RODA #3

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www.violetaskaterock.com.br


Chegamos ao fim de 2013 trazendo para vocês a quarta edição da Roda. Foi um ano muito produtivo para nós, que, no começo, apesar de muitas certezas, ainda tínhamos algumas dúvidas. Mas, com o passar do tempo, nosso conteúdo foi sendo refinado e definido principalmente em função do feedback que tivemos dos leitores por conta das pautas publicadas. Neste número, a Fotografia e as Artes Plásticas continuam firmes e consolidadas. Já a Música conquistou novos e diferentes espaços em nossa publicação.

RODA #3

Lucas Santanna é a nossa capa e entrevista da vez. Coincidência ou não, ele nos conta como sua carreira também foi sendo redirecionada através do tempo. Guto Goffi é outro artista em destaque e conta que é o guardião da coleção de vinis que Ezequiel Neves lhe deixou. Maria Luiza Jobim também está nas próximas páginas e, apesar do tamanho da herança musical que carrega no nome, começa a construir um caminho muito próprio na música. Thiago Pethit é outro que bateu um papo reto e direto conosco. O ensaio fotográfico de Marcos Hermes nos mostra a fé de quem é realmente fã e Davi Calil justifica o uso de todas as ferramentas disponíveis ao expor suas obras cheias de estilo. Para fechar a última edição do ano com chave de ouro, nossa equipe selecionou ainda uma pequena lista de destaques imperdíveis em 2013. Podem nos esperar: 2014 é logo ali.

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EDITORIAL

BOB COTRIM . EDITOR DE CONTEÚDO


COLABORADORES ANNA FISCHER

Carioca de coração e por vocação, essa paulista formada em publicidade largou tudo para estudar fotografia em Nova York. Hoje, desenvolve projetos autorais e colabora com as revistas Trip, Elle e Época. Um aviso: ela não consegue ficar longe da praia e da família por muito tempo.

MÁRCIO BULK

O criador do blog Banda Desenhada é, acima de tudo, um apaixonado pela nova cena musical. Além de assinar a coluna “Acordes”, Márcio aproveitou um tempo livre para trocar ideias sobre música e outras coisas mais com Thiago Pethit, que revela para a gente num bate-papo bem descontraído.

ANA ROVATI

Fotógrafa gaúcha, formada em publicidade pela PUCRS, e nossa parceira desde o início, revelou através de suas lentes o tesouro de vinis herdado pelo Barão Guto Goffi.

RICARDO SCHOTT

Seus textos já ilustraram revistas como Bizz, Guitar Player e Billboard. Na Roda, debuta com um texto que fala um pouco de paixão e legado musical, tema bem familiar para Schott que é, antes de mais nada, um aficcionado pelo assunto.

GUILHERME SCARPA

Que tal comprar uma pipoquinha, sentar numa poltrona confortável de frente para uma big tela e assistir a um show de música? Guilherme nos conta como isso está ficando cada vez mais corriqueiro nas salas de cinema do Brasil.

MARCOS HERMES

Um dos mais bem-conceituados fotógrafos brasileiros na área musical, tem mais de 20 anos de estrada e trabalhos publicados nos principais veículos nacionais e internacionais. No ensaio, Marcos prova definitivamente que podemos ficar muito parecidos quando somos movidos pelo fanatismo.


Revista Roda #3 dezembro 2013

Editor de Conteúdo . Bob Cotrim bobcotrim@revistaroda.com.br Editor de Imagem . Daryan Dornelles daryandornelles@revistaroda.com.br Editor de Arte . Tello Gemmal tellogemmal@revistaroda.com.br

RODA #3

Colaboraram nessa edição Amanda Schon, Ana Rovati, Anna Fischer, Elson Bemfeito, Guilherme Scarpa, Márcio Bulk, Marcos Hermes, Ricardo Schott e Rogério Belorio. RODA . CONTATO Para enviar comentários, sugestões e críticas contato@revistaroda.com.br RODA . PUBLICIDADE comercial@revistaroda.com.br RODA . REDAÇÃO Para enviar sugestões e material para review redacao@revistaroda.com.br RODA . WEB www.revistaroda.com.br RODA . SOCIAL Coordenador de Redes Sociais . Alexandre Florez redesocial@revistaroda.com.br FACEBOOK.com/revistaroda Projeto Gráfico Ofício21

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EXPEDIENTE

Todos os artigos assinados e fotografias são de responsabilidade única de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.



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EDITORIAL ENTREVISTA . LUCAS SANTANNA 3x4 . DAVI CALIL A HERANÇA DE UM BARÃO BATE-PAPO . THIAGO PETHIT FOTOGRAFIA . MARCOS HERMES PERFIL . MARIA LUIZA JOBIM ACORDES . CARTA A UM JOVEM MÚSICO INDEPENDENTE COISA DE CINEMA DISPLAY . MELHORES DE 2013

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ilustração . Davi Calil


RODA #3

POR BOB COTRIM FOTOS . DARYAN DORNELLES

Lucas Santtan

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na

Diretamente da Bahia para o mundo!! Muitos já devem ter ouvido essa expressão várias vezes. Afinal, como se diz de forma enfática por aí, “baiano não nasce, baiano estreia”. Lucas Santtana é uma cara tranquilo, observador e, acima de tudo, paciente, qualidades que foram preponderantes para que sua carreira, depois de um início não muito promissor por aqui, quase que nascesse no exterior. Filho de um executivo de uma grande gravadora brasileira, ele acabou trilhando um caminho bem próprio, em que o estudo de música clássica semeou sua chegada ao mainstream artístico. Depois de integrar a banda de Gilberto Gil, Lucas se mudou para o Rio de Janeiro e resolveu que era hora de colocar em prática tudo que tinha absorvido e ir à luta. Lançou seus dois primeiros discos no pior momento da indústria fonográfica, o início dos anos 2000. Se para muitos isso seria motivo de jogar a toalha, para ele foi a motivação para entender o que realmente estava acontecendo e tirar partido da situação. Em 2006, lançou “3 sessions in a greenhouse”, um divisor de águas na sonoridade da sua música e na sua carreira, que lhe rendeu um convite para lançá-lo na Inglaterra na hora certa e mudar de vez o rumo das coisas. De lá pra cá foram mais dois discos, muitos shows e festivais na Europa. Seu mais recente trabalho, “O deus que devasta mas também cura”, recebeu uma enxurrada de boas críticas aqui e lá fora, culminando com sua inclusão nos 100 melhores de 2012 para a revista francesa “Les Inrocktibles”, uma das mais importantes da Europa. Apesar disso tudo, o sucesso no exterior não tira dele a serenidade com o seu momento artístico e muito menos o interesse pelo Brasil.



Você nasceu em que lugar da Bahia? Nasci em Salvador e vivi lá até os 16 anos. Cheguei a morar um ano no Rio com o meu pai, voltei para Salvador, depois fiquei um tempo em São Paulo e, em 1994, cheguei no Rio. O fato do seu pai ter sido da indústria fonográfica te influenciou de alguma forma? Não, porque meus pais se separaram cedo e eu fiquei morando com a minha mãe em Salvador. Só mais tarde e mais velho que eu tive papos com ele sobre o assunto, mas durante a época em que ele foi diretor artístico da Polygram eu era muito pequeno e não tinha o menor interesse nisso. Na sua infância na Bahia, o que você ouvia? Eu ouvia várias coisas, mas o que mais me marcou é que, aos 11 anos, tinha um cara que ia vender discos de vinil no trabalho da minha mãe. Ele vendia desde Michael Jackson a Pinduca, tinha de tudo. Minha mãe comprava para mim e para meu irmão. Eu lembro de voltar da escola à tarde, deitar no chão, fechar os olhos e viajar nas emoções. Certamente foi aí que despertou em mim a vontade de ser músico. Tinha algum músico na família? Tinha um irmão da minha mãe que era percussionista da Orquestra Sinfônica da Bahia. Nas minhas audições dessa época, eu comecei

a fazer associações e perceber que todas as músicas eram calcadas no mesmo fundamento: volume, harmonia, melodia e ritmo, planos diferentes que causavam a sensação de textura. Eu percebia que o mesmo baixo descendente numa música do Michael Jackson podia existir no Carimbó. Você sempre foi observador desse jeito? Eu tenho um profundo apreço pela ciência embutida nas coisas, a música para mim tem muito a ver com ciência. Eu gosto de estudar estilos, pesquisar, é quase um processo acadêmico. Eu me aprofundo bastante naquilo que me interessa no momento. Na minha carreira isso atinge os dois lados, o artístico e o empresarial. Em que momento a música ganhou espaço definitivo na sua vida? Entre os 15 e os 19 anos, eu comecei a estudar música clássica, tocava flauta transversal na Orquestra Jovem de Salvador. No meio do ano tinham os cursos em Campos do Jordão, São João del-Rey e Ouro Preto, todos eles voltados para a música clássica. Foram quatro anos de dedicação total a este universo. Eu lembro bastante dos concertos de música experimental às segundas-feiras na reitoria da Escola de Música da Bahia (UFBA). Lá que eu comecei a identificar uma característica muito marcante

“Eu tenho um profundo apreço pela ciência embutida nas coisas, a música para mim tem muito a ver com ciência. Eu gosto de estudar estilos, pesquisar, é quase um processo acadêmico.”


