comunicação claramente estabelecidos ou facilmente transformáveis facilitam todo tipo de mudança; sua localização, normalmente junto a redes de comunicação e de energia, é estratégica. Um exemplo paradigmático é o sesc Pompéia, em São Paulo (1977), no qual Lina Bo Bardi aproveitou as preexistências de uma fábrica em um bairro popular, respeitando os galpões que já estavam ali, situando dois novos edifícios verticais de concreto aparente e dando especial ênfase ao espaço livre público existente neste sistema de edifícios industriais. Este centro de lazer, com suas naves horizontais preexistentes e as duas novas torres, torna-se uma espécie de microcosmos, um sistema de objetos que sintetiza as tipologias do entorno, um lugar para a felicidade e a liberdade.

Zuera aldayjover

sobre la calle que se ha renovado, reutilizando los espacios de debajo de las bóvedas para crear el Viaducto de las Artes e instalar artesanos y artistas; sobre terraplenes; al nivel del suelo y en túneles o en trinchera. Donde ha sido necesario, el eje se ha rehecho con nuevos puentes, pasos, pasarelas y escaleras, atravesando en un extremo del recorrido el nuevo conjunto residencial del barrio de Reuilly. El Paseo Plantado es obra del arquitecto Philippe Mathieux y del paisajista Jacques Vergely; y la rehabilitación del viaducto es del arquitecto Patrick Berger. Y también las orillas de los ríos, que son además ecosistemas muy ricos, convertidas en parques fluviales como el de los ríos Ter, Segre, Ripoll y Besòs. O lugares como el Río Gállego a su paso por Zuera (1999-2001), que según proyecto de Iñaki Alday y Margarita Jover Biboum se ha convertido en un magnífico parque inundable cuando el río crece. Se trata de comprobar como los parques lineales poseen una gran capacidad para conectar y para recuperar la biodiversidad, para atravesar las infraestructuras cerradas que crean islas. Para demostrar que aquello que fue frontera, división o muro, puede convertirse en enlace, en lugar de paso. Buena prueba de ello es la riqueza de los ecosistemas lineales que viven a lo largo de los ríos.

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5  Sistemas industriales

Afortunadamente, son muchos los casos de patrimonio industrial, desde edificios concretos hasta grandes conjuntos industriales, que han sido remodelados. Los conjuntos industriales, auténticos sistemas de objetos, tienen enorme capacidad para aceptar nuevos usos: su estructura abierta, articulada y crecedera de edificios de tipologías distintas, sus espacios funcionales y de planta libre, sus sistemas de comunicación claramente establecidos o fácilmente transformables facilitan todo tipo de cambio; su situación es estratégica, junto a líneas de comunicación y transporte de energía. Un ejemplo paradigmático es el Centro de Ocio sesc Pompéia de São Paulo (1977), en el que Lina Bo Bardi aprovechó las preexistencias de una fábrica en un barrio popular, respetando los galpones existentes, situando dos nuevos edificios verticales de hormigón visto y poniendo énfasis en el espacio libre y público existente en este sistema de edificios industriales. Este centro de ocio, con sus naves horizontales preexistentes y sus dos nuevas torres, se convierte en una especie de microcosmos, un sistema de objetos que sintetiza las tipologías del entorno, un lugar para la felicidad y la libertad.

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Na Europa, a operação que melhor exemplifica isso é a grande intervenção no Emscher Park, na Alemanha, em especial o Duisburg Park, remodelado pela equipe de Peter Latz, nas antigas metalúrgicas de Thyssen. O Duisburg Park Nord é uma intervenção feita a partir de uma lógica realista que respeita as ruínas da paisagem industrial – densas e crescentes – e que deixa que a vegetação cresça livremente, para com isso ir regenerando o entorno degradado, seguindo uma lógica similar àquela dos rizomas e dos parques em movimento. Cada projeto da iba no Emscher Park nos anos noventa foi pensado para as reais necessidades dos cidadãos, e não simplesmente como imagem publicitária. Este e outros exemplos demonstram em que medida a vida e a natureza podem brotar entre as ruínas, dando novo sentido aos fragmentos.

6  A palavra tinglado é de tradução imprecisa, e seu significado remete a coberturas simples e palcos armados de forma rápida ou com um sistema construtivo simples. (Nota do editor).

En Europa la operación más modélica es toda la gran intervención en el Emscher Park en Alemania, y en especial el Duisburg Park, remodelado por el equipo de Peter Latz, en las antiguas acererías Thyssen. El Parque Duisburg Nord es una intervención hecha desde la lógica realista que respeta las ruinas del paisaje industrial, caracterizadas por la densidad y el crecimiento, y que deja que la vegetación crezca libremente, para ir regenerando un entorno que era ruinoso y contaminado, siguiendo una lógica similar a los rizomas y a los parques en movimiento. Cada uno de los proyectos de todo el conjunto del iba de los años noventa en el Emscher Park está pensado para las necesidades reales de los ciudadanos y no como imagen publicitaria. Y este y otros ejemplos demuestran en qué medida la vida y la naturaleza pueden brotar entre las ruinas, dando un nuevo sentido a los fragmentos.

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6  Frentes marítimas

As instalações portuárias, em frente a rios e mares, correspondem a outro caso recorrente de grandes infra-estruturas obsoletas. Suas preexistências são definidas pelo predomínio de uma fachada ou vista privilegiada, o que deve ser tomado como um dado importante no início do projeto. Os cariocas foram os pioneiros neste terreno, com os aterros que criaram na orla do Rio de Janeiro: grandes plataformas, como o Aterro do Flamengo, dedicadas a espaços verdes, projetados por Roberto Burle Marx, e a equipamentos públicos como museus. Um dos exemplos mais interessantes na Catalunha são os Tinglados del Puerto de Tarragona, especialmente o Tinglado6 2, dedicado a instalações artísticas. Neste caso, predominam o uso público, as atividades civis e artísticas e a conservação da memória, muito além dos negócios ligados à indústria imobiliária e do entretenimento. Os quatro Tinglados del Puerto de Tarragona foram projetados pelo engenheiro Gironza Figueres em 1843 e sua restauração, feita pela Autoridade Portuária de Tarragona entre 1991 e 1992, é tida como modelo. O projeto visa reconverter o porto em espaços para atos e reuniões públicas,

6  Frentes marítimos

Otro de los casos más recurrentes de grandes infraestructuras obsoletas son las instalaciones portuarias, frente a los ríos y mares. Sus preexistencias vienen definidas por el predominio de una fachada o vista privilegiada que debe tomarse como dato de partida del proyecto. En este terreno los primeros fueron los cariocas, con los aterros o terraplenes que crearon en la fachada marítima de Río de Janeiro; grandes plataformas, como el Aterro do Parque Flamengo, dedicadas a espacios verdes proyectados por Roberto Burle Marx y a equipamientos públicos como museos. Uno de los ejemplos más interesantes en Cataluña son los Tinglados del Puerto de Tarragona, especialmente el Tinglado 2 dedicado a instalaciones de arte. En este caso ha primado el uso público, las actividades ciudadanas y artísticas, la conservación de la memoria, por encima de los negocios ligados a la industria inmobiliaria y del ocio. Los cuatro Tinglados del Puerto de Tarragona, proyectados por el ingeniero Ramon Gironza Figueres en 1843, fueron restaurados de forma modélica por la Autoridad Portuaria de Tarragona entre 1991 y 1992 para reconvertirlos en espacios para actos y reuniones públicas, restaurante, estación marítima, escuela-taller, sala de

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Paisagens recicladas

restaurante, estação marítima, oficina-escola, sala de exposições e centro de arte. A intervenção mais impactante é a do Tinglado 2, cuja conformação é convidativa para artistas intervirem em seu espaço caracteristicamente industrial, ao lado do mar, neste cais costeiro. Já foram realizadas instalações de artistas como Eva Lootz, Anne e Patrick Poirier, Pep Duran e muitos outros. Outro exemplo de remodelação de uma frente marítima, feita com a vontade de estabelecer costuras e vínculos em diferentes níveis e favorecer o trajeto do pedestre, é o Passeio Atlántico, no Parque de Cidade e na avenida Montevideo, no Porto (2001-2003), de Manuel de Solá-Morales. O projeto articula diversos eixos periféricos de tráfego de veículos e de pedestres com a frente marítima – bem no limite entre o Porto e Matosinhos –, a partir de uma rotunda que possui vários níveis, de novas tramas de passeio marítimo e de um edifício sem programa definido, que tenta aglutinar o grande público do lugar. No próximo item, dedicado às zonas militares, encontraremos casos que são, ao mesmo tempo, frentes marítimas e áreas militares.

exposiciones y centro de arte. La intervención más impactante es la del Tinglado 2, preparado como un contenedor para invitar a un artista o a un grupo a una intervención específica en el espacio industrial, al lado del mar, en este muelle de costa. Se han presentado instalaciones de artistas como Eva Lootz, Anne y Patrick Poirier, Pep Duran y muchos otros. Otro ejemplo de remodelación de un frente marítimo hecho con la voluntad de establecer suturas y vínculos a distintos niveles y de favorecer los itinerarios peatonales es el Passeio Atlántico, en el Parque de Cidade y la avenida Montevideo, en Oporto (2001-2003), de Manuel de Solá-Morales. El Passeio Atlántico articula distintos ejes periféricos de tráfico rodado y peatonal con el frente marítimo, allí donde Oporto se prolonga en Matosinhos, a partir de una rotonda a distintos niveles, a través de nuevas tramas de paseo marítimo y con un edificio de uso indefinido que intenta aglutinar la masa crítica del lugar. En el siguiente apartado, dedicado a las zonas militares, encontraremos casos que son, a la vez, frentes marítimos y áreas militares.

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7  Áreas militares

Diferentemente dos conjuntos industriais, as grandes áreas para usos predominantemente militares que caíram em desuso configuram-se como grandes conjuntos isolados, feitos de vários edifícios e grandes naves. As áreas militares à beira-mar são um dos casos, e têm sido convertidas em conjuntos urbanos com estacionamentos, supermercados, centros de lazer e espaços públicos. Vemos, por exemplo, o projeto também de Manuel de Solà-Morales, em Saint-Nazaire, França (1994-1998), que incorpora o que era a área marginal de uma antiga base de submarinos feita de gigantescas estruturas de concreto armado, dentro da malha urbana. Conseguiu-se transformar uma máquina de guerra em um lugar urbano extremamente atrativo. Outros casos foram convertidos em centros artísticos e de pesquisa, como a Chinati Foundation em Marfa, Textas, projetada pelo artista Donald Judd. Aproveitando os imensos hangares de Fort Russell, uma antiga fábrica militar em Marfa, Judd foi transformando o lugar – desde sua aquisição, em 1971, até sua morte, em 1993 – em um imenso centro de arte, remodelando edifícios, criando grandes formas geométricas repetitivas para resolver portas e

7  Áreas militares

Muy distintos que los conjuntos industriales son las grandes áreas para usos predominantemente militares, que han quedado en desuso y tienen una configuración de gran conjunto aislado, hecho de distintos edificios y grandes naves. Algunos de estos casos, áreas militares en frentes marítimos, se han convertido en conjuntos urbanos, con aparcamientos, supermercados, centros de ocio y espacios públicos, como el proyecto también de Manuel de Solà-Morales, en Saint-Nazaire, Francia (1994-1998), que incorpora la que era el área marginal de una antigua base de submarinos, hecha de gigantescas estructuras de hormigón armado, dentro de la trama urbana. Se ha conseguido convertir una máquina de guerra en un atractivo lugar urbano hecho de distintos estratos. Otros se han convertido en centros artísticos y de investigación como la Chinati Foundation en Marfa, Texas (1971-1993), proyectado por el artista Donald Judd. Aprovecha los inmensos hangares de Fort Russell, una antigua fábrica militar en Marfa que Judd fue transformando desde su adquisición en 1971 hasta su muerte en 1993 para convertirla en un inmenso centro de arte, remodelando edificios, creando grandes formas

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janelas, usando pisos de cimento queimado, desenhando todo tipo de mobiliário de madeira e concreto e instalando uma série de cubos de aço nos interiores e de concreto nos terrenos que ia adquirindo. Paulatinamente, Judd foi alojando obras de outros artistas, como Dan Flavin, Josef Albers, Bernat Newman, Carl André e Richard Long. Este exemplo de espaço artístico, de configuração e atmosfera austeras, é um caso limite de fusão entre obra de arte, arquitetura e paisagem. Até mesmo um elemento militar de domínio, como um muro, pode ser transformado em obra de arte e espaço público, tal como acontece no Mauerpark (1993-1994) de Gustav Lange, que relembra o Muro de Berlim; com seus jogos, consegue transformar a memória trágica em uma conquista lúdica. Assim como no caso das linhas que foram barreiras, no lugar do muro infame se estende, agora, um parque infantil no qual as crianças podem brincar de balanço entre os dois lados da antiga fronteira.

geométricas y repetitivas para resolver puertas y ventanas, usando suelos de hormigón pulido, diseñando todo tipo de mobiliario de madera y hormigón, e instalando series de cubos de acero en los interiores y de hormigón en los terrenos que havia ido adquiriendo. Paulatinamente, Judd fue alojando obras de otros artistas como Dan Flavin, Josef Albers, Bernat Newman, Carl André y Richard Long. Este ejemplo de espacio artístico de configuración y atmósfera espartana es un caso límite de fusión entre obra de arte, arquitectura y paisaje. Incluso un elemento militar de dominio como un muro puede convertirse en obra de arte y espacio público, tal como sucede en el Mauerpark (1993-1994) de Gustav Lange, que rememora el Muro de Berlín y que con sus juegos convierte la memoria trágica en una conquista lúdica. De nuevo, como en el caso de las líneas que fueron barreras, en el lugar del ignominioso muro se extiende ahora un parque infantil en el que los niños pueden columpiarse en ambos lados de lo que fue la antigua frontera.

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8  Arte na paisagem

Tudo isso nos leva a tratar do lugar da arte na paisagem, tanto nas diversas obras de land art como nos parques de esculturas, exemplos que nos dão pistas de como intervir na paisagem a partir da ação artística. Em se tratando de parques de escultura que revalorizaram um entorno paisagístico, existem magníficos exemplos na Espanha, como o museu VostellMalpartida em Cáceres, fundado em 1976, com obras de Wolf Vostell, de pop art e do grupo Fluxus; o Centro de Arte y Naturaleza (CDAN), Fundación Beulas en Huesca, criado em 1995, com várias obras de arte na paisagem; e a Fundación NMAC em Vejer de la Frontera, inaugurada em 2001, um precioso jardim de esculturas. Um belo exemplo é o complexo de artes do Insel Hombroich em Neuss (1987), perto de Düsseldorf, Alemanha, que possui duas áreas: uma paisagística, com pavilhões criados por Erwin Heerich em um vale paradisíaco; e outra na antiga base militar da OTAN, um terreno arrasado, baluarte da Guerra Fria, reconvertido em centro de investigação artística. O museu fica ao lado de terrenos agrários e industriais, aproveitando a paisagem verdejante no vale de uma ilha

8  Arte en el paisaje

Todo ello nos lleva a tratar del lugar del arte en el paisaje, tanto en las diversas obras de land art; como en los parques de esculturas, ejemplos que nos dan pistas de cómo se interviene en el paisaje a partir de la acción artística. En el terreno de los parques de esculturas que han revalorizado un entorno paisajístico existen magníficos ejemplos en España, como el museo Vostell-Malpartida en Cáceres, fundado en 1976 con obras de Wolf Vostell, de pop art y del grupo Fluxus; el Centro de Arte y Naturaleza (CDAN), Fundación Beulas en Huesca, creado en 1995, con series de obras de arte en el paisaje; y la Fundación NMAC en Vejer de la Frontera, inaugurada en el 2001 como precioso jardín de esculturas. Un ejemplo precioso es el conjunto artístico del Insel Hombroich en Neuss (1987), cerca de Dusseldorf, Alemania, que posee dos áreas, una paisajística, con pabellones creados por Erwin Heerich en una vaguada paradisíaca, y otra en la antigua base militar de la OTAN, duro terreno arrasado, baluarte de la Guerra Fría, reconvertido en centro de investigación artística. El Museo está situado al lado de unos terrenos agrarios e industriales, aprovechando la gran vaguada de una isla dentro de un río y un paisaje frondoso. Se trata, en realidad, de un

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fluvial. Trata-se, na realidade, de um percurso paisagístico que passa por uma série de volumes autônomos e dispersos. O autor das salas foi o escultor minimalista Erwin Heerich – herdeiro da abstração da Bauhaus e da Escola de Ulm – que, desde os anos cinquenta, trabalhou sobre as geometrias espaciais, realizando delicados volumes de papelão e seguindo métodos da arte conceitual. No conjunto, os cubos e prismas dispersos se convertem em salas com obras de arte que ficam abertas constantemente, sem vigilância, utilizando exclusivamente luz natural e encontram-se em relação direta com a natureza do entorno. É um parque de esculturas, situado entre formas arquitetônicas mínimas e quase ocultas entre a vegetação. Um parque que une as experiências de desfrutar a paisagem e a arte, colocando a natureza como mãe das artes e demonstrando o parentesco privilegiado que há entre as duas.

