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“Escrevi este livro apenas para falar da da sua capacidade de sonhar e realizar

Misericórdia, o novo livro de Lídia Jorge, foi publicado no ano passado e encontra-se agora na 4.ª edição. Como tem vindo a ser hábito, a Lídia Jorge deu uma entrevista ao Cultura.Sul sobre o seu mais recente romance. Depois de Estuário ter anunciado uma nova fase na escrita da autora algarvia, este é um livro inteiramente novo na sua obra literária, integralmente publicada pela Dom Quixote. Para quem conhece a autora e acompanhou a sua vida nos últimos anos, percebe de imediato os laivos pessoais deste livro. Leia-se um excerto do comunicado divulgado na altura do lançamento do livro:

“Um livro diferente, que Lídia Jorge nunca esperou escrever, acabando por fazê-lo para corresponder a um desejo da sua mãe que, internada numa instituição para idosos, várias vezes lhe pediu que escrevesse um livro chamado Misericórdia, que fosse um testemunho de compaixão para com aqueles que estando limitados pela sua condição de grande precariedade, vivem uma vida de resistência escondida.

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A última vez que esse pedido foi feito coincidiu com a última vez que Lídia Jorge esteve com a mãe – dia 8 de março de

2020. A partir desse dia, a instituição onde se encontrava, como todas as outras do mesmo género por toda a parte, entraria num isolamento com tudo o que isso significou de dramático. Perante esta realidade, o pedido da mãe de Lídia Jorge assumiu um relevo absoluto.”

Misericórdia é uma narrativa híbrida, entrelaçando o romance, o diário íntimo, o memorial, a biografia e a crónica. Uma nota inicial indica que estas páginas se tratam de uma transcrição de várias gravações áudio.

Maria Alberta Nunes Amado encontra-se num lar, onde convive com vários outros idosos e funcionários. Hotel Paraíso parece ser um lugar acolhedor, onde estes idosos são bem acompanhados. Dona Alberti, como é apelidada, tem a filha longe, algures no Chile, e vale-lhe as visitas do genro para a atualizar. Persegue-a uma memória fugidia e incerta, um lugar cujo nome não consegue situar. Da mesma forma que muitas vezes Dona Alberti, embora seja capaz de nos deixar este diário, parece não conseguir encontrar as palavras necessárias para expressar o que lhe vai na alma. Certo dia, um dia que se demarca dos demais, e parece marcar uma cisão, temente voando em torno do mesmo assunto e de si próprios. E há os que a cada livro levantam um mundo, constroem-no, destroem-no, e partem para uma nova aventura no livro seguinte, erguendo de novo um outro mundo. Saramago incluía-se neste segundo grupo. Salvas as devidas proporções, também é neste segundo grupo que me incluo. um garboso idoso dá entrada no lar, o sargento João Almeida. Lídia Jorge estreou-se com a publicação de O Dia dos Prodígios (1980). Os seus livros têm sido adaptados para teatro e cinema, e têm sido distinguidos com os mais relevantes prémios literários nacionais, alguns deles pelo conjunto da obra, como o Prémio da Latinidade, o Grande Prémio da Sociedade Portuguesa de Autores – Millennium BCP ou o Prémio Vergílio Ferreira. Largamente traduzida e estudada também no estrangeiro, recebeu prémios internacionais como o Prémio ALBATROS da Fundação Günter Grass, o Grande Prémio Luso-Espanhol de Cultura e o Prémio FIL de Literatura em Línguas Românicas de Guadalajara em 2020. idosa, que era também a mais frágil, imediatamente remetida a um confinamento e isolamento dramáticos, ao ponto de nem ser possível visitar familiares ou de os enterrar condignamente, como forma de fazer o nosso próprio luto. amigos. Afinal, escrevi este livro apenas para falar da resistência dos seres humanos, da sua capacidade de sonhar e realizar a partir das forças mínimas. Sobre o fulgor da vida.

Em 2022, foi inaugurada, nos Estados Unidos da América, a Cátedra Lídia Jorge, criada e anunciada pela Universidade UMass Amherst, no Massachussets.

Mais recentemente, no passado dia 28 de abril, Lídia Jorge foi anunciada vencedora, por unanimidade do júri, da segunda edição do Prémio Vida Literária Vítor Aguiar e Silva, instituído pela Associação Portuguesa de Escritores em parceria com a Câmara Municipal de Braga.

