Revista +Cinemas #9

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TEMPO E MEMÓRiA


SUMÁRiO EDiTORiAL QUEM FAZ A REViSTA +CiNEMAS? COMO ACELERAR O TEMPO PARA NÃO DEIXAR O GELO SECAR DEPOIS? DONA AURiNHA DESMONTAR O TEMPO, iNVENTAR MEMÓRiAS EM MATO SECO EM CHAMAS MARiA BONiTA DO RECÔNCAVO MONTAGEM UMBIGADA, UM MÉTODO DECOLONIAL DE LEITURA, FABULAÇÃO E CIRCULAÇÃO DE IMAGENS FiLMES DE ASÉ TEMPO DA PEDRA DE EXU TENDA DE SANTA BÁRBARA CAJÁ DOS NEGROS: UM FiLME SOBRE DEMANDA.


iNTRE MEMÓRIAS RACIAIS E ESPAÇOS PERIFÉRICOS:

A CONSTRUÇÃO TEMPORAL NO CiNEMA BRASiLEiRO POPULAR COMO EXPRESSÃO E REPRESENTAÇÃO DE iDENTiDADE

MOViMENTEM-SE NEGRES AFROFABULAÇÕES EM RELA (2022): NOVAS PERSPECTiVAS PARA TRANSiTAR CAPSULAS SONORAS A TRANSGENERiDADE DiANTE DA FiCÇÃO AUDiOViSUAL BRASiLEiRA BATCHAN:

A iDENTiDADE E ANCESTRALiDADE NO CiNEMA NiPO-BRASiLEiRO MEDiADO PELO PROTAGONiSMO DAS AVÓS

“JUNTOS NOVAMENTE”, O TEMPO E A IMAGEM TÉCNICA A NOUVELLE VAGUE E O CINEMA DE WES ANDERSON:

UMA ANÁLISE DAS SEMELHANÇAS E DIVERGÊNCIAS ENTRE ACOSSADO (1960) E O GRANDE HOTEL BUDAPESTE (2014)

ViAGEM NO TEMPO E LOOPiNGS TEMPORAiS: UMA CONSTELAÇÃO FÍLMiCA


Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921

EXPLORANDO AS DiMENSÕES TEMPORAiS E MEMORiAiS NO AUDiOViSUAL Caros leitores, É com grande entusiasmo que apresentamos a nona edição da nossa Revista +Cinemas, dedicada à intrincada e fascinante interação entre tempo e memória no mundo do cinema e do audiovisual. Ao explorar as profundezas desses dois temas fundamentais, procuramos trazer possibilidades criativas que emergem quando o passado, o presente e o futuro se entrelaçam nas telas.

escrita, e incorpora também a fotografia, trabalhos visuais, performances, web artes sonoras e uma gama de suportes criativos, se torna fundamental para a manutenção, difusão e criação de conhecimentos e saberes. Esta edição contou também com parcerias de outros grupos de extensão e pesquisa vinculados ao curso de graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, localizado no Centro de Artes, Humanidades e Letras, no campus Cachoeira/São Félix. Nesse sentido, gostaríamos de agradecer pela colaboração do GEEECA (Grupo de Estudos em Experiências Estéticas, Comunicação e Arte), do SONatório (Laboratório de pesquisa, prática e experimentação sonora), do VISU (Grupo de Pesquisa e Extensão voltados para as visualidade da Cena), e do Cineclube Mário Gusmão. Abraços e boa leitura!

Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921

QUEM FAZ A REViSTA +CiNEMAS? O grupo PET Cinema, é um Programa de Educação Tutorial, sob orientação de um professor tutor, realizamos um cronograma anual de atividades voltadas para o ensino, pesquisa e extensão. O PET Cinema da UFRB é o primeiro dentre os mais de 800 PETs do Brasil atrelado unicamente a um curso de Cinema e/ou Audiovisual! O Grupo foi criado pela profª. Rita Lima em dezembro de 2010. Atualmente, o PET Cinema é formado por doze alunos bolsistas do curso de Cinema e Audiovisual da UFRB, sob orientação da professora e tutora Marina Mapurunga Miranda de Ferreira. Dentre as atividades desenvolvidas pelo grupo, temos: a revista +Cinemas que prevê edições online com textos produzidos pelos próprios bolsistas, tendo como ponto de partida um tema específico; o CineVirada, Festival de Cinema Universitário da Bahia, organizados em mostras fomentado por debates e discussões sob um eixo temático; e há ainda outras atividades, como a roda de conversa em formato de podcast.

Bia Dantas e Caê Sayuri

O tempo tem sido uma fonte constante de fascínio ao longo da história. Nesta edição, autores/as examinam como diretoras/es e criadoras/es contemporâneas/os têm abordado a temporalidade em suas obras, seja através de narrativas não lineares que desafiam as convenções ou da exploração poética de momentos fugazes. Também é analisado como o cinema se torna uma poderosa ferramenta para preservar memórias, seja com suas imagens visuais e sonoras ou a partir da falta delas. Além disso, estão presentes textos que buscam estabelecer paralelos entre o hoje e os tempos do ontem e do amanhã, seja a partir de pensadores/as, realizadores/as ou obras do cinema.

Importante frisar que o PET Cinema representa um espaço precioso de aprendizagem em todos os sentidos: nas pesquisas acadêmicas, na realização audiovisual, na produção e, sobretudo, no sentido da experiência humana e da cidadania, a partir da convivência e do trabalho em grupo. Grupo PET Cinema UFRB

A memória, por sua vez, é um tema intrinsecamente ligado à experiência humana e à construção de identidades. A ancestralidade marca presença ao longo desta edição. Conhecer as ações, pensamentos, cultura e saberes dos que nos antecederam se torna fundamental para o momento presente. Essa dinâmica se estabelece não só a partir das memórias, mas também a partir de saberes ancestrais relacionados sobretudo à raça e à religião. A fé de religiões de matriz africana oferecem pontos de vista que proporcionam reformulações de parâmetros ocidentais sobre as relações entre o eu, a comunidade, o entorno e o tempo-presente.

Marina Mapurunga é artista sonora, sonidista e pesquisadora que atua no campo do audiovisual e da arte sonora. É professora de som do Centro de Artes, Humanidades e Letras da UFRB, onde atua nos cursos de graduação em Cinema e Artes Visuais e na pós-graduação em Comunicação. Atual tutora do PET Cinema UFRB. Fundadora e coordenadora do projeto de extensão SONatório e da OLapSo (Orquestra de Laptops SONatório – UFRB). Integrante do grupo de pesquisa LinkLivre e membra da rede Sonora - Músicas e Feminismos. Doutora em Sonologia (PPGMUS-USP), mestra em Comunicação (PPGCOM-UFF), especialista em Audiovisual em Meios Eletrônicos (UFC),

A construção da 9ª edição da Revista +Cinemas é uma ação do Grupo PET Cinema UFRB, e é também um ato de memória. Desde o início da revista, em 2012,, o PET Cinema busca dar continuidade aos anseios por pesquisa na graduação. A compreensão de que a produção acadêmica vai para além da

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especialista em Música para Cinema e TV (Conservatório Brasileiro de Música - RJ) e graduada em Letras (UECE). Realizadora em audiovisual pelo curso de Realização em Audiovisual da Escola Pública de Audiovisual Vila das Artes. Caê Sayuri é graduande do curso de Cinema e Audiovisual da UFRB, bolsista do grupo PET Cinema UFRB e integrante do VISU. Atua principalmente na área de direção de arte, animação e design gráfico, tendo participado como diretore de arte, assistente de arte e animadore em diversos curtas universitários. coordenadore e diagramadore da 9ª edição da Revista +Cinemas Beatriz Dantas é natural de Salvador, é Graduanda em Cinema e Audiovisual pela UFRB, musicista e ilustradora. Foi curadora da 4ª Edição da ManduCA e atualmente integra o PET Cinema, o VISU, Pesquisa e Extensão em Arte, Imagem e Visualidades da Cena, e o GEEECA, Grupo de Estudos em Experiências Estéticas, Cultura e Arte, nos quais direciona os seus interesses por animação, direção de arte e narrativas plurais LGBTQIA+ Coordenadora e diagramadora da 9ª edição da Revista +Cinemas Amanda Rodrigues é graduanda em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Formada em Fotografia pela Escola Panamericana de Arte e Design, iniciou seu caminho no cinema junto à Coletiva Inã, com quem realizou projetos com e para as comunidades de terreiro desde 2018. É idealizadora e coordenadora do projeto Criando Personagens Reais - da escrita para as telas (@criandopersonagensreais) e da Mostra de Cinema Aroeira. Realizou a Direção de

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 Fotografia dos projetos Macumba: As Guardiãs do Segredo (2019); Gira a Força da Encruzilhada (2021); Bagas e Bagaceiras (2022); Enquanto Você Existir Aqui (2023); e Amarela (2023). Produziu e montou o curta metragem FELIPA (2033). Integrante do Grupo PET Cinema desde 2022, por onde coordenou a décima edição do CineVirada - Festival de Cinema Universitário da Bahia. Tem amplo interesse nas narrativas documentais e ficcionais das camadas minoritárias da população e está em constante busca de trocas de conhecimento e ampliação das nossas potências. Bagdá Sakugawa, estudante de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB/ CAHL), integrante do PET Cinema e participante do grupo de extensão com foco em fotografia, música e performance - (S)em Fronteiras. Lutando para mexer nas feridas das normas estruturais de gênero, sexualidade e raça através da arte. Dante Gabriel é graduando de Cinema e Audiovisual pela UFRB, bolsista do PET Cinema UFRB, integrante do grupo Viu&Review e atualmente trabalha na área de produção, tráfego de filmes e social media. Atuou como produtor em videoclipes, documentários e curtas-metragens de ficção, além de ter produzido festivais e mostras de cinema infanto-juvenil e universitário. Guivinte4 é educador e multiartista do semiárido da Bahia, transitando entre o sertão e o recôncavo desde 2014. Formado em Licenciatura em Biologia, no Centro de Ciências Agrárias, Ambientais e Biológicas – CCAAB da Universidade do Recôncavo da Bahia – UFRB. Estudante do curso de Cinema e Audiovisual da UFRB, no Centro de Artes, Humanidades e Letras - CAHL. Bolsista do Programa PET-Cinema UFRB. Possui vivência na educação básica, no teatro, nas artes plásticas e no cinema universitário.

Letícia Cristina formada em Processos Fotográficos pela ETEC, atualmente é graduanda em Cinema e Audiovisual pela UFRB, onde atua como diretora de fotografia em projetos universitários. Assina a direção de fotografia do vídeo clipe da música Sentimento Atemporal, foi assistente de fotografia no video clipe de Suite Cachoeirana, dirigiu o curta metragem Os Dias Com Você, e fez a direção de fotografia do curta Praia dos tempos. Desde 2021 é integrante do PET Cinema da UFRB. Luan Santos é estudante de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia em Cachoeira/BA, onde atua como diretor audiovisual independente nas áreas de direção, edição, cor e pósprodução. Dirigiu os curtas "Mil Vinny's - Suíte Cachoeirana" (2019), "Os Dias Com Você" (2021) e "Praia dos Tempos" (2021), exibidos em festivais de cinema nacionais e internacionais. Trabalha como freelancer nas áreas de montagem, edição, pós-produção e finalização em obras audiovisuais para Cinema, TV e mídias digitais. Nascida e criada na maior periferia de Feira de Santana, Bahia, Marcela Dias é roteirista e escritora, encontrou no audiovisual a liberdade de externar e explorar o que considera sua característica mais marcante e potente: a sensibilidade artística. Entre seus trabalhos, assina o roteiro e a produção do curta-metragem “Enquanto Você Existir Aqui” (@eveafilme), a direção do curta Bandeirolas de Junho (2022), o desenho de som e som direto do curta “Fora da Caixa” (2022) e foi curadora do IX e V Cine Virada. Tendo ingressado no PET Cinema há um ano, segue na jornada de enriquecer seu potencial como futura cineasta, contribuindo e produzindo para um alcance mais justo da sétima arte. Seu encanto pela Literatura e pelo audiovisual a guiou para o que considera a concretização de um de seus sonhos mais antigos: atuar na amplitude do que é e no que importa no Cinema para ela, reverberando sua voz artista com e sobre os seus dentro dos recortes de raça,

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 Natural de Alagoinhas, interior da Bahia, criada em Salvador, Mapa Macedo atualmente estuda Cinema e Audiovisual na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) em Cachoeira e é integrante do programa de extensão PET Cinema. Atua em trabalhos como produtora, roteirista e multiartista. Estuda a potência do audiovisual como um instrumento que tem a capacidade de restaurar, recriar e co-criar mundos através das temporalidades, fazendo um intercâmbio de individualidades e coletividades. Atualmente, é Diretora de Produção de “Me Abrigo em Colo e Chão” (em produção); Diretora de Produção, Roteirista e Montadora do curta “Felipa” (2023); Diretora e Roteirista do curta “Cadê o Pai?” (2022); e Assistente de Fotografia no curta “Amarela” (2023). Stephanie Costa é baiana, fotógrafa, graduanda em Cinema e Audiovisual na UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia). Faz parte do grupo PET e do Cineclube Mário Gusmão, já esteve na função de diretora no filme Bandeirolas de Junho (2022), diretora de fotografia, em Segredos de Negroni (2023), still em Socorro (2022), e técnica de som, em Amarela (2022). Acredita nas mostras como meio para uma comunicação ampla e diversificada. Graduando em Cinema e Audiovisual pela UFRB/ CAHL, Thierri Azevedo é membro do PET-Cinema desde 2022. Atua como diretor, produtor e roteirista. Tem como áreas de interesse Documentário, Cultura Popular e Produção Cultural. Co-diretor de “Incêndios” (em produção), Diretor de Produção de “Bandeirolas de Junho” (2021), Assistente de Produção de “Amarela” (2022) e “Desconformes” (em produção). Também idealizou e coordenou o projeto “Capoeira: autonomia para gingar na fronteira” que ministrava aulas de capoeira para jovens e crianças da rede pública de ensino em escolas de Foz do Iguaçu-PR.