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“Acabei aprendendo que um disco tem um tempo de vida na sua alma e na sua cabeça.”

no meu trabalho, que é a busca por timbres diferentes. Depois de fazer a canção, eu fico tentando encontrar a maneira certa de vesti-la. Você começou profissionalmente na música clássica? Desde os 14 anos eu já tocava em casamentos e formaturas, mas, como músico profissional, meu primeiro emprego foi na banda do Geronimo, um artista popular muito conhecido na Bahia. E como apareceu o Gilberto Gil na sua carreira? Por conta da amizade do meu pai com ele e o Caetano, eu comecei a frequentar a casa do Gil em Salvador. Numa dessas oportunidades eu toquei informalmente, o Gil acabou me convidando para gravar no disco “Tropicália 2”, que ele e o Caetano estavam gravando. Participei de alguns shows desse disco e, no ano seguinte, o Gil me chamou para participar do disco e dos shows do “Unplugged MTV”. Acabei vindo morar no Rio e fiquei de vez. Nessa época já existia o desejo de lançar um trabalho autoral? Todo mundo que toca um instrumento melódico precisa aprender um instrumento harmônico. Eu já tinha começado a esmiuçar o violão para entender mais de harmonia, pois as composições do Gil são extremamente complexas e eu sentia a necessidade de entender melhor aquilo para poder contribuir mais dentro da banda. Nesse

processo, passei a compor algumas coisas e, num sarau na casa do Chico Neves, produtor de discos, ele me perguntou se eu queria gravar minhas músicas. Três anos depois nasceu “Eletro Bem Dodô”, meu primeiro disco. Demorou três anos? Na verdade o que aconteceu é que os trabalhos de outros artistas eram mais urgentes para o mercado, como Lenine, Arnaldo Antunes e Paralamas. O meu foi ficando para depois, era normal que isso acontecesse, e isso teve dois lados. O bom foi que eu pude acompanhar de perto no estúdio a gravação desses discos e aprender muito com o Chico, o ruim é que, quando o “Eletro” saiu, o show que estava fazendo já era quase todo do segundo disco, o “Paradas de Lucas”. Acabei aprendendo que um disco tem um tempo de vida na sua alma e na sua cabeça. Esses dois primeiros trabalhos são bem diferentes, não? Todos os cinco são diferentes entre si, isso é uma característica minha. Meus interesses musicais vão se modificando com o tempo, o “3 sessions in greenhouse” é um disco de dub, na época eu frequentava umas festas que rolavam nesse estilo. Já o “Sem Nostalgia” é um disco todo feito de voz e violão. Repetir uma fórmula, por mais que tenha dado resultado, não me estimula artisticamente.


Como foi estar no meio do tsunami que atingiu a industria fonográfica? No início eu não tinha essa percepção toda, era tudo um pouco empírico, sem uma direção certa, na base da intuição mesmo. Eu fui um dos primeiros a disponibilizar os discos de graça na internet. Naquele momento, fazia mais sentido para mim que o maior número de pessoas possível tivesse acesso ao meu disco e que isso se revertesse de alguma forma para a minha carreira. Começaram a olhar para o palco com mais carinho do que para o estúdio? Acho que isso está acontecendo agora, na época do “Parada de Lucas” o mercado de shows não era estruturado, eu cheguei a pensar em fazer outra coisa porque quase não tinha show, pensei até em trabalhar num estúdio. Nesse aspecto, o “3 Sessions” é uma grande virada na minha carreira. Como ele foi feito com dinheiro de um edital público, me propus a estender o trabalho de outras formas e acabei criando um blog, o “Diginois”, em que, além de estabelecer uma comunicação direta com o público, era possível baixar as bases das músicas e interagir com todo o conteúdo do disco. Foi fundamental para os outros e para que eu mesmo entendesse o meu trabalho. Mas em que momento o Brasil ficou pequeno ou grande demais para você? Meu lance lá fora aconteceu da forma mais casual possível. Quando saiu o “3 Sessions”, eu achava que o disco tinha um tipo de escuta bem acessível na Europa. Lá, as gravadoras estavam investindo num crossover musical que misturava eletrônica com coisa tropicalistas, então eu resolvi enviar o disco para eles ouvirem. Em 2010, fui fazer uma feira de música em Belo Horizonte e um inglês que trabalha com alguns selos europeus estava lançando um selo próprio e me convidou para lançar o “Sem Nostalgia” por lá em 2011. A receptividade do disco foi incrível. Esse disco tinha repertório em inglês? Por coincidência, a maioria das letras de disco era em inglês. Tinha 3 músicas que eu fiz com o parceiro Arto Lindsay e mais duas que eu compus. Como era um disco voz e violão, tipo uma bossa-nova com pegada eletrônica, o disco teve uma audiência enorme. Tudo estava no lugar certo na hora certa e fez sentido.



Como foi ir pra estrada num lugar distante e desconhecido? Começamos com 5 shows em Londres, sendo o primeiro no Barbican, com lotação esgotada. Depois, em abril, voltamos para fazer mais 12 shows e, em novembro, mais 15, em cidades diferentes. Lá, os curadores trocam informações e uma coisa foi puxando a outra. Cada show bem comentado é o passaporte para outros. Como é a estrutura do show que você apresenta na Europa, é igual a dos shows brasileiros? Criei um formato de trio para os shows europeus, pensei em ter mobilidade para circular bastante. Usei violões com pedais, um monomi/ controlador midi. O Bruno Buarque desenvolveu um sistema para tocar bateria num MPC usando um bumbo. Nós fomos inventando um formato novo. Isso interferiu muito na sonoridade? Acabou mudando o som, o meu empresário diz que, pela primeira vez, por causa do formato, todos os discos se unificaram e ficaram com a mesma sonoridade. Eu busco reproduzir no palco o mais próximo do disco que eu conseguir. Tivemos que rebolar para alcançar isso e, quando não conseguíamos, acabávamos limando a música do roteiro. Os discos acompanharam a mesma trajetória dos shows? Em março de 2012, nós lançamos “o deus que devasta mas também cura” no Brasil, que na Europa só sairia em outubro. Só que, quando eu disponibilizei o disco aqui, os jornalistas estrangeiros que já acompanhavam a minha carreira baixaram o disco e isso criou um problema para a gravadora de lá, pois eu ainda iria pra lá fazer shows do “Sem Nostalgia”. Eu tive que tirar o disco para não quebrar o trabalho deles. Eles argumentaram que na Europa é diferente daqui, que você dá o disco de graça e ganha com shows, é outra cultura. Mas como você resolveu esse problema? Eu tive que criar um outro site e disponibilizar o acesso ao disco aqui, somente para computadores com IP brasileiro. Quem estivesse fora não conseguia baixar. Criamos o lucasantanna.com para o exterior, com comercialização pelo iTunes e pela Amazon.


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“Minha intenção é descolar de mim o selo de “artista brasileiro” que você acaba ganhando...”

Por falar em Amazon, como fica o mercado americano? As críticas e as matérias nos EUA são as melhores possíveis. A Rolling Stones deu quatro estrelas para o disco, a Downbeat publicou uma excelente resenha, mas isso não é suficiente para você entrar pela porta da frente. Apareceram algumas distribuidoras interessadas, mas o disco acabaria perdido num mar de outros discos e sem nenhuma visibilidade. Prefiro ter um pouco mais de paciência para entrar lá, estamos negociando com um grande selo francês que irá lançar o disco no resto da Europa e que, provavelmente, vai ter interesse em colocar o produto no mercado americano. O comércio de discos de vinil está mais aquecido do que nunca e voltou a ser uma plataforma importante para a música. Como você vê isso? Eu tenho pelo vinil um sentimento de voltar no tempo, um tempo onde as pessoas ouviam um álbum, pelo menos um lado inteiro do disco, sem interrupções e com contemplação, quase que uma leitura, isso é muito significante para a música. Tirando o CD, que realmente ficou obsoleto, os outros suportes, analógicos e digitais, se complementam.