PAULO SERRA

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC)

P Estuário já anunciava uma nova fase na sua escrita. Com este livro marca uma vez mais uma nova fase, e possivelmente um momento único, na sua obra. Afinal este livro, e o próprio título, resultam de um pedido que a fez colocar de lado outro romance em curso. A própria história de como este livro nasce parece em si romanceada. R Compreendo o seu comentário. Mas tenho dificuldade em responder de forma esclarecedora. Essa questão, a da continuidade, rotura e ciclos, faz-me recordar o que o Académico que entregou o Prémio Nobel a José Saramago disse na altura. Foi mais ou menos assim – Há escritores que são como os condores (houve quem traduzisse do sueco por abutres) que andam permanen-

P Numa entrevista ao Cultura. Sul, em 2021, teve oportunidade de explicar como gosta de inserir subtilmente elementos de romances anteriores nas suas obras. É isso que acontece, uma vez mais, com o Globo Terrestre de Maria Alberti Atlas, que se liga à corrente como um candeeiro, de uma luz esverdeada, e lembra o globo azul de Estuário. Nas suas próprias palavas, em entrevista, afirmava que nessa “forma esférica perfeita também está encerrada a forma utópica de salvar o mundo”. R Não me lembrava dessa menção. De facto, o Atlas é um elemento de que me sinto próxima. Talvez coisa da infância. Atlas, globos terrestres, olhar para eles era a minha forma de viajar quando as distâncias geográficas percorridas eram tão curtas. Também em O Vale da Paixão a manta do soldado se transforma num atlas. Todos nós temos objetos-chave que alimentam a vida. Dona Alberti, limitada pelas paredes de um quarto, conseguia liberta-se porque mantinha a capacidade de imaginar outros lugares. Um gosto partilhado.

P Aquilo que acontece no Hotel Paraíso é apenas um reflexo do que aconteceu um pouco por todo o mundo, com a geração mais

R O isolamento dos idosos constitui um problema como é sabido. As sociedades modernas não conseguem resolvê-lo satisfatoriamente, como está bem patente. Mas a pandemia, que foi global, que obrigou a um sobre-isolamento, acabou por nos colocar perante uma situação nova e inesperada. Ficámos desarmados diante da situação. Foram dias extravagantes, desertos, silêncios e aprisionamentos. A nossa precariedade foi posta à prova, e também a nossa capacidade de superação, mas ainda estamos longe de retirar conclusões.

“Misericórdia é uma história, e não pretendeu denunciar, apenas mostrar”

P É um livro duro, onde transparece a realidade do que acontece nos lares, a rotatividade dos cuidados, a falta de cuidados, uma certa brusquidão das pessoas que por lá trabalham, os cuidadores que são predominantemente imigrantes.

R Misericórdia é uma história, e não pretendeu denunciar, apenas mostrar. Escrevi-o como uma viagem pelo interior da intimidade dos fragilizados, vítimas de condições precárias, ora em tom trágico ora em tom irónico e até cómico, como na vida. Por isso, na história que conto, os cuidadores não são homogéneos, também há figuras formidáveis que estão atentas, que respeitam os idosos, que são seus

P Há ainda, e creio ser algo que tem sido pouco falado, uma série de episódios revestidos da natureza alegórica dos seus primeiros livros. Refiro-me às formigas que ameaçam devorar os idosos do lar… Não fosse o triste facto de esta triste série de eventos ter ocorrido efetivamente num lar no Algarve. R Há coincidências impressionantes neste mundo. De facto, desde O Dia dos Prodígios que as formigas invasoras perpassam pelas minhas narrativas. A presença de seres minúsculos que surgem como pragas sempre me impressionou. Coisa dos países do Sul, creio. Ítalo Calvino também foi tocado pela presença das formigas, leia-se A Nuvem de Smog e a Formiga Argentina. Em Misericórdia, eu simplesmente usei a invasão das formigas como um sinal de que uma outra invasão, a do vírus, vinha a caminho. Afinal, um recurso literário que iria ter correspondência num facto real que acabaria por ter lugar no mesmo espaço que me havia servido de cenário para a ficção. Isto é, o texto escrito antecedeu esse certo episódio paralelo posterior que, uma vez sobre-difundido, acabou por ter um forte impacte na população portuguesa. Mas eu não adivinhei nem chamei as formigas, foi coincidência.

P À medida que os acontecimentos se precipitam e se torna claro que assistimos ao desenrolar da pandemia, a narrativa de