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COMO ACELERAR O TEMPO PARA NÃO DEIXAR O GELO SECAR DEPOIS? Cineclube Mario Gusmão

É a partir dos encontros que o processo de escrita desta crítica se inicia. Primeiramente através do Cineclube Mário Gusmão como possibilidade de contato entre parte do núcleo curatorial, em seguida do encontro com o filme “Um dia com Jerusa” de Viviane Ferreira e, nesse caso, o encontro com o filme também significa o encontro com sua equipe realizadora, protagonizada por mulheres que abrem caminhos ao longo da produção. Os encontros são contínuos e se toda água que corre pelos rios do planeta Terra são as mesmas em fluxo de renovação, é possível afirmar que as águas do Rio Paraguaçu também correm no Rio Saracura, as águas também se encontram nessa relação onde a memória conduz a possibilidade de aglutinar passado e futuro a partir da presença, a memória se manifesta como tecnologia ancestral.

afinal, “não tem corpo que aguente esse mormaço” – Jerusa.

“É preciso exercitar a memória, foi por ela que nos libertamos. O cultivo é o melhor professor, se você cultiva o esquecimento alimenta a lembrança da dor para se convencer que tem que esquecer. Se cultiva a memória pode escolher alimentar a dor ou o impulso da liberdade” -Jerusa.

O filme apresenta tempos que nos provocam a pausa, o descanso e a presença. Jerusa, quando acessa lapsos daquilo que foi momento, mostra como o contar requer um sentido outro de escuta e atenção, em que nos interessa a subjetividade e a continuidade. É nessa direção que a construção de um microuniverso de cura, advindo do retiro das duas mulheres nesse ambiente doméstico, emerge nas histórias das experiências de afrobrasilidade coletiva e individual. Essas experiências são atravessadas pelas marcas das violências mas, apesar das cont radições, permanecem como um lugar de evocação, convocando aquilo que elas pretendem ou não esquecer, ou aquilo que fez coçar a memória. Viviane, ao explorar a relação de Jerusa Anunciação - Léa Garcia - com a fotografia, retoma para as mulheres a agência sobre a própria imagem, fabulando sobre como esses registros expandem as possibilidades de ação dessas personagens para além da obliteração sistêmica.

As possibilidades da experiência feminina são apresentadas ao longo do filme através de cada personagem que de forma única tece caminhos que desaguam na subjetividade, como forma de permanência da vida, material e imaterial, nesse caso, manifestada principalmente pela memória que opera como fio condutor da costura entre narrativas e está impressa nas águas do Rio Saracura, nos tons de azul, nos peixes e pelo gole d’água que é necessário tomar,

A narrativa é tensionada pelo formulário de pesquisa que reduz o corpo-memória à objetividade fria de um checklist. Silvia - Débora Marçal transparece seuincômodo com a insistência de Jerusa em narrar sua história com ricos detalhes e tenta limitar-se aos 15 (quinze) minutos usuais da pesquisa. Essa fuga encontra presença de um dia atípico na casa de Jerusa, e gera uma zona de conflito entre etarismo, informações, lembranças e a

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 necessidade de contar. Nesse limiar, escolhemos a direção de arte, assinada por Jamile Coelho, para refletir o trauma brasileiro a partir da tensão entre vida - lou(cura) arte e aqui é necessário destacar o personagem Majó Sesan - vestido de manto e que realiza uma performance na encruzilhada sobre a experiência de habitar e se relacionar com a atmosfera da Terra. Esse personagem nos chama atenção pois aproxima-se do universo criado pelo artista contemporâneo Arthur Bispo do Rosário (1911– 1989) , que de forma central gerar uma emoção, por menorque seja e de apresentou o fim do mundo como o conhecemos como qualquer cunho, no seu “leitor”. Ainda sob a ótica possibilidade para criação de um mundo “sempre imagética de Flusser, podemos afirmar que as feliz”, talvez, “sempre feminino”, ao mesmo tempo em imagens técnicas são criadas para imaginar que se aproxima do mundo azul apresentado pelos textos, tendo estesconcebido imagens que trazem a sonhos que a artista contemporânea Igia Yedun concepção de uma parcela do mundo, pela visão de articula através das imagens que ela nunca assistiu, quem o cria. Sendo uma imagem técnica, o curta em sua obra, “Manifesto da Recusa II”. animado foi fruto de um texto que surgiu de uma “Um com Jerusa” virou nos texto, envolve como ideia quedia posteriormente nesse casouma o grande queaestá aí para inverter roteiro.caixa Este preta roteiroe escura foi escrito partir da ideia de euma subverter visto pelas sob a luz. pessoao emundo esta pessoa pôsfrestas em palavras a Viviane diz em depoimentos que nunca teve chance história que quis contar, e assim esse textode fazer um cinema que não fosse político. A diretora desencadeou no filme. abraça essa condição com força e segurança A animação emociona por tratar de um incríveis. Ela elabora sobre a complexidade do que é tema universal - envelhecer e suas consequências a- experiência de vivertécnicas no território que hoje utilizando imagens para envolver o conhecemos sobre uma que espectador como numa Brasil, representação querealidade pode não não vemos, uma que parecer tãonão fiel necessariamente ao “real”, com o uso derealidade movimentos não existeem ousituações existiu, mas que é impensáveis constantemente de dança que seriam no obliterada, contada versões empalidecidas, cotidiano, com o somem acompanhando o ritmo da lavadas sabão em pó e não cuidadas por comexemplo. sabão de trama ea com a ausência de diálogos, pedra. Ainda assim, essa imagem técnica retrata muito bem esse tema universal, contando com os recursos que possui uma história cujo tema é vivido por grande parte da sociedade, como o receio de envelhecer, a sensação de incapacidade e a não aceitação às mudanças. REFERÊNCIAS: FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia.Editora Hucitec: São Paulo, 1985. p. 7-12. JUNTOS Novamente. Direção: Zach Parrish. Produção: Brad Simonsen. Estados Unidos:Walt Disney Animation Studios, Walt Disney Pictures, 2021. 7 min.

O curta de animação Juntos Novamente (2021) da Disney nos apresenta um casal de idosos que se uniram pela dança mas que, com o passar dos anos, se afastaram do hobby tão querido por conta de algumas limitações que o tempo inevitavelmente traz ao corpo. Quando uma chuva cai e oferece ao casal a possibilidade de desfrutar da jovialidade novamente, um deles, o senhorzinho, não mede esforços para levar a sua amada até onde a chuva for e aproveitar esse momento até a última gota caída. Para ele, apenas esse momento foi capaz detrazer a sua juventude e habilidades de volta. Porém, quando a sua esposa mostra-se descontente com a atitude dele, percebendo que este não estava mais envolvendo-se nos ritmos e na dança e sim apenas preocupado em permanecer mais jovem e ágil, ele paralisa e desiste da corrida ao seu eu jovem e finalmente percebe que é mais importante estar com a pessoa que se ama Coordenação do evento: Danilo Amaral que o tempo mesmo com todas as adversidades trouxe do geral: que Wellison viver Silva infelize lamentando Coordenação constantemente por algo que não mais retornará. Coordenação pedagógica: Nogueira No início, vemos Cyntia o homem irritado com a sonoridade do onde Barbara moram, Sartori como se toda a Coordenação de local produção: movimentação trouxesse lembranças das Coordenação de comunicação: Borges habilidades das quais ele nãoJade pode mais usufruir. Além do Alice som, Aguiar, as imagens salaClara dos Produção: Cristalpresentes Saldanha,na Maria personagens vindas dos porta-retratos e da Andrade Ramon Santos, Stephanie Costa, Laiza televisão, por exemplo, reforçam a ideia da nostalgia Raposo, Danilo Amaral e Outonno Selva sentida pelo homem em relação a um período da sua Núcleo técnico: Otávio Leite,ser Fernando Santos e Carlos vida em que considerava mais ativo e vívido. Eduardo S. de Jesus Para Vilém Flusser, “imagens têm o propósito de representar Mas, ao fazê-lo, Comunicação: Otávio Leiteo mundo. de Assis, Taísa Patrício, entrepõem-se entre mundo e Nery homem”. As Bruno Assis, Rodrigo Ribeyro, Kallyane e Wellison fotografias ostentadas pelo velhinho representam Silva uma parcela do que já foi vivido por ele, ao mesmo Mediação: Bomfimuma fidelidade do que foi tempo queMelina não trazem retratado em relação Design: Danilo Amaral ao como ele se sente hoje, no momento. Ele passaa agir em função dessa Registro Stephanie Costa imagem,fotográfico: ainda que esta seja um recorte, uma mera representação, do que já se viveu e não voltará, Social media: Hemilly Araujo mesmo que uma replicação da mesma seja pensada. Videomaker: Rodrigo Ribeyro É interessante pensar no conceito de Curadoria e crítica: Adu Santos, Danilo Amaral e imagem relacionado a este filme, especificamente. Wellison Silva Fotografias ou qualquer tipo de imagem, principalmente as técnicas como o próprio curta, nos dá a ideia de que algo está sendo criado para

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DONA AURiNHA

O filme Socorro (2021), dirigido por Taísa Patrício, conta a história de uma senhora que vive só em uma casa, interpretada por Dona Aurinha. Uma senhora muito carismática, que morava no centro de Cachoeira, foi abordada por estudantes da UFRB para fazer esse filme. Durante as gravações ela encenava perfeitamente e se divertia. Infelizmente, Dona Aurinha faleceu em 2023, fica aqui uma homenagem a essa grande atriz.

Ficha técnica: Título: Autoria: Stephanie Costa Categoria: Fotografia

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DESMONTAR O TEMPO, iNVENTAR MEMÓRiAS EM MATO SECO EM CHAMAS Luan santos1 Marina Mapurunga de Miranda Ferreira2

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Discente do curso Cinema e Audiovisual da UFRB e bolsista do PET Cinema - UFRB Professora Mestre em Comunicação do curso de Cinema e Audiovisual na UFRB; Artista e pesquisadora que atua no campo da arte sonora, da música e do audiovisual e Tutora do grupo PET Cinema UFRB 2

RESUMO: Este artigo se constitui como uma análise fílmica do longa-metragem brasileiro Mato Seco em Chamas (2023) dirigido por Joana Pimenta e Adirley Queirós. A abordagem do artigo vai se desenvolver no atravessamento dos conceitos de memória e tempo no que tange a experiência vivida e a realidade imaginada neste filme híbrido de documentário e ficção. Através dos conceitos de memória corporal evocados por Julio Cezar Tavares, aliados ao gesto de performance na criação entre o vívido e o imaginado mobilizado por André Brasil e trazendo para conversa o ato de montar, remontar e desmontar como procedimento político de reorganização dos fragmentos da história por Georges Didi-Huberman; busca-se refletir como as experiências vividas pelas atrizes amadoras que protagonizam o filme Mato Seco em Chamas possibilita a tessitura de uma dramaturgia complexa que dissolve as fronteiras do documentário e da ficção, assim como a utilização da memória corporal intensificam a performance das protagonistas. Palavras-chave: Performance.

Memória;

Temporalidades;

Introdução “A lembrança não é constituída apenas pelo indivíduo, mas também pela lembrança de outros, mesmo por uma simples conversa. O resultado é uma troca de memórias. Além disso, as transformações na lembrança são produzidas pela transformação dos meios coletivos.” (Freitas, 2015, p. 02)

O fragmento que inicia esse artigo é retirado do texto Da memória ao Cinema (Freitas, 2015) escrito por Cristiane Freitas, onde a autora investiga as diferentes implicações e relações da memória com a

linguagem audiovisual. Para a autora, o cinema articula memórias coletivas através de representações imagéticas do mundo vivido, ao mesmo tempo que as memórias individuais dos espectadores possibilitam se relacionar de forma particular com as narrativas fílmicas. Como representação do mundo em que vivemos, o cinema cria e recria a memória através de suas imagens que perpassam os tempos, entre passado e presente sem cessar. Desse modo, busca-se elaborar a complexidade de refletir sobre a memória no audiovisual, não só em seu aparato de representação de uma memória coletiva já existente, como na (re)criação das memórias íntimas pela via da ficção. No imbricamento entre ficção e documentário, André Brasil reflete sobre como essa questão é elaborada de forma mais intensa na cinematografia contemporânea do Brasil, borrando ainda mais a tênue linha que separa o vivido do imaginado. Para o autor, a relação entre vivido e imaginado “não há total distinção e, menos ainda, indistinção ou indiferença, mas mútuo atravessamento, afetos entrecruzados (Brasil, 2014, p.132)”. Assim, a indeterminação é o ponto central da constituição dessas obras, pois o atravessamento daquilo que vem do real e o criado pela ficção é incerto e errático, tornando improdutivas as distinções entre documentário e ficção. Brasil conceitua a performance corporal dos sujeitos históricos na constituição das obras audiovisuais como elemento primordial para o entrelaçamento entre forma de vida e forma da imagem (Brasil, 2014). Desse modo, para o autor, a performance produz-se nesse limiar entre a realidade e a invenção, onde os sujeitos não só se expõem mas ao se expor criam uma forma gestual que o recria através da subjetivação. Portanto, a performance no audiovisual se relaciona com duas instâncias: gestos e mise-en-scène. O

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 gesto movimenta a corporeidade que exibe a si mesmo enquanto a mise-en-scène, ou seja, a composição da imagem cinematográfica, captura a representação desse gesto reinventado através da imagem. A força performática da corporeidade nos escritos de André Brasil se entrelaça com o conceito de memória corporal elaborado por Julio Cesar Tavares (2012). Como afirma o autor: O corpo como síntese/texto que emite, em linguagem não verbal, as mensagens arquivadas a partir das experiências que se cotidianizaram e que, por intermédio dos cines da memória corpórea, se fixaram na situação na qual aquele determinado movimento foi registrado (TAVARES, 2012, p.51).