Complexo de artes do Insel Hombroich, Düsseldorf Erwin Heerich

recorrido paisajístico que va dando acceso a una serie de volúmenes autónomos y dispersos. El autor de cada sala fue el escultor minimalista Erwin Heerich, quien desde los años cincuenta, como heredero de la abstracción de la Bauhaus y de la Escuela de Ulm, trabajó sobre las geometrías espaciales, realizando delicados volúmenes de cartón y siguiendo métodos del arte conceptual. En el conjunto, los cubos y prismas dispersos se convierten en salas con obras de arte expuestas abiertamente, sin vigilancia, utilizando exclusivamente luz natural y en relación directa con la naturaleza circundante. Se trata de un parque de esculturas situado entre unas formas arquitectónicas mínimas, casi ocultas entre la vegetación, que une las experiencias de disfrutar el paisaje y el arte; la naturaleza como madre de las artes; la demostración del emparentamiento privilegiado entre naturaleza y arte.

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9  Rizomas

A grande complexidade da era pós-moderna torna necessário que os métodos de projeto sejam os mais abertos possíveis, capazes de aceitar transformações, mutações e imprevistos. É por isso que o conceito de rizoma —como pensamento da realidade e como maneira de criar, tal como foi concebido por Gilles Deleuze— é extremamente útil. A idéia de rizoma rejeita as interpretações e formas estruturadas, sejam elas de maneira dicotômica ou em forma de árvore, propondo um sistema de pensamento aberto. O conceito filosófico de rizoma não aponta somente para um novo modo de pensar, mas também para novas maneiras de criar formas. O paisagista e teórico Gilles Clément propõe a idéia dos jardins em movimento —dentro da teoria do jardim planetário—, seguindo uma tradição que é pautada pela espontaneidade do jardim pitoresco inglês e do paisagismo pictórico de Roberto Burle Marx, dentro de uma visão holística do mundo, da entropia universal. Agora, o projetista de jardins, o jardineiro, propõe cartografias vegetais, projeta o movimento, deixa que a vegetação cresça espontaneamente, proponha por si própria linhas de fuga e siga os fluxos;

9  Rizomas

La gran complejidad de la era posmoderna comporta que los métodos de proyecto sean lo más abiertos posibles, capaces de aceptar la transformación, la mutación y lo imprevisto. Es por ello que el concepto de rizoma, como pensamiento de la realidad y como manera de crear, tal como fue conceptualizado por Gilles Deleuze es enormemente útil. La idea de rizoma rechaza las interpretaciones y formas estructuradas, ya sea de manera dual o en forma de árbol, y plantea un sistema de pensamiento abierto. Pero el concepto filosófico de rizoma no sólo señala una nueva manera de pensar, sino también nuevas maneras de crear formas. El paisajista y teórico Gilles Clément plantea la idea de los jardines en movimiento (dentro de la teoría del jardín planetario), continuando la tradición espontaneista del jardín pintoresquista inglés y del paisajismo pictórico de Roberto Burle Marx, dentro de una visión holística del mundo, de la entropía general del universo. Ahora el proyectista de jardines, el jardinero, propone cartografías vegetales, proyecta el movimiento, deja que en los jardines sea la propia vegetación espontánea la que crezca, plantee líneas de fuga y siga los flujos, que cree, en

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Paisagens recicladas

que crie, por fim, formas rizomáticas. Como na visão pitoresca, que se remetia a pinturas dos campos italianos, os jardins em movimento remetem a uma idéia poética, mágica e mental do jardim na terra, que tenta voltar a seu estado selvagem, que ressurge no terreno baldio. Trata-se de fazer intervenções mínimas, seguindo e orientando o movimento. É um tipo de jardinagem que, ao invés de especializar-se nas flores convencionais, especializa-se nas plantas silvestres, aquelas que tradicionalmente foram consideradas ervas daninhas, que crescem ao lado e entre os caminhos, estradas, linhas de trem e cidades, que repovoam as paisagens devastadas, que se estendem pelas dunas e escalam as fendas das rochas e dos muros. Entre outros projetos, é de Gilles Clément a idéia do jardim em movimento em uma parte do parque André Citroën em Paris (1989), onde massas de árvores e de arbustos crescem livremente; com caminhos que os visitantes vão, dia após dia, determinando; com clareiras no bosque onde foram postas mesas de madeira baixas que, como em um jardim zen, podem ter diferentes usos. Há diversos exemplos emblemáticos de como a natureza tem a capacidade de voltar a brotar com toda

sua energia, tais como a chamada Reserva Ecológica em Buenos Aires, junto ao Rio da Prata, em um local que havia sido depósito de escombros durante a ditatura militar; ou como o parque natural de Südgelände, em Berlim, que brotou no terreno onde se dava o comércio de mercadorias da estação Tempelhof. O local, abandonado desde 1952, transformou-se paulatinamente em um frondoso bosque, fruto de quarenta e cinco anos de esquecimento e isolamento, e entre os anos 1996 e 2000 foi recuperado e aberto à visitação. Como os biólogos bem sabem, é nos limites das franjas que ainda restam entre as massas de vida urbana e os campos – territórios de fronteira entre ecossistemas adjacentes, situações de transição – onde se gera uma massa biológica mais prolífica, rica, diversificada e cheia de vida.

definitiva, formas rizomáticas. Como en el pintoresquismo, que se remitía a unas pinturas de la campiña italiana, los jardines en movimiento se remiten a una idea poética, mágica y mental del jardín en la tierra, que intenta volver a su estado salvaje, que resurge en el terreno baldío. Se trata de hacer intervenciones mínimas, siguiendo y orientando el movimiento. Se propone una jardinería que no se especializa en las flores convencionales sino en las plantas silvestres, en las que tradicionalmente se han considerado malas hierbas, las que crecen al lado de los caminos, carreteras, vías de tren y ciudades, las que repueblan los paisajes calcinados, se extienden por las dunas marinas y escalan por las grietas de las rocas y los muros. Entre otros proyectos, Gilles Clément ha realizado la idea de jardín en movimiento en una parte del Parque André Citroën en París (1989), donde crecen masas de árboles y arbustos libremente; con caminos que los visitantes van, día a día, determinando; con claros en el bosque donde se sitúan mesas bajas de madera que, como en un jardín Zen, pueden tener distintos usos. Hay diversos ejemplos emblemáticos de cómo la naturaleza rebrota con toda su energía, tales como la llamada Reserva Ecológica en Buenos Aires, junto al Río de la Plata, en lo que fue un vertedero de escombros

durante la época de la dictadura militar, o como el Parque Natural de Südgelände en Berlín, que brotó en el terreno del intercambiador de mercancías de la estación Tempelhof, abandonado desde 1952, convertido paulatinamente en un frondoso bosque fruto de cuarenta y cinco años de olvido y aislamiento, y que entre los años 1996 y 2000 se recuperó y se convirtió en visitable. Como bien saben los biólogos, es en los límites de las franjas que quedan entre las masas de vida urbana y los campos, en estos territorios intersticiales de los bordes entre ecosistemas adyacentes, en estas situaciones de transición, donde se genera una masa biológica más prolífica, rica, diversa y enérgica.

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Temos, por último, outra referência: a arquitetura e a paisagem de diagramas, que têm por objetivo moldar a complexidade do mundo dentro de malhas geométricas e ordenações básicas que podem evoluir como sementes ou processos genéticos. A praça do deserto de Barakaldo (1999-2002), de Eduardo Arroyo, é um bom exemplo de uma trama de diagramas que tenta sistematizar diversos inputs, como a água, a pedra, a madeira, as árvores, o aço, a terra, o verde e o cascalho, elementos considerados emblemáticos do lugar. Esta obra de Eduardo Arroyo é uma fiel expressão de seu novo método arquitetônico, baseado em processos de hibridação que estabelecem para o projeto regras de como proceder, formalizadas em diagramas que, por sua vez, vão processando os diversos dados de nosso complexo mundo real. Sem valores formais preestabelecidos, a evolução do projeto filtra as inúmeras possibilidades que surgem, até chegar em uma proposta que seja capaz de se adaptar ao entorno do local de atuação e de incluir o imprevisto. A praça do deserto de Barakaldo se adapta à forma irregular do espaço livre, quase residual, extremamente condicionado pelo entorno residencial

10  Diagramas

Tenemos, por último, otra referencia: la arquitectura y el paisaje de diagramas, que tiene el objetivo de modelar la complejidad del mundo dentro de unas tramas geométricas, órdenes de partida que pueden evolucionar como semillas o procesos genéticos. La plaza del desierto de Barakaldo (1999-2002), de Eduardo Arroyo, es un buen ejemplo de una trama de diagramas que intenta sistematizar imputs diversos, como el agua, la piedra, la madera, los árboles, el acero, la tierra, el verde y la grava, que se consideran emblemáticos del lugar. Esta obra de Eduardo Arroyo es fiel expresión de su nuevo método arquitectónico que se basa en procesos de hibridación pensados para ir proyectando a base de reglas de procedimiento que se formalizan en unos diagramas que van elaborando muy diversos datos de la complejidad del mundo real. Sin valores formales prefijados a priori, las múltiples posibilidades se van decantando de manera evolutiva para llegar a una propuesta que se adapta, que sea capaz de amoldarse al entorno donde se va a actuar y de incluir lo imprevisto. La plaza del Desierto en Barakaldo se adapta a la forma irregular del espacio libre, casi residual, muy condicionado por el

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construído, e tenta recriar uma síntese da grande variedade de materiais que provêm da memória do lugar. Este exemplo explicita esta nova maneira de projetar com diagramas, esquemas geométricos mutantes que se baseiam no processo e na sistematização de dados, que não parte de princípios formais prefixados: diagramas que vão se cruzando, intercambiando e evoluindo e que, através dos avanços tecnológicos no projeto, tentam aproximar-se da capacidade de otimização e de adaptabilidade da natureza.

entorno residencial construido, e intenta recrear una síntesis de los muy distintos materiales que provienen de la memoria del lugar. Este ejemplo explicita esta nueva manera de proyectar con diagramas, esquemas geométricos mutantes, que se basan en el proceso, en la introducción de datos, que no parte de a prioris formales, que se van cruzando, intercambiando y evolucionando, que vía los adelantos tecnológicos en el proyecto intentan acercarse a la capacidad de optimización, la efectividad y adaptabilidad de la naturaleza.

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Conclusões

Agrupamos em dez morfologias distintas e muito diversas as interveções em paisagens, ora urbanas, ora em sítios naturais, às vezes em lugares bem conservados e outras em lugares degradados, e ainda por vezes antigas infra-estruturas da sociedade industrial: fábricas, bases militares, estaleiros, hangares de portos, muros, linhas de trem, etc. A maioria dos exemplos mostra sinais otimistas tanto da capacidade humana de criação, coordenação e técnica, quanto da energia que o planeta possui para regenerar as paisagens obsoletas e degradadas; são signos da esperança de que existem alternativas locais, específicas e criativas que vão na contramão de toda essa destruição que a globalização neoliberal, pautada pela exploração até o limite, tem gerado. São exemplos de boas práticas que demonstram a capacidade interpretativa e criativa de artistas, arquitetos, engenheiros, paisagistas, geógrafos, historiadores, sociólogos, antropólogos, biólogos e outros especialistas, saberes que, se dirigidosno sentido adequado e quando bem interpretados, podem ser extremamente criativos e inesgotáveis. veja em www.revistanoz.com complementos para este artigo

Conclusiones

Hemos agrupado en diez morfologías distintas muy diversas intervenciones en paisajes encontrados, a veces urbanos y a veces en el territorio, a veces bien conservados y a veces lugares degradados, a menudo sobre antiguas infraestructuras de los anteriores estadios de la sociedad industrial: fábricas, bases militares, astilleros, hangares portuarios, muros, líneas de ferrocarril, etc. La mayoría de los ejemplos son signos de optimismo, tanto sobre la capacidad humana de creación, coordinación y técnica, como de la energía del planeta para regenerar los paisajes obsoletos y degradados; son signos de esperanza de que existan alternativas locales, específicas y creativas que contrarrestan la infinita huella destructora de la globalización neoliberal, la distopía de la explotación hasta el límite; son ejemplos de buenas prácticas que demuestran que la capacidad interpretativa y creativa de artistas, arquitectos, ingenieros, paisajistas, geógrafos, historiadores, sociólogos, antropólogos, biólogos y demás especialistas poseen una reserva de saber, si se dirige en el sentido adecuado, inagotable si se sabe interpretar, sumamente creativa.

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aldayjover Arquitectos & Dalnoky Parque Metropolitano da Água Luis Buñuel, Zaragoza, Espanha

Christine Dalnoky é arquitetapaisagista formada pela Escola Nacional Superior de Belas Artes de Paris e pela Escola Nacional Superior de Paisagem de Versailles. É sócia do escritório L’Atelier de Paysage.

Iñaki Alday e Margarita Jover são os arquitetos sócios do jovem escritório aldayjover Arquitectos, sediado na Espanha, com escritórios em Zaragoza e Barcelona. Ambos se formaram arquitetos, em 1992 e 1995, respectivamente, pela Escola Técnica Superior de Arquitetura de Vallès (Centro da Universidade Politécnica da Catalunha). O escritório conta com a colaboração de mais cinco arquitetos e o foco de seu trabalho está em equipamentos e espaços públicos e, muitas vezes, em intervenções paisagísticas.

Foto: Jordi Bernadó

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1  Tradução do memorial descritivo cedido por aldayjover. 2  Idem.

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O Parque Metropolitano da Água Luis Buñuel foi construído por ocasião da Exposição Internacional de 2008 em Zaragoza, chamada de “Expo-Água”. O projeto evidencia algumas melhorias pelas quais a cidade de Zaragoza tem passado, incluindo “a abertura da cidade para o rio, a articulação entre os espaços públicos criados, a atualização das infra-estruturas viárias, o aumento do rendimento de sua infra-estrutura ferroviária, com o novo traçado de alta velocidade entre Madri, Zaragoza e Barcelona, a ampliação do setor de serviços com hotéis, escritórios e comércio, além da melhoria do aeroporto e equipamentos públicos” 1 O parque se caracteriza por estar inscrito no curso do Rio Ebro. Parte-se da idéia de intervir sobre o bosque existente, ampliando-o e instalando o Parque da Água, recortando vazios, criando planícies e, principalmente, organizando o traçado da água, tal como faziam os agricultores. A proposta é, portanto, “não implantar um desenho brutal, mas deixar que o solo expresse suas qualidades. Ao contrário da arquitetura, a paisagem não se desenha, mas deve expressar a história de um território e a relação que os habitantes mantêm com ela”.2 A intervenção pretende aproveitar as infraestruturas urbanas já existentes, pricipalmente a rede viária, e ao mesmo tempo aproveitar características do ambiente natural daquele território, com o entendimento do meandro como área de sedimentação, oferecendo espaço para transbordamento e filtragem natural da água através da vegetação. Desta forma, as zonas de banho são localizadas nas partes com água mais tratada, enquanto os edifícios auxiliares ficam protegidos das cheias.