Já se considera um artista consolidado no exterior? Minha intenção é descolar de mim o selo de “artista brasileiro” que você acaba ganhando, apesar de tocar para um público gringo. Quando eu toco num festival desses, preencho a cota de artistas brasileiros no evento. Nenhum outro compatriota irá participar, isso acontece com os africanos e com todo tipo de música de fora. Meu esforço é para, cada vez mais, ter o meu próprio nome como identidade maior do som que eu faço. Todo esse respaldo internacional que você está tendo influencia a sua trajetória aqui no Brasil? Ainda existe um deslumbre muito grande pelo sucesso no exterior. Você perdeu o entusiasmo pelo Brasil? Pelo contrário. Eu tenho muito mais interesse pelo Brasil do que pelo exterior. A questão é que a resposta ao meu trabalho veio bem mais rápida de lá. Aqui, o problema maior é a falta de rádios como as rádios públicas europeias, que formam o ouvido da classe média. Ainda acho o rádio o maior veículo de divulgação que pode existir para a música. Vejo o Brasil num momento incrível, cultural e economicamente falando. Aliás, eu ganho muito mais dinheiro aqui do que lá fora. Vivo muito bem no Rio e no meu país.


Capa do disco “o deus que devasta mas também cura”

Lucas Santanna, ontem e hoje


RODA #3

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3x4 DAVI CALIL

Nome: Davi Calil Data de nascimento: 27/09/1979 Cidade onde nasceu: Mogi das Cruzes Cidade onde cresceu: Guararema Cidade onde vive: São Paulo Uma cor: Amarelo Cádmio Um trabalho de alguém da sua área que te marcou: “Saino a Percurá” do artista mineiro Lelis Principais ferramentas de trabalho: Guache, tinta óleo, cavalete, pincéis e o bom e velho Photoshop Qual o lugar em que gostaria de ver o seu trabalho exposto: Uma pintura gigante em alguma fachada de prédio em SP Quem voce convidaria para ser seu modelo vivo: Camille Claudel Quem voce gostaria que fizesse um retrato seu: Van Gogh, com certeza o Van Gogh Se voce pudesse levar somente uma imagem para Marte: Uma foto com meus amigos


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Quando você decidiu seguir esse caminho profissional? Quando tinha uns 10 anos, ganhei um concurso de HQ em Guararema e o prêmio era visitar o estúdio do Mauricio de Sousa. Foi a primeira vez que me deparei com um estúdio cheio de pranchetas e adultos desenhando nelas (trabalhando, rsrs). Acho que nunca tinha visto um adulto que gostava de desenhar, até aquele momento, me parecia coisa de criança. Dali para frente, toda vez que pensava numa profissão me lembrava daquela cena e dizia que iria desenhar HQs. Eu já gostava de desenhar bem antes disso, mas a recordação mais antiga que tenho a respeito de escolher essa profissão foi nessa visita. Nunca cheguei a trabalhar diretamente no estúdio do Mauricio de Sousa, mas a inspiração veio daí. Houve alguma mudança radical no seu trabalho durante essa sua trajetória? Sim, quando criança meu desenho era caricato e estilizado. Fui ficando mais velho e coloquei na cabeça que precisava fazer um trabalho realista, queria fazer algo que fosse quase fotográfico e me matei por anos pra tentar desenvolver um trabalho realista. Foram anos bem chatos, não fiz um desenho que prestasse, tudo era duro e sem expressão. Me mudei para São Paulo, comecei a trabalhar com publicidade (que adora desenhos duros e sem expressão), fui dar aulas de desenho e levar mais a sério meus estudos de pintura. Com 24 anos, estava completamente frustrado com tudo que fazia, detestava o resultado do meu trabalho, não suportava conversar com os diretores de arte de agências de publicidade e estava me entupindo de aulas de desenho pra não ter que pegar mais ‘freelas’. Juntei uma grana, dei um basta em tudo e fui morar em Londres. Passei quase dois anos fora, visitei todos os países que pude da Europa, depois passei pela Turquia, Iran, Índia e Tailândia. Voltei para o Brasil quando gastei todo o dinheiro que tinha, só havia sobrado o da passagem de volta. Então recomecei minha carreira do zero. Fiz um portfólio novo, voltei a fazer trabalhos mais estilizados, pintar de forma mais solta e expressiva, consequentemente, peguei amor pelo que eu fazia. Nunca mais quis fazer um desenho realista fotográfico.



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Seus trabalhos são desenvolvidos dentro de uma técnica específica ou você se utiliza de todos os recursos disponíveis em prol da sua arte? A criação surge no desenho, daí vale tudo: caneta Bic, Cintiq, lápis, giz, o que for. Para pintar eu uso basicamente guache ou tinta óleo, às vezes aquarela, mas nunca me empolgo em trabalhar com técnicas mistas. Conheço artistas que se viram muito bem misturando acrílica, guache, lápis de cor, nanquim, colagem etc..., mas isso nunca funcionou muito pra mim. Tenho a impressão de que, se você domina a maior parte dos aspectos de uma técnica de pintura, ela se torna autossuficiente, você tem ali todos os recursos que precisa para expressar a ideia que está na sua cabeça. Sempre fui um nerd de técnicas de pintura, isso me pautou por muito tempo. Existem artistas incríveis que misturam tudo que encontram pela frente e conseguem fazer trabalhos muito bacanas. Admiro esses caras, mas essa não é a minha praia. Até que ponto a tecnologia pode influenciar no resultado do seu trabalho? Poxa, a tecnologia me influência em dois aspectos diferentes. Primeiro com a internet, vejo uma quantidade monstruosa de artistas incríveis todos os dias, mostro meus trabalhos para milhares de pessoas e recebo os mais diversos feedbacks sem sair de casa, isso é uma grande influência. A outra forma de influência da tecnologia é com o Photoshop e, mais recentemente, com uma Cintiq. Desenho muito no Photoshop, não finalizo quase nada no computador, mas crio muito nessa plataforma, é mágico, costumo dizer que o Photoshop te dá poderes divinos (rsrs), você pode fazer o que quiser ali dentro, é como se fosse um videogame pra mim. Depois que amadureço uma ideia no Photoshop, passo para a tela ou para o papel e dali pra frente é na tinta mesmo. Quais são seus temas preferidos, aqueles que você mais gosta de trabalhar? Gente, pessoas de todos os sexos, cores e idades, com uma preferência por velhinhos. Gosto também de árvores (quanto mais tortas melhor) e da cidade de São Paulo. Atualmente,

são os temas mais recorrentes. Tenho feito algumas HQs onde abordo temas mais fictícios, humor negro ou putaria. Mas, quando penso em pintura, sempre caio nos retratos, paisagens e na cidade de São Paulo. Eu cresci no interior, cheguei aqui com 18 anos, me adaptei, mas nunca me acostumei 100% com São Paulo, sempre me surpreendo com a feiura de certos cantos da cidade e de como ela fica bonita à noite, isso me influencia constantemente. Costuma trabalhar várias peças ao mesmo tempo ou prefere começar e terminar um projeto isoladamente? Sim, principalmente quando produzo HQs. Se não crio uma espécie de linha de produção, perco a unidade do trabalho. Meu desenho muda muito se trabalhar uma página por vez do início ao fim. Fica melhor se trabalho várias páginas ao mesmo tempo e resolvo a etapa do esboço, depois a do desenho e, por fim, a da cor. Quando vou pintar a óleo também acabo trabalhando mais de uma tela ao mesmo tempo porque, muitas vezes, você tem que aguardar um ou dois dias para que a tinta seque, daí intercalo a produção entre mais de uma tela, assim pinto uma enquanto a outra seca. Que outros artistas você acompanha com interesse? São tantos hoje em dia que fica difícil de dizer. Tenho meus pintores favoritos, ilustradores favoritos, quadrinistas favoritos, grafiteiros favoritos, diretores favoritos, animadores favoritos... Tento acompanhar o trabalho de todos eles. Vou citar aqui o Lelis e o Gonzalo Cárcamo porque conheço esses dois pessoalmente e ambos exercem uma influência direta no meu trabalho e na forma como conduzo minha carreira. Arte e comércio podem conviver sem que uma interfira na outra? Complicado isso, porque minha opnião a esse respeito tem mudado muito com o passar do tempo. Atualmente eu acredito que você é obrigado a aprender a fazer bem as duas coisas. Tenho dois exemplos na minha cabeça quando penso nisso. Van Gogh e Picasso, ambos eram

incrivelmente talentosos e competentes no que faziam, ambos entraram para a história da arte como os grandes nomes de seu tempo, mas um sabia vender o seu trabalho e o outro não, um se matou aos 37 o outro viveu até os 91 produzindo até os últimos dias de vida. Não é todo mundo que tem talento para ser vendedor, eu certamente não tenho, mas me esforço o tempo todo para aprender. Acho que todo bom artista tem que aprender a vender seu trabalho, isso vai te trazer qualidade de vida, o que possibilitará que você produza mais e melhor. Existem artistas com muito potencial, mas quase nenhuma capacidade de negociar seu trabalho, divulgar sua produção e acertar seus preços. Com o tempo isso prejudica a carreira do cara, que acaba se frustrando e arrumando um emprego fixo. Qual o verdadeiro preço da sua arte? Eu não produzo por um preço específico, desenho e pinto porque tenho essa necessidade, me sinto mal se não produzo. Minha motivação vem daí, isso é o que me leva a produzir. Agora, para que eu tenha um estúdio, material, consiga viajar, fazer cursos, comprar livros, preciso de dinheiro e isso me obriga a colocar preço no que eu faço. Existem formas diferentes de fazer orçamentos. Se é pra publicidade eu tenho uma forma de cobrar, se é editorial de livro ou revista tenho outra, se é uma tela de um metro e meio por dois que pintei a óleo, tenho outra forma de calcular o valor. Isso não quer dizer que as pessoas vão pagar exatamente o valor que eu pedir, mas pelo menos sei chegar no quanto eu acho justo, daí pra frente vai da capacidade que cada um tem de negociar. Tenho descendência Libanesa, meus antepassados eram negociantes por natureza, prefiro acreditar que está no sangue, mas ainda estou longe de ser um bom vendedor.