Para Tavares, os corpos articulam símbolos e sentidos em uma comunicação não-verbal mobilizada pelos movimentos corpóreos. Não existe hierarquia entre mente e corpo já que as experiências cotidianas se ramificam também na epiderme. Dessa maneira, o autor elabora corporeidades atravessadas por memórias gestuais que constitui os sujeitos no mundo. Como conceitua Georges Didi-Huberman (2016), a montagem é “uma exposição de anacronismos naquilo mesmo que ela procede como uma explosão da cronologia” (Huberman, 2016, p. 06). O autor observa a montagem como procedimento de ação política que expõe as contradições históricas através do ato de desmontar e remontar, o processo de pensar a posição estratégica em que se entrelaçam os fragmentos da história. Desse modo, para Huberman a montagem opera através do anacronismo e de uma relação temporal fragmentária onde “Não há, portanto, “remontar” histórico senão por meio da “remontagem” de elementos previamente dissociados de seu lugar habitual” (Huberman, 2016, p. 04). Interessa a este trabalho explorar este conceito de montagem para refletir como a fragmentação narrativa de Mato Seco em Chamas cria rupturas temporais, descontinuidades e reposiciona os diversos elementos linguísticos da obra dirigida por Adirley Queirós e Joana Pimenta. Assim, em sua dialética, a montagem se coloca como a encruzilhada formal que entrelaça o vivido e o imaginado, as formas de vida com as formas da imagem. Em primeiro momento, esta análise fílmica irá apresentar a filmografia do cineasta Adirley Queirós com intuito de contextualizar Mato Seco em Chamas atrelada a uma filmografia que pavimentaram as reflexões e formas de filmar do diretor. Após este momento, o texto apresentará o enredo e o contexto

da obra analisada, a fim de assentar as informações básicas da narrativa. Como metodologia de análise fílmica, o procedimento consiste em destacar algumas sequências de Mato Seco em Chamas de modo a refletir como a disposição dos corpos em cena mobilizam questões relativas à memória corporal e a criação de uma ficção que se entrelaça - e se retroalimenta - com a realidade vivida pelas atrizes. Além disso, esta análise busca engendrar reflexões sobre como a montagem e desmontagem realizada por Cristina Amaral costura habilmente a tessitura narrativa da obra em uma temporalidade não-linear. Filmografia de Adirley Queirós No panorama do cinema contemporâneo brasileiro, Adirley Queirós é um dos cineastas mais notáveis pela sua habilidade de entrelaçar diversos gêneros cinematográficos - ficção científica, terror pós-apocalíptico, western, etc - construindo obras híbridas que se articulam entre o documentário e a ficção. Morador da Ceilândia, Adirley trama questões sobre a formação deste território periférico na capital federal do país através de suas obras. Em seu primeiro longa, A Cidade é uma Só? (2011), o diretor reflete sobre a construção histórica de Brasília e a exclusão permanente que moradores da periferia da cidade enfrentam. Adirley resgata a história de construção da Ceilândia no momento em que a cidade de Brasília estava comemorando seus 50 anos de existência. Misturando documentário e ficção, a narrativa representa a campanha eleitoral para deputado distrital de Dildu (Dilmar Durães), um morador da Ceilândia cujo objetivo é mudar a realidade do lugar onde mora de dentro da infraestrutura política. Em seu longa seguinte, o clássico contemporâneo do cinema nacional, Branco sai, Preto fica (2014), Adirley aborda a violência física e suas consequências psicológicas cometidas por agentes do estado contra populações pretas e periféricas na cidade de Ceilândia. Em um baile black em 1986, policiais invadem o local e atiram contra jovens negros depois de proferir a frase que dá título ao filme. Essa noite marca eternamente a vida desses jovens. A narrativa apresenta as histórias de Marquim da Tropa e Shokito, homens negros atingidos pela violência polical e que ficaram com sequelas físicas permanentes. Enquanto isto, o viajante do futuro Dimas Cravalanças retorna ao passado para procurar uma figura capaz ajudá-lo a provar os crimes cometidos pelo Estado brasileiro contra as populações pretas e periféricas. Em um ato revolucionário, Marquim planeja explodir Brasília com uma bomba sonora. Em Branco sai, Preto fica a

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 direção aposta ainda mais no imbricamento entre vivido e imaginado dentro do gênero da ficção científica, onde a montagem opera na articulação entre as temporalidades e nas relações entre vivido e imaginado. Em Era uma Vez Brasília (2017), Adirley aposta novamente na ficção científica para questionar a caótica política brasileira às vésperas do Impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Na trama, em 1959, o agente intergalático WA4 (Wellington Abreu) recebe a missão de vir para a Terra e matar o presidente Juscelino Kubitschek no dia da inauguração de Brasília. Ao se perder no fluxo das temporalidades, o agente aterrissa em 2016 na Ceilândia. Neste filme, a direção adentra fortemente nas questões políticas contemporâneas do Brasil ao refletir sobre o latente crescimento do fascismo no país. A pulsação revolucionária que mobilizou os personagens de Branco sai, Preto fica parece ter se dissolvido e em seu lugar se encontra uma imobilização apática diante dos acontecimentos políticos que culminaram na eleição de Bolsonaro em 2018. A contemplação melancólica dos personagens de Andréia (Andréia Vieira, em sua primeira colaboração com o diretor) e Marquim da Tropa revelam um sentimento de derrota e um futuro sem esperanças para as pessoas marginalizadas deste país. Reitero a importância de trazer o contexto e os enredos básicos dos filmes anteriores de Adirley Queirós para firmar o caminho para sua nova empreitada. Em Mato Seco em Chamas a ardência clandestina de “tacar fogo em tudo” retorna ao cinema de Adirley, dessa vez mais denso e implacável como quem não tem pânico de nada.

Com uma grande estrutura de maquinarias e batendo de frente com a polícia facista da cidade, a lenda das Gasolineiras do Sol Nascente é disseminada pelas ruas da Ceilândia. Como a materialização imagética de uma música de Rap dos anos 90, esse é um conto do crime sobre a vivência à margem da sociedade e a revolta incendiária que emana desses sujeitos.

Sequência 1

Fonte: Mato Seco em Chamas, 2022

Após uma sequência de abertura que nos introduz ao universo noturno, repleto de máquinas enferrujadas, motos barulhentas, petróleo jorrando do chão e chamas ardentes que iluminam mulheres vestidas de preto operando na clandestinidade, o título do longa toma a tela. Figura 1 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Fonte: Stremio (2023) Figura 2 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Fundo preto. Um ruído de isqueiro é acionado quando Léa (Léa Alves) acende seu cigarro em um enquadramento em primeiro plano. Sons de televisão são atravessados por latidos de cachorros enquanto a personagem traga seu cigarro incidida por uma iluminação em tons azuis. Léa olha contemplativa para fora de quadro. Em um plano médio, a vemos sentada em um banco na porta de uma casa com a TV ligada atrás de si. A TV exibe um filme de faroeste com homens montados a cavalos e logo depois a imagem muda para uma novela qualquer. Uma menina sai de dentro de casa, beija Léa no rosto e se despede antes de sair do quadro.

Fonte: Stremio (2023) Figura 3 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Politicamente falando, isso significa que não há força revolucionária sem remontagens dos lugares genealógicos, sem rupturas e reurdidura dos laços de filiação, sem reexposições de toda a história anterior. (2016, p. 04).

Essas reexposições de toda a história anterior, como aponta Huberman, é o motor narrativo de Mato Seco Em Chamas, pois é somente através da rememoração e do entrelaçamento entre o vívido e o imaginado, entre passado e presente, que as personagens conseguem contar suas próprias histórias. A fragmentação da montagem entre a contemplação dilatada orquestrada habilmente pela mise-en-scène e a exposição frontal em monólogo, opera como uma encruzilhada que nos impossibilita discernir o que é a forma de vida da forma da imagem. Além disso, a mudança entre um filme de faroeste e uma telenovela sendo exibida na TV da sala, apresenta-se como uma predisposição do longa em utilizar-se de inúmeras formas narrativas para se construir. Sequência 2 Figura 5 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Léa entra em casa, acende a luz do quarto, sentase em uma cama e traga profundamente o cigarro. Em primeiro plano, Léa relembra e verbaliza os acontecimentos com sua irmã Chitara em meados de 2019. Após sair da cadeia condenada por tráfico de drogas, Léa é convidada pela irmã para se juntar ao seu empreendimento de extração de petróleo, refinamento da gasolina e comércio com os motoqueiros locais. “Minha irmã fez história. Minha irmã fez história naquele Sol Nascente.” (MATO seco em chamas, 2023, 150 min) revela a personagem em um monólogo direcionado ao fora de campo. Com quem Léa rememora suas aventuras clandestinas com Chitara parece ser a indagação que ecoa enquanto a personagem traga seu cigarro e nos apresenta o mote narrativo do longa.

Mato Seco em Chamas (2023, Brasil/Portugal) Direção: Joana Pimenta e Adirley Queirós

Enredo: Chitara (Joana D’arc Furtado) descobre dutos de petróleo embaixo de um terreno que ela acabou de comprar na Favela do Sol Nascente em Ceilândia (DF). Com sua irmã, Léa (Léa Alves) e a amiga Andréia (Andréia Vieira), elas começam um negócio clandestino de refinamento de petróleo e comércio de gasolina para os motoqueiros locais.

Figura 4 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Análise de sequências

Enredo - contextualizando o filme

Mato Seco em Chamas é o quarto longa dirigido por Adirley Queirós, cineasta formado em cinema pela UNB (Universidade de Brasília) e a primeira realização em conjunto na direção com Joana Pimenta, cineasta portuguesa que realizou a direção de fotografia de Era Uma Vez Brasília dirigido pelo Adirley.

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Nesta sequência, a dramaturgia naturalista de contemplação da personagem é rompida quando esta direciona a fala para a alguém fora de quadro em uma linguagem assumidamente documental de exposição. Pelo ato de rememorar as aventuras clandestinas vividas com sua irmã Chitara no Sol Nascente, Léa não só estabelece a história que iremos acompanhar, mas instaura o rememoramento como uma possibilidade de construção de futuro. Como afirma Huberman:

Fonte: Stremio (2023) Figura 6 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Fonte: Stremio (2023)

“Psicologicamente falando, isso significa que não há desejo sem trabalho da memória, não há futuro sem reconfiguração do passado.

Fonte: Stremio (2023)

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Figura 7 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Fonte: Stremio (2023) Figura 8 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Fonte: Stremio (2023)

É noite. Léa fuma em um ônibus em movimento enquanto toca música funk e ouvimos vozes de pessoas no fora de campo cantando junto. O espaço do ônibus se transforma em um baile funk empolgante com várias mulheres se divertindo. É um grupo de mulheres que vestem roupas sensuais, se beijam e sarram na batida do funk. De repente, em um jump cut, o baile funk no ônibus se transforma em uma viagem monótona para a prisão feminina, onde as roupas provocativas dão lugar ao branco pálido e os corpos em êxtase se tornam apáticos e imobilizados nos assentos do mesmo ônibus. A noite vira dia e a alegria profusa se transforma em tristeza melancólica. Nesta sequência, o movimento pendular da montagem “expõe os choques recíprocos dos quais toda história é tecida” (Huberman, 2016, p. 01). Esses choques não se dão apenas na mudança brusca de temporalidades manipuladas na ilha de edição, mas na performance corporal das personagens que oscilam entre a liberdade e o encarceramento, entre o gozo e a repressão. Léa, que no filme acabou de sair da prisão, reencena a própria situação agora transformada em imagem. Nas palavras de André Brasil, a dimensão política da performance passa não pelo apaziguamento, mas pela tensão (o caráter muitas vezes irreconciliável) presente na constante transformação do mundo vivido em imagem, do gesto em mise en scène. (Brasil, 2014, p. 142).