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Foto: Jordi Bernadó

“Organiza-se um sistema vivo, um percurso que filtra a água extraída do rio Ebro, do canal de irrigação e do lençol freático para levá-la limpa para o uso lúdico. Ao final do percurso, parte da água é reciclada para a irrigação e parte é devolvida ao rio através de lagoas de infiltração que concentram uma riquíssima vida natural”.3 Segundo Margarita Jover, “um bom projeto responde a lógicas e desejos entre os quais a forma não deve estar, a priori. Escolher as formas derivadas das decisões de índole infra-estrutural nos torna estrategistas”4. Portanto, o projeto deve ser resultado de uma estratégia. “O projeto não trata de beleza, mas de vida; não mais de estética, mas de ética; não mais de moda, mas de permanência”.5 No entanto, a proposta pretende se adequar a uma situação de margem, de limite entre a cidade e o ambiente natural. A vegetação ao longo do rio, por exemplo, que vem dando espaço à construção, é devolvida com a implantação do parque. O projeto pretende qualificar a frente ribeirinha criando um “corredor ecológico” com bosques, lagoas e uma gradação de usos que dão espessura à orla, diversificando suas vivências e desenvolvendo o seu potencial ambiental. “A vegetação do parque se organiza entre um limite urbano e o rio em uma progressão do mais racional, ortogonal e artificial, ao mais selvagem, natural e de evolução espontânea” 6. Esta progressão é aplicada também nas formas da água, da entrada do parque

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pelo norte, até sua chegada ao rio: “do artificial e agitado até os espelhos d’água naturais e calmos”.7 A relação entre o Parque da Água e a cidade foi resolvida a partir da implantação das edificações, localizadas, em sua maioria, nos limites do Parque, protegendo e possibilitando que o centro do meandro fosse guardado para a mínima ocupação necessária. É instalado, desta forma, um grande canal de depósito, ao redor do qual são implantados edifícios e praças, “como embarcações atracadas em um cais”.8 Para além das críticas, este é um projeto no mínimo sincero em sua relação com a natureza, com a cidade e com as pessoas. De alguma forma, dá consistência à discussão contemporânea sobre a sustentabilidade. Uma demonstração de como os conhecimentos técnicos podem ser usados a serviço da preservação da natureza, da cidade e de seus cidadãos.

3  Idem.

4  JOVER, Margarita. “Paisaje, materia de memoria y de futuro”. In: expoagua Zaragoza 2008: El Parque del Agua. Barcelona: Actar, 2008. 5,6,7 e 8  Idem.

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Foto: Jordi Bernad贸

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Foto: Jordi Bernad贸

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B

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A E

F F

C E

B

B

C

M

A

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Planta geral

B

J

H

L

L

K

K

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C H

A B C D E F H J K L M

M

Acessos Circulações Sistema de água Avenida do Canal Praça e passeio do Aqueduto Bosque habitado Jardins do Ebro Jardins de alimentos Jardins exóticos Praça sul ou Praça do Botânico Campo

N

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J

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500m

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12 13 Esquema do sistema de água

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Tratamento

1 Açude do Rabal 2 Abastecimento do Ebro 3 Edifício de captação e bombeamento 4 Cascata de aeração 5 Compartimentos de entrada de água do açude Rabal e do Ebro 6 Abastecimento de água para regagem e espelhos d’água para a área da Expo 7 Canal de depósito/ desarenador 8 Aqueduto de depuração secundária 9 Aquedutos/ filtros verdes 1 0 Cascata de aeração 1 1 Lagoa da praça da água/ filtros verdes

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Uso público

1 2 Açude 1 3 Lagos 1 4 Canal 1 1 5 Jogos d’água 1 6 Canal maior 1 7 Tanque de banho 1 8 Tanque de navegação 1 9 Nuvem de água 2 0 Tanque de navegação 2 1 Jardins Aquáticos 2 2 Lagoas e canais/ filtros verdes

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Reciclagem

2 3 Área para regagem 2 4 Lagos de infiltração

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Diagrama de inundação

Estado de Projeto   Estado Atual

Perfil Rio Ebro

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Inundação a cada 10 anos nível d’água: 198,5m

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Inundação a cada 25 anos nível d’água: 199m

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Inundação a cada 50 anos nível d’água: 200m

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Cortes Campo

Corte A

leito do rio

canal para enchentes

rio ebro

campo existente

campo recuperado

Corte B

leito do rio rio ebro

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praia fluvial

lago

tamarizal existente

campo recuperado

tamarizal existente

lago

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aldayjover

lago

campo recuperado

lago de filtragem

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coração do meandro

campo recuperado

lago

coRação do meandro

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Corte Aqueduto / Tratamento

filtragem para o rio

Lagos de infiltração

Tanques

Canais

Lagos de reserva

Represa

Ficha técnica

Localização: Meandro de Ranillas, Zaragoza. Datas de projeto: 2005-2006. Datas de execução: 2005-2008. Cliente: Prefeitura de Zaragoza, através de EXPOAGUA Zaragoza 2008. Arquitetura e paisagismo: aldayjover Arquitectos: Iñaki Alday, Margarita Jover; L’Atelier de Paysage: Christine Dalnoky Arquitetos responsáveis de projeto: Elena Albareda, Marta Serra, Jesús Arcos, Jean Kessedjian.

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Parque da Água

Açude

Bombeamento para cobertura Lago da praça

Cascata de aeração

Colaboradores em arquitetura: Aroa Álvares, Lorena Bello, Juliana Bracchi, Saida Dalmau, Enric Dulsat, Nicole Lacoste, Marilena Lucivero, Arántzazu, Andreu Meixide, Katerina Mitsoni, Shinji Miyazaki, Carmen Muñoz, Laura Paes, Rubén Páez, Rafael Pleguezuelos, Filippo Poli, Paula Poveda, Nerea Rentería, Catalina Salvà, Nina Walters, Cecilia Vinyolas. Colaboradores em paisagismo: Patrick Solvet, Philippe Grandpierre. Hidráulica e tratamento de água: Taller de Ingeniería Ambiental, David Solans. Estruturas: Consultors BIS Arquitectos, David García; Static, Gerardo Rodríguez I.C.C.P José Luis Lleyda. Instalações: Engenheiros consultores Grupo JG, Amalia Fuentes.

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Aqueduto depurador

Grande canal de depósito

Edifício nascente

Iluminação: ArteC3, Maurici Ginés. Sistemas de água: JML Arquitectura del Agua, Stéphane Llorca. Assessoria Construção e Custos: Benedicto Gestió de Proiectes, Fernando Benedicto. Meio-ambiente (programa básico): Jorge Abad. Direção de obra e gestão de projeto: Bovis Lend Lease, Rodolfo Soler. Assistência de Direção de obra: Iñaki Alday, Elena Albareda, Jesús Arcos. Colaboradores em obra: José Medel, Javier Auñón, Javier González, Tatiana Heshusius, Iván Vargas, Raquel Rodriguez, Soraya Yera. Coordenação de projeto: EXPOAGUA, Pablo de la Cal. Coordenação de obra: EXPOAGUA, Miguel Ángel Sorria, Carlos Avila, Fernando Iñigo.

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Casas a domicílio: arquitetura sem lugar Ana Luiza Nobre

Uma série de exposições recentes tem dado sinais de renovado interesse pelo tema da habitação seriada em vários países do mundo (Casa per Tutti, Trienal de Milão; Home Delivery, MoMA/ ny; Open House, Vitra Design Museum/Weil am Rhein; Structures Pneumatiques, Centro Pompidou/Paris, além de retrospectivas de Buckminster Fuller, Joe Colombo e Jean Prouvé. Algumas dessas mostras foram acompanhadas da construção de protótipos, como a Maison Tropicale de Prouvé (1949-51), remontada no terraço do Pompidou, e a nova geração de casas compactas instaladas provisoriamente em lote contíguo ao MoMA. Procurando discutir a atualidade e pertinência de noções correlatas como mobilidade, adaptabilidade, flexibilidade, expansibilidade e mutabilidade, estas exposições mesclaram projetos contemporâneos e referências históricas de diversas partes do mundo: Estados Unidos, França, Alemanha, Japão, Inglaterra, Canadá, Escandinávia, Itália, Polônia, Israel, Rússia, Chile, Cuba… Quanto ao Brasil, nem uma palavra. Por quê? Se considerarmos o prestígio internacional alcançado pela arquitetura brasileira nas décadas de 1940-50, e a forte aceleração do ritmo da industrialização no país nos anos 50, culminando na construção de Brasília, pode ser difícil compreender a completa ausência de projetos brasileiros nesses inventários. Afinal, como é possível que um país de tão intenso processo de urbanização, e com problemas habitacionais tão graves e urgentes, não disponha de qualquer referência digna de atenção no campo da habitação

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Arquiteta formada pela UFRJ e doutora em História pela PUC-Rio. Professora e supervisora da área de Teoria e História no CAU/PUC-Rio. É autora de Carmen Portinho: o Moderno em Construção e co-autora de Lucio Costa: um modo de ser moderno e Coletivo: arquitetura paulista contemporânea, entre outros. Desde 2009 escreve em seu blog www.posto12.blogspot.com

1  GROPIUS, W. “As bases sociológicas da habitação mínima para a população das cidades industriais”. In: Bauhaus: Novarquitetura, p.151

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seriada, campo este que se desenvolveu justamente no momento em que a arquitetura brasileira ganhava notoriedade internacional? A pergunta sugere que se examine, em primeiro lugar, os princípios que nortearam a produção da habitação em massa, tal como foi concebida pelo Movimento Moderno a partir da década de 1920, quando o termo Existenzminimum tornou-se a palavra-chave usada para resumir a associação entre modernidade, racionalização e ética construtiva promovida pelos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (ciam). A “habitação para o nível mínimo de vida” foi, não por acaso, o primeiro tema que os membros do ciam decidiram enfrentar coletivamente. Walter Gropius, um dos protagonistas do encontro de Frankfurt, realizado em 1929, definiu então o problema da habitação mínima como “um mínimo elementar de espaço, ar, luz, calor de que o homem precisa para não sofrer, por causa da moradia, inibição no pleno desenvolvimento de suas funções vitais” 1. A formulação de Gropius baseava-se no argumento de que, para responder às demandas de uma sociedade profundamente transformada pela industrialização, pela mundialização da economia e pela progressiva emancipação da mulher, seria necessário, por um lado, combater a idéia da casa unifamilar e isolada, e por outro, produzir um “padrão mínimo para todos os países” a ser definido não em termos meramente numéricos, segundo interesses financeiros, mas em termos qualitativos, em função das dimensões dos equipamentos e mobiliário básico de uma casa (cama, sobretudo) e sua disposição em espaços racionalmente organizados com base em análises exaustivas das ações cotidianas de um morador padrão.

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A proposta de determinação de um padrão universal, definido como um “tipo”, vinha ocupando o centro dos debates teóricos na Alemanha desde o pré-guerra. E nesse ambiente, os congressos da Deutsche Werkbund constituíram-se como um fórum privilegiado de discussão ao qual não faltaram polarizações, expressas no famoso embate entre H. Muthesius e H. van de Velde (Congresso de Colônia, 1914). A polêmica aberta entre os dois arquitetos em torno do tema da tipificação revelou a tensão profundamente radicada na arquitetura moderna entre o processo criativo da arte e o processo produtivo da indústria. Ou por outra, o problema mais amplo da preservação do indivíduo na massa, descrito pelo sociólogo alemão Georg Simmel como uma tensão dialética entre cultura individual, ou subjetiva, e cultura coletiva/material, ou objetiva. Mais que simplesmente endossar o valor conquistado por Simmel para os produtos em série, Muthesius queria legitimar a tipificação e a repetição pelo esforço de sustar a “tragédia da cultura” diagnosticada por aquele como uma tendência generalizada da vida moderna. Em poucas palavras, a questão estaria em chegar ao que Simmel denominara de “lei formal supra-individual”: algo como um princípio interno da forma a pressupor a extensão do seu desfrute para além do indivíduo. Desse ponto de vista, o “tipo” seria, portanto, não um esquema formal deduzido do processo histórico da arquitetura, como em Quatremère de Quincy, mas um meio para a formação (Bildung), no sentido que, desde Hegel, é dado ao processo de superação da condição natural do homem e sua elevação à universalidade. Abstrair de si e ter em vista um sentido universal: não seria este processo análogo à superação do caráter único da obra de arte pela lógica da produção em série dos objetos industriais?

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Essa abordagem, fundamentalmente germânica, acabaria por marcar a distância cada vez mais aguda entre os arquitetos da Neues Bauen e Le Corbusier. Separava-os questões relativas à função social do arquiteto, as suas modalidades de ação política e de relacionamento com o Estado. No entanto, na ótica de Le Corbusier, a corrente germânica indicava um desvio a ser corrigido, por deslocar o acento da livre criação para o método, e com isso ameaçar a dimensão fenomenológica da arquitetura e a própria unicidade da obra de arte. A chave para realizar o “espírito novo” em arquitetura sem deixar de reconhecê-la como “fenômeno de criação” haveria de estar, para Le Corbusier, na fundação não de um método, mas de um sistema. E isso por uma razão de fundo: tal sistema haveria de ser restrito o bastante para assegurar pronta legibilidade à técnica moderna e, ao mesmo tempo, suficientemente flexível para permitir a conjunção do espaço contínuo moderno com a expressão sempre renovável da poética de cada arquiteto, em seu constante redesenho da paisagem. Era este, em resumo, o ponto de vista assumido por Le Corbusier em sua apresentação para as duas casas do Weissenhofsiedlung, onde os mesmos “Cinco pontos” resultariam em duas obras bem distintas; uma em concreto armado, outra em estrutura metálica. Erguidas lado a lado, as casas deveriam valer como testemunho do grau de liberdade implícito no sistema arquitetônico de Le Corbusier, significativamente relacionado à noção de “célula”. Sem deixar de referir-se ao problema da produção em série, a noção de célula de Le Corbusier indicava uma tentativa muito peculiar de atualização do princípio de economia espacial encontrado pelo arquiteto nas celas-dormitórios de um mosteiro toscano —e reencontrado na cabine do transatlântico que o trouxe pela primeira vez à América, em 1929. Tratava-se, em suma, de definir uma unidade alveolar standard, a ser justaposta e/ou sobreposta a outras,

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gerando assim o edifício e, por extensão, a cidade (a exemplo do Pavillon de l’Esprit Nouveau, apresentado na Exposição de Artes Decorativas de Paris, que não era outra coisa senão uma célula inteira de seu Immeuble-villa, e do conjunto de Pessac em Bordeaux, ambos concebidos na década de 1920 em colaboração com Pierre Jeanneret). Para Le Corbusier, um dos aspectos cruciais do problema consistia em chegar a uma “casa-alveolar” por meio da articulação de componentes estandardizados como janelas, armários e portas. E graças ao princípio da ossatura independente— patenteado por ele em 1914 como Maison Domino (de Domus+industrie) —não haveria qualquer incompatibilidade entre tal procedimento e o princípio compositivo de raiz clássica dos traçados reguladores. No fundo, Le Corbusier reconfirmava o módulo como unidade de medida— e é segundo essa perspectiva que ele irá se atribuir, já no segundo pós-guerra, a tarefa de conciliar o sistema métrico-decimal e o sistema anglo-saxão numa nova escala universal: o sistema de proporções harmônicas fundado na estatura humana ao qual deu o nome de Modulor (de Module+section d’or). Já Gropius buscava um conceito de módulo essencialmente avesso à tradição compositiva e fundado antes sobre a noção de elemento, no sentido de algo absoluto, que, como tal, não pode ser relativo a coisa alguma e só adquire valor de forma na repetição. Colocava em jogo, assim, uma concepção de forma fundamentalmente “aberta”, pois gerada não mediante um processo de composição (i.e., de acordo com relações harmônicas e com o ideal clássico de totalidade) mas com base na própria idéia de construção (i.e., segundo o princípio da elementaridade, diretamente vinculado, no caso, ao caráter proliferante e potencialmente ilimitado da produção industrial).

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E não é de surpreender que esta noção, levada ao extremo, tenha se convertido no próprio núcleo da pesquisa de Konrad Wachsmann, um dos arquitetos mais próximos de Gropius e dedicado à determinação do que Argan chamou de “módulo-objeto”: “o objeto construtivo por excelência, na sua definição mais elementar”, capaz de permitir o maior número possível, e teoricamente infinito, de combinações 2. Partia-se, enfim, de uma motivação que não deixava de ter raízes na diretriz bauhausiana: emancipar a arte simultaneamente da linguagem, da história e do estilo, e “pôr fim à arbitrariedade do indivíduo.” 3. Se é certo, portanto, que há uma predisposição para a serialidade tanto na noção corbusieriana de célula quanto na noção de módulo de Gropius, cabe considerar as diferentes formulações aí implicadas. Uma distinção básica, nesse sentido, reside no princípio de diferenciação implícito no conceito biológico de célula, em relação à invariabilidade e à dimensão mais abstrata da noção de módulo. Explica-se: se a célula pressupõe algumas constantes, que todavia não excluem certo grau de variação (equiparável, ao fim e ao cabo, à própria diversidade dos seres vivos), o módulo aponta, no limite, para a repetição idêntica e a imutabilidade extrema do fazer industrial. Desse ponto de vista, a noção de célula subentenderia uma unidade orgânica, uma relação indissolúvel entre parte e todo (nitidamente expressa no Modulor de Le Corbusier), enquanto o módulo procuraria se definir por si só, como elemento não-relacional e não-antropomórfico. 2  ARGAN, G.C. Prefácio. In: WACHSMANN, K. Una svolta nelle costruzioni, p.15.