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POR RICARDO SCHOTT FOTOS . ANA ROVATI


A heranรงa de um Barรฃo


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Não bastava ser produtor. Ezequiel Neves (1935-2010), jornalista musical de quatro costados, amante do jazz, do rock e do blues, podia até se definir como “uma madrasta” para o Barão Vermelho, grupo que adotou desde o começo da carreira. Mas era mais. Foi quase aquilo que chamam de “pãe”, pai e mãe, para a formação que reuniu Mauricio Barros (teclados), Guto Goffi (bateria), Roberto Frejat (guitarra), Dé Palmeira (baixo) e o frontman Cazuza (vocal). Músicos saíram e entraram na banda, e Ezequiel continuou desempenhando o mesmo papel de tutor do grupo em estúdio. “Ele foi o responsável pela profissionalização do Barão Vermelho”, recorda Guto, hoje detentor de toda a coleção de discos do padrinho Ezequiel, guardada em sua escola de bateria e percussão, Maracatu Brasil, em Laranjeiras. O lote varia entre o soul, o jazz, o rock, o blues e a MPB, ganhados ou comprados por Ezequiel durante várias décadas como jornalista, executivo de gravadora ou produtor. Esses LPs hoje são o centro das atenções no evento DiscoZeca. Realizado todas as sextas-feiras na Maracatu Brasil, traz músicos na função de DJs, promovendo audições coletivas de discos de vinil. Nomes como o cavaquinista Henrique Cazes, o baterista Robertinho Silva e o percussionista Laudir de Oliveira já participaram de algumas dessas noites. “Às vezes acontece de algum músico mostrar um álbum do qual ele participou, e contar histórias. Depois o DJ entra no nosso estúdio e faz um som. Pode ser com qualquer instrumento, até caixinha de fósforos, reco-reco...”, brinca o baterista. “A ideia é resgatar o hábito de ouvir discos em grupo. Antigamente, era raro você ouvir um disco sozinho. Hoje, vejo minha filha adolescente e as amigas dela... É cada uma com seu tocador de MP3. Elas até compartilham, porque uma manda MP3 para a outra. Mas não é a mesma coisa”. Justamente por Ezequiel receber discos de montão, seu apartamento, num prédio na Ladeira Saint Roman, subida da favela Pavão/ Pavãozinho, em Copacabana, respirava música. Só que, ao contrário das coleções de nomes

como Ed Motta, obsessivamente cuidadas, a do crítico precisava de reparos. “Acabaram sobrando só cerca de 1.700 discos. Inúmeros outros LPs acabaram perdidos. Estavam com as capas todas comidas por cupins. Peguei o que consegui salvar e ainda falta limpar muitos álbuns. Conforme a gente vai promovendo audições de soul, de jazz, vai limpando alguns”, diz Guto, levantando para pegar duas cópias de um dos álbuns que mais sofreram com os poucos cuidados, “The man with the horn” (1981), do jazzista Miles Davis, grande ídolo de Ezequiel. “Esse eu precisei comprar outro para repor. A capa ficou gasta por causa dos cupins”, aponta. Ali mesmo, no quintal da Maracatu Brasil, rolam as tais reuniões, animadas por duas pick-ups da Technics. Cazuza, antes de descobrir-se poeta e músico, já era conhecido de Ezequiel, com quem dividiu mesas na gravadora RGE - abrigada no guardachuva da Som Livre, companhia criada pelo pai do cantor, João Araújo. Como crítico musical, fazia parte do imaginário rocker dos demais integrantes da banda, da mesma maneira que, lá fora, nomes como Lester Bangs e Tony Parsons eram lidos por jovens candidatos a roqueiros. “Líamos seus textos na SomTrês, na Rock, a História e a Glória, na Pipoca Moderna. Ezequiel tinha um gosto muito refinado e muito humor para escrever. Era um crítico no sentido agudo, que faz muita falta. Sempre soube que existia música boa e música ruim, de mercado. Era um jornalista provocativo com os artistas bundasmoles”, brinca o baterista. A história conta que Ezequiel apaixonou-se pelo Barão ao ouvir uma fita demo da banda no escritório do produtor e empresário Leonardo Netto, em 1982. Leo pensava em fazer uma coletânea de bandas novas para o selo Hot, que dividia com o jornalista Nelson Motta. Ezequiel, maravilhado com o que ouvira, desapareceu com a fita do Barão no bolso e levou-a à Som Livre - começaria aí uma luta com o próprio pai de Cazuza, João Araújo, que não queria contratar a banda. O crítico musical, que já trabalhara anteriormente com bandas como Made In Brazil, venceria a

batalha - e iniciariam aí as reuniões do Barão em sua casa, para curtir discos de nomes como Rolling Stones, Nina Simone, Miles Davis e outros preferidos de Ezequiel. “Ele adorava Stones, até mais do que Beatles. Também curtia Alice Cooper, David Bowie, Lou Reed... Achava Elvis Presley o máximo. Gostava da nata, prestava atenção no que de bom o jazz, o rock e o blues ofereciam. E gostava de gente que transgredia, não gostava muito do certinho”, afirma o batera. Uma curiosidade é achar “Mistura Brasileira”, álbum de Agepê (1984), clássico do samba manhoso e romântico, em meio à montoeira de discos. “Ih, ele adorava o Agepê, especialmente aquela música do ‘quero te pegar no colo, te deitar no solo e te fazer mulher’ (Deixa eu te amar)”, revela Goffi. Grupos pouquíssimo conhecidos no Brasil, como os póspunks setentistas do Au Pairs, também estão na coleção. O contato com Ezequiel materializou o mundo que os barões conheciam das páginas das revistas, ali na sala da casa dele. “Nas reuniões, ficamos sabendo que 80% das histórias que ele contava nas matérias eram inventadas”, divertese Guto, lembrando em especial de uma matéria da SomTrês sobre uma suposta viagem do Barão para Nova York. “Isso foi antes de a gente estrear em disco. O Ezequiel falava que fomos comprar equipamento e que o Cazuza tinha trazido vários microfones, porque ele usava microfone como se fosse isqueiro descartável”, brinca. “Ele falava também de festas nos Estados Unidos, para as quais ele teria ido e encontrado os Rolling Stones. O Ezequiel se sentia parte daquele sonho de rockstar”. Estúdio e sala do apartamento acabavam se confundindo - produções e encontros viravam verdadeiras aulas. “O Ezequiel tinha um bom gosto absurdo e confiávamos nisso. Ele moldou nossa visão de música. Dizia que o rock nacional se dividia em antes e depois do Barão, era como se tivéssemos lhe dado uma injeção de ânimo”.