Assim, a construção formal de Mato Seco em Chamas opera na tensão dialética entre presente e passado, vida real e ficção. O que parece interessar para Adirley e Joana não é reencenar as violência sofridas pelos seus personagens num processo de explorar a dor real em mise-en-scène, mas justamente construir junto com atrizes possibilidades de encenação que utilizem a memória corporal como gasolina para a forma do filme. Contaminar a ficção com a realidade radical dessas individualidades. A música popular brasileira feita por pessoas pretas e periféricas é um elemento fundamental da dramaturgia do cineasta da Ceilândia. O rap, funk, brega e até a música gospel das igrejas evangélicas, são propulsores da revolta cotidiana dos personagens em seus filmes, assim como mobilizadores dos momentos de prazer, como a utilização do funk nesta sequência do ônibus. O batidão e a letra permeada por conotações sexuais dão ritmo aos corpos em alegria, afinal isso é “É cultura de baile, som de favelado / Que quando toca na moral ninguém fica parado …” (Quando o DJ Toca (part. UANA), FBC e VHOOR, Baile, 2021). O corte para a viagem prisional rompe com a música funk e se instaura um silêncio permeado pelos sons urbanos de automóveis, uma forma de apaziguamento dos corpos. A música preta periférica como possibilidade de existir sem censura, de cantar sobre a revolta dos que estão à margem. Em suma, essa sequência expõe a dialética da montagem de Mato Seco em Chamas, assim como intercruzam mais intensamente a forma de vida da forma da imagem, o gesto e mise-en-scène. Desse modo, o procedimento de montagem “talha as coisas habitualmente reunidas e conecta as coisas habitualmente separadas” (Huberman, 2016, p. 06) em uma encruzilhada formal que transita entre pêndulos temporais. Sequência 3 Figura 9 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 Figura 10 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Fonte: Stremio (2023) Figura 11 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Fonte: Stremio (2023) Figura 12 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Partido da Correria Nacional ou com o PPP Partido do Povo Preso, o que Adirley coloca em jogo é a possibilidade, pela via da ficção, de construção de uma organização política com base popular e periférica, que defenda os interesses das populações marginalizadas. Apesar de imagear a existência desses partidos políticos na narrativa, a direção não deixa de olhar para a realidade do cenário político daquele momento. Em uma digressão de montagem, saímos do mundo fantástico distópico construído até então, para adentrar na distopia da realidade nacional em uma filmagem documental de uma manifestação a favor de Bolsonaro. Se até o momento, a montagem tece uma linguagem cinematográfica onde ficção e documentário são indissociáveis, essa sequência escancara abruptamente o caráter documental de Mato Seco em Chamas. Contudo, até mesmo esse longo plano sequência, é imbuído de uma atmosfera ficcional incontornável, onde os eleitores de Bolsonaro parecem performar personagens estereotipados típicos de filmes de baixo orçamento. No universo cinematográfico construído por Adirley, o fantástico e o documental são formas de contar que se entrecruzam, disputam forças, mas que nunca se colocam como absolutas e apartadas uma das outras. Afinal, o hibridismo da linguagem cinematográfica utilizado por Mato Seco em Chamas parece se originar “propriamente de uma relação de imanência: ficção que imana do real e o real que se produz como ficção" (Brasil, 2014, p. 142). Sequência 4

Fonte: Stremio (2023)

Em plano geral exibe-se o Palácio do Planalto ao longe enquanto fogos de artifícios iluminam o céu escuro. Ruídos abafados de cantos, falas e sons de automóveis envolvem a cena. Uma multidão de pessoas vestindo as cores da bandeira nacional entoam gritos de protesto a favor do então presidente Bolsonaro. As pessoas cantam o hino nacional e tiram fotos enquanto são filmadas por uma câmera que registra tudo em uma única filmagem. Ao final do protesto, uma cavalaria das forças policiais do Estado atravessam a rua enquanto trovões ao fundo anunciam uma tempestade por vir.

Figura 13 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Fonte: Stremio (2023)

Assim como Dildu (Dilmar Durães) em A cidade é uma só?, Adirley e Joana constroem uma personagem em campanha eleitoral de um partido político inventado. Andreia (Andreia Vieira) se candidata como deputada local pelo Partido do Povo Preso e enfrenta rivais políticos com maior poder econômico e social. Seja com o partido PCN -

Fonte: Stremio (2023)

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 Figura 14 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Fonte: Stremio (2023) Figura 15 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Fonte: Stremio (2023) Figura 16 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Fonte: Stremio (2023)

Em um cômodo pequeno e pouco iluminado, Léa canta louvores evangélicos que se misturam a raps que falam de Cristo. Léa fuma cigarro e manuseia uma pistola enquanto se encosta em um colchão ao fundo. A câmera se move e revela a presença de sua irmã Chitara. Toda essa sequência se desenrola através de planos de longa duração das personagens conversando e escutando. A variação de planos transitam entre closes e planos conjuntos das personagens. A montagem pendular de Cristina Amaral oscila entre o impacto das cenas de ações das Gasolineiras e as conversas cotidianas sobre memórias e família. Nesses momentos mais calmos e dilatados, as personagens compartilham suas vidas a cada trago no cigarro. Léa relembra as situações com um antigo amor já falecido que tinha um arsenal de armas e a

ensinou a atirar. Entre risos ao contar para Chitara de como eram seus treinos de tiro com Rodrigo, Léa esboça arrependimento por ter ajudado o companheiro a escapar da cadeia, pois, menos de dois meses depois, ele foi assassinado, deixando-a grávida. Apesar do lamento pela perda, Léa fica feliz em ter tido o filho Guilherme que agora está com 12 anos. Começa a tocar Eu vou tirar você desse lugar (Odair José, 1995), e Chitara se recorda dos discos com músicas de amor que seu pai deu à sua mãe e que, após a separação, faziam sua mãe chorar ao escutá-las. A música aumenta enquanto Léa e Chitara estão com a expressão melancólica e o olhar distraído. A letra da música, principalmente seu refrão, expressa sentimentos de libertação e companheirismo que dialoga com a relação de Léa e Chitara no filme. Os versos da música entoam: “Eu vou tirar você desse lugar//Eu vou levar você pra ficar comigo”. Assim como o eu lírico desta letra, Chitara anseia a saída de Léa da cadeia para que elas pudessem trabalhar juntas como parte das Gasolineiras do Sol Nascente. Além disso, a letra se relaciona com a questão do encarceramento e do desejo de libertar quem foi aprisionado, não é atoa que o filme discute fortemente questões sobre o cárcere. A trilha sonora de Mato Seco em Chamas utiliza a música popular brasileira como “um enclave utópico, visitado diariamente pelos habitantes deste filme –encarnação máxima dessa vontade de saltar para fora do inferno cotidiano.” (Victor Guimarães, 2022, s/p). Chitara rememora sua infância, a relação com sua mãe e seus comportamentos subversivos desde a juventude. Entre um riso e outro encadeado pelas lembranças, ela fica alguns segundos em silêncio, com o olhar marejado e uma expressão séria. A motivação para Chitara continuar sua empreitada clandestina é sustentar sua mãe e seu filho, porém, por conta deles, ela também está disposta a acabar com tudo que construiu, caso seja necessário. Em um monólogo habilmente encenado pela atriz, a personagem não hesita em afirmar: "Taco fogo cabuloso nisso aqui tudinho, mas não entrego de mão beijada para filho da puta nenhum. Minha mãe me ensinou a ser guerreira. Não foi à toa que meu pai me deu meu nome de Joana Darc. E o apelido de Chitara." (MATO seco em chamas, 2023, 150 min). Essa sequência adensa ainda mais o processo de atuação das atrizes e a composição das personagens, pois, para o público, não é discriminado quais memórias são “reais” e quais são “inventadas” dentro da relação entre documental e ficcional. Essas separações e definições tampouco importam para o filme, pois, este se constrói justamente no entremeio entre a rememoração e a criação, entre o vivido e o imaginado. O que a tensão

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entre essas instâncias narrativas provoca, é uma composição de personagem profundamente marcada pelas memórias corporais e construída em conjunto com as atrizes. Esse processo de construção em conjunto da direção com as protagonistas, assim como a relação entre a forma de vida e a forma da imagem, possibilita um trabalho de encenação primoroso de Léa Alves e Joana D’arc Furtado, ambas em seus primeiros trabalhos como atrizes. Os olhos marejados, o olhar perdido, as mudanças de voz e expressões faciais, as pausas para tragar o cigarro, todos esses gestos são mobilizados por experiências vividas pelas atrizes, onde estas constroem as personagens no processo de fabular a própria história. Em Mato Seco em Chamas, a forma da imagem não explora as experiências marginais de suas atrizes como objeto de ficção, mas enxerga nas formas de vida de pessoas comuns, as experiências sensoriais que inspiram ficções radicais. Sequência 5 Figura 17 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Fonte: Stremio (2023) Figura 18 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Fonte: Stremio (2023) Figura 19 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Fonte: Stremio (2023) Figura 20 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Fonte: Stremio (2023)

Em um depósito, Léa está armada e vigilante enquanto observa o espaço externo por um buraco na parede. Ao seu redor estão vários galões de gasolina, mas ela fuma sem se preocupar. Léa avista alguém no fora de campo e ameaça explodir tudo caso se aproxime. “Tenta a sorte, pilantra. Eu vou mandar é tudo pro ar. Vai nóis tudo pro inferno, desgraçado” (MATO seco em chamas, 2023, 150 min) brada a personagem a um inimigo oculto que não é visto pelo público. Ruídos no extracampo materializam uma atmosfera tensa em que Léa e Chitara começam a atirar no antagonista imaginário. Conforme a sequência analisada anteriormente, onde Chitara revela seu impulso de destruir tudo caso seja confrontada, aqui a materialização deste conflito se dá pela força da atuação e utilização do som advindo do fora de campo. Nunca vemos o antagonista, mas sua presença provoca angústia e tensão nas personagens. A mise-en-scène é construída na circulação de Léa e Chitara nesse espaço limitado, a inquietação da performance das personagens materializa a hostilidade da situação pela corporalidade e a câmera fixa está ali apenas para captar a espontaneidade das encenações. Chitara, ao contrário de Léa que brada ameaças sem hesitar, não fala nada, mas seu olhar duro e sério revela seus sentimentos diante do cenário. Em relação a dramaturgia construída em Mato Seco em Chamas, este momento provoca um desordenamento na encenação, pois a abstração do inimigo em cena requer um esforço mais intenso do trabalho corporal das atrizes para concretizar a apreensão do confronto. Adirley e Joana filmam a cena de ação como uma ficção etnográfica de vidas criminosas, onde não é a câmera que se movimenta em frenesi ou a montagem acelerada dita o ritmo, mas as performances gestuais de Léa e Joana Darc ordenam toda a dramaturgia. A (des)materialização do inimigo se dá no processo de ficcionalizar os confrontos sociais e políticos vividos por essas personagens marginais, de trazer para a imagem a vingança da periferia

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 contra os poderes que a oprimem. Adirley em sua filmografia foi cada vez mais dissolvendo o real na imaginação, fundindo o documento na ficção, não para reiterar o mesmo destino da realidade factual, mas para tramar novas possibilidades de “dar o troco” através das imagens cinematográficas. Sequência 6 Figura 21 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Fonte: Stremio (2023) Figura 21 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Fonte: Stremio (2023) Figura 23 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Fonte: Stremio (2023) Figura 24 - Captura de tela de Mato Seco em Chamas

Do mesmo modo em que Léa começa a rememorar a lenda das Gasolineiras do Sol Nascente na primeira sequência analisada, Chitara revela para a câmera que a irmã foi presa novamente. A estética documental de exposição da personagem retorna nesse momento, evidenciando - mais uma vez - a temporalidade não-linear e circular que a montagem constrói. Chitara é informada da prisão de Léa pelo sobrinho Guilherme que a ligou pedindo o número de Adirley, diretor do filme. Nesse momento, a verve documental se incendeia em maior intensidade, pois é desvelado o processo de feitura do filme que está sendo visionado. Chitara recorda que aguardou ansiosamente a libertação de Léa de sua primeira sentença (6 anos) para que a irmã participasse do filme junto com ela e o irmão Cocão, uma reunião de família orquestrada através do cinema. Léa estava feliz em estar com a família e trabalhando como atriz no filme, a primeira oportunidade que teve de ter um emprego fixo. Chitara reflete como a criminalidade absorve as pessoas e que, apesar de ter um lado bom, as consequências são pesadas. Em voz off, Chitara conta como foi a primeira vez que Léa foi sentenciada e o tempo que passou longe de seus filhos enquanto adentra na casa que a irmã alugou recentemente. Contemplando o horizonte pela janela, Chitara fica em silêncio. Se a linguagem de Mato Seco em Chamas é elaborada no hibridismo, pela indeterminação em que se costuram as temporalidades e as linguagens cinematográficas, esta sequência opta pela transparência em desvelar a história pregressa das atrizes e o processo em que o filme se deu. No entanto, apesar da câmera estática e a composição característicos da linguagem documental, a encenação de Chitara, a forma como ela revela o acontecido, é dramatizada imbuindo a realidade na ficção. As modulações de voz, as pausas e a ordenação das frases na construção do monólogo revelam o trabalho de encenação e direção de atores. O relato e a rememoração do passado só se efetuam através das situações ficcionais. A memória corporal é transformada em gesto performático, a realidade é transmutada em forma da imagem. Em Mato Seco em Chamas, a ficção é nutrida pelo risco do real, pela experiência vivida pelas atrizes. E o real é mobilizado a um novo ordenamento através da ficção. Como aponta André Brasil, o processo de:

Fonte: Stremio (2023)

Ficcionalizar a errância de vidas ordinárias seria menos torná-las comunicáveis sob este ou aquele modo de narrativa do que colocar diante da demanda de reordenação do espaço sensível: como se a cena que pudesse abrigar os personagens ainda não existisse e precisasse deste encontro entre a imagem e o real para se

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 criar.”(Brasil, 2014, p.143)

A contemplação melancólica de Chitara é rompida por uma voz institucional lendo os autos da prisão de Léa. Toda a descrição do crime e da situação que a levou ao cárcere é lido em voz off enquanto são desveladas as imagens oficiais que a polícia registrou. Assim como na sequência do protesto dos bolsonaristas analisado na sequência 3 deste artigo, a montagem mobiliza imagens de arquivo não para documentar a realidade fielmente, mas para sublinhar o processo de ficcionalização inerente à realidade, isto é, o ato pessoal e coletivo de criação de uma história e de uma identidade próprias – em suma, de um imaginário.” (João Pace, 2023, s/p)