3  GROPIUS, W. “Desenvolvimento inicial da moderna arquitetura”. In: Bauhaus: Novarquitetura, p.108

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A situação brasileira

Uma análise da produção brasileira dos anos 40-50 permite verificar que, salvo raras exceções, mesmo aqueles arquitetos aparentemente envolvidos mais a fundo com a racionalização da arquitetura por meio do recurso freqüente a componentes industrializados tenderam a operar dentro do sistema corbusieriano, a partir das noções interligadas e até certo ponto complementares de cellule e plan libre (vejam-se, por exemplo, projetos como o Instituto de Resseguros do Brasil de MMM Roberto (1941) e o Hotel Excelsior de Rino Levi (1941). É possível que tal postura, que acabou prevalecendo entre os arquitetos brasileiros, corresponda a um sentimento ambivalente com relação à indústria —de quem se vê, de certo modo como Le Corbusier, entre a confiança na industrialização e um certo temor de que seu descontrole possa resultar na perda do índice humano da arquitetura. Mas tampouco se deve excluir uma desconfiança com relação à instalação do processo de modernização num país como o Brasil, onde a arquitetura teria obrigatoriamente de enfrentar o desacordo entre a alardeada técnica moderna, com seus novos sistemas e materiais de construção, e a nossa precária realidade industrial, com seus baixos índices de produtividade, mercado interno frágil e profunda dependência de subsídios estatais. Por outro lado, decerto não faltaram razões para embaraçar a recepção do pensamento germânico no Brasil, a começar pela nossa própria estrutura social, que continua a privilegiar o indivíduo em detrimento do coletivo, o particular em detrimento do público. Não se pode, em todo caso, esquecer que a intensificação do processo de industrialização no Brasil só ocorreria de fato no último terço da década de 50, no auge do pensamento desenvolvimentista, quando a indústria passou a ser tomada como carro-chefe do desenvolvimento do país. Desse modo, mesmo que já na década de 30 tenham surgido propostas relacionadas ao problema da produção em série, não

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foram muitos os arquitetos brasileiros que antes da década de 60 chegaram a se envolver mais efetivamente com a lógica serial. As iniciativas nesse sentido, quando existiram, acabaram permanecendo à sombra de obras reconhecidas como exemplares e monumentais, quase sempre referidas a um contexto urbano específico, como o edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde. Não está em questão a excelência deste projeto, justamente celebrado como símbolo da modernidade brasileira, entre outros motivos por ter reinventado o tecido urbano em que se insere (leia-se, a quadra fechada instituída por Alfred Agache). O que se pretende aqui, apenas, é chamar a atenção para a necessidade de rever criticamente outras propostas projetuais que começaram a surgir no Brasil por volta da mesma época e se multiplicaram nas décadas imediatamente subseqüentes, valorizando antes a ausência de uma relação concreta com qualquer situação urbana em particular. Por princípio não-contextuais e não-monumentais, estas propostas mostraram-se menos comprometidas com o mito da originalidade radicado na esfera da arte e mais sensíveis ao caráter de múltiplo inerente ao design – ou pode-se dizer, mais afeitas à lógica industrial, com

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Cajueiro Seco Acácio Gil Borsoi

seus valores intrínsecos de repetitividade e produtividade. E nesse sentido abriram caminho para uma nova atitude projetual, que tendeu a rejeitar a ênfase na idealidade da forma dominante na arquitetura brasileira e substituí-la por uma concepção de forma que se poderia dizer “aberta”, na medida em que fundamentalmente aderente a uma lógica processual e, como tal, teoricamente expansível ao infinito. Vale lembrar que as primeiras casas pré-fabricadas surgiram no Brasil ainda no século xix, vindas da Europa. Adquiridas por catálogo, edificações inteiras chegavam de navio desmontadas e eram despachadas, por via férrea, a seus destinos, onde podiam ser montadas em poucos dias, com mão-de-obra desqualificada e não instruída. Foi só na esteira da construção de Brasília, no entanto, que a relação entre industrialização e habitação em massa de fato emergiu como tema fundamental no meio da arquitetura brasileira. Da urgência de erguer casas na nova capital federal resultou, por exemplo, o sistema construtivo em madeira desenvolvido pelo arquiteto Sergio Rodrigues a partir de 1959, com estrutura tipo balloon-frame (única casa pré-fabricada que Lucio Costa admitiria no Plano Piloto, e cujo primeiro protótipo foi montado nos jardins do mam carioca, à semelhança do que já se fazia desde os anos 40 no MoMA/ny). Na década de 1960, estas experiências se multiplicaram: são deste período projetos tão distintos quanto a casa pré-fabricada de Oscar Niemeyer —uma caixa de concreto armado

Casa Pré-Fabricada Sergio Rodrigues

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desenvolvida no Ceplan/UnB (1962)— a unidade de habitação pré-fabricada de Paulo Mendes da Rocha (1967) e a proposta de conjugação de técnicas de préfabricação com sistemas construtivos vernaculares (painéis e esquadrias de madeira, vedação em taipa e cobertura em palha, sapê ou capim) apresentada por Acácio Gil Borsói para Cajueiro Seco, Pernambuco (1965). A maioria dessas experiências não foi adiante, embora, àquela altura, a reflexão sobre a produção em série mobilizasse também o meio artístico brasileiro, a ponto de levar Lygia Clark a projetar um kit habitacional do tipo do-it-yourself (“Construa você mesmo seu espaço a viver”, 1960), que foi desenvolvido no escritório do arquiteto Sérgio Bernardes. Deve-se a Sérgio Bernardes, aliás, algumas das experiências até hoje mais inovadoras no campo da habitação seriada no Brasil. A extravagância, e mesmo o excesso das suas propostas, o desafio de inserir a arquitetura no circuito da comunicação de massa, a consciência da complexificação das relações sociais num mundo cada vez mais globalizado, assim como a alta dose de confiança nos avanços científico-tecnológicos da era cibernética permitem inscrever alguns de seus projetos num quadro que inclui propostas como a Plug-in-City (Peter Cook, 1967), os edifícios helicoidais de Kisho Kurokawa (1961) e as geodésicas de Buckminster Fuller. Sem dúvida, é essa a direção para a qual o trabalho de Sérgio Bernardes deriva, mais marcadamente a partir de meados dos anos 60

—veja-se o projeto para o Hotel de Manaus (1963-70), cuja gigantesca cúpula (300 metros de diâmetro), a ser construída em plena Amazônia, chegou a ser submetida ao próprio Buckminster Fuller. Neste projeto, contemporâneo das propostas mais conhecidas de Warren Chalk (Plug-in Capsule Homes, 1964) e Kisho Kurokawa (Torre Nakagin, Tóquio, 1968-72), os quartos seriam cápsulas pré-fabricadas em material sintético, a serem conectadas a uma torre central dotada de elevador panorâmico e elevada bem acima das copas das árvores. Já no conjunto Casa Alta (1963), ou no Projeto Hexágono (1983) Sérgio Bernardes mostra uma abertura ao usuário/morador que, se não chega a incorporar dispositivos típicos do Archigram, tampouco deixa de contar com sua participação no processo de produção da obra. Essa postura mais intuitiva e especulativa, livre de imposições teóricas e motivações ideológicas de Sérgio Bernardes colidiu com o engajamento na luta política que norteou boa parte da produção arquitetônica no Brasil a partir de meados dos anos 60, e acabou lhe custando o lugar na historiografia da arquitetura no Brasil. Mas também inspirou vários arquitetos e designers brasileiros, como o paulista

Casa-Bola Eduardo Longo

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Projeto Hexágono Sérgio Bernardes

Hotel de Manaus Sérgio Bernardes

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Eduardo Longo, cuja investigação muito pessoal sobre o espaço de morar atingiria um ponto de inflexão na sua própria Casa-Bola, espécie de protótipo em tubos metálicos e argamassa armada cuja execução se estendeu por seis anos (1973-79). No período que se seguiu ao golpe militar, no entanto, foi no Banco Nacional de Habitação (bnh) que se centralizaram as ações voltadas para a produção em massa da habitação. Certamente a proliferação por todo o país de projetos medíocres, produzidos no âmbito do bnh entre 1964 e 1986, e o próprio modelo de política habitacional vigente neste período —caracterizado pela ausência de participação comunitária, baixa qualidade construtiva e ênfase na produção por empreiteiras— foi responsável pela condenação, como um todo, dos projetos habitacionais ligados ao Banco. Mas, aos poucos, vai se vendo que mesmo aí surgiram algumas experiências significativas que precisam ser melhor examinadas. Uma delas é o conjunto do Cafundá, projetado por Sérgio Magalhães, Clóvis Barros, Silvia Pozzana e Ana Luiza Petrik Magalhães em Jacarepaguá, Rio de Janeiro (1978). Outra é o canteiro experimental de Narandiba, criado na Bahia também em 1978, onde chegou a ser instalado o protótipo de uma cápsula habitacional de sete toneladas, transportada pronta para o canteiro. E isso para não falar no papel assumido pelo bnh na difusão do princípio da coordenação modular (definido, em linhas gerais, pela adoção de um sistema

Rio do Futuro Sérgio Bernardes

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Casa 001 Nomads

Casa em CarapicuĂ­ba Una Arquitetos

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reticular tridimensional válido para todos os componentes e fases da obra como um todo), que vinha sendo amplamente discutido na Europa desde o segundo pós-guerra, mas que no Brasil nunca chegou a merecer a atenção dos nossos melhores arquitetos. O fato é que já não há como ignorar o quanto o meio de arquitetura no Brasil se ressente até hoje da ausência de um acordo mínimo, tanto em termos de vocabulário quanto de dimensões, entre a prancheta, a indústria e o canteiro, que seja capaz de permitir o estabelecimento de um ambiente comum, fundamental tanto para o diálogo entre os múltiplos agentes e operações envolvidos numa linha de produção quanto para evitar muitos dos problemas que com freqüência acabam sendo simplesmente transferidos aos usuários. E isso a despeito do Brasil ter sido um dos primeiros países do mundo a instituir uma norma técnica visando a definição de critérios de compatibilização das dimensões dos produtos industriais (a nbr 25, de 1950). Hoje, a pré-fabricação habitacional permanece praticamente restrita, no Brasil, ao âmbito do mercado imobiliário ou, quando muito, a casinhas de veraneio de aspecto pitoresco e duvidosa qualidade construtiva. As exceções de qualidade continuam mais restritas a um âmbito local ou, no máximo, regional, como o sistema estrutural desenvolvido pelo engenheiro Hélio Olga e posto à prova em projetos de Marcos Acayaba, Una Arquitetos, Núcleo de Arquitetura e outros. Ou à esfera da pesquisa acadêmica, como as unidades experimentais de habitação 001 e 002, concebidas pelo grupo Nomads e construídas no campus da Universidade de São Paulo (usp) em São Carlos.

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Por mais que muitos fatores possam ser considerados —dentre eles o vácuo das políticas públicas para habitação no Brasil— é preciso reconhecer que uma das conseqüências desse processo tem sido a persistência de um alheamento total em relação a problemas que perpassam boa parcela da produção contemporânea em arquitetura. E se é verdade que alguns arquitetos mais jovens têm se mostrado motivados pelo tema da industrialização da arquitetura, os resultados, pelo que se vê, ainda são discretos demais, sobretudo no que se refere à habitação. Por outro lado, se há uma leva de projetos de casas seriadas saindo das nossas escolas nos últimos tempos, a impressão que se tem é a de que nem sempre as imagens vistosas que resumem estes projetos têm sido acompanhadas de uma reflexão mínima sobre todo um conjunto de questões que envolvem a concepção de forma seriada, a lógica serial e o raciocínio da montagem, a noção de “tipo” e suas implicações sobre as relações históricas entre arquitetura e paisagem, a substituição da noção tradicional de módulo como medida por um conceito não-planar de módulo e, claro, o próprio sistema tradicional de representação arquitetônica, sem o que dificilmente sairemos de uma superficialidade tão cômoda quanto estéril que continua a nos vedar lugar no debate contemporâneo.

Veja em www.revistanoz.com complementos para este artigo.

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Eletrodomésticos aerodinâmicos brasileiros

Claudio Lamas de Farias

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Desenhista industrial formado pela esdi/uerj, especialista em ergonomia pela fgv e Mestre em Design pela puc-Rio. Professor da puc-Rio e da espm. É co-autor dos livros Luftwaffe Confidencial – Plataforma para o moderno design aeronáutico e Eletrodomésticos – origens, história e design no Brasil.

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Definição e origens do design aerodinâmico O design aerodinâmico, inicialmente derivado de estudos aerodinâmicos aplicados ao projeto de aeronaves e veículos, é popularmente conhecido pelo termo streamlining. O streamlining surgiu nos Estados Unidos, mais precisamente durante o período conhecido como a Grande Depressão. As indústrias que resistiram ao primeiro impacto da crise lutavam para sobreviver em um contexto de falta de capitais para o desenvolvimento de novas tecnologias e, por conseguinte, novos produtos. Elas precisavam de novos modelos para atrair um consumidor mais crítico e exigente, porém, novos modelos deveriam, a rigor, incorporar novas tecnologias que, por sua vez, demandariam enormes investimentos em pesquisa e desenvolvimento, exigindo um volume de capital não disponível à maioria das empresas. É neste momento que as empresas especulam sobre a possibilidade de modificar apenas a aparência externa de seus produtos de modo a criar, não um produto 100% novo, mas uma novidade, capaz de despertar o impulso ao consumo. Esta mudança de aparência não poderia ser feita de maneira aleatória, as novas formas deveriam necessariamente incorporar um senso de modernidade tecnológica, de modo a criar a ilusão de que o consumidor estaria adquirindo um produto inteiramente novo. Estas formas deveriam contrastar fortemente com o ambiente triste e opressivo da Grande Depressão e transmitir uma imagem de modernidade e otimismo. A resposta a esta necessidade chegou por intermédio do streamlining, ou estilo aerodinâmico, uma criação tipicamente norte-americana e uma interpretação formalista do desenho industrial. A inspiração para o estilo vinha exatamente daqueles produtos que, por sua própria natureza, encarnavam a idéia de modernidade high-tech, símbolos da capacidade criativa do ser humano e, principalmente, símbolos que pudessem ser entendidos pelo cidadão comum. Foi a aviação que proporcionou a maior parte dos exemplos formais, cuidadosamente estudados e apropriados pelos fabricantes de eletrodomésticos. As primeiras aeronaves metálicas desenvolvidas em túneis de vento, cujas formas afuseladas lembravam o corpo de peixes, assim como os dirigíveis que cruzavam o Atlântico, estavam entre as imagens mais marcantes da década de 1930, a perfeita personificação da modernidade tecnológica, singrando os ares muito acima da sombria realidade dos anos da Depressão.

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O pequenino ferro de passar Kent era especialmente adequado para viagens. Seu design é praticamente idêntico ao de produtos similares fabricado nos EUA e na Inglaterra. (Fonte: Coleção e foto do autor.)

O refrigerador Príncipe da Brastemp faz uso dos mesmos elementos ornamentais (puxadores, emblemas e frisos) de inspiração automotiva presentes nos refrigeradores norte-americanos. (Fonte: Revista Seleções, 1955. Coleção do autor.)

Cerca de quatro décadas após o o surgimento do streamlining, a palavra “aerodinâmico” ainda era utilizada como parte do discurso publicitário do ferro de passar Lorenzetti. (Fonte: Revista Manchete, 1971. Coleção do autor.)

O primeiro refrigerador Consul, modelo Q300, movido a querosene. (Fonte: Material de divulgação da Consul)

A moderna batedeira Walita marca o retorno das formas arredondadas (ou seriam aerodinâmicas?) às paradas de sucesso do design contemporâneo. (Fonte: Material de divulgação Walita.)

O aspirador Arno em forma de foguete é a perfeita representação do estilo aerodinâmico nos eletrodomésticos brasileiros. (Fonte: Coleção e foto do autor.)

O cartão postal mostra o dirigível Graf Zeppelin pousado sobre o Bodensee. (Fonte:Coleção do autor)

A batedeira Walita apresenta um design inspirado nos modelos norte-americanos como a Mixmaster da Sunbeam. (Fonte: Revista Seleções,1959. Coleção do autor.)