Tanta animação nas reuniões - comumente abastecidas com baseados - dava, às vezes, em loucuras do mestre, em casa ou no estúdio. “A janela do apartamento dele tinha vista para a favela. Uma vez, ele estava tomando cerveja no gargalo. Acabou de beber, pegou a garrafa e... (faz um gesto, como se jogasse algo pela janela). Reclamamos e ele respondeu: ‘Pobre adora lixo!’”, lembra o baterista. Mesmo com o clima liberal, a urgência dos garotos, em vários momentos, se chocava com a experiência do produtor. “Quando a gente começava a sofisticar muito as músicas, ele falava: ‘Isso tá uma penteadeira de bicha, isso aqui não tá com nada’. Ele também tinha peito de pegar uma letra do Cazuza e falar que estava ruim. Dava livros a ele: ‘Leia isso aqui, você vai melhorar’. E não, os garotos não tentavam influenciar o mestre. “Nem daria, porque ele já tinha todos os discos. Ele às vezes destruía coisas das quais a gente gostava. Curtíamos rock progressivo e ele falava: ‘Isso é uma merda, é rock regressivo!’”, lembra. Com o tempo, o Barão sofreu mudanças no line-up. O primeiro a abandonar a formação

Ezequiel Neves (segundo à esquerda), membro honorário e eterno do Barão Vermelho.

clássica foi Cazuza, em 1985. Depois saíram o tecladista Mauricio Barros (readmitido posteriormente, como músico de apoio) e o baixista Dé, substituído inicialmente pelo ex-A Cor do Som Dadi, depois pelo carismático Rodrigo Santos. Os acompanhantes Fernando Magalhães (guitarra) e Peninha (percussão) viraram ‘oficiais’. Ezequiel continuou firme no papel de produtor e, num ato de amor de todas as partes envolvidas, permaneceu produzindo Cazuza. O letrista e Frejat também continuaram a parceria após o primeiro estrear solo. Num meio dado a crises de ego, uma verdadeira lição de tolerância e amizade, em meio às escolhas individuais de cada um e a possíveis choques. “No Barão, fomos percebendo que tudo o que construímos foi feito junto. Teve participação de todo mundo. Temos uma gratidão um com o outro que vai ficar a vida toda”, animase Guto. “A maioria das pessoas perde os amigos de adolescência e infância, e banda é um lugar onde se compete muito, onde há várias disputas de espaço. O fato de termos resolvido parar a atividade intensa foi para preservar esse relacionamento. Mesmo

quando tivemos motivos enormes para brigar, percebemos que a amizade era maior que isso”. Com o recesso do Barão, Guto dedica-se ao lado de professor e empresário na Maracatu Brasil. E também mostrou recentemente sua própria visão de rock e música pop em seu primeiro CD solo, Alimentar, lançado de forma independente. No momento em que optou por montar a escola, não escapou de conflitos internos. “Na minha cabeça, era como se meu momento musical já tivesse passado e estivesse migrando para outro negócio. Sofri muito no começo, mas quando descobri que era isso, passou. Tenho muito orgulho desse lugar ter dado certo”, anima-se. Guto permanece fã de vinil em meio ao hábito do MP3 e de formatos digitais mais recentes, como o Flac. “O som do MP3 é caidão. Vinil para mim era obra de arte, todos os discos do Barão foram feitos com esse sentimento, por mais que estivéssemos dentro de uma grande gravadora”.


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Batepapo

com Thiago Pethit


24/10/2013 08:08 Márcio Bulk Mocinho, então, se lembra daquele nosso papo? Que tal uma entrevista pra RODA? Bora falar a respeito do clipe, [David] Bowie, Lou [Reed], Velvet [Underground], decadência e luxúria? Pensei em fazer por aqui mesmo, pelo bate papo. Topa? Já estou mandando a primeira pergunta: Seu clipe “Moon” está tendo uma repercussão enorme, seja pela ousadia, seja pelo apuro técnico. Como surgiu a ideia de fazê-lo e como você o viabilizou?

25/10/2013 13:58 Pethit Thiago vamos lá, dando inicio à partida. Eu e Heitor Dhalia já vínhamos sondando um ao outro para fazermos um clipe desde quando lancei o “Estrela Decadente”. A coisa engatou pra valer quando, separadamente, tivemos o mesmo insight. No fim do ano passado, reli as peças do Jean Genet, revi alguns filmes dos anos 90, como “My Own Private Idaho” [“Garotos de Programa”, dirigido por Gus Van Sant], que tratavam de personagens e histórias absolutamente marginais, de um jeito poético e quase elogioso. Uma espécie de ode aos marginalizados, assim como “Drugstore Cowboy” [também de Gus Van Sant]. Fiquei obcecado com a ideia de fazer um clipe que envolvesse sexualidade, submundo e garotos de programa. Quando nos encontramos, em janeiro deste ano, a primeira ideia que Heitor sugeriu foi exatamente essa e, então, soubemos que tinha material para um videoclipe ali. Fizemos alguns brainstormings, levantamos cenas, personagens, e fui juntando tudo em um roteiro, que depois foi reescrito pela Vera Egito para se adequar a bom tempo e budget para filmagem. Entrei com uma pequena parte da produção e o Heitor, junto com a Paranoid BR, entrou com outra. Assim viabilizamos o vídeo em conjunto.

25/10/2013 14:49 Márcio Bulk Você já vinha flertando com a sexualidade, o homoerotismo e a marginalidade desde o lançamento do disco “Estrela Decadente”, mas com “Moon” você tornou essas questões bastante explícitas. O que o atrai nesse universo? Ao mesmo tempo que deve ter sido muito instigante se lançar nesses temas, imagino que também tenha ficado um pouco vulnerável, não?

25/10/2013 15:30 Pethit Thiago O que mais me atrai é pensar que existem outras possibilidades. Que a vida não precisa ser somente aquilo que entendemos pelo senso comum: o julgamento que se faz na capa da Revista Veja ou a realidade que vemos nas novelas da Globo. Existem outros mundos! Outras maneiras de viver! Outros modelos a serem seguidos, ou no mínimo, conhecidos. Abordar esses temas é um jeito de refletir sobre isso. E também de dar voz à minha personalidade e criar espaço para a minha própria existência no mundo. Eu diria até que é um instinto de sobrevivência. Se eu não criar possibilidades para existir como eu sou, certamente não serão os outros que o farão, pois não é conveniente. Eu sinto que a conveniência e a mediocridade podem ser muito massacrantes, especialmente para um artista: produtos, modelos, mercados, padrões de consumo... Lido com isso o tempo todo. E acho que não é possível discutir essas questões sem que eu me exponha e fique vulnerável às crenças desse mundão. Preciso expor minhas ideias, minha vida, meu imaginário, sem censuras. Eu me arrisco e, infelizmente, é um risco de verdade. Por todos os lados. Existem os que vão considerar aquilo ofensivo, os outros que vão dizer que é glamurizado ou polêmico, para minimizar uma discussão, e, por sorte, tem aqueles que estão abertos às possibilidades que apresento. É ai que vale a pena. No caso dos garotos de programa, mais do que só falar sobre a sexualidade, o que mais me cativa é a ideia de inversão de valores sociais. A inversão do que é objeto, do que é fetiche e do que é o capitalismo. Diferentemente


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da prostituição feminina que é de natureza machista, dado que a mulher na nossa sociedade é o sexo frágil e se torna objeto e fetiche para ser manipulada pelo cliente homem, no universo dos garotos, a questão pode ser completamente outra. Pode ser um jogo cínico e tão individualista que chega a ser anárquico. O homem é o sexo forte e está de igual para igual com outro homem, se ele ganha dinheiro e é “fetichizado”, talvez isso o torne mais forte ainda nas leis da natureza sexual. O que diz que ele está sendo mais objetificado ou mais manipulado doando sexo do que doando horas de trabalho engravatado num escritório, trabalhando para um patrão conservador? E isso é só um dos motes. Existem muitos outros a serem discutidos dentro desse tema que foge do feijão com arroz. 25/10/2013 15:32 Pethit Thiago Adendo: E quando o homem se torna objeto de uma mulher, rica e poderosa, como acontece numa pequena cena do clipe, novamente vemos uma inversão de valores. Agora, é a mulher que detém o poder. 25/10/2013 16:12 Márcio Bulk Você chegou a receber críticas ou ofensas por conta do clipe? Em tempos de Felicianos e Bolsonaros, tudo é possível...

25/10/2013 16:48 Pethit Thiago Olha, por incrível que pareça, ofensas mesmo foram pouquíssimas! Mesmo entre os comentários do Youtube. Talvez devido à censura para menores de 18 anos, houve pouquíssimas críticas ou abordagens maldosas. O que senti pra valer desta vez foi um grande silêncio por parte de muitas pessoas. Como se falar mal ou falar bem pegasse mal. Seja porque a família está no Facebook, ou porque os amigos ficariam chocados, muitas pessoas me escreveram dizendo que gostaram do vídeo, mas não poderiam compartilhar. Isso pra mim é o começo de uma conquista, pois tocar nestas questões, de maneira tão explícita, dentro de uma realidade cada vez mais careta e, ao mesmo tempo, cada vez mais politicamente correta, faz com que o incômodo muitas vezes fique velado ou cochichado em confidência para os mais próximos. Pelo medo de expor a própria opinião e ser confrontado. Na dúvida, o silêncio. Ao mesmo tempo em que isso mostra o impacto que o vídeo pode ter, escutarmos esse silêncio é muito intrigante.

25/10/2013 16:52 Márcio Bulk Boa parte de seu público é gay. Ao abordar esses temas imagino que, de certo modo, você acabe se tornando uma espécie de modelo ou ícone para esse público. Como encara isso?