O relatório da prisão de Léa se assemelha a um storyboard, com a montagem de fotos ordenando um raciocínio formal do acontecido. Ou seja, nem um documento oficial das forças policiais é constituído sem a tarefa formal de ordenar as informações imagéticas em determinado sentido. Desse modo, mesmo com a percepção de um adensamento do documentário apartado da ficção, Adirley não recusa a imaginação e a transfiguração do real como possibilidades de constituir novas imagens, ou seja, “Trata-se assim de recusar tanto a submissão do vivido ao imaginado quanto, em via inversa, a submissão do imaginado às demandas (de natureza estritamente sociais) do mundo vivido" (Brasil, 2014, p.142). Desfecho Em decorrência da prisão de Léa, o lote de refinamento de petróleo foi fechado e Chitara, junto com os motoboys, “botaram para fuder em cima dos caras” (MATO seco em chamas, 2023, 150 min). Em uma sequência de ação e aventura, na calada da noite, as gasolineiras cercam a polícia facista em seu tanque de guerra blindado e toma de assalto o controle do Sol Nascente. Luzes de faróis, chamas ardentes, motos barulhentas e a poeira que se lança ao ar constituem uma mise-en-scène épica, um conto de aventura marginal no território seco de Brasília, um faroeste motorizado tipicamente brasileiro. Em muitos filmes nacionais contemporâneos, impera o moralismo burguês em declarar que o crime não compensa, assim os personagens são derrotados e sofrem as consequências de suas atividades criminais enquanto o poder político e institucional do Estado e do Capital se mantém no status quo, inabalados. O interesse do universo cinematográfico construído por Adirley é invariavelmente oposto. A direção de Mato Seco em Chamas não romantiza e idealiza as atividades criminais de seus personagens, mas

percebe a potência revolucionária que emana desses sujeitos. É crucial notar a importância dos motoboys para a sustentação de uma economia popular e periférica em torno da gasolina, onde os ditames do estado e do setor privado não regulam o preço do produto. Se nos faroestes tradicionais é comum os personagens andarem a cavalos, aqui, no faroeste caboclo, os roncos das motos e os faróis luminosos são a via pelo qual os personagens se lançam na aventura. Se em Branco Sai, Preto Fica o sofá sendo tomado por chamas marca o clímax da revolta em combustão, aqui, nossas heroínas marginais tacam fogo cabuloso numa viatura hi-tech da polícia, mas não sem antes retirar todas as peças valiosas. O blindado sucumbe diante da intensidade das chamas. Assim como toda sua construção formal, Mato Seco em Chamas não tem interesse em aceitar o real como este se impõe, mas de transfigurar essa realidade em imaginação calorosa, de transformar em imagens os gestos épicos já presentes nas jornadas desses sujeitos, de evitar o derrotismo e ficcionalizar uma revanche dos oprimidos. Começa a soar um beat em tons épicos como o sample de uma trilha de Enio Morricone, só que periférico e brasileiro. A música DF Faroeste, interpretada pelo grupo de rap ceilandense Mente Consciente, faz a transição entre o veículo em chamas para a cena final. Cocão anda de moto nas ruas de barro do Sol Nascente com a irmã Léa que acabou de sair da prisão. O filme, em seus loopings, parece sempre retornar para outro ponto já visto anteriormente. Assim como o filme se inicia com Léa saindo do cárcere de sua primeira sentença, o desfecho aponta para uma nova possibilidade de liberdade da personagem. Desviando dos lugares comuns e moralistas, Joana e Adirley apostam na vitória de suas personagens como único desfecho possível para esse conto do crime. Léa na garupa da moto sendo escoltada pelos parceiros motoboys é a volta da vitória dessa empreitada clandestina que é viver na periferia desse país. E como a letra da música que encerra o filme exclama: “Um sonho é muito pouco, eu quero é mais” (Mente Consciente, 1998). Considerações finais Ao analisar o longa-metragem brasileiro Mato Seco em Chamas a luz dos enclaves teóricos de tempo e memória, este texto reflete sobre como a experiência vivida pelas atrizes protagonistas constituem a tessitura da forma do filme. Ou seja, como a história pregressa dessas subjetividades, a forma de vida, se transmuta através da ficcionalização em forma da imagem. Assim, ao abordar esta obra a partir dos conceitos de

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 performance, memória corporal e remontagem, reflete-se como a linguagem audiovisual manifestada pelo hibridismo dissolve as fronteiras entre documentário e ficção, entre documentação e imaginação. As situações ficcionais só podem se materializar através da matéria-prima da realidade, assim como a realidade só pode ser remontada através do gesto de ficcionalização. Esse atravessamento contínuo, de linguagens e gêneros cinematográficos, só pode ser elaborado por meio da montagem-pêndulo de Cristina Amaral, que corta e remonta as cenas em temporalidade espiralar, abrindo espaço para as indeterminações e contradições.

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min), 2011. BRANCO sai, Preto Fica. Direção de Adirley Queirós. Cinco da Norte. (90 min), 2015. ERA uma Vez Brasília. Direção de Adirley Queirós. Cinco da Norte. (100 min), 2017.

MARiA BONiTA DO RECÔNCAVO Ianca Oliveira

MATO Seco em Vez Chamas. Direção de Joana Pimenta e Adirley Queirós. Cinco da Norte. (150 min), 2023.

Categoria: Ilustração ou colagem

A direção de Adirley Queirós e Joana Pimenta não explora as situações vivenciadas pelas atrizes na vida real como prática extrativista de reviver essas dores no filme, mas incorpora as histórias das atrizes, e o processo de ouvi-las, como constituição da própria forma fílmica. A relação que se estabelece entre direção e personagens é atravessada horizontalmente pelo desejo conjunto de desmontar essas memórias e remontá-las em um novo ordenamento através da ficção. Desse modo, “a ficção se cria não como excessiva abstração, mas, ao contrário, como relação concreta, experienciada, entre quem filma e quem é filmado" (Brasil, 2014, p. 142).

A colagem digital Maria Bonita do Recôncavo representa o cosmo-negro sendo a primeira mulher preta a pisar na terra. Ela é o símbolo de que tudo sabe e de que tudo vê. Maria Cecilia Conceição vulgo Maria Bonita do Recôncavo é auto representação de si e de outras mulheres negras nordestinas que vieram antes dela e que caminharam lado a lado com seus afetos, às suas lutas e as suas causas levando consigo as armas ancestrais porque com ela ninguém pode. A colagem foi realizada durante o período de realização de TCC da autora que é integrante do VISU - Grupo de Pesquisa e Extensão em Arte, Imagem e Visualidades da Cena. Palavras-chave: Autorepresentação; afetos; cosmonegro; ancestrais.

REFERÊNCIAS FREITAS, Cristiane. Da memória ao cinema. Logos, [S. l.], v. 4, n. 2, p. 16–19, 2015. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj. br/logos/article/view/14591. Acesso em: 14 nov. 2023. BRASIL, A. Performance: entre o vivido e o imaginado. In: PICADO, B.; MENDONÇA, C. M.; CARDOSO, J. (org.) Experiência estética e performance. Salvador: EDUFBA, 2014. p. 131-145. DE TAVARES, J. C. Danca de guerra-arquivo e arma: elementos para uma Teoria da Copoeiragem e da Comunicação Corporal Afro-brasileira. Belo Horizonte: Nandyala Livros e Servicos Ltda, 2012. HUBERMAN, Didi. Remontar, remontagem (do tempo). Edições Chão da Feira Caderno de Leituras n. 47. Tradução de Milene Migliano. Disponível em: https://chaodafeira.com/catalogo/ caderno-n-47-remontar-remontagem-do-tempo/. Acesso em: 13 nov. 2023. GUIMARÃES, Victor. Mato Seco em Chamas: A alegria de tacar fogo em tudo. O Trânsito, 10/11/2022. Disponível em: https:// otransito.wordpress.com/2022/11/10/mato-seco-em-chamasa-alegria-de-tacar-fogo-em-tudo/. Acesso em: 14/11/2023. PACE, João. Mato seco em chamas. A Terra é Redonda. 05/05/2023. Secão Cinema e Cultura. Disponível em: https:// aterraeredonda.com.br/mato-seco-em-chamas-2/#_edn5. Acesso em: 14/11/2023

Ficha técnica: Título: Maria Bonita do Recôncavo

Filmografia

Autoria: Ianca Oliveira

A cidade é uma só?. Direção de Adirley Queirós. 400 Filmes. (79

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921

MONTAGEM UMBIGADA, UM MÉTODO DECOLONIAL DE LEITURA, FABULAÇÃO E CIRCULAÇÃO DE IMAGENS1 Angelita Bogado2 Scheilla Franca de Souza3 1

Trabalho apresentado no GP Estéticas, Políticas do Corpo e Interseccionalidades, XXII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 45º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Pós-doutora no Departamento de Artes e Comunicação da UFSCar (DAC/UFSCar). Docente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Pesquisadora do GEEECA/UFRB. Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA. Email: angelitabogado@ufrb.edu.br 3 Pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRB (PPGCOM/UFRB) sob supervisão do Prof. Dr. Jorge Cardoso Filho. Pesquisadora do GEEECA/UFRB. Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA. Email: scheillafranca@gmail.com

RESUMO Com este artigo desejamos sistematizar um modelo metodológico de perspectiva decolonial que brota de nossas experiências de vida e pesquisa em torno de estéticas ligadas às manifestações artísticas periféricas. A montagem umbigada, método a ser apresentado e discutido ao longo deste trabalho, é um gesto de leitura/fabulação/circulação de imagens que tem como matriz estética o Samba de Roda do Recôncavo Baiano. Vamos demonstrar as relações entre a movência desta manifestação negra e suas potencialidades decoloniais como forma de fricção entre imagens. Nossa proposta é trazer para a gira acadêmica, nos passinhos miudinhos, o invisível que se encontra entre as experiências audiovisuais, desvelando faces estéticas e políticas muitas vezes encobertas. Palavras-chave: Método Comparado; Imagens Decoloniais; Samba de Roda; Audiovisualidades; Experiência Estética A origem é o fim4 Com este artigo, pretendemos apresentar e demonstrar uma prática metodológica de leitura, fabulação e circulação das imagens produzidas pelo cinema e outras audiovisualidades periféricas.5 O método da montagem umbigada nasce de uma inquietação em relação a academia e suas práticas pedagógicas, que ainda são fortemente marcadas pelos pensadores europeus e do mundo anglo4

Nos inspiramos no verso de Karl Kraus, “A origem é o alvo” (Ursprung ist der Ziel), que aparece na epígrafe da tese XIV, de Walter Benjamin (1994, p. 229). 5 Neste artigo trabalhamos especificamente com um corpus fílmico, no entanto, apontamos que o método se aplica a outras formas de imagem.

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saxão. Não se trata de subtrair autores e autoras que fizeram/fazem parte da nossa formação, mas de colocá-los em diálogo com outros saberes e formas de vida praticadas nas margens. Pautada na experiência concreta de vidas vividas e imaginadas, a montagem umbigada propõe um modelo de reflexão e produção das imagens que procura transgredir os limites, dicotomias e temporalidades impostas pelo mundo da branquitude. Trata-se de uma perspectiva comparada que enlaça teorias (SOUTO, 2020; RUFINO, 2019) e expressões culturais do Recôncavo da Bahia como o cinema, o samba de roda e as divindades do candomblé (culto religioso de matriz africana). Ao abraçar as subjetividades e experiências de um território ancestral, o modelo metodológico, não apenas se coloca enquanto uma pedagogia decolonial,6 como também dá a ver um corpo-coletivo que nos reconecta a história e a sensibilidade amefricana7. Importante destacar que o termo montagem, empregado por nós, resgata alguns princípios da atividade técnica de montar filmes como seleção e 6

Entendemos, assim como Luiz Rufino, que os termos decolonial e descolonial são “parte de um mesmo processo e ação” que não visam subtrair a experiência colonial, mas transgredi-la. (2019, p.11) 7 Acompanhamos o pensamento de Lélia Gonzalez de que estas manifestações da diáspora africana no Brasil não criam uma sensibilidade isolada, mas em diálogo com outras manifestações estéticas e culturais difundidas nas Américas, pode-se perceber algumas similaridades entre a experiência da diáspora africana no Brasil e as diásporas africanas por todo continente americano. Para Gonzalez, as marcas que evidenciam a presença negra nas Américas, levaram-na “a pensar a necessidade de elaboração de uma categoria que não se restringisse apenas ao caso brasileiro e que efetuando uma abordagem mais ampla, levasse em consideração as exigências da interdisciplinaridade. Desse modo, comecei a refletir sobre a categoria Amefricanidade” (1988, p. 71).

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 organização de planos, contudo, o agrupamento das imagens da montagem umbigada é realizado pelo olhar espectatorial. Da junção dos planos, operada pelo olhar, saltam processos de desconfinamento, imagens mais libertárias (ALVES JUNIOR, SOUZA, BOGADO, 2021), que nos conectam, como ponte além-mar, à herança da diáspora. Nos estudos recentes sobre a produção da Rosza Filmes8 (BOGADO; CARDOSO, 2021; BOGADO; CIRINO, 2021), uma das questões que atravessou a pesquisa foi: quais as imagens que emergiam do espaço fílmico que manifestavam as pragmáticas da expressão de um território ancestral, negro e de tradição oral? A cidade de Cachoeira e outras cidades do Recôncavo, como São Felix e Muritiba, são palco das narrativas fílmicas da Rosza, contudo, o território, nessas obras, não se apresenta como pano de fundo para a fotografia e performance das personagens. O Recôncavo vai muito além de uma paisagem bonita; a performance, o enredo e a estética são amalgamadas com/na experiência da vida ordinária (DEWEY, 2010). A paisagem sonora e imagética da Rosza dialoga diretamente com a experiência das ruas. Se a cidade cheira dendê no final de tarde, as paredes da personagem Margarida, em Café com canela, choram dendê. A prática de abraçar a vida social e comunitária deste território pela cena fílmica da Rosza estendeuse para os filmes de diversos realizadores e estudantes de cinema, da UFRB9. Nos inspiramos nesse movimento para pensar o método de análise das imagens, que tal qual os filmes, também abarca as expressões culturais do Recôncavo baiano. O método surge da relação entre as singularidades da estética fílmica que emergem do território e sua prosódia local. Vincular a metodologia da montagem umbigada aos processos das mediações sociais e simbólicas construídas na cena fílmica é se colocar na mesma rede de expansão de um território que foi silenciado por um país excludente, dando a ver outras formas de existir e saber para além do projeto colonial que nos é imposto desde os idos de Cabral.