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O liquidificador Neutron da Walita, o primeiro de seu tipo, foi colocado em produção em 1944. A base escalonada é nitidamente inspirada na linguagem do Art Déco. (Fonte: Acervo Walita.)

O uso da palavra “aerodinâmica” no anúncio da máquina de costura Vigorelli é apenas um chamariz, visto que a forma do produto está longe de ser representativa do ideal do streamlining. (Fonte: Revista Querida, 1957. Coleção do autor.)

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Eletrodomésticos Aerodinâmicos Brasileiros

Se a ciência era um forte argumento a favor da eficiência das formas aerodinâmicas, a natureza também era utilizada como forma de convencer o consumidor da adequação das formas curvilíneas, mesmo que aplicadas a produtos destinados a uma vida absolutamente estática. A gota passou a ser o ícone de uma época e suas proporções e forma tornaram-se presentes em rádios, geladeiras, ferros de passar e qualquer outro produto que necessitasse de um incremento em suas vendas. Eletrodomésticos aerodinâmicos no Brasil O design aerodinâmico chegou ao Brasil inicialmente através da importação de produtos originários dos Estados Unidos. Já nos anos que precederam a Segunda Guerra Mundial notava-se a crescente presença de produtos americanos nos lares brasileiros, trazendo com eles aqueles valores considerados como “modernos” no design norte-americano. A visão formalista, tipicamente americana, penetrava fortemente o mercado brasileiro através de uma grande variedade de produtos fabricados por uma diversificada gama de fabricantes como: Philco, General Electric, Frigidaire, rca, Hamilton Beach, Sunbeam e outros. A guerra também criaria as condições para o crescimento da indústria nacional de eletrodomésticos, estimulada pelas dificuldades de obtenção de peças de reposição para os equipamentos importados, como conseqüência da interrupção do fluxo comercial entre as nações durante o conflito. Um exemplo típico deste florescimento estimulado por uma situação adversa é o caso das geladeiras Consul, criadas por dois mecânicos da cidade de Brusque (sc), Guilherme Holderegger e Rudolf Stutzer, a partir de tentativas de consertar um refrigerador importado para o qual não mais existiam peças de reposição. Os primeiros protótipos foram feitos à mão e as geladeiras de série, produzidas a partir de 1950, apresentavam o suave design curvilíneo, também presente em suas congêneres importadas. Uma abordagem semelhante pode ser identificada nas primeiras geladeiras Brastemp, fabricadas pela Brasmotor, hoje conhecida como Multibrás. As origens deste grupo estão associadas com a montagem, ainda em 1946, de automóveis Chrysler/Dodge importados, sob a forma de conjuntos ckd (completely knocked down — desmontados).

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Em 1951, o grupo Brasmotor, tal como ocorrera com alguns fabricantes americanos de automóveis (vide o caso da General Motors e da Frigidaire), iniciou a fabricação de refrigeradores Norge, Alaska e White Star, consagradas marcas americanas importadas para o Brasil na década de 1940. Em 1954, é criada a marca Brastemp e a empresa começou a fabricar refrigeradores inteiramente projetados no Brasil. Esta primeira linha de produtos recebeu nomes dignos de seu design imponente: Imperador, Príncipe e Conquistador. A tarefa de criar as curvilíneas linhas destes refrigeradores coube a uma especial categoria de engenheiros, mais afeitos às questões da estética e do design, conhecidos na empresa como estilistas (uma denominação em parte derivada dos stylists de Detroit). Para outros fabricantes nacionais, como é o caso da Arno e da Walita, o vínculo com o design internacional foi ainda mais estreito, na medida em que delegaram o projeto de alguns de seus produtos a empresas estrangeiras ou simplesmente produziram sob licença equipamentos importados. Em 1949 a Arno inicia a produção de sua primeira geração de produtos: eletroportáteis como aspiradores, enceradeiras e liquidificadores. O projeto foi encomendado à Sears Roebuck & Co., nos Estados Unidos. Neste caso, a influência das tendências de design praticadas nos EUA torna-se ainda mais evidente e um exemplo notável é o aspirador aerodinâmico Arno, em formato de foguete. Este produto fascinante, colocado em produção em meados da década de 1950, é um perfeito exemplo da linguagem do streamlining aplicado ao design de um eletrodoméstico nacional. De fato, o aerodinamismo presente no aspirador Arno era mais acentuado do que em muitos produtos similares fabricados nos EUA. Seus encantos não se limitavam a suas formas aerodinâmicas e à adoção do conceito de sistema em seus aspectos de uso. O caráter de modernidade tecnológica era reforçado pelos fechos que permitiam destacar a “ogiva” frontal para se ter acesso ao saco de coleta de poeira, uma solução que remetia a dispositivos semelhantes empregados em aeronaves ou veículos esportivos. Embora a profusão de acessórios e gadgets, por si só fossem suficientes para garantir o sucesso do aspirador Arno, ele ainda tinha um outro trunfo guardado na manga: ao ser acionado, produzia um ruído semelhante (e quase tão poderoso!) ao de uma turbina a jato.

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Eletrodomésticos Aerodinâmicos Brasileiros

Em uma época em que a ecologia e o conforto ambiental ainda não figuravam no topo da lista de preocupações de designers e engenheiros, ele oferecia o perfeito complemento ao seu estilo futurista: um rugido inigualável (em glorioso si bemol) tornado possível por sua construção inteiramente metálica. Embora poucos produtos possam rivalizar com o aspirador Arno no quesito aerodinâmica, a empresa não foi a única a aplicar esta linguagem no design de seus produtos. As formas aerodinâmicas e a inspiração originária do design norte-americano estavam presentes nos produtos de grande parte dos fabricantes nacionais durante a década de 1950. A Walita também recorreu a parcerias com empresas estrangeiras para viabilizar suas primeiras linhas de eletroportáteis, destacando-se a fabricação sob licença de produtos da companhia suíça Turmix, caracterizados por um design que mesclava referências tanto ao Art Déco, quanto ao design aerodinâmico, o que comprova que o Brasil também teve sua cota de produtos Streamlined Moderne. Um exemplo típico é o primeiro liquidificador da Walita, o modelo Nêutron. Sua base escalonada e as arestas suavizadas evidenciam a fusão dos dois estilos. De todos os produtos Walita de primeira geração, aquele que melhor representa o design aerodinâmico é, sem sombra de dúvida, a batedeira de bolos. Seu estilo assemelha-se ao aspecto de algumas batedeiras norte-americanas, especialmente o modelo “Mixmaster” da Sunbeam, criada originalmente em 1930. Percebese a intenção de manter o design nacional sintonizado com aquelas que eram consideradas, na época, as mais modernas tendências do design internacional. Outro exemplo do perfeito casamento entre o Art Déco e o streamlining é o pequeno ferro de passar Kent, fabricado pela Daniel Martins S.A.. Suas pequenas dimensões permitiam que fosse levado em viagens e seu design deriva de modelos semelhantes fabricados nos EUA (modelo Gab-a-bout) e na Inglaterra (modelo Smoothie, projetado por C. Kerr, N.H. Lucas e E. Lucas). O corpo em baquelite adapta-se à palma da mão, tal como um mouse de computador, e a base metálica cromada possui aletas de refrigeração paralelas que, além da função utilitária (dissipar o calor), desempenhavam importante papel simbólico, ao realçar o caráter de mobilidade física e “velocidade” do aparelho.

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A julgar pela variedade de sub-espécies e de sua abrangente distribuição geográfica, pode-se constatar que o ferro de passar aerodinâmico já faz por merecer figurar entre os clássicos do design moderno. O declínio do design aerodinâmico no Brasil O início da década de 1960 marca o momento em que o estilo dos eletrodomésticos brasileiros começou a abandonar paulatinamente as linhas arredondadas, derivadas do streamlining, e a adotar formas mais retilíneas, em consonância com as tendências de design praticadas no exterior. Esta transformação seria particularmente perceptível no design de refrigeradores. Os EUA já não eram a única fonte de inspiração e a presença de designers nacionais assinando projetos, ainda que incipiente, já se fazia notar. No início da década de 1970, fabricantes tradicionais como a Lorenzetti, ampliaram sua linha de produtos lançando um ferro de passar roupas com um design surpreendente. A maior surpresa fica por conta da menção ao termo “aerodinâmico” como um dos principais atributos do produto. É importante perceber como a força da palavra “aerodinâmico”, agora totalmente fora do contexto que lhe deu origem, ainda se fazia presente, cerca de 30 anos depois do auge do streamlining. O retorno do design baseado em formas curvilíneas Para aqueles que julgavam o estilo aerodinâmico extinto, a última década reservou algumas surpresas, entre elas o retorno das formas curvilíneas ao topo das paradas de sucesso do design internacional. Embora a palavra “aerodinâmica” não seja mais mencionada no discurso publicitário, ela parece se esconder sob outras identidades e termos como: retro design, soft-tech ou soft design, manifestações surgidas após o design pós-moderno pretender decretar o fim do dogma funcionalista. A atual geração de eletroportáteis brasileiros carrega em seu sangue o DNA de múltiplas gerações de produtos que os precederam. Uma rápida análise permite identificar referências às linhas arredondadas do streamlining, homenagens, intencionais ou não, ao estilo sóbrio e austero dos produtos alemães da Braun e também uma forte dose do espírito iconoclasta do design pós-moderno.

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Eletrodomésticos Aerodinâmicos Brasileiros

Conclusão Diante do exposto, é possível constatar que o design aerodinâmico, ou aquele baseado em formas curvilíneas, é uma das mais duradouras tendências do design moderno, assumindo diferentes denominações ao longo dos últimos setenta anos, mas estando sempre associado à idéia de modernidade. Em suas origens, o streamlining era a interpretação do modernismo, tal como concebida nos EUA, e diferia radicalmente da interpretação européia, pouco afeita à realidade industrial e do mercado, o que atesta o grau de originalidade da visão norte-americana. Ao romper com o cânone da abstração geométrica, defendido pelas vanguardas européias do início do século XX, o design aerodinâmico também antecipa o caráter transgressor assumido pelo antidesign e pelo design pós-moderno nos anos 1960 e 1980, respectivamente, mesmo que não compartilhasse o caráter crítico presente nestas últimas manifestações. O sucesso comercial do streamlining, sua longevidade e ampla difusão, incluindo-se aí sua presença no Brasil, o colocam como uma das grandes tendências transformadoras do design moderno.

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tfg: Arquitetura modular em plástico (amp) Nathalia Mussi

Trabalho Final de Graduação em Arquitetura e Urbanismo realizado no cau/ puc-Rio, em 2008, com orientação do professor Marcos Favero e co-orientação do professor Luciano Álvares.

A Arquitetura Modular em Plástico é um sistema construtivo expansível e editável composto por cinco componentes de polietileno que foram projetados segundo os parâmetros da indústria de plástico e de uma logística de transporte otimizada. Sem um programa arquitetônico pré-determinado, o amp pode incorporar novas peças visando atender a usos mais específicos, tais como: arquitetura de emergência, hospitais de campanha, habitação, etc. O sistema incorpora as seguintes qualidades: a rapidez e facilidade das relações de compra e venda, transporte, estocagem e montagem; a intercambialidade entre componentes; a extensibilidade do sistema com a criação de novos componentes e a reciclagem de todas as peças.

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tfg: amp

Os componentes do sistema são de cinco tipos: 1  Módulo básico: composto por 10 peças; 2  Anel de vedação: necessário para conexões entre módulos e plugs, adaptando-as ao formato assimétrico das laterais; 3  Plugs: todos os componentes que se conectam ao módulo básico que não são outros módulos básicos; 4  Plugs Painéis: plugs que não definem um novo volume; 5  Plugs de espaço: componentes que agregam e redistribuem o espaço entre os módulos e plugs.

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Nathalia Mussi

Considerando o uso do amp como habitação, os plugs e painéis podem ser editados com funções específicas. O projeto apresenta o plug-cozinha, o plug-banheiro e painéis mobiliados como as primeiras opções de utilização doméstica. As aberturas dos painéis e plugs são padronizadas, podendo receber peças de mobiliário, portas ou janelas. As instalações hidro-sanitárias concentram-se nos plugs, alcançando a rede externa sem passar pelo módulo básico que, por sua vez, possui a instalação elétrica. A energia elétrica parte de um quadro localizado em um dos pilares do módulo. A distribuição dos cabos é feita inicialmente embutida nos pilares, passando sob o piso elevado e daí atingindo os plugs através de canais localizados nos anéis que conectam plugs e módulos.

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Todas as peças do sistema são produzidas em polietileno pelo processo de rotomoldagem, onde os moldes de alumínio (consideravelmente mais baratos que os moldes de aço para injeção à pressão) rotacionam em duas direções, distribuindo o plástico uniformemente no interior do molde. Nesse processo é possível posicionar insertos metálicos no interior do plástico com precisão, permitindo a conexão das peças do sistema. Com a utilização de duas densidades diferentes de polietileno, obtém-se um sanduíche, onde as partes externas são compostas de polietileno maciço e o recheio de polietileno expandido, garantindo um melhor desempenho térmico e isolamento acústico.

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45h 15l Projeto Nefelibata (45h 15l), 2007 Caneta esferogrĂĄfica sobre papel 200 cm Ă— 200 cm

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Cadu: Habitante das Nuvens

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Artista plástico formado em Pintura, com mestrado em Artes Visuais e doutorando pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ufrj). É professor no Departamento de Artes e Design da puc-Rio. Expôs no X Salão Paulista de Arte Contemporânea, em 2002; foi artista convidado da Fundação Iberê Camargo (rs) para confecção de gravura na instituição, em 2006; foi artista residente da Universidade de Plymouth, Inglaterra, durante 2007 e 2008.

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Como é a sua relação com o desenho?

A minha relação com o desenho acaba sendo muito ampla. Eu percebo o desenho como a manutenção de uma forma ao longo do tempo. Essa estrutura tem que estar, em geral, sobre algum tipo de suporte, e ela se dá numa determinada escala de negociação. Você pode estacionar ou pode ser simplesmente o estado de um processo num dado momento, que pode ou não ser revisitado para se transformar ao longo do tempo. Eu estendo esse tipo de postura não só para os suportes tradicionais, mas como uma postura de vida. Eu acho que o desenho que quer deixar traços, marcas e quer criar algum tipo de comentário, pode ser entendido pelo modo como você vê sua vida, como você negocia com ela. A idéia clássica de desenho também tem alguma coisa da delicadeza do suporte. Há sempre a memória de alguma coisa que você coloca ali e eu acho que a vida é meio assim, você não tem muitas voltas. Mesmo que você use a borracha, fica a memória e mesmo que você conserte um erro, ele permanece. Acho fundamental no desenho o fato de que ele é uma ferramenta de investigação. O desenho te coloca em um estado perceptual de investigação de uma forma. Quando você tenta transferir aquilo que você está vendo pra uma outra codificação, em duas dimensões, você fica muito mais atento àquela coisa. É como se você estivesse examinando ela o tempo todo. Por isso eu acho que desenhar te deixa em um estado curioso e generoso em relação às coisas, porque olhar algo banal é diferente de tentar desenhar algo banal. Quando você tenta desenhar, aquilo deixa de ser banal e passa a ser um problema em si. Então, o desenho é o campo escolhido e a paisagem é o assunto. No entanto, há maneiras racionais e afetivas de lidar com ela. No meu caso, acredito ser um pouco a junção de um método mais lógico e outro mais orgânico de arrumar descrições alternativas da paisagem, que não sejam o da contemplação e nem o da minha mão, mas que tenham uma participação direta da paisagem na construção da imagem. E uma maneira que consegui desenvolver com o tempo foi ir me apropriando dos próprios componentes da paisagem, desde componentes minerais, elementos naturais —o vento, a luz do sol— até o comportamento de animais. Foram meios que fui encontrando pra completar a peça que falta pra fazer o sistema funcionar.

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Qual a importância do acaso?