25/10/2013 17:00 Pethit Thiago Na verdade, o meu público ainda é formado mais por meninas heterossexuais do que por meninos. Inclusive a maior parte dos compartilhamentos do vídeo, e das estatísticas de visualização, é feminina. Mas os meninos, em sua maioria, sim, são gays. Isso é o natural. Olhe para a nova safra musical, seja mainstream ou alternativa: o público masculino heterossexual não assimila direito nenhum cantor que não cante à cultura do macho pegador ou o rock honestão e branco, cervejeiro e misógino. Resta a opção do protótipo do músico cabeça, voz e violão, o samba e a tradição, sem qualquer charme. Sensibilizou ou


rebolou um pouquinho, você está fadado a um público gay friendly. Sobre ser um ícone gay, eu gosto da ideia de ser um ícone que tem sexo. Anjinhos caídos do céu e assexuados não me interessam. 25/10/2013 17:02 Márcio Bulk Todas essas questões somadas ao clima de cabaré de algumas músicas do “Estrela Decadente” e ao tom de sarcasmo das letras remetem muito ao David Bowie dos anos 70. Ele foi uma referência para esta sua fase?

25/10/2013 17:23 Pethit Thiago O Bowie é sempre referência. Na verdade, o Bowie pra mim foi uma via de mão dupla. Porque comecei explorando todos esses aspectos de um ponto de vista pessoal e particular demais, sem pensar sobre a obra dele. Era pessoal demais para conseguir transportar aquilo que estava me passando, para encontrar similitudes e referências. E isso foi interessante porque quando tudo começou a ganhar forma é que comecei a assimilar não só a relação do meu trabalho com a influência do Bowie, mas também a entender o trabalho dele sob outra perspectiva. Sacar o quanto ele sempre esteve antenado com seu próprio tempo e com o mundo, de um ponto de vista que, por mais que eu conhecesse muito a sua obra e já tivesse pensado sobre isso mil vezes, eu não tinha entendido ainda. Ele está sempre, sempre, sempre falando sobre o mundo diante dele. Isso é o que mais me dá tesão no meu trabalho e no trabalho dos outros artistas, essa possibilidade de olhar em volta e criar uma linguagem para um momento específico. É nesse paralelo entre falar do aqui e agora de forma tão legítima e estar criando algo atemporal que reside a genialidade dele. E acho que não é à toa que ele “ecoou” os próprios fantasmas dessa mesma fase 70’s no último disco e vídeos. O mundo anda bem parecido com aquilo que se viveu lá atrás.


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25/10/2013 20:02 Márcio Bulk O modo de lidar com a carreira, a preocupação com a própria imagem, o design dos discos e as questões estéticas dos shows... Essa meticulosidade toda lembra bastante Bowie...

25/10/2013 20:08 Pethit Thiago Dá quase pra dizer que eu tenho TOC – Transtorno Obsessivo Compulsivo. Eu sou virginiano. Gosto de cada detalhe. Mas acho que não é só isso. Sinto cada vez mais que a música é, para mim, o canal de comunicação para chegar a mais lugares. É uma espécie de desculpa perfeita para criar imagens, vídeos e outras linguagens que extrapolam a música em si. É como se só fosse possível ver o quadro completo, entender o discurso por inteiro, quando se tem todos esses elementos. Tem que olhar de longe para somar tudo isso. É algo muito contemporâneo, mas o Bowie, de fato, já estava fazendo isso há 40 anos.

25/10/2013 20:16 Márcio Bulk Há uma frase no livro “Bowie” [de Marc Spitz] que parece se encaixar perfeitamente no conceito de “Estrela Decadente”: “Bowie faz a decadência parecer elegante”. Era essa a sua intenção, não?

25/10/2013 20:51 Pethit Thiago Eu acredito que a decadência é o suprassumo da elegância. É justamente por ser o seu avesso que ela é o ápice da elegância. E podemos falar aqui de diversas formas de decadência. Há a decadência física, a moral, a pessoal, a do mundo... Mas, no fim, é como o personagem de Gloria Swanson em “Sunset Boulveard” [1950, dirigido por Billy Wilder]: nada pode ser mais elegante, charmoso, magnético do que aquela figura envelhecida da superestrela do cinema mudo que foi esquecida pelo mundo em sua mansão. Há uma sabedoria... uma expertise de elegância dentro das figuras decadentes. São palavras opostas e complementares. São melhores amigas que se odeiam. Não é que andem sempre juntas, mas quando andam... É justamente aí, neste extremo, quando tudo está errado, quando tudo está do avesso, quando esses extremos se contrapõem e essas amigas saem de mãos dadas, que é possível escapar da mediocridade. Do convencional. Escapar do que é conveniente. Como os dandys do Baudelaire: os últimos heróis da decadência.

25/10/2013 21:00 Márcio Bulk Tanto Bowie quando Lou Reed, de quem você já confessou ser fã, tinham vidas bastante atribuladas e utilizavam isso para promover os seus trabalhos, seja em shows ou em entrevistas. No seu caso, essa questão das máscaras e personas parece se limitar ao palco...

25/10/2013 21:51 Pethit Thiago Bom, acho que são outros tempos, né? Tanto pela maneira como lidamos com a privacidade hoje em dia quanto pelo tamanho de Bowie e Lou no star system da época. Até porque falar da vida pessoal hoje em dia é boring! É o que todos fazem pelo Facebook, com escândalos ou sem. As engrenagens também funcionavam de forma distinta. Antes, havia muita grana envolvida e muita gente pra tomar conta das bagunças. Hoje, sendo um artista independente, você não consegue ser locão, quebrar hotéis milionários por aí e, ainda assim, manter uma carreira, gravar disco, fazer show... Se eu me meter numa loucura dessas, ninguém vai dar conta das despesas. Haha! Mas olha, minha vida daria algumas boas manchetes em tabloides de fofoca. Sempre penso nas manchetes, mas isso, como se fosse lá nos anos 70. Esses personagens ou máscaras, na verdade, servem justamente para dar voz a esses meus delírios. Não teria a menor graça se eu ficasse postanto no facebook e ganhando alguns likes.


26/10/2013 05:32 Márcio Bulk Sem querer ser chato, você ainda não terminou de dar a sua resposta! Ih, terminou sim! Ops, falha nossa! É que eu vi a mensagem pelo celular e só apareceram as primeiras linhas!

26/10/2013 16:06 Pethit Thiago HAHAHAHAHAHAHA quer que eu fale mais?

26/10/2013 16:06 Márcio Bulk Por enquanto acho que está bom! Risos! Deixa eu dar uma lida... 27/10/2013 15:31 Márcio Bulk Menino, Lou Reed morreu!

27/10/2013 15:32 Pethit Thiago O QUÊ????????????????????

27/10/2013 15:32 Márcio Bulk Saiu na Rolling Stone!

27/10/2013 18:13 Pethit Thiago Márcio... que horror. Não quero ter mais ídolos... Dói demais isso!

27/10/2013 18:40 Márcio Bulk Estou chocado, cara! A gente estava falando dele ontem! E acontece isso! Tinha baixado a discografia do Velvet [Undergroud] essa semana por conta da biografia do Bowie. Não sabia que o Lou estava doente.

27/10/2013 18:42 Pethit Thiago O que eu acho muito triste é que ele ainda estava na ativa, pensando, criando... a fim do mundo, a fim de dialogar, olhar pras coisas. Nossa, ele foi tão importante pra mim... Principalmente naquele momento da depressão, em 2011, pré “Estrela Decadente”. Eu estou sentindo como se um amigo tivesse falecido. Tô aqui refletindo: MEO DEOS, eu não vou conseguir lidar com as mortes do Bowie, Caetano, Patti Smith.... Chega a ser engraçado se não fosse trágico.

27/10/2013 19:03 Márcio Bulk Ih, Rapaz, e o título da entrevista? O que acha de “We like dancing and we look divine”? “Rebel Rebel” na veia.

27/10/2013 19:05 Pethit Thiago Amo <3

por . Márcio Bulk Thiago Pethit é cantor e compositor e um dos nomes mais interessantes da nova música brasileira. Com forte formação teatral e um imenso senso crítico, tem dois discos lançados: “Berlim, Texas” e “Estrela Decadente”.

fotos . Daryan Dornelles e divulgação Thiago Pethit


RODA #3

FOTOS .

MARCOS HERMES


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RODA #3


Jardim Eletrônico

Ter como cenário para as fotos dessa matéria um jardim deve soar bastante familiar para ela. Afinal o pai, o maestro Tom Jobim, tinha como segunda casa na Cidade Maravilhosa o belo Jardim Botânico. Maria Luiza Jobim nasceu no Rio de Janeiro há 26 anos e, por conta da carreira internacional de Tom, foi aos três meses para Nova York, onde ficou até os 4 anos. Dessa época, ela lembra de ouvir muita música em casa. – O lar era um recanto de ensaios, festas onde todos tocavam juntos. A música sempre foi muito presente e meu pai ouvia muito jazz, que foi o primeiro gênero musical pelo qual me apaixonei - conta ela. De volta ao Rio, estudou na Escola Americana, onde permaneceu até os 12 anos. Esse período foi importante para que ela cristalizasse a sua identidade brasileira e carioca. Igual a qualquer adolescente nos anos 90, Maria Luiza, como gosta de ser chamada, passou por várias fases e gostos. Foi fã de música pop, depois se interessou por rock e, por fim, abraçou a música eletrônica. Passou mais dois anos em Nova York

e, aos 16 anos, experimentou a vida em Paris. Toda essa milhagem acabou por moldar sua personalidade.