O nome “montagem umbigada” está ligado a uma expressão cultural nascida no Recôncavo baiano, o Samba de Roda. Trata-se de um elemento originário do território, no qual estamos inseridos, mas com a potência de o ultrapassar. Datado do século XVII, trata-se de um estilo musical que combina música, dança e poesia e foi alçado, pela UNESCO, a Patrimônio Imaterial da Humanidade, em 2008. O Samba de Roda ganhou o mundo, pertence a todos nós Umbigando ideias: teorias em diálogo Foi nos encontros do Grupo de Estudos em Experiência Estética: Comunicação e Artes (GEEECA10), após a discussão dos textos de Mariana Souto (2020) e Luiz Rufino (2019) que surgiu a ideia de adotarmos o conceito de umbigada11. Do modelo comparado de Souto, nos interessou, sobretudo, a proposta de ser um método que não se reduz a sua escolha, mas é ele quem garante a “aparição” do problema. No gesto constelar12 da autora, os filmes se aproximam jogando luz uns sobre os outros. No avizinhamento, as obras falam, conversam, divergem, silenciam. É na relação, entre uma imagem e outra, que o fenômeno se revela; questões de comunidade, raça, gênero, sexualidade, poder aparecem ao olhar. Porém, destacamos que o movimento de umbigar compreende tanto filmes, quanto imagens de uma única obra. Adiante, demonstraremos o modelo de aproximação entre planos e entre as obras. Para além do reconhecimento do poder das aparições a partir do confronto das imagens, sentimos necessidade de agregar ao desenvolvimento do método outras pedagogias com o objetivo de tencionar os assombramentos da história, trazendo para o primeiro plano a poética e a força de uma cultura praticada nasruas e encruzilhadas do Recôncavo. Tecendo na teoria, assim como os filmes, uma trama decolonial. Convocamos os estudos de Luiz Rufino (2019) e Luiz Antonio Simas (2019) para nos auxiliar na abertura de outros caminhos. Com Rufino e Simas,

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A Rosza Filmes foi criada pelos egressos do Curso de Cinema e Audiovisual da UFRB, Ary Rosa e Glenda Nicácio, no ano de 2011. A dupla de cineastas realizou, até o momento, seis longas metragens de ficção e um filme documentário: Café com canela (Nicácio; Rosa, 2017), Ilha (Nicácio; Rosa, 2018), Até o fim (Nicácio; Rosa, 2020), Voltei! (Nicácio; Rosa, 2021), Mugunzá (Nicácio; Rosa, 2022), Na rédea curta (Nicácio; Rosa, 2022), Eu não ando só (Nicácio, 2021). 9 Cf. o trabalho Recôncavo da Bahia e as imagens sem fim: corpo coletivo, afeto e futuro (CIRINO, BOGADO, 2022), escolhemos quatro curtas-metragens de alunos e egressos do curso de Cinema e Audiovisual da UFRB para questionar estruturas racistas e coloniais que reverberam no presente, mas vão além e fabulam futuros em que existências negras implodem situações traumáticas ou violentas. Os filmes que acolhemos neste estudo são: O Arco do Tempo (2019) dirigido por Juan Rodrigues, Os dias com você (2021) de Luan Santos e Letícia Cristina, marvin.gif Part II (2020) e Heróica Dreams, ambos de Marvin Pereira.

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O GEEECA é vinculado à UFRB/CNPq, coordenado pelo Prof. Dr. Jorge Cardoso Filho e pela Prof. Drª Angelita Bogado. 11 Importante ressaltar os estudos de pós-doutoramento das autoras (BOGADO, UFSCar e SOUZA, UFRB, 2021-2022) que trazem no corpus produções audiovisuais ligadas ao território e a comunidade do Recôncavo baiano. 12 Alinhada ao método histórico de Walter Benjamin, Mariana Souto desenvolveu um método comparatista de análise fílmica, “Constelar é uma forma de produzir chaves de leitura, de decifrar um enigma a partir de sua visão em uma teia de relações. O objeto se abre quando ganha consciência da constelação na qual se encontra” (2020, p.07).

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 reencontramos os saberes corpóreos de Exu13 e sua face ancestral, Exu Yangí. Exu é uma divindade do candomblé que guarda o poder da transmutação, Exu Yangí é a face mais primordial do orixá, ou seja, uma parte, um caco, um fragmento do todo que é Exu. Yangí, manifestação ancestral do dono da encruzilhada, permite problematizar políticas de separabilidade impostas pela branquitude. E tal qual Exu, as imagens em cruzo, tem o poder de abrir caminhos para a comunicação, para podermos enxergar, nos passinhos miudinhos, as veredas por onde corre nosso fluxo de vida, nossa memória ancestral, ponte entre o continente africano e o sul americano, mais especificamente, nosso pisar sincopado brasileiro. No texto, Dá uma umbigada na outra: matrizes sensíveis nas encruzilhadas do samba de roda 14(BOGADO; SOUZA; CARDOSO, 2022), desenvolvemos pela primeira vez o diálogo entre essas teorias. Imbricado à metodologia das constelações fílmicas (SOUTO, 2020), ao saber encruzado de Exu (RUFINO, 2019) e as sensibilidades do Recôncavo, propomos uma reflexão sobre a movência do samba de roda como forma de circulação de sentido e emergência de imagens decoloniais, trazido à cena acadêmica para tirar para dançar outras perspectivas. É significativo que nossa exposição sobre o método umbigada seja posterior a sua empiria (BOGADO; SOUZA; CARDOSO, 2022). A montagem umbigada nasce, portanto, de uma escuta atenta da cena fílmica que por sua vez ouve a vida e outros modos de existir. Uma montagem com acento do território baiano, uma união pelo dançar. Uma roda de imagens que propõe um balé sem princípio nem fim, com ginga e movimento que não se submete ao olhar do colonizador, Laoryê! Através da montagem umbigada, propomos um método de circulação, leitura e fabulação das imagens que vibram em outra lógica. O movimento de cruzar as imagens, trazido por nós, segue o ritmo de uma expressão cultural que nasceu no Recôncavo da Bahia: o Samba de Roda. Os corpos que bailam se reúnem em um círculo, chamado de roda. No centro gravitacional da roda, um corpo dança em destaque. Após algum tempo, por meio de um movimento nomeado de umbigada, o corpo que baila no centro convida outro para performar em seu lugar, em continuidade. O Samba de Roda em si já é uma

encruzilhada, por enlaçar a cultura regional com os saberes corpóreos dos povos africanos em diáspora. A partir da poética do cruzo, o corpo da cena/em cena dá a ver outras formas de ser/saber. O método de fazer circular essas imagens, como corpos que dançam, neste trabalho, é inspirado no movimento da umbigada, em que uma imagem convoca a outra para o centro da roda. A umbigada é um gesto de interpretação e circulação das imagens que não é trazido aqui como novidade, mas senão como raiz de uma sensibilidade, de um estar no mundo, e de se relacionar com o sensório que nos é muito própria, embora nem sempre saibamos reconhecer de pronto - nos gestos deliberados daqueles que detiveram/ detém os privilégios das narrativas históricas - à luz do carrego colonial (RUFINO, 2018, SIMAS e RUFINO, 2019). O movimento da montagem umbigada procura nos colocar em interação com outros saberes, de maneira mais integrada, reconhecendo e desejando o conhecimento do Outro, a alteridade, o contato entre os povos, reinos, ambientes, dimensões do sensível, da diferença. Sendo a diáspora africana uma grande ferida que marca a nossa história, é ela também que ajuda a fundar nossa subjetividade. É, portanto, no terreno da encruzilhada (RUFINO, 2019) que dança o fundamento da aproximação das imagens, de onde vamos girar e dialogar com os cacos encantados por Exu Yangí15, pela ancestralidade da linguagem gestual e da coreografia da comunhão. As imagens decoloniais, desta miríade, estão para além da ideia de ruptura com a dominação colonial, são uma ação que encarnam e evocam práticas no sentido de transgredir heranças e projetos coloniais. Montagem umbigada: a dança das imagens que inspiraram o método Café com canela reverencia, em som e imagem, o samba de roda. Além das canções, o estilo musical nos chega por uma imagem simbólica. Uma das mulheres mais importantes do samba de roda do Recôncavo, Dona Dalva, aparece no filme como atriz. Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, a sambadeira, integrante da 15

Sobre as potências de Exu Yangí, Cf. o capítulo “Yangí, Exu Ancestral: o ser para além do desvio” (RUFINO, 2019, p. 23-32).

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Os escritos de Rufino e Simas nos auxiliaram a elaborar nossa proposta metodológica a partir de uma perspectiva decolonial, contudo, os saberes de Exu aparecem, enquanto possiblidade de linguagem, - cruzamento, trânsito entre os planos e reiteração de gestos - na constelação fílmica que apresentamos no 31° Compós. Cf. (BOGADO; SOUZA; CARDOSO, 2022). 14 Texto apresentado no 31° Encontro Anual da Compós.

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte16, que há mais de 90 anos derrama axé por essas terras com suas letras, seu gingado e sua força, em Café, Dona Dalva é Roquelina, a avó de Violeta. No filme, a solidariedade feminina é construída a partir de uma roda de afetos, em que o caráter de comunidade aflora.

ex-aluna), ancestrais (no cuidado espiritual de santos e orixás) e estéticos (na relação som e imagem); uma experiência artística capaz de reorganizar o regime sensível. Para abraçar, Margarida, primeiro, precisou ser abraçada. Figura 02: Corpos da cena/em cena: a interdição e circulação do axé

Figura 01: No centro da Montagem Umbigada: Dona Dalva/ Roquelina

Fonte: Café com canela, Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2017, Rosza Filmes

O cinema, produzido no Recôncavo, identifica aquilo que sobrevive nas variadas experiências dos grupos sociais deste território. Experiências do mundo sensível subjetividades, formas de afeto, o viver em comunidade reverberam nos corpos da cena/em cena. Nesse sentido, nos parece interessante pontuar também nossa concepção de corpo da cena/ corpo em cena. A noção de corpo da cena/em cena foi construída a partir da mise-en-scène (COMOLLI, 2008), contudo, trouxemos para o conceito as relações de vida/arte, próprio/comum, território/ espaço-fílmico, incorporando ao pensamento de Comolli, as dinâmicas de vida responsáveis por parir as corporalidades audiovisuais, em suas performances da cena (ou seja, o corpo audiovisual em diálogo com o vivido) e nas performances em cena (corpos filmados que emanam vivências e desaguam no engajamento da espectatorialidade). Há incorporações próprias dos modos de vida, a partir dos pertencimentos e processos identitários, territorialidade, afeto daquelas relações vividas/ imaginadas.de vida, a partir dos pertencimentos e processos identitários, territorialidade, afeto daquelas relações vividas/imaginadas. A dor de Margarida, protagonista de Café com canela, desencadeada pela perda precoce de Paulinho, seu filho, faz de sua casa um manancial de sons, que ora sufocam e atormentam, ora redimem sua dor. Consumida pelo luto, Margarida está aprisionada no quadro. Sozinha e enclausurada, ela está distante da experiência de comunidade, tão característica do Recôncavo. A rede de afeto, que aos poucos abraça e restitui o axé de Margarida, é feita de cruzamentos pessoais (na amizade de Violeta, sua

Fonte: Café com canela, Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2017, Rosza Filmes.

Amanhecer. Violeta colhe rosas, Cida lava a calçada, Ivan despede-se de Adolfo. Todos conversam entre si e partilham vivências. Por uma artimanha da montagem, personagens estão no mesmo quadro e o espectador dentro das três casas. O limite entre o dentro e o fora das casas e entre as casas é tênue, e coladas por paredes únicas, deixam vazar partilhas de afeto e cuidado. A estética aproxima ainda mais o que já é grudado, amplificando na cena a experiência da prática amorosa (hooks, 2021). Até esse momento, demonstramos como o movimento de cruzar as imagens, dentro de um mesmo filme, também pode dar a ver corporalidades audiovisuais e os processos identitários ligados ao território, mas alarguemos a roda.

Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 O olhar atento, a partir do repertório de cada espectador, impele o movimento de umbigar. Nessa perspectiva, uma imagem de Café com canela nos leva a umbigar Nascente (2020). O filme, de Safira Moreira, entra na roda. Nas duas cenografias (Figura 3), vemos quadros de mulheres negras com o rosto apagado. Na parede, na porta de entrada da casa da personagem Margarida, desenhos de autoria da artista plástica cachoeirana, Tina Melo17. No filme de Moreira, diante do espelho e atrás de uma mulher incensando a casa, um quadro da Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte.18 A invisibilidade das faces vai muito além de uma denúncia dos silenciamentos seculares aos quais foram submetidas, é também um registro de que o futuro começou há tempos. Ao umbigar essas imagens o corpo da/em cena se expande, e da relação entre elas emerge um corpo-coletivo. O corpo-coletivo, que não mais está restrito a um território localizado, tem a potência de criar outros sentidos espantando o projeto colonial e reconfigurando estruturas de poder. Não são mais faces borradas ou silenciadas, unidas pela força da umbigada, o gesto ancestral abraça a história, e todas essas mulheres passam a ser um corpo-coletivo, comunitário, que sambam na mesma roda. A imagem da Irmandade da Boa Morte (festejada em Cachoeira) aparece na sala da cineasta Safira. Nas paredes de Margarida, filha do Recôncavo da Bahia, ecos das tias baianas do no Rio de Janeiro, na Pequena África ou África em Miniatura. Em movimento, na montagem umbigada, performam travessias no espaço-tempo e inventam outras formas de estar juntas. O perfume da rosa e do incenso descortina uma memória afetiva e abre os caminhos de quem veio depois. Na montagem umbigada, a linguagem gestual aparece com força. Os corpos encenam, se movimentam, por vezes dançam e fazem dançar atraindo outros para o centro da roda. Um balé, tal qual o samba de roda, que imprime em sua coreografia a importância da experiência comunitária para a constituição dos corpos-coletivos e afetivos.