Estrutura Migrações, 2002

No meu trabalho ele é fundamental. Para a maioria dos criadores existe uma perseguição por estilo. Existe, às vezes, um refino de alguma coisa que vai se desenvolvendo e vai se ficando cada vez melhor naquilo. Eu entendo isso, mas eu tento ter uma outra postura, não melhor, mas diferente desta. Eu prefiro criar sempre alguma coisa que eu não fiz ainda, me arriscando e tendo uma postura mais aventureira, porque eu acho que aí está a potência da prática artística. No meu caso, o acaso entra como uma forma de não me tornar previsível o tempo todo, não ser simplesmente uma pessoa que tem uma idéia e a executa. Eu gosto de dividir a responsabilidade das autorias. Nesse sentido, criar regras, sistemas e jogos em que eu não sei qual é a imagem final é uma tentativa de dividir essa responsabilidade e de me surpreender. Ser um bom artista apesar de mim. É simplesmente um ato de fé, de acreditar que vai entrar algum dado entrópico, em algum momento —que, no fim, é o que eu espero— e vai mudar tudo. É o convidado. Eu vejo esses trabalhos como um convite para um jantar, em que eu não sei se o convidado vai chegar, mas eu tenho que estar sempre com a mesa arrumada… Acho incrível essa relação entre acaso e desenho. Existe o grid, existe o ideal, e existe o mundo. Existe um sistema todo baseado em decisões racionais e existe um outro sistema, que se coloca sobre aquele, que é o sistema afetivo: que é o quanto você força a mão; você apaga ou não e decide se aquilo fica, apesar do ideal. E isso é que é a vida, a gente sabe o que fazer pra chegar lá, mas acontecem tantas coisas no meio do caminho que seus desejos se modificam. É isso que te salva, no fim das contas, de você mesmo. A minha maneira de me salvar de mim mesmo é convidando o acaso pros meus trabalhos1.

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1  “A mortalidade dos homens reside no fato de que a vida individual, como uma história vital identificável desde o nascimento até a morte, advém da vida biológica. Essa vida individual difere de todas as outras coisas pelo curso retilíneo do seu movimento que, por assim dizer, intercepta o movimento circular da vida biológica. É isto a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha reta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico.” ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 2003. Obs: Citação retirada da dissertação de mestrado do artista. COSTA, C. E. F. Nefelibata - Habitante das nuvens. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.

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Entrevista: Cadu 200km Projeto Migrações (200 Km), 2002 grafite sobre papel 30cm × 30 cm

Migrações

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Dentro das inúmeras arenas de discussão que o desenho proporciona, o trabalho baseia-se na investigação de sistemas visuais e suas capacidades de geração de imagens. Questionando os modos tradicionais de formação do desenho de paisagem.

Confia a um processo mecânico capaz de perpetuar-se quase que precedendo a manipulação de terceiros, a produção de séries de desenhos em grafite sobre papel, realizados no interior de caixas instaladas em diferentes meios de transporte ou despachadas

por transportadoras, do endereço de residência do artista até o local de exposição. O desenho de paisagem está usualmente ligado a uma perspectiva renascentista e retiniana. É um recorte estático da natureza e dependente da mão de um contemplador e intérprete

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400km Projeto Migrações (400 Km), 2002 grafite sobre papel 30cm × 30 cm

da realidade para existir. Não é um processo autônomo e não pode ocorrer sem seu controle. Apreende talvez sua visão da paisagem, mas dificilmente a experiência física de se ter estado nela, de se ter viajado sobre ela. E registrar este aspecto, a partir do deslocamento,

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é o que o trabalho almeja sugerir. Os desenhos resultantes são os testemunhos gráficos de jornadas que realmente ocorreram. A compressão “sismográfica” sobre a mesma superfície de desenhos de observação de diferentes paisagens, mas que destacam ex-

clusivamente o aspecto processual de alcançá-las, e não elas em si. O projeto já realizou desenhos em meios de transporte diversos como trens, aviões, triciclos de entrega e ônibus interestaduais, em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Paris e Londres. A estrutura de

registro é composta por quatro molas de aproximadamente 12cm de comprimento conectadas perpendicularmente a uma placa de metal quadrada de 33cm de lado presas, pelos vértices, a uma base de madeira fixada, em nível, ao chão de uma caixa. Sobre elas,

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habitante das nuvens 700km Projeto Migrações (700 Km), 2002 grafite sobre papel 30cm × 30 cm

presa em seu teto, pende uma peça composta por uma pequena base de madeira e uma única mola, de 23 cm de comprimento, prolongada em uma de suas extremidades com um tubo oco em alumínio, que abriga, em seu interior, um lápis em grafite maciço.

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Esse lápis toca o centro de um papel repousado sobre a primeira estrutura. Eles são responsáveis pelo registro gráfico de todas as irregularidades de terreno e condução, que o veículo está sujeito durante qualquer deslocamento.

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Há uma grande dificuldade em definir o que é paisagem…

A palavra paisagem, etimologicamente, significa “idade do local”. Eu vejo a paisagem através de uma postura relativista, porque normalmente a paisagem procede de um observador, de alguém que contempla alguma coisa que está do lado de fora. Existem várias definições para o termo. Mas algo que parece aceitável em quase todas é a obrigatoriedade de se estabelecer uma fronteira para definir onde a paisagem começa e onde ela acaba. Normalmente, essa é uma decisão consensual entre um e muitos. E sempre haverá discordâncias, porque aquilo que entendo por limite pode ser bem diferente daquilo que você entende como tal. Mas isso é um outro papo. O que usualmente ocorre é que, para considerar algo como paisagem, precisamos delimitar este espaço e considerá-lo como tal. Isto torna o nosso conceito de paisagem algo completamente fabricado. Mas quase tudo na vida é assim, né? Uma invenção. Mas o que me preocupa na questão da paisagem não é a definição, mas a relação com a mesma. Existe, por exemplo, o caso do mirante. Um lugar considerado ideal para se contemplar a paisagem, um lugar onde sua vista abarca muita coisa, mas que também cria uma distância segura da paisagem na qual você não a atinge e nem é por ela atingido. E me parece que é este o modo como lidamos atualmente com a paisagem, de longe. Minha busca está em recriar relações com a paisagem que sejam mais próximas, de atrito mesmo, pra que se recupere algo do terror, do fascínio sobre esses locais, que hoje em dia a gente só vê como um mero território. Eu estendo a idéia de paisagem para uma relação de figura e fundo muito contrastada. Paisagem é tudo aquilo que não sou eu. Mas onde eu realmente acabo? Onde paro de afetar com meu corpo ou com meus pensamentos aquilo que me chega aos sentidos? Então não existe só uma paisagem, não existe só a paisagem natural. Na verdade, toda essa idéia de natureza também é uma idealização. E aí está criada a confusão. Mas, em última instância, acho

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Vista da câmera que captava e enviava ao espaço expositivo imagens do anemômetro instalado no mezanino do prédio do Itaú Cultural, 2007

que a paisagem é, na verdade, um suporte onde você pendura a sua paisagem interna. Isso fica mais fácil de ser percebido, por exemplo, em desertos, planícies geladas, mares. Locais onde não há início e nem fim, ou seja, fronteiras, e que, de certa maneira, são ausentes de estímulos visuais. Ali depositamos nossas paisagens internas e transferimos sentimentos ao local. O que vai depender do estado de contemplação que você estiver experimentando naquela hora. Para mim o desenho tem com a paisagem uma relação de interdependência, porque, se o trabalho não estiver inserido na paisagem, ele não acontece. Artistas como Richard Long e Robert Smithson são sujeitos que tentam recuperar essa aproximação do contato com a paisagem, seja através do desenho, da escultura, seja trazendo partes da paisagem pra dentro da galeria, seja levantando monumentos nela própria, mas sempre há a tentativa de revisitar aquilo como algo que tem a ver com terror, com tabu, com sublime, com espanto diante do espaço, e imaginar que aquilo que está do lado de fora também está dentro da gente. Essa é, muito rapidamente, a maneira como eu vejo esses artistas trabalhando com a paisagem. O meu trabalho, com relação à paisagem, foi se desenvolvendo como um modo de me inserir dentro de uma tradição de desenho, que é o desenho de paisagem, e em como ir empurrando essa maneira de fazer. Não ser simplesmente uma contemplação, uma coisa que é retiniana, onde eu olho e executo através da minha mão uma interpretação daquele lugar. Na verdade, eu tento fazer o lugar se manifestar no desenho. Trazer os elementos que compõem a paisagem pra dentro do desenho. A relação entre paisagem e cartografia, por exemplo, é muito íntima, porque é uma maneira de entender a paisagem, de criar uma organização pra ela. Nada impede que se veja os desenhos do Nefelibata como uma estranha cartografia, pois se você tiver uma quantidade muito grande daquilo, você pode ser capaz até de entender aquele tipo de espaço. Os desenhos que foram feitos no prédio na Avenida Paulista têm um comportamento de vento completamente diferentes dos desenhos feitos no meu ateliê. É possível fazer uma leitura em cima daquilo.

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Entrevista: Cadu

Estrutura Nefelibata Braço robótico

Nefelibata – Habitante das Nuvens

O princípio deste projeto reside na descrição. Descrever algo já é grande parte de seu processo de entendimento. O valor das metáforas levantadas pelos resultados visuais alcançados são decorrência da “eficiência” desta descrição. Quanto mais profunda maior será seu potencial sensibilizador. Um potencial controlado apenas no momento de criação do sistema de aferição e não mais durante a realização do trabalho, assumindo a posição de mais um espectador no longo processo de “autorias” devidas pelo qual o trabalho passa e do qual depende para existir. Tradicionalmente, o desenho de paisagem está ligado a uma perspectiva renascentista e mimética do ambiente. Funciona como um recorte estático da natureza e depende da mão de um intérprete contemplador para existir. Não é um processo autô-

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nomo e não pode ocorrer sem seu controle. Aquilo que se apresenta no interior da moldura é apenas a seleção de um campo que continua além de seus limites. O interesse por métodos e sistemas está no desejo de aplicá-los à produção de imagens relacionadas à descrição da paisagem, que não só garantem um meio livre de manifestação para a própria paisagem dentro da obra, como permite a mesma qualidade de aferição nos mais diversos tipos de espaço. A contribuição artística está na elaboração do código, não no resultado, surgindo este não de um desejo humano isolado, mas sim combinado com um conjunto imprevisível de variações do estado do meio ambiente. O projeto Nefelibata é um sistema mecatrônico que possibilita a realização de desenhos, em tempo real, a partir de sucessivas leituras de dados relacionados ao comportamento do vento no ambiente em que o sistema está

inscrito. Dados colhidos por um anemômetro são transmitidos através de sinais de comunicação, dimensionados sob medida para esta aplicação e interpretados pelo software de leitura para um robô que, utilizando a velocidade como vetor de deslocamento e a direção dos pontos cardeais como coordenadas, produz comandos que movem o suporte de uma caneta em uma área de desenho respeitando heurísticas de representação pré-definidas. A duração de cada desenho depende apenas do tipo de investigação gráfica que se pretende observar, podendo ser de curta ou longa exposição. Seu conjunto é formado por um anemômetro (equipamento de medição eólica), computador, software de interpretação e transmissão de dados, sistema de comunicação e, para registro, um braço robótico.

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O que são as interfaces?

É justamente a partir daí que surge a idéia de interface, que é essa membrana de comunicação entre o que está do lado de fora e o que está do lado de dentro. Esse conceito passou a ser mais corriqueiro quando a gente começou a usar os computadores, pela necessidade que se teve de organizar para o usuário comum a quantidade de informações binárias dos computadores, que são inteligíveis. Assim foram criadas as interfaces gráficas que privilegiam determinadas informações em detrimento de outras. A maneira mais fácil de entender isso é numa analogia com as interfaces de organização, como o Google. A interface é uma coisa que me separa, em geral, de alguma coisa maior que eu não entendo. A pele e os nossos sentidos seriam as primeiras interfaces, mas estas ficaram mais acessíveis a partir da criação das chamadas máquinas cerebrais. Existem três tipos de máquinas: as máquinas musculares, que amplificam uma força corporal dos músculos; as máquinas sensoriais —que amplificam os sentidos— que geram uma série de signos, pois através da máquina fotográfica, do microscópio e da luneta, você vê coisas que o olho humano não vê e, em geral, capta essas coisas do mundo e as transforma em signos. Mas a gente começou a armazenar tantos desses signos que foi preciso um outro lugar pra armazená-las, porque já não cabiam mais nos sistemas usuais de arquivo. Aí foram criados os computadores, que são as máquinas cerebrais. Para que pudéssemos, então, conversar com essas máquinas cerebrais, as interfaces foram fundamentais. Meu interesse por elas se dá na medida em que através dessas máquinas, dessas próteses, dessas interfaces —que contribuíram pro nosso afastamento da paisagem— seja possível recuperar essa relação2.

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2  “Traduzir é uma operação que, sem dúvida, consiste em domar, sobrecodificar, metrificar o espaço liso, neutralizá-lo, mas consiste, igualmente, em proporcionarlhe um meio de propagação, de impulso, sem o qual talvez morresse por si só.” DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2005. 5 v. Obs: Citação retirada da dissertação de mestrado do artista.

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habitante das nuvens

Qual a importância do discurso para o seu trabalho? Até que ponto deve-se deixar claro o processo da obra?

Existem trabalhos que lidam com questões pré-verbais, que você olha e o seu senso de arrebatamento te faz ser tomado por eles. No entanto, há também os trabalhos em que você precisa de outros processos e até talvez esse arrebatamento chegue, mas por um outro caminho. Então há discurso, há arte, há conceito, em qualquer tipo de arte, mas depende da maneira como ele está, mais ou menos, acessível. No meu caso, nos desenhos, o produto é simplesmente parte da idéia. Eles são fruto gráfico de um processo que é muito maior, que é a postura de tentativa, de esforço, de disciplina, de investimento de tempo que está por trás do trabalho. Com sorte, eu tenho conseguido fazer com que as pessoas vejam o meu trabalho e sejam fisgadas, como se ele fosse anzóis, procurando saber qual é a natureza daquela imagem e, no final das contas, acabem chegando na idéia toda. Isso não é um privilégio meu. Na verdade, isso acontece com toda arte. Todo trabalho tem discurso, mas este pode ser mais ou menos acessível. Existem trabalhos que são mais herméticos, outros menos, mas não é isso que valida a boa arte. A minha maneira de lidar com o desenho é muito conceitual, mas o próprio trabalho já dá algumas dicas… Se o trabalho se chama Migrações, 100km, Carro e Caneta; vai se tendo algumas pistas para chegar lá. Flat Sounds

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Projeto de intervenção pública. Um trecho de rodovia será escolhido para abrigar uma escultura essencialmente sonora e de percepção visual discreta. Uma série de sonorizadores de asfalto serão dispostos ao longo de um trecho de estrada em diferentes distâncias e formatos. O condutor que ali trafegar será avisado através de uma placa que há uma velocidade ideal para se dirigir naquele local, pois todos os relevos no asfalto serão absorvidos pelo

veículo e percebidos por aqueles em seu interior como um ritmo musical. A percepção deste código poderá ser modificada acelerando ou retardando o veículo. Cabe ao motorista essa escolha, sendo ele o motriz dessa “planificada caixa-de-música”. Dependendo do local de instalação da peça o ritmo musical pode ser substituído por uma mensagem em Morse ou tornar-se mais complexo, com diferentes tipos de sonorizadores, resultando em sons mais variados.

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Há alguma previsibilidade em relação ao resultado do desenho?

Eu acho que eu dou sorte porque, em geral, as imagens são muito atraentes visualmente. É claro que vai se desenvolvendo um certo faro e imaginando no que pode dar. Mas você se surpreende às vezes. Bom, fora isso, tem também a minha produção de desenho mesmo, à mão, que é uma parte importante do meu trabalho, mas digamos que eu fui me afastando dele por ter ficado habilidoso demais, e, aí, eu vi que tinha que fazer outra coisa.

3  “No espaço liso, a direção é um vetor e não uma dimensão métrica a se cobrir. É um espaço construído graças às operações particulares. Tais mudanças de direção podem ser devidas à natureza do percurso, mas também pela variabilidade do alvo ou do ponto a ser atingido. É um espaço de afetos, mais que de propriedades, intensivo mais do que extensivo. De todo o devir. Já o espaço estriado seria o que se ocupa a fim de metrificar, de organizar e esquadrinhar; de transformar espaço em território, uma estratégia de assentamento e não de deslocamento contínuo.” COSTA, C. E. F. Nefelibata - Habitante das nuvens. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.