- Apesar do Rio ser a minha casa, me considero do mundo. Viajar abre muito a cabeça da gente e inspira demais também. Quando comecei a pensar em fazer música, o fato de ter morado nesses lugares me influenciou e ajudou muito.

Maria Luiza Jobim

Por ser filha de quem era, fez com que Maria Luiza achasse que sofreria uma enorme cobrança. Talvez por isso, se distanciou muito do pai na hora de construir seu universo musical. Para ela, a música de Tom Jobim é especial num outro sentido. - Eu gosto da obra dele como um todo, não sei se me interessaria se não fosse filha, acho que eu não buscaria isso. Gosto muito da coisa rítmica brasileira, como o baião, o frevo, o maracatu. O Brasil é muito rico musicalmente. Com naturalidade, o caminho musical começou a ser pavimentado em 2009, quando ela resolveu fazer um curso de férias na Berklee College of

POR BOB COTRIM FOTOS . ANNA FISCHER


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Music de Boston, sobre “Canto no Jazz”. A partir daí, Maria Luiza se sentiu segura e disposta a encarar o ofício. De volta ao Brasil, resolveu reunir os amigos e formar a banda Baleia. O trabalho no grupo foi importante para a cantora amadurecer e tomar algumas decisões. Nessa mesma época, Maria Luiza decidiu abandonar de vez o quinto período da faculdade de Arquitetura para se dedicar integralmente à música. - Quando estava no curso em Boston, pela primeira vez eu me senti à vontade com a música, acho que foi mais confortável para mim descobrir isso lá fora. No Brasil, isso seria impossível por conta do meu sobrenome. Tanto que, quando eu voltei e montei uma banda, foi a forma de não ficar exposta frontalmente, estava misturada com outras pessoas. Abandonei a faculdade e comecei a pensar em música de forma profissional, com dedicação e muito estudo – relembra. Como em toda banda com muitos integrantes, uma hora as individualidades colidem e a vontade de fazer um trabalho autoral fala mais alto. Assim que deixou o grupo, reencontrou um velho amigo e, assim, surgiu a ideia de montar o projeto Opala, um duo que se caracteriza por utilizar várias referências rítmicas, mas com uma forte pegada eletrônica. - Quando encontrei o Lucas de Paiva e nós resolvemos trabalhar juntos, passamos quase um ano trabalhando em cima de um EP até mostrarmos publicamente o resultado. Feliz com o resultado do trabalho, Maria Luiza acredita que sua virtude artística é tentar passar uma explicação musical para o que está sentindo, é deixar a melodia traduzir o sentimento. Para ela, o som é muito mais relevante que a palavra e a melodia é o seu motor de criação. O primeiro ciclo com o Opala terminou. É hora de dar um tempo, começar a trabalhar em cima de um novo disco, dessa vez um álbum completo... vamos aguardar. Afinal, não falta inspiração. Nem DNA.


Estilo . Elson Bemfeito Beleza . Amanda Schon Assistente de fotografia . RogĂŠrio Belorio Agradecimentos . Estudio HĂ­brido, Joana Passarelli, Folic, Escudero, Checklist, Aramis, Jorge Bischoff, Fill Sete


RODA #3

Acordes

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Carta a um jovem músico independente

MÁRCIO BULK

Ok, concordo, o título é MUITO, MUITO, MUITO pretensioso. Bem, espero que Rilke não se revire em sua tumba, mas não teve jeito, desculpa, de coração. Colocando panos quentes, talvez se você encarar essa “carta” como uma espécie de desabafo, a coisa soe menos mal. Talvez... Mas aí terei que dar uma explicação rápida: No mês passado, meu Itunes desconfigurou. Tipo inferno astral, tipo Mercúrio retrógrado. Não teve jeito, fui obrigado a rever tudo o que tinha espalhado em centenas de pastas em HDs externos, CDs, DVDs e afins. E, nessa tentativa de pôr ordem na casa, constatei algo um pouco desagradável: havia me tornado um crítico ranzinza! Bastante ranzinza, pra ser sincero. Nunca fui afeito a isso, mas dessa vez não teve jeito. Ouvi dezenas e mais dezenas de bandas que copiaram Los Hermanos de forma deslavada, provavelmente por acharem que o sucesso do grupo se deu muito mais por uma fórmula do que pelo talento de seus integrantes. E aí, tome batalhões de hipsters misturando indie rock com uma MPB sorumbática e cheia de riachos e passarinhos. Claro, tudo isso trabalhado em um bom português arcaico de padaria.

Como se não bastasse, ainda havia os clones bizarros de Marisa Monte e Bebel Gilberto empunhando um repertório “sofisticado” e modorrento. PARA TUDO! Assim não é possível! Nada contra os moldes mestres citados acima, muito pelo contrário, mas vamos com calma. O problema aqui não é o samba, a bossa, a fossa, o rock n’ roll ou o drum ‘n’ bass. Mas sim o que andaram fazendo com eles. Não me venha falar de mar, sol e mimimi Instagram que só ficariam bacanas em um hostel em Santa Teresa. O mesmo vale pras melancolias indies de brechó. Desnecessário. Totalmente desnecessário. Chega a dar nos nervos! Bote um pouco de ódio nessa parada! Ou você acha, prezado músico independente, que João Gilberto não suou a camisa em busca da batida perfeita? Ou que Cartola não comeu o pão que o diabo amassou pra escrever aqueles sambas absurdos?! Todo mundo precisa de referências, fato. Disso ninguém discorda. Mas, meu bom rapaz, ter referência é uma coisa, copiar é outra! Soa meio falsidade ideológica, entende? Porque,


veja bem, por mais que a gente viva em um mundo materialista e, no final das contas, a música seja um produto de consumo igualzinho ao seu Iphone ou ao abacaxi da feira, ainda há algo de artístico nessa parada. E, sendo bem didático, sem criatividade, a música deu ruim, fica baixo-astral, não rola. Um jovem músico mais espertinho pode falar de tendência de mercado. Ok, todos sabem que isso existe, faz parte do jogo, mas é bom lembrar que estamos falando de um mercado limitado que ainda tem bastante dificuldades de caminhar com as próprias pernas. Além do mais, se você for parar pra pensar, há algo de espontâneo nessa história de tendência: o que era novo torna-se velho, se satura, e aí chega a hora da nova geração bronzeada mostrar seu valor. Tipo a bossa nova dando uma rasteira no samba-canção ou a tropicália mandando beijinho no ombro para a MPB dos festivais... Com ou sem majors, sempre será assim: rei morto, rei posto. Bem, mas não escrevi tudo isso para que você, da noite para o dia, se torne um serial killer de velhas guardas ou uma it singer. Não é porque, sei lá, o sinthpop é a bola da vez

que você irá largar todas as suas referências de folk, choro ou noise. Nem, muito menos, prezada cantora independente, vai jogar na latrina o seu virtuosismo vocal, burilado ao longo de penosas aulas de canto, só pra adquirir um timbre mais cru, sem polimento e extremamente hype (WTF hype?!)! Entenda, ninguém precisa seguir a tendência primavera/verão 2014 do indie moderninho. Pra ser sincero, em muitos casos, não seguir é sinal de genialidade. Vai que você é um avant-garde e eu estou aqui papando mosca? Tudo é possível. Mas, conselho: não deixe de conferir alguns desses novos sons que estão surgindo, sejam os vindos das periferias chapa quente, sejam os de uma metrópole über hi-tech. Antropofagia sempre faz bem e, melhor, não engorda. Pra finalizar, um assunto um pouco mais delicado: quando for envelhecer, envelheça de boa, sem crises bestas, ok? A coisa mais chata, EVER, é bancar o músico virtuose de meia-idade incompreendido e amargo. Não adianta você se proclamar o baluarte do bom gosto, o herdeiro da “tradicional” (coff! coff! coff!) música popular brasileira

e sair defenestrando o universo só porque é incapaz de lidar com as (rápidas) mudanças desse mundo doido. Envelhecer não é fácil pra ninguém, chapinha! Mas pode ser bem bacana, principalmente se você reconhecer suas limitações e deixar o ego um pouco de lado. Afinal, tenha certeza, a pirralhada sempre terá algo a ensinar, assim como você, futuro tiozinho. E já que a artrose ainda não deu as caras, por favor, rapaz, vá papear, beijar, levar pé na bunda, vandalizar, fazer mapa astral ou comer buchada de bode. Chora depois, mas agora deixa sangrar! E lembre-se: nessa tal de música popular, muito mais do que qualquer dó de peito, o mais importante é que você esteja atento às (micro/max) tensões desse nosso dia a dia. ‘Cause it hurts like hell, but down in the underground you’ll find someone true*. E, convenhamos, ter alguma verdade já é meio caminho andado.