Figura 03: Nas moradas de Margarida e Safira, imagens reverenciam o passado.

Fonte: Café com canela; (Ary Rosa; Glenda Nicácio); 2017 e Nascente; (Safira Moreira, 2020)

O samba, a roda, a umbigada são movimentos e formas de uma expressão cultural que operam contra a dispersão e a favor da comunhão dos entes. As marcas da coletividade ensinada nas rodas de samba, atravessam o mundo sensível e são abraçadas pela estética decolonial das imagens. Os cruzos estéticos são feitos para que o abraço entre familiar/comunitário, obra/espectador, seja um jeito de fazer tocar dimensões do sensível, do partilhado nomeado, dedicado e engajado. A roda das imagens pode ser alargada pelo olhar espectatorial, trazendo para o círculo corpos em cena/da cena que enfatizem o fenômeno. Para umbigar com as imagens de Café e Nascente, poderíamos trazer outras faces encobertas, como as de Exu (Guardião dos caminhos, Milena Manfredini, 2020) e de Ana Pi (NoirBLUE, Ana Pi, 2018). Figura 04: Outros rostos encobertos, muitas faces reveladas

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A Festa da Nossa Senhora da Boa Morte é uma celebração religiosa - mistura do catolicismo com a cultura dos orixás - que acontece todos os anos entre os dias 13 e 17 de agosto, na cidade de Cachoeira-BA. Rituais, procissões, comidas e vestes são símbolos que encarnam a passagem do Aiyê ao Orum, do mundo físico ao espiritual. A festa celebra o afeto, o respeito e a união enquanto armas de resistência de mulheres negras no Brasil. A história da Irmandade nasce de um coletivo de mulheres, que vendendo acarajé, juntavam dinheiro para comprar a liberdade de outras mulheres. Sobre a Irmandade Cf.: https:/ /www.salvadordabahia.com/festa-de-nossa-senhora-da-boa-morte/

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Tina Melo, artista plástica cachoeirana, cursou a Escola de Belas Artes da UFBA, suas obras foram expostas em diversas galerias e bienais de arte, sobre a artista Cf.: Melohttps://www.

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921

Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 de Libertação. In: ANAIS DO 44º CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO – VIRTUAL – 4 a 9/10/2021. Disponível em: https://portalintercom.org.br/anais/ nacional2021/resumos/dt7-ep/francisco-alves-junior.pdf Acesso em 20 fev. 2022. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994 BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2007.

Fonte: Criação nossa a partir das imagens de Café com canela (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2017); Nascente (Safira Moreira, 2020); Guardião dos caminhos (Milena Manfredini, 2020) e NoirBLUE (Ana Pi, 2018). Acervo nosso.

Fontes: O Guardião dos caminhos; (Milena Manfredini, 2020); NoirBLUE; (Ana Pi, 2018)

O movimento de umbigada das imagens, marcada pela forma e pelas performances em cena, acolhe o olhar e fomenta a pulsão criativa, bem como promove a consciência da imagem da imagem (MONDZAIN, 2013). Do espaço entre - do rosto de Exu encoberto pelo Sol e do véu que esconde a face da Ana Pi - salta uma imagem de inversão, tal qual as imagens das paredes de Safira e Margarida. Performances aparentemente do não ver promovem a incorporação de muitas aparições. A face não é mais só de Exu e de Ana Pi (Figura 4), muitos outros rostos figuram nesse balé. Do filme de Manfredini, destacamos a frontalidade do corpo diante da câmera, em primeiro plano. Trata-se de um rosto que dá a ver a água, os barcos, a ponte, o céu, o morro. É um rosto de todos os elementos, mas onde a água ocupa grande parte do plano, emoldura o contorno de Exu, abrindo caminhos para a frontalidade do olhar e a ocupação do centro do plano. Em NoirBLUE, o rosto aparece encoberto também, mas pelo véu que é o véu da lembrança com a qual Ana dança, incorporando a si um elemento, um adorno, um adereço com múltiplas funcionalidades. Cobrindo o rosto, ela se une, se dissolve em todos os tempos, e se junta a todas as suas possíveis origens, como as senhoras da Irmandade da Boa Morte e as tias baianas (Figura 3), encobertas pelas narrativas históricas de um Brasil hegemônico, patriarcal, branco. Do encoberto, das imagens umbigadas, são reveladas potências decoloniais. Figura 05: Montagem umbigada

agendartecultura.com.br/noticias/tina-melo-das-margens-doparaguacu-a-baia-de-todos-os-santos/ 18 Cf. nota 14.

Acima (Figura 5), propomos a fabulação de uma aparição possível para a montagem umbigada das imagens convidadas para a dança que exemplifica o método. Trata-se do desenho da experiência da montagem umbigada, em que personagem Roquelina, encarnada pela sambadeira Dona Dalva, inicialmente, ocupa o centro da roda. Encontramos nela a força motriz que conduz o fluxo da movência de leitura/criação/fabulação, emanada da matriz sensível do Samba de Roda. O fim é a origem O movimento metodológico da montagem umbigada, trazido à baila neste trabalho, nasce das sensibilidades - do sensível para o inteligível. Reconhecemos ser mais usual nos processos de construções teóricas/metodológicas acadêmicas o gesto inverso: teorias e olhares científicos que partem do inteligível para o sensível. Esta operação de leitura/fabulação/circulação que propomos como método, longe de se colocar como um modelo que se encerra em si, a ser replicado apenas, é um convite à umbigar, à construção de outros gestos interpretativos de experiências estéticas e corporalidades que tragam para a gira acadêmica, um ebó que não parta apenas da teoria, mas que traga o axé, a força vital, as potências do encantamento de cada território. Aqui o samba de roda mobiliza o método de cruzar imagens. Dentro desta perspectiva, em nosso desejo do Outro, de implicarmo-nos entre o vivido e o imaginado, que muitos caminhos mais sejam abertos para o encantamento do saber acadêmico pelo diálogo com os processos de reconhecer os saberes de nossos territórios e da vida que neles pulsa. REFERÊNCIAS ALVES JUNIOR, Francisco; DE SOUZA, Scheilla Franca; BOGADO, Angelita. “O Amor Não Cabe em Um Corpo?”: O Engajamento Espectatorial pela Experiência Familiar/comunitária e Imagens

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história da religiosidade brasileira. (Nascimento, 2016, p. 156)

FiLMES DE ASÉ 1

Letícia Cristina Marina Mapurunga de Miranda Ferreira2 zResumo Neste artigo irei unir os filmes: “Olhos de Erê”, dirigido por Luan Manzo, “Ajeum Pèlú Aiyê - Comemos junto com a Terra” dirigido por, Ekedji Jaqueline, e “Alagbede”, dirigido por Safira Moreira, em um agrupamento de filmes que chamarei de “Filmes de Asè” (utilizarei a palavra axé, que significa força vital, em sua escrita em ioruba). Direcionando uma compreensão do candomblé como um modo de vida, me basearei nos estudos de Wanderson Flor do Nascimento no texto “Sobre os candomblés como modo de vida: Imagens filosóficas entre Áfricas e Brasis”.Resumo Neste artigo irei unir os filmes: “Olhos de Erê”, dirigido por Luan Manzo, “Ajeum Pèlú Aiyê - Comemos junto com a Terra” dirigido por, Ekedji Jaqueline, e “Alagbede”, dirigido por Safira Moreira, em um agrupamento de filmes que chamarei de “Filmes de Asè” (utilizarei a palavra axé, que significa força vital, em sua escrita em ioruba). Direcionando uma compreensão do candomblé como um modo de vida, me basearei nos estudos de Wanderson Flor do Nascimento no texto “Sobre os candomblés como modo de vida: Imagens filosóficas entre Áfricas e Brasis”.Resumo Neste artigo irei unir os filmes: “Olhos de Erê”, dirigido por Luan Manzo, “Ajeum Pèlú Aiyê - Comemos junto com a Terra” dirigido por, Ekedji Jaqueline, e “Alagbede”, dirigido por Safira Moreira, em um agrupamento de filmes que chamarei de “Filmes de Asè” (utilizarei a palavra axé, que significa força vital, em sua escrita em ioruba). Direcionando uma compreensão do candomblé como um modo de vida, me basearei nos estudos de Wanderson Flor do Nascimento no texto “Sobre os candomblés como modo de vida: Imagens filosóficas entre Áfricas e Brasis”.Resumo Neste artigo irei unir os filmes: “Olhos de Erê”, dirigido por Luan Manzo, “Ajeum Pèlú Aiyê - Comemos junto com a Terra” dirigido por, Ekedji Jaqueline, e “Alagbede”, dirigido por Safira Moreira, em um agrupamento de filmes que chamarei de “Filmes de Asè” (utilizarei a palavra axé, que significa força vital, em sua escrita em ioruba). Direcionando uma compreensão do candomblé como um modo de vida, me basearei nos estudos de Wanderson Flor do Nascimento no texto “Sobre os candomblés como modo de vida: Imagens filosóficas entre Áfricas e Brasis”.

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Discente do curso Cinema e Audiovisual-UFRB e bolsista do PET Cinema Docente do curso de Cinema e Audiovisual da UFRB e tutora do PET Cinema - UFRB.

RESUMO: Este texto é uma análise dos filmes: “Olhos de Erê”, dirigido por Luan Manzo, “Ajeum Pèlú Aiyê Comemos junto com a Terra” dirigido por Ekedji Jaqueline, e “Alagbede”, dirigido por Safira Moreira, em um agrupamento de filmes que chamarei de “Filmes de Asè” (utilizarei a palavra axé, que significa força vital, em sua escrita em iorubá). Direcionando uma compreensão do candomblé como um modo de vida, me basearei nos estudos de Wanderson Flor do Nascimento no texto “Sobre os candomblés como modo de vida: Imagens filosóficas entre Áfricas e Brasis”. Palavras Chave: Asé, filmes, candomblé. 1. Introdução Analisarei os filmes através de uma crítica cinematográfica inspirada no método de constelações fílmicas de Mariana Souto, que consiste em construir um desenho de análise numa temporalidade não linear entre três filmes (ou mais), que possibilite destacar os aproximamentos e os distanciamentos das obras investigadas. Falarei sobre cada filme individualmente e depois concluirei relacionando as três obras nos aspectos que as unem em prol de uma visão do candomblé normalizado em vários âmbitos da vida humana. Vejo a relação dos filmes selecionados em um desenho circular, cujo centro é o candomblé, mais especificamente, a vida no candomblé. E cada filme demonstra um lado diferente dessas maneiras de vida. Entendendo o candomblé não só como uma religião, mas também como um estilo de vida, pretendo pontuar nos filmes escolhidos as maneiras que as práticas do candomblé perpassam por diversos âmbitos da vida humana, adquirindo um caráter rotineiro e comum. Busco salientar nesses filmes a normalização do candomblé como modo de vida, em contraponto a visões estereotipadas que tratam do assunto de forma estigmatizada e

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exotizada. Deixando de lado os estereótipos, os “Filmes de Asè” trazem a perspectiva de quem vive dentro da religião e têm o candomblé como parte da sua vida. Essas obras foram escolhidas pois transpiram ancestralidade em toda a sua forma e conteúdo, e as vejo como um bom exemplo de como as práticas de candomblé além de rotineiras, também são geracionais. Em Olhos de Erê vemos o candomblé na infância; em Ajeum Pèlú Aiyê - Comemos junto com a Terra, vemos essas práticas na vida de uma jovem adulta, e em Alagbede vemos a influência do candomblé na vida e no ofício de Zé Diabo de 74 anos. Cada filme representa uma fase diferente da vida, de infância até maior idade, mas também representam uma forma diferente das práticas de candomblé aplicadas na rotina das pessoas, o que contribui para o ponto central de minha escrita. Devido ao preconceito e o racismo religioso presentes na sociedade brasileira, se faz necessário propagar a visão do candomblé como modo de vida, de uma maneira que possa gerar um entendimento de normalização das práticas de candomblé no Brasil. 1.1 Os Candomblés O Candomblé é uma religião brasileira de matriz africana, cuja criação se deu em meados do século XIX. Existem várias vertentes do candomblé, e o termo nação é utilizado para apontar um lugar predominante de onde determinadas práticas se originaram, as nações de candomblé mais conhecidas e praticadas são Ketu, Angola e JeJe. Dessa forma, Wanderson Flor Nascimento explica que: Pessoas africanas ou descendentes de africanas constroem “religiões” brasileiras que trazem elementos africanos e os articulam de modo particular formando um conjunto de ritos, crenças e valores que ficaram conhecidos, a partir das experiências na Bahia e no Rio de Janeiro, como candomblés. Dito de outro modo, os candomblés são “religiões” brasileiras que construíram práticas sincréticas que uniram elementos africanos, indígenas e cristãos na