4  “Trabalhar com um plano é uma maneira de evitar a subjetividade. (…) O plano deve moldar o trabalho. Alguns requerem

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milhões de variações e outros um número limitado, mas ambos são finitos. Outros implicam o infinito. E em cada caso, o artista deve selecionar a forma básica e as regras que governarão a solução do problema. Após isso, quanto menos decisões feitas no curso de realização do trabalho, melhor. Isso elimina a arbitrariedade, os caprichos e a subjetividade o máximo possível. Esta é a razão para o uso de métodos.” LEWITT, Sol. Paragraphs on Conceptual Art. 1967. Obs: Citação retirada da dissertação de mestrado do artista. 5  “O artista percebia seus desenhos como partituras musicais. A primeira exibição seria considerada seu début, como na apresentação de uma sinfonia, e a circulação de seus planos, partituras que possibilitavam a existência simultânea de um mesmo desenho em lugares diferentes, executado por pessoas diferentes e instalado em suportes

diferentes sem, no entanto, perder a essência de sua intenção autoral.” COSTA, 2006, ibidem. 6  “Enquanto são apenas planos e instruções, estas estruturas podem ser consideradas como desenhos e avaliadas como tal. Mas ao mesmo tempo são inseparáveis de um segundo momento de manifestação, que até então funcionam como potência. Eles sobrevivem no papel, mas estão intrinsecamente atrelados a uma escala maior que determinou suas origens. E aí reside o mérito do autor, uma vez que estes diagramas não são apenas belos sistemas visuais, mas eficientes estratégias de articulação conceitual. Afinal não se trata de desenhos que “comeram fermento”, mas a personificação de uma postura artística interessada em relativizar preceitos profundamente arraigados na concepção tradicional da arte ocidental.” COSTA, 2006, ibidem.

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Entrevista: Cadu

No seu desenho à mão existe, então, menos a presença do acaso do que nos desenhos que você “projeta”…

Totalmente. E, quando você olha um trabalho e outro, você se pergunta: isso veio da mesma pessoa? Porque é outro trabalho e eu sou outra pessoa. Eu preciso de um balanço. Não agüento ficar trabalhando em projetos em uma escala que eu não controlo, um pouco como na arquitetura. Você faz um projeto, aí vai pra obra… As coisas levam muito mais tempo pra ficar prontas, esses projetos levam dois, três, quatro anos. E eu preciso também de algo que eu possa pegar, colocar debaixo do braço e falar: está pronto. Mas é uma briga: sou eu e o papel, e vamos ver o que vai sair. É claro que eu tenho algumas imagens, como qualquer artista, que são recorrentes, um repertório de coisas que me interessam, que na verdade não têm outra narrativa figurativa que não a paisagem, a arquitetura. Mas aí eu tento deixar a razão de lado e abrir um outro canal, para equilibrar. O que Gilles Deleuze3 fala sobre o espaço liso e o espaço estriado, isso é desenho. Existe uma coisa que é racional e outra que não é: se estiver muito instintivo, não racional, empírico, o racional uma hora vai aparecer; e, quando estiver racional demais, vai acontecer o inverso. Eu gosto desse confronto, dessa fronteira, e é onde eu tento fazer a relação com a interface, com a paisagem. E eu vejo isso em outros lugares também. Uma outra pessoa incrível é o Sol LeWitt4. A maneira5 como ele trabalha o desenho como desenho e o desenho como projeto, como uma coisa que vai se transformar em outra maior depois, mas ainda assim tem um interesse como imagem, fora a própria relação dele com a arquitetura6.

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Primeiros desenhos: transformações de superfície

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NOZ Ensaio realizado a partir de Trabalho Final de Graduação (tfg) em Arquitetura e Urbanismo realizado no cau/pucRio, em 2008, com orientação do professor Otavio Leonídio.

tfg: Arquiteturas entre terra e mar Maria Isabel Palmeiro

Tudo a partir do desejo, de sensação experimentada, mas elevada pela potência: imaginação. Uma arquitetura para estar no mar. Atravesso a margem e estou onde desejo estar. A diferença é que faço esse caminho mediado pela arquitetura, como próprio percurso de experimentação sensorial. Arquitetura torna-se um objeto e seu desenho remete ao movimento, à materialidade do próprio lugar à beira-mar. Contudo, para um objeto demasiado precioso e pessoal, era necessário outra guia para seguir com o propósito de projeto. A outra guia foi esquadrinhar a temática da paisagem, dando-lhe significado para que o projeto fosse fruto de um processo de tentativas de mapear e identificar motivações, intuições, assim como livres associações. “Acreditamos ser fiéis a uma imagem favorita, quando na verdade estamos sendo fiéis a um sentimento humano primitivo, a uma realidade orgânica primordial, a um temperamento onírico fundamental.”1 Especular sobre a paisagem me proporcionaria chegar a outras possibilidades de materialização da vontade subjetiva, me lançaria ao acaso, evitando a reprodução da “imagem favorita”, da paisagem onírica por onde caminharia só.

1 BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p.5.

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Intervenção na paisagem litorânea Optar pelo território não apenas marítimo, mas também costeiro, me conduz obrigatoriamente a especular sobre este como paisagem, explorando sua condição de limite e de “entre”. Inicialmente sem definição do lugar geográfico, penso o mar como imagem simbólica, de uma construção subjetiva “registrada” pela literatura, fotografia, cinema. Procurei um método de especulação que pretendesse criar conceitos para percepção e leitura analítica da paisagem. Conceitos que uso para definir o território não-geográfico e que considero estratégicos ao agir sobre esta paisagem, catalisando-os. Os conceitos margem e horizonte possibilitaram a correlação entre etapas de projeto. São sugestivos em relação à implantação e à vivência da paisagem como experiência temporal e espacial de deslocamento. Já que podem ser vistos como lugares em si, mesmo que seja impossível delimitá-los, podemos apontá-los, vê-los, mas estar neles é uma idéia abstrata. Não é pura fenomenologia que define a paisagem, nem puro lugar. “No se trata solo de que ésta es una delimitación artificial, no determinada previamente por lo que está fuera del individuo sino que es una determinación casual, subjetiva, fruto de una decisión que nace del observador, del colono, del errático vagar del paseante.” 2

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2  SOLÀ-MORALES, Ignasi de. Territorios. Barcelona: Gustavo Gili, 2002. p.155. “Não se trata somente de que esta é uma delimitação artificial, não determinada previamente pelo que está fora do invidíduo mas sim uma determinação casual, subjetiva, fruto de uma decisão que nasce do observador, do colono, do vagar errante do transeunte.” (Trad. do editor)

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arquiteturas entre terra e mar

Margem

Estável Opaco Sólido Passivo Presente (limite) Local Chegada/partida Realidade

Instável Transparente Líquido Ativo Futuro (horizonte) Universal Trânsito Abstração

A coexistência de contrários. A margem é uma espécie de lugar impossível onde se unem dicotomias em movimento constante. Como na mudança de estados da matéria, a margem é o lugar da máxima entropia dos sentidos. A idéia é trazer para o desenho a consciência de margem, de interface mutante, de linha que se estende e recua, encrespa e alisa… de permanente impermanência. Buscar traduzir no desenho a ritualização do espaço de aproximação, preparação de corpo e psique para estados não consolidados.

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Horizonte

O outro limite, o horizonte infinito. Aqui a impossibilidade consiste no inalcançável, na vivência por contemplação do espaço que se vive por projeção. E neste olhar longe, podemos estar distantes e sós. Paradoxalmente o “onde” do horizonte é onde ancoramos nossos pés, de onde projetamos nosso olhar. Assim como o refúgio da land art (observatório para o espetáculo da natureza) é onde repousa o consentimento da estagnação no tempo e no espaço, do reconhecimento da distância “entre”. Horizonte é ponta final de trajetória, é sucessão de quadros (frame paisagístico).

Linhas de campo

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158 3  “Un evento en arquitectura es como un latido en el corazón. Si no hay, vamos mal. Pero ellos nos avisan: B. Tchumi, A. Artaud, S. Esissenstein” RUIZGELI, E. Diccionario Metápolis. Barcelona: Actar, 2001. p. 216. “Um evento em arquitetura é como uma batida para o coração. Se não há, estamos mal. Mas eles nos avisam: B. Tchumi, A. Artaud, S. Esissenstein”. (Trad. do editor) 4  MENDES DA ROCHA, Paulo. Maquetes de papel. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p.30.

5  ANDRADE, Carlos Drummond de. “O Lutador” (poema).

Aproximação com o projeto arquitetônico O objetivo é conciliar a intenção poética e fenomenológica de interpretação paisagística com a intervenção proposta para um lugar geográfico específico. A proposta é resultante da metodologia experimentada, não é um programa de usos e necessidades, mas um programa de associações e aspirações. Supõe-se uma arquitetura de partes, para a compreensão de um todo (intervenção e território). Essas partes pensadas, apropriando-se da idéia de follies, são orientadas pelos conceitos de margem e horizonte na disposição e desenho, remetem às relações e interpretações inconscientes, criadas no espírito e na ação do sujeito de acordo com o lugar e a fantasia do lugar. Traçando caminhos, marcando-os com sucessões de eventos3, a follie adquire vigor; destaca-se como elemento construído. Ao ar livre, o céu, o vento, a areia e a água são substâncias da arquitetura, especialmente se consideramos que são suscetíveis a variações. Desta forma o tempo entra como matéria, em ação mais uma vez, sobre o conjunto arquitetura e território. A ficção do lugar já existe e a arquitetura a invade, sob a questão funcional de sua pertinência, para descobrir-se. A arquitetura é móvel, mutável e se pretende lúdica, assim como a visão sobre o sítio. A ficção é parte do olhar especulativo. “Portanto, a grande questão da arquitetura é saber o que fazer. Esse saber não é individual, mas um saber da sociedade”4

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Maria Isabel Palmeiro

Planta de intenção e intervenção

Território e follie

A escolha do lugar é o acúmulo de expectativas sobre ele, de identificação dos conceitos na paisagem. A experiência única e específica do lugar escolhido traz novas questões que impulsionam o projeto e segue acionando interpretações. Interferir na paisagem, no espaço público, não significa necessariamente gerar mais uma esfera de convivência. Por ser um território amplo e heterogeneamente ocupado, há uma displicência na intervenção que pense ações coletivas, para suscitar uma experiência particular e individual. Talvez a principal transformação no projeto tenha acontecido, despercebidamente, ao inter-subjetivar o desejo pela análise e especulação paisagística. Desta maneira o objeto arquitetônico deixou de ser apenas mediação da relação sensorial corpo-mar e suporte do conhecimento a partir dos sentidos, para ser pensado também como objeto inserido na paisagem. Neste ponto a palavra paisagem trouxe com peso a apreensão territorial, certo domínio sobre particularidades históricas, geográficas e poéticas que delimitam com fronteiras invisíveis o local escolhido. Domínio condicionante para a disposição destes objetos, eventos ou “momentos construídos”, pontos num traço marcado: meu caminho até o mar. “Luto corpo a corpo, luto todo o tempo, sem maior proveito que o da caça ao vento. Não encontro vestes, não seguro formas, é fluido inimigo que me dobra os músculos e ri-se das normas da boa peleja.”5

Últimos desenhos: sombras

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Jacobo García-Germán

Arquiteto, professor de projeto na Escola Técnica Superior de Arquitetura de Madrid (etsam) e mestre em Teoria e História do Projeto pela Architectural Association de Londres. Dirigiu publicações independentes como Pez y Belleza e Guia de Arquitectura de Madrid 1975-2007. É sócio do escritório García-Germán Associados.

Ctrl+C/ Ctrl+V: de Robert Smithson

Comentários sobre alguns textos

Após a leitura dos escritos de Robert Smithson, presentes no completo livro The Colllected Writings, publicado em 1996 pela University of California Press, surge, como acontece ao se ler tantos outros livros, uma necessidade de complementar o que foi lido com uma reflexão pessoal. Devido aos diferentes aspectos de aprendizagem que podem ser produzidos acerca de um mesmo tema (em direção à memória e a si mesmo, por um lado, e recebendo e assimilando uma nova informação, por outro), proponho em seguida rastrear quais são, ao meu entender, as principais idéias e atitudes de R. Smithson em relação à paisagem, associando essas idéias, em alguns casos, com outras próprias e recordadas que, em seu momento, pensei que teriam alguma correspondência com as de Smithson. Algo como trazer para casa o que foi aprendido para poder compreendê-lo, ou redefinir, com nossas próprias palavras, algo externo a nós mesmos e dar-lhe um sentido mais próximo. Cada parágrafo aqui exposto faz referência direta a algum dos escritos de Smithson, ou pelo menos a linhas e observações pontuais que deram origem a um comentário completo. Comecemos com a intenção de dar título àquelas paisagens a tratar, fazendo referência ao texto Response to a questionnaire from Irvine Sandler (1966) e, respondendo com uma ironia parecida com a que quis empregar o próprio Smithson naquela ocasião, é possível dizer que: Pergunta — É possível identificar o interesse por algum tipo determinado de paisagem no trabalho de Robert Smithson? Caso afirmativo, como se caracteriza o mesmo? Resposta — Não há um tipo de paisagem em Robert Smithson, há dez tipos de paisagens em Robert Smithson:

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As dez paisagens

Fotogramas do filme de Robert Smithson, The Spiral Jetty, 1969.

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1  A paisagem entrópica

Comecemos com a interpretação que Smithson faz do conceito de “entropia”, isto é, a perda de energia enunciada pela segunda lei da termodinâmica. Em muitos dos textos, se percebe um interesse pela idéia de desgaste associada ao passar do tempo; a inevitabilidade que essa lei promove no que diz respeito à desordem e à decomposição das coisas. Isto é aplicado por Smithson, não só à arte e ao território, mas também a exemplos concretos (referese à quebra do Grande Vidro de Duchamp), e estabelece a partir daí uma interpretação do mundo da economia, da história do homem ou da geologia. Faz referência à crise energética dos anos 70 como uma forma de entropia, e à noção de reciclagem como uma intenção de restabelecer a energia perdida nesse processo inevitável. Como se situa R. S. como artista frente a estes princípios? Apesar de um tom algo pessimista, “… the world is slowly destroying itself”, como diz em uma das entrevistas, quase toda sua produção tem como ponto de partida o fato de valorizar a instabilidade e o câmbio na natureza, trabalhando com estes princípios tanto na hora de eleger lugares (non-sites, paisagens onde o aleatório, as forças naturais e a história do terreno são especialmente visíveis), como ao resolver de que forma atuar sobre eles. O que é o Asphalt Rundown de Roma, obra de 1969, além de uma aceleração do processo natural de sedimentação e superposição geológica de matéria, com a finalidade de fazer patente a presença destes acontecimentos no curso da história da terra? Isto é especialmente claro se contemplamos esta ação no contexto do escrito Entropy made visible junto a imagens, entre outras, de erupções vulcânicas na Islândia, ou de terremotos no Alasca.

1 “Arte mínima – Meu trabalho sempre foi uma tentativa de afastamento do objeto específico. (…) Muitas pessoas estão incomodadas pelo meu trabalho porque não o conseguem entender por completo”.

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A idéia de entropia é a que permite a Smithson desenvolver o conceito de non-site, como veremos a partir daqui. Aqueles lugares de máxima indeterminação, e que por isso oferecem maior grau de liberdade. Sua fixação pelas paisagens industriais, em ruínas, se aproxima do interesse pelos vazios e margens urbanas, que tantos arquitetos têm hoje em dia. Por outro lado, no texto Entropy and the new monuments, Smithson, ao falar de alguns artistas a primeira vista afins a ele, como Donald Judd, Carl André, Robert Morris, Sol LeWitt ou Dan Flavin, escreve que “o tempo como decomposição ou evolução biológica parece estar eliminado no trabalho destes artistas”. Esta afirmação torna-se muito relevante, já que o própio r.s. parece querer separar seu campo de ação do destes artistas, hoje habitualmente classificados dentro do minimal americano, para situar-se em uma órbita própria, menos abstrata e mais relacionada com a mudança, o contingente, a história e a memória. Diz em outro lugar: “Minimal art — My work has always been an attempt to get away from the specific object. (…) A lot of people are disturbed by my work because it is not within their grasp”1.