*Underground, David Bowie visite www.bandadesenhada.com.br


Antigamente, nos anos 50 e 60, Elvis Presley e Beatles levavam multidões aos cinemas para assistir a seus longas recheados de hits. Não eram exatamente shows ao vivo exibidos na sala escura, como tem virado mania ultimamente, mas ali já começava a se criar um hábito de embarcar numa experiência audiovisual completíssima, com som potente e a imagem na grande tela. Ainda que fossem tramas costuradas por alguma dramaturgia, “Ama-me com Ternura” (1956), do Rei do Rock, e “A Hard Day’s Night” (1965), dos Fab Four, continham sequências em que o barato era vê-los cantando e tocando. Uma ‘era pré-videoclíptica’, praticamente. Talvez o primeiro a realmente se apresentar nos moldes do que temos visto recentemente tenha sido o vencedor do Oscar “Woodstock” (1970). Mesmo sendo um registro do maior festival de rock feito até então, fartas fatias com as antológicas apresentações de Janis Joplin, Jimi Hendrix e outras célebres bandas do período puderam ser acessadas no documentário. No Brasil, até Caetano, Gil, Gal e Bethânia chegaram aos cinemas com suas performances no show “Doces Bárbaros” (1977), sob a direção de Jon Tob Azulay. Martin Scorsese também contribuiu com o filme “The Last Waltz” (1978), que tinha no elenco artistas como Eric Clapton, Bob Dylan, Joni Mitchell e Neil Young. Num rápido pulo até os anos 80, época em que o gênero musical deu uma nova guinada, com “Purple Rain” (1984), de Prince, e “Moonwalk” (1988), de Michael Jackson, por exemplo, o antológico show “Ziggy Stardust and The Spiders from Mars” (1982), filmado durante a turnê de David Bowie, entre 1972 e 1973, chegou aos cinemas na íntegra, com pequenos recortes de bastidores se alternando com a apresentação do Camaleão. Em 2009, sua projeção foi a

Coisa de

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grande sensação da mostra Cannes Classics, na Praia da Croisette, durante o famoso festival. Um ano antes, chegava aos cinemas uma novidade que ampliou ainda mais a experiência de se assistir a um concerto no cinema: o filme “U2 3D”, registro da turnê “Vertigo” (2005), da banda irlandesa, proporcionou um nova onda com sua projeção em terceira dimensão e áudio poderoso, uma compilação de 14 músicas, entre elas grandes sucessos da banda como “Sunday Bloody Sunday” e ”With or Without You”. Essa astúcia potencializou ainda mais a sensação de se estar mesmo dentro de uma arena, ao vivo. Os óculos de duas cores davam a impressão de que seria possível tocar a guitarra de The Edge ou segurar a mão de Bono em determinados momentos. Este ano, muitos shows foram levados às salas de cinema. Assim foi possível ver, pela primeira vez, um registro de 1976 da turnê “Rockshow”, de Paul McCartney e Wings. Originalmente, a apresentação havia sido lançada em VHS nos anos 80. Ainda que não tenha uma resolução em HD e aúdio 5.1, o longa, filmado em 35 mm, foi totalmente restaurado e ganhou som remasterizado. Os ingressos para as sessões, em São Paulo e no Rio, há alguns meses, esgotaram num piscar de olhos. O mesmo aconteceu com “The Rolling Stones: Sweet Summer Sun – Hyde Park Live”, em que o grupo comemora seus 50 anos de carreira, exibido neste mês de dezembro. Morissey e Aerosmith, só para citar exemplos, também tiveram shows seus no cinema este ano. As redes UCI e Cinemark, que já tem o hábito de passar em suas programações óperas e concertos, vão continuar trazendo grandes shows ao circuito em 2014. Bem no tom.

e Cinema POR GUILHERME SCARPA


Display #2013

Essa é uma coluna onde sempre RODA #3

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destacamos algo que é referência para alguém. Por isso, nada mais adequado do que, na ultima edição do ano, a equipe da Roda usar o espaço para selecionar o que rolou de melhor no ano de 2013.

Discos

“The Next Day”

“Porquê da Voz”

DAVID BOWIE [sony music]

CESAR LACERDA [independente]

Depois de um hiato de 10 anos, o Camaleão retorna, bebendo numa rica fonte de outrora: Berlim. O brilho do compositor permanece irretocável neste disco, que nos remete ao período dito alemão do artista, um dos mais férteis de sua carreira.

“Cavalo”

“Fé Cega”

RODRIGO AMARANTE [som livre]

LEANDRO BRAGA TRIO [universal music]

Entre lamentos e uma grande dose de melancolia, o disco de estreia de Amarante também carrega uma beleza extrema. Nele, o artista expõe com coragem seus sentimentos mais obscuros. Lindo de doer!

Só o repertório de Seu Milton (Nascimento) já seria suficiente para despertar a curiosidade do ouvinte. As nuances descobertas a cada audição revelam um primor de inventividade e versatilidade da nossa, nem sempre valorizada, música instrumental.

O debut de Cesar Lacerda em disco foi a grata surpresa para a nova MPB em 2013. O canto sereno, o zelo e a sensibilidade que esse mineiro coloca nas suas composições nos faz ter a certeza de que ainda vem muita coisa boa por aí.

“Random Access Memory” DAFT PUNK [sony music] O liquidificador musical nos brinda com mais um disco-baile. Com grooves que passam por Giorgio Moroder, Chic e Hall & Oates, o novo trabalho do duo francês deveria ser proibido para quem está ao volante, sob pena de causar um grave acidente.


Livros

“Genesis”

“A Autobiografia”

SEBASTIÃO SALGADO [taschen]

PETE TOWNSHEND [globo editora]

Um olhar muito peculiar do nosso mundo. As imagens fortes e por vezes rudes de Salgado nos fazem pensar que, por mais desumano que possa ser o homem, a força da natureza irá sempre se sobrepor a qualquer circunstância.

“Toda Poesia” PAULO LEMINSKI [companhia das letras]

Um painel completo da obra do poeta morto precocemente aos 45 anos e hoje reverenciado por toda uma geração. Adquira esse ticket de entrada para o mundo do mestre dos versos e arrume um lugar na sua cabeceira para ele.

Shows

“Manifesto do Nada na Terra do Nunca” LOBÃO [nova fronteira] Depois de passar anos usando a sua metralhadora giratória na música, Lobão finalmente coloca a sua verve social no palco adequado: a literatura. Sem medo de polêmica, produz um texto reto e direto. Sobra para todo mundo e atinge todos os lados.

Rock in Rio - RJ 29 SET The Boss foi tudo aquilo que se esperava dele. A E Street Band ligou as turbinas e Bruce entrou com o pé-direito no palco cantando “Raul”. Desfilou seus sucessos, seu carisma e sua impressionante vitalidade no Palco Mundo do Rock in Rio.

“Todo Aquele Jazz” GEOFF DYER [companhia das letras]

Racismo, vício e, sobretudo, talento fazem parte desse mosaico muito bem construído. Dyer usa um pouco da imaginação para contar histórias verídicas e ao mesmo tempo destruidoras do gênero que consumiu ao extremo seus ícones.

BLACK SABBATH

GAL COSTA

Apoteose - RJ 13 OUT

Circo Voador - RJ 26 JAN

Os três integrantes originais do Sabbath - Ozzy, Iommi e Butler - deram ao público um espetáculo pouquíssimas vezes visto em terras brasileiras. Som impecável e um desfile de hits que vai ficar na memória de quem esteve presente.

BRUCE SPRINGSTEEN

O líder do The Who conta sua vida alinhavada pela carta de um fã que ficou lacrada por 45 anos. Estão ali episódios juvenis, alguns traumáticos, e toda a dificuldade de equacionar a vida de rock star com a família, amigos e a própria dignidade.

Retomando sua carreira com um disco à altura do seu canto, Gal fez do show homônimo um sucesso de crítica e de público. Acompanhada por uma superbanda, a baiana arrebatou a plateia, que não queria ir embora para casa.

CÉU

THE CURE

Circo Voador - RJ 08 NOV

HSBC Arena - RJ 10 ABR

No fim do show, ao reverenciar a plateia carioca dizendo que precisa visitar mais vezes a cidade, Céu apenas deu voz a um sentimento coletivo. O talento dessa mulher em cima do palco é irrefutável. Volte sempre!!

Imagine três horas de música com a sua banda favorita. Foi isso que Bob Smith proporcionou para a plateia. Ele passeou pela extensa e rica carreira do grupo e criou um clima hipnotizante, que tomou conta do lugar. Todos saíram de lá curados.





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