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Nascimento acredita que talvez não seja correto utilizar a expressão “o candomblé” no singular, já que existe uma pluralidade enorme nessas práticas. Dito isso, saliento que ao utilizar a expressão no singular, não o faço na intenção de reduzir os candomblés a uma coisa só. O objetivo da minha escrita é navegar pelas diversas formas de ser e viver dentro dos candomblés presentes nos filmes abordados. Os praticantes consideram o candomblé mais como um estilo de vida do que como uma religião, já que as praxes não dizem respeito estritamente a ritos feitos em locais sagrados, e sim a formas de enxergar o mundo como um todo e cultivar práticas que proporcionem sintonia entre a corporeidade humana com a natureza e o plano espiritual. Nos filmes analisados é possível perceber questões sobre a cultura do candomblé aplicadas na vida cotidiana, como o respeito à ancestralidade e a oralidade como forma de compartilhar conhecimentos. Ancestralidade se refere ao que veio antes. A um antepassado, como tataravó, ou ligações mais distantes, como a descendência de negros brasileiros com africanos. No Candomblé esse entendimento se expande também para o plano espiritual. De uma forma em que se é possível entender a ancestralidade de várias maneiras. Como por exemplo, através dos Orixás, das entidades, e das conexões espirituais que a vivência no candomblé proporciona. A ancestralidade de maneira espiritual pode ser mais fácil compreendida quando sentida através da experiência. Os ensinamentos de candomblé são passados através da oralidade. Dessa forma, não existe um livro sagrado contendo doutrinas e normas a seguir, geralmente o que se aprende sobre as diferentes vertentes dos candomblés é baseado na vivência. E assim como a ancestralidade, a oralidade é algo que está presente nos três filmes escolhidos, cada um a utiliza de maneira distinta, de modo que é perceptível em cada obra a conexão dos sujeitos filmados com o Asè. Os candomblés são regidos pela força do Asè, que é uma energia vital que está presente em toda a realidade, de maneira essencialmente dinâmica. Wanderson Flor diz que “Os candomblés sustentam uma cosmologia integrada da realidade, que poderíamos chamar de holística, na medida em que pensa uma interconexão radical entre todos os elementos da natureza humana e não humana”. Com esse pensamento nomeio este agrupamento de “Filmes de Asè”, pois tratarei de filmes que demonstram em sua forma e narrativa essa

interconexão advinda do asé. 2. Análise dos filmes 2.1. Olhos de Erê Em contraponto a filmes que abordam o candomblé através de um olhar enviesado, carregado de estereótipos e preconceitos, Olhos de erê traz uma visão simples do candomblé através dos olhos de uma criança, Luan Manzo, criança quilombola, e praticante do candomblé da nação Angola. Luan, realizador do filme, nos mostra o terreiro de sua avó de uma forma descontraída e também didática quando explica coisas específicas de sua religião. Considero esse filme excepcionalmente revolucionário em seu gesto despretensioso de uma criança apresentando o local onde vive em completa normalidade. É inovador no sentido de trazer em sua linguagem cinematográfica uma forma diferente de construir um filme. A tela em formato vertical e a voz da criança que nos guia pelo filme, são artifícios que rompem com o significado comum de o que é cinema, e traz à tona uma forma diferente de produção fílmica, que ressoa a possibilidade de novos cinemas. E o ato de uma criança assumir esse papel de realizador de cinema também é emblemático, já que crianças negras são um grupo muito subalternizado e desrespeitado na sociedade brasileira. A existência desse filme me remete aos ensinamentos do candomblé de respeitar os mais novos assim como os mais velhos. Já que Luan encontrou em sua vó alguém para lhe dar ouvido e que através de contatos com cineastas ajudou a dar vida a esse filme, cujos frutos resultaram no custeio da iniciação do pequeno Manzo. Nesse filme vemos que o cinema pode assumir várias formas dependendo de quem assume o seu controle. E com seus olhos de erê, Luan Manzo nos mostra o local onde vive e cultua o sagrado, mas sempre com o entendimento que há locais que não se deve mostrar, e o cuidado de explicar e traduzir significados de termos particulares de sua religião. Ao final do filme Luan canta uma canção para Nkosi, e termina o tour mandando beijos para sua avó, sua mãe, seu irmão e toda a sua família. Esse momento expressa a característica familiar que o candomblé possui. Olhos de erê é um filme que traz a importância de cultivar saberes em comunidade, e as falas do diretor Luan Manzo mostram como esses conhecimentos transitam através da oralidade. Possibilitando um lugar de fala a uma criança negra que usa sua voz para conduzir a narrativa fílmica. 2.2. Ajeum Pèlù Aiyê – Comemos Junto Com A Terra

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 ‘ Dirigido por Ekedjiy Jaqueline Martins, Ajeum Pèlù Aiyê – Comemos juntos com a terra, é um filme que compartilha com o espectador saberes do candomblé através de um texto sensível e imagens que evocam uma contemplação da natureza. Enquanto ouvimos uma voz suave falar sobre a importância da terra e do alimento que ela fornece, vemos imagens de plantas num chão terroso. O formato de tela mais comprimido, ajuda a focar a atenção do espectador, ao mesmo tempo em que traz um sentimento maior de contemplação desses elementos. Nesse filme é possível perceber a natureza através de seus tons. O marrom nas árvores, na terra, na pele negra e na panela de barro. O verde na copa das árvores, na grama no chão, nas folhas que são utilizadas para preparar um banho, nos alimentos que a terra fornece e na mata. O vermelho nas flores, na borboleta que parece enfeitar as plantas, no arcoíris que ilumina o céu, no azeite de dendê e na pimenta que compõem a farofa e na carne que é preparada na panela. O filme transita entre esses tons de marrom, verde e vermelho, tons que remetem ao terroso, trazendo assim em sua materialidade essa forte conexão com a terra que nos alimenta. “Ajeum é uma expressão do amor ancestral que a terra nos possibilita”. Ajeum significa “comer junto” e com essa frase o filme traz o sentimento de comunidade que é compartilhado no candomblé. Nessa obra percebe-se que a comunidade de que se fala, não consiste apenas em união entre seres humanos, se trata de uma união entre seres humanos e a natureza. No candomblé os elementos da natureza fazem parte de seus ritos, e o filme a cada gesto e cada fala, transpira um respeito pela terra e o que dela vem. Pois se compreende que na natureza vive o sagrado. Os orixás são associados a elementos da natureza, fenômenos meteorológicos, como a chuva e o arco-íris, certas plantas e animais, atividades econômicas a que se entregavam os negros e determinadas cores, como o branco de Oxalá e o vermelho de Xangô. (Alves e Aureliano, 2010, p. 569)

Do início ao fim é figurada a presença de saberes que evocam a cosmovisão do candomblé. Durante todo o filme a oralidade se faz presente no compartilhamento desses saberes. A voz é o que guia a narrativa. E as palavras ditas são que guiam nossos olhos nessa observação da natureza. Como quando é dito que “a terra é um lugar de memórias”, e a imagem na tela mostra o verde das plantas que cresceram na terra. Utilizar da oralidade é compartilhar algo seu (a voz), para comunicar algo ao coletivo. Na tradição oral é exprimido o valor do coletivo, no sentido de que

quando se fala, é para alguém ouvir, para que outras pessoas encontrem significado em suas palavras. No filme é dito que bastam os pingos da chuva cair na terra que está feita a conexão, mostrando como na natureza tudo está interligado. E na forma fílmica a oralidade é esse elemento que interliga os aspectos do filme, e conecta a presença humana com a natureza. Assim como diz Hampetê Ba, “a tradição oral é a grande escala da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos”. Dessa forma, na tradição oral não existe uma separação entre o espiritual e o material. E Ekedji Jaqueline consegue demonstrar isso nesse filme ligando a natureza ao sagrado de uma maneira que soa poética em nossos ouvidos. A diretora aborda um assunto que é comum a todos os seres humanos: a alimentação, mas que no candomblé é vista de forma sagrada que gera uma comunhão de energias com a natureza desde o momento de seu preparo. Ajeum Pèlú Aiye – Comemos Junto Com a Terra, nos traz o sentimento de contemplação divina em relação à natureza e seus frutos, de uma forma que é possível compreender o ser humano como parte natural do meio ambiente. E o filme incentiva essa noção de pertencimento com a terra para quem o assiste, partilhando de saberes africanos que regem a visão do candomblé. 2.3. Alagbede Dirigido por Safira Moreira, Alagbede, palavra em ioruba que significa “o ferreiro”, é um filme que conta a história de José Adário dos Santos, mais conhecido como Zé Diabo, em seu ofício de ferreiro. O filme se inicia num momento de contemplação do ferro, com planos parados mostrando os instrumentos de trabalho. Esse sentimento de contemplação se estende também ao plano sonoro, já que nesse momento o som que está em ênfase é o som do ferro sendo manipulado. Após o silêncio inicial, ouve-se a voz de Zé Diabo, ele diz o quanto o orixá Ogum é presente na história de sua família, desde o tataravô até seu pai, todos eram filhos de Ogum. Em sua fala Zé demonstra a importância do orixá em seu ofício como ferreiro, já que Ogum é o senhor do ferro, e quem abre o caminho de possibilidades para o seu trabalho. É possível perceber o respeito e o apreço que o ferreiro tem pelo orixá. Ao enquadrar as imagens do sagrado presentes na oficina, e a fumaça que sai do charuto que Zé acende, o filme explicita que todo o processo de feitura das peças do ferreiro está envolto pela espiritualidade. Na oficina de Zé Diabo vemos imagens que representam orixás em um altar, onde Zé acende uma vela assim que chega para trabalhar. Baseado nos costumes do candomblé, nos cânones da arte Iorubá e nas diferentes

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 expressões possibilitadas pelo ferro, Zé Diabo produz sublimes esculturas de ferro que percorrem terreiros, museus, coleções e galerias, dando vida a entidades sagradas e dialogando com a potência férrea de seus ancestrais e de Ogum, aquele que rege seu trabalho o ferro. (T2 Comunicação, 2021)

Nesse filme Safira Moreira consegue mostrar essa onipresença do candomblé no trabalho de Zé Diabo. Com as imagens de símbolos do sagrado que estão dispostos pela oficina, e com a fala de Zé, que exprime a sua conexão com o asé, vemos o quanto o candomblé permeia a sua vida de uma maneira cotidiana. 3. flmes de Asé Em Olhos de Erê de Luan Manzo, Ajeum Pèlú Aiyê - Comemos junto com a Terra de Ekedji Jacqueline, e Alagbede de Safira Moreira, vemos a presença da oralidade como recurso narrativo. Em Olhos de Erê,.. No primeiro vemos o candomblé na infância de Luan Manzo, diretor do filme, enquanto nos mostra o terreiro de sua avó, local onde é cultuado o sagrado. E ouvimos por 10 minutos a voz do pequeno Manzo enquanto mostra o local, e há momentos em que a sua fala se torna mais didática ao explicar coisas relacionadas à liturgia do candomblé para quem não é familiarizado. E através da naturalidade em sua fala percebe-se como tais coisas transitam comumente em sua vivência. Em “Ajeum Pelu Aiye - Comemos Juntos Com a Terra” vemos o sagrado da visão do candomblé em algo que é comum a todos os seres humanos, a alimentação. Pois até no ato de se alimentar, a cosmovisão do candomblé nos mostra que o sagrado também está presente. No filme ouvimos a voz de uma mulher falando sobre o alimento que a terra fornece com o sentido sagrado de tirar da terra uma fonte de vida. E ao falar sobre isso ela nos diz também sobre ancestralidade, já que como ela diz essa conexão com a terra, e a comida que dela vem, se deu através da convivência e dos ensinamentos de suas mais velhas (mãe, tias, avós). Em Alagbede de Safira Moreira, vemos a influência do candomblé no trabalho de Zé Diabo, que faz esculturas de ferro para os orixás. O filme nos traz uma forma de perceber o candomblé como gerador de renda, pois é desse trabalho que Zé Diabo se sustenta, sempre com a força dos orixás ao seu lado. A fala também se faz presente durante grande parte do filme com a voz do ferreiro Zé Diabo, contando sobre seu ofício, sua família e sua devoção com o orixá Ogum, que é o senhor do ferro e também senhor dos caminhos. Nesse filme vemos que o trabalho de Zé Diabo está intimamente ligado com as

práticas e crenças do candomblé, que transitam pelas esferas de sua vida. A intenção de juntar esses filmes nessa análise crítica é a de salientar em cada um deles um aspecto cotidiano do candomblé, para proporcionar um entendimento do candomblé como um modo de vida, para além de apenas uma religião. Em seu filme Ekedji Jaqueline nos diz sobre a força do ferro que compõe o núcleo da terra, e que no corpo humano é o que possibilita o caminho do sangue pelo corpo. Ela diz que o ferro mantém as coisas firmes, e através do ferro temos uma possibilidade de caminhos, é uma possibilidade que nos convida a ficar dide, palavra em iorubá que significa levante/levantar. Em Alagbede vemos essa potência dide que o ferro possui, através da figura de Ogum, que é refletida no ferreiro Zé Diabo através de sua devoção e empenho pelo orixá e por seu trabalho. Em Olhos de Erê, Luan Manzo canta uma canção de Ogum, que é o seu orixá de cabeça. A presença de Ogum atravessa todos os filmes, deixando marcado esse convite: dide! Os Filmes de Asè nos convidam para enxergar o mundo de forma mais sensível. Convidam-nos a perceber a grandeza do sagrado através da simplicidade do olhar de uma criança, a entender a conexão humana com a natureza e apreciar os momentos de comunhão que temos com a terra que nos abriga, e a perceber o esplendor que a ligação com os orixás podem proporcionar na vida e no ofício de uma pessoa. Em todos os filmes vemos como o candomblé circula em vários aspectos da vida humana, e em diferentes idades. Gerando um senso de comunidade e respeito não apenas entre pessoas, mas também com a natureza e o sagrado. Nos três filmes se faz presente valores do candomblé, como a oralidade, a ancestralidade, o respeito pela natureza e o mundo a sua volta, e a noção de entender que o sagrado não vive apenas dentro de um terreiro, mas que ao estar no mundo, já se está na presença do sagrado. A visão candomblecista é completamente influenciada pela cosmovisão africana, que entende que nós vivemos em comunhão com o mundo à nossa volta, e é isso que esses filmes mostram pessoas vivendo em harmonia com a natureza que os cercam e os elementos que dela provém. Termino essa análise dizendo que, Uma vez que se liga ao comportamento cotidiano do homem e da comunidade, a “cultura” africana não é, portanto, algo abstrato que possa ser isolado da vida. Ela envolve uma visão particular do mundo, ou, melhor dizendo,

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 uma presença particular no mundo – um