2  A paisagem de Passaic, New Jersey

Em um dos textos chave do livro, Robert Smithson recorre à paisagem de Passaic, perto de New Jersey e próximo de sua memória, já que o próprio artista nasceu nesta localidade em 1938. Smithson se identifica com esta paisagem em vários níveis. O primeiro, devido à familiaridade produzida por ela, por ter crescido ali. Esta proximidade é também o que lhe permite interpretar o lugar e conferir a ele conteúdo cultural, convertendo Passaic no paradigma da paisagem abandonada, livre para ser recorrida e interpretada, capaz de ser redefinida a cada vez e a cada visita. As ruínas industriais que r.s. encontra ali passam a ser chamadas imediatamente de “monumentos”, com todo o sentido que o termo implica. Os artefatos industriais em desuso, como tubos, gruas, depósitos, etc., adquirem uma dimensão monumental e heróica e se convertem nos novos marcos da cultura pós-industrial, em um desdobramento, talvez, da idéia duchampiana de santificar os objetos e as coisas que encontramos ao redor. Esta glorificação das ruínas indus-

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triais poderia ter sua origem nesta linha, que passa de Duchamp aos artistas pop, e que Smithson comenta no texto Robert Smithson on Duchamp. Smithson encontra um caráter “pré-histórico” nestes objetos que são, segundo ele, “ruínas ao contrário” e que “parecem ter surgido como ruínas antes de ser construídos, em vez de converter-se em ruínas depois de terem sido construídos”. Lugares suspensos no tempo, pertencentes a algum momento indefinido, ancestral, mas de origem impossível de localizar. São seus não-lugares e é essa, talvez, a proposta mais poética de Smithson, e também a mais operativa: por este tipo de sítio não pertencer a nenhum lugar nem a nenhum tempo, as associações são infinitas, como veremos. Smithson deposita toda a alienação do homem contemporâneo, seu estranhamento diante do mundo, nestes espaços esquecidos, termômetros da desordem e, por sua vez, depósitos da memória. Com frases como “um conjunto de futuros abandonados” (e sublinho o plural em “futuros”), ou “estou convencido de que o futuro se encontra perdido em algum lugar entre os restos do passado não-histórico”, Smithson nos oferece uma perspectiva melancólica e lírica, ao mesmo tempo que útil, destas paisagens. Para aqueles educados na disciplina do terrain vague, tão na moda nos últimos anos, e tão sugestivo, como argumento, mas que chegou a converter-se em um lugar-comum, não pode deixar de nos impressionar uma sensibilidade como esta nos anos 1960. Uma sensibilidade que apontava estas paisagens como gérmens do futuro.

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3  A paisagem construída como antropologia abstrata

Do pequeno texto Sites and settings, de 1968, gostaria de assinalar como Smithson parece querer estabelecer um novo ponto de partida, um vazio inicial para as paisagens do amanhã. Aquelas paisagens “capazes”, mesmo vazias, mesmo sem interpretação, que r.s. crê, serão objeto de um maior desenvolvimento criativo no futuro. Neste texto escreve como estes lugares serão: a  Paisagens sem a visão da história. b  Edifícios, (fábricas suburbanas, interiores e exteriores retilíneos), superfícies duras e impenetráveis. c  Lugares comuns que pareçam de um tempo futuro. d  Parques industriais sem indústria, (…), edifícios de escritórios sem atividade de negócios. Torna-se interessante enquadrar r.s. no contexto do panorama nova-iorquino dos anos 60. Como o artista parece situar-se no mesmo nível dentro destas categorias, por um lado obsessões suas já comentadas —as paisagens industriais— e, por outro, o lugar paradigmático para os artistas americanos da época, o loft ou estúdio de artista, tão valorizado desde os expressionistas abstratos até Warhol. Na seção Recent site developements, enumera o loft junto aos edifícios de escritórios, às zonas industriais e aos terminais aeroportuários como paisagens de possibilidades, prontos para serem interpretados, manipulados e mitificados por um novo olhar. Smithson encontra esta abertura em seus non-sites, assim como nos lofts onde ele e seus amigos viviam —o livro mostra uma fotografia de r.s. em seu loft junto a sua mulher, Nancy Holt. A lista se completa com o “apartamento urbano”, a “casa suburbana”, e o “edifício urbano de escritórios”, terminando com a divertida frase, “todo mundo ama o Seagram Building e odeia o PanAm Building”.

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4  A paisagem do tempo estacionário

Há um momento no texto See the monuments of Passaic, New Jersey, em que Smithson escreve: “O que se pode encontrar em Passaic que não possa ser encontrado em Paris, Londres ou Roma? Descubra você mesmo”. Em outro lugar, no escrito dedicado aos monumentos de Passaic, diz: “Haverá Passaic substituído Roma como a Cidade Eterna?”. Estas duas citações me lembram o pequeno livro Viagem às Cárcavas, publicado pela coleção Pez Priveé. Em comum com a atitude diante da paisagem de Passaic, concretamente na primeira das duas citações, está a idéia de descobrir um mundo completo com sensações, sugestões e caráter específico em um destes lugares anônimos, não-lugares; um mundo que, a partir de uma visão mais apurada que observa o aparentemente banal, se revela tão denso e fascinante como o de qualquer outra cidade, como de qualquer lugar do planeta. Implícita está também a idéia, presente em Viagem às Cárcavas, de fazer “turismo pela sua própria cidade”, de converter-se em um eterno explorador, com uma atitude contínua de surpresa diante do mundo que te rodeia, registrando este entorno mediante fotografias, desenhos, anotações, etc. Isto se converterá em uma atitude de origem quase ética para Robert Smithson. A relação, algo irônica e impossível, entre Passaic e Roma, mostra a relatividade do valor conferido: não pode ter Passaic, para Smithson, uma profundidade histórica tão inquestionável como a de Roma? Se a land art pode ser considerada, por diversas razões, um produto inequivocamente americano, quase de contestação à Europa, depois da posição de “líderes” que haviam inserido os Estados Unidos no mundo da arte a partir do Expressionismo Abstrato, não estaria esta arrogância e desafio intuídos nesta reflexão? Em uma página de Viagem às Cárcavas, alguém pergunta: “…não te dá a sensação de que debaixo destes montes há como uma cidade ou algo?”, ao que outro responde, “Pompéia?”.

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O terrain vague tem sido entendido tradicionalmente como campo de forças, lugar de conflitos, desgastes e inclusive destruição. Também r.s. o entende assim, mas nesta frase (“Pompéia?”) se sugere uma idéia de lugar em suspensão, adormecido e expectante; uma espécie de som neutro, uma energia latente porém apagada, de pausa ou de parêntesis. O tempo detido, outra possível categoria para os non-sites, como explica Smithson em outro lugar: “Este tipo de tempo tem pouco ou nenhum espaço, é estacionário e sem movimento, não se dirige a nenhum lugar, é anti-newtoniano ao mesmo tempo que instantâneo, e vai em sentido contrário às voltas do relógio-tempo”.

5  A paisagem dos objetos primários (ou prime objects)

Robert Smithson tem um profundo convencimento de que não existe um salto temporal entre seu trabalho, ou melhor, sua visão de mundo, e a que tem existido em outros momentos, remotos no tempo, mas próximos quanto à sensibilidade. Assim, vai identificando uma série de invariantes capazes de dotar seu trabalho de um sentido histórico e profundo; aquele que r.s. considera não existir naqueles artistas dedicados simplesmente à produção (Warhol), ou à precisão na definição de objetos (os minimalistas). Uma destas invariantes encontra-se no que ele denomina objetos primários (ou prime objects). No texto The artist as a site seer, fala de “unidades de ordem” em todo entorno, uma presença capaz de codificar e explicar o lugar em que se encontram. O termo “primário”, ou primo, relaciona estes objetos, tendo como exemplo as construções de Stonehenge, que, como

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os números primos, “não se podem decompor, possuem uma origem enigmática, são imóveis, indestrutíveis e unitários”. Mais adiante, fala das pirâmides do Egito e, contemporaneamente, das construções de R. Buckminster Fuller e A. Graham Bell. Parece lógico pensar que o próprio Smithson tivesse desejado este tipo de inevitabilidade para suas próprias obras, esse sentimento de “obra necessária” que, efetivamente, nos invade em algum momento ao contemplar seu trabalho, especialmente a Spiral Jetty. Nao é de se estranhar os esforços de Smithson para justificar sua Spiral Jetty através das condições do lugar: geológicas, climáticas, solares, ou ainda das cores, visando obter esta condição de permanência e sintonia com o cosmos que desejava para sua obra. Algo que é justificado em Stonehenge a partir de sua função, segundo Smithson, de “computador neolítico”, capaz de prever eclipses ou rastrear os solstícios e os equinócios.

6  A paisagem do futuro e a memória

7  A paisagem dos non-sites

Fica cada vez mais claro, à medida que avançamos na leitura dos textos de Robert Smithson, como sua interpretação dos lugares sempre transcendia aos mesmos para ir mais adiante e incorporar interesses e obsessões pessoais, formando um todo coerente. Em A provisional theory of non-sites, escreve como “uma intuição lógica pode desenvolver um ‘novo sentido de metáfora’, livre de conteúdo natural ou realista. Entre um lugar concreto (…) e um non-site, existe um espaço de significação metafórica. Poderia ser que ‘viajar’ neste espaço fosse uma vasta ‘metáfora’.” Mais tarde, acrescenta, “poderia existir, entre dois lugares, uma metáfora física e material, desprovida de um significado natural e de hipóteses realistas”. Em outras palavras, um não-lugar, para r.s., é aquele lugar que permite ser desprovido de suas qualidades, se é que as possui, para assumir aquelas que lhe atribuía a imaginação, quem sabe provenientes de outros não-lugares, criando uma constelação imaginária de intercâmbios no tempo e no espaço.

O que se entende do texto The shape of the future and the memory, de 1966, é que, para Smithson, o tempo funcionava em duas direções: para frente e para trás, como velocidades intercambiáveis e complementares. Apesar da potência conceitual de seu trabalho como manifesto, o peso da memória e do pessoal, combinados com algo como “a memória do mundo”, nunca deixa de ser percebido em seus escritos. A noção de que um lugar deixa de ser físico —tão repetida por r.s.— para passar a ser uma linha no tempo e na memória —capaz de unir o real com o imaginado— permite pensar em um estado de “irrealidade” para qualquer lugar, entre um passado infinito, que remonta à formação do mundo, e um conjunto de futuros, todos possíveis e nenhum definitivo. Para Smithson, a continuidade do espaço, com todas suas certezas e evidências, deu lugar à dimensão descontínua do tempo, essa região onde “a mente do viajante adentra e, descobrindo um progressivo estado de ‘câmera lenta’, percebe o cascalho e o pó da memória, nas fronteiras vazias da consciência”.

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8  A paisagem do Great Salt Lake, Utah

É no Grande Lago Salgado, na obra Spiral Jetty, onde toda esta argumentação que vínhamos desenvolvendo foi posta em prática, de maneira brilhante e convincente. A riqueza biológica da superfície do lago (microbactérias que colorem a água, seu alto teor de sal e sua história geológica), são aspectos com os quais Smithson se identifica desde o princípio. O caráter primitivo da paisagem, desolada e agressiva, lhe permite realizar associações imaginárias com civilizações perdidas que habitaram um continente remoto no Atlântico Norte, com o mundo dos dinossauros ou com micro-mundos —sal em um microscópio— que se comparam à própria geometria da Spiral Jetty. Chegamos aqui a um dos pontos chave: Apesar de sentir desde o princípio uma identificação absoluta com a paisagem na qual trabalha, Smithson a considera puramente instrumental, no sentido em que esta, a paisagem, será somente uma desculpa para que, a partir de sua intuição, de seu subconsciente e de sua memória, o artista seja capaz de gerar uma narrativa que justifique seu trabalho neste lugar: “A site at zero degree, where the material strikes the mind, where absences become apparent, appeals to me, where the disintegrating of space and time seems very apparent…”2.

2  “Um sítio no grau zero, onde o material atinge a mente, onde a ausência se torna aparente, e me parece, onde a desintegração do espaço e do tempo parece muito aparente…”.

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A paisagem mítica

Apesar de Spiral Jetty ser, provavelmente, a mais famosa e representativa obra de land art que se tenha realizado, resulta altamente revelador como, no livro The Collected Writings, e, concretamente, nos dois textos que giram em torno da realização desta obra, A cinematic atopia e The Spiral Jetty, estes não se detêm a explicar e detalhar as características do objeto em si. Ocupam-se de retratar o mundo imaginário, ou a “paisagem mítica”, que o artista é capaz de construir ao redor do lugar, da obra e da sua realização. Longe de deter-se na Spiral Jetty como obra, o próprio Smithson faz uma releitura dela no filme The Spiral Jetty, incorporando neste todo um mundo de referências que se apresentam em um mesmo plano de importância que a própria obra. Assim, as idéias relacionadas com a geologia, as obras anteriores do artista, a geografia, a história do lago ou as associações aparentemente mais díspares, são relacionadas ao redor desta importante peça. Inclusive a própria geometria do filme, ao enroscarse no rolo dentro da câmera filmadora, se compara à espiral de pedra do Lago Salgado, espiral que, por momentos, parece conter o mundo inteiro, tal e como nos mostra este filme. Um non-site permite que o site esteja em qualquer lugar, e a câmera realiza um zoom no interior do Museu Americano de História Natural, sobre o esqueleto de um Ornithominus Altus para, em palavras de r.s., capturar a “escala” da Spiral Jetty, que aparece na tomada seguinte. Portanto, a paisagem torna-se mais complexa à medida que se interioriza. A sequência criativa —Spiral Jetty (obra)—Spiral Jetty (filme)—Spiral Jetty (texto)— vai aumentando e modelando esta paisagem mítica que, longe de resultar caprichosa ou incoerente, emerge com a força de um verdadeiro universo unitário e poético. Esta idéia de que o lugar nunca se acaba no físico, senão que é somente uma faísca para fabricar outro lugar, imaginário, próprio e operativo, lembra algumas afirmações de Enric Miralles tais como “…viste o terreno, agora esqueça dele…”, ou “…eu nunca fiz projetos maiores que a mesa onde eu estava trabalhando…”.

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10  A paisagem genealógica Como final deste percurso, analisamos uma imagem contida no livro The Collected Writings. Os artistas trabalham com um espectro de referências, conceitos, formas e idéias que lhes são próprias, que vão ampliando com o tempo e com a aprendizagem, e que lhes permite avançar em seu trabalho. No texto Earth, Smithson explica como, em um dado momento de sua carreira, foi estimulado por um tipo de material (fotos aéreas, plantas, mapas, sistemas de grande escala, cartografias…) que lhe permitiu começar a pensar em termos de território e amplitude, exteriores gigantescos, intervenções topográficas, etc. (isto também é explicado no texto Towards the developement of an air terminal site). É interessante pensar em como este material diverso, que Robert Smithson utilizava para trabalhar, colocado em cima da mesa, poderia assemelhar-se ao conjunto de idéias, possibilidades e conceitos que, desenhados sobre um papel, refletissem essa “genealogia de interesses” que habita a cabeça de cada artista. Na página 198 do livro descobrimos este tipo de documento, desenhado durante uma conversa com o historiador Dennis Wheeler em Vancouver, em 1969. Nele, e sobre um papel quadriculado circularmente (ou seja, uma árvore concêntrica, uma seção de árvore ou cérebro), Smithson desenhava sua genealogia pessoal de interesses, obras e conceitos. Observando-o com atenção, poderemos descobrir nele todos os temas sobre os quais vínhamos tratando e que formavam o universo pessoal de r.s.: entropia, espirais, estratos geológicos, espelhos, non-sites, níveis de percepção, limites, linhas fantasmas, graus zero, pólo norte, bordas e centros, New Jersey ou o horizonte.

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Cada conceito ou obra (são o mesmo) se distribui no papel de modo que a vista do documento fala por si mesma, quase como um “livro de instruções” do trabalho de Smithson. Um catálogo com o qual imaginamos o próprio Smithson obtendo novas pistas a partir de sua manipulação, desdobrando sobre uma mesa de trabalho o que naquela ocasião levava “no bolso”. Como uma seção de acordo imediato, este diagrama resumiria em um instante um campo de ação no qual se dispõem, ao mesmo tempo, produtos e intenções, idéias e realizações. Esta superfície artificial, esta geometria de interesses convertida em nuvem genealógica concêntrica, ilustra a paisagem definitiva: a paisagem interior ou mental. Como possível “implosão” para compreender o trabalho de Robert Smithson, este desenho também serviria como representação de outro sistema, mais amplo: do raciocínio não-linear, introspectivo e também associativo, que domina o pensamento contemporâneo faz tempo.

Tradução de artigo publicado originalmente no periódico eletrônico Circo (www.mansillatunon.com/circo/circo.html), editado por Mansilla-Tuñón, Boletín Técnico 2002.98.

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Revista Noz, #3 Projeto gráfico, composição e pré-impressão: Fernando Rocha (www.fantasmatica.net) e João Doria (www.nelvoso.com). Fonte: UnB Pro, desenhada por Gustavo Ferreira. Seu desenho é derivado da Liberation Sans, de Steve Matteson da Ascender Corp. Impressão e Acabamento: ibep Gráfica e Editora, São Paulo, em Março de 2009. Papéis de miolo e capa: Couché Matte 115 g/m2, Pólen Soft 70 g/m2, Alta Alvura 240 g/m2 e 56 g/ m2. Todos os papéis fornecidos pela Suzano Papel e Celulose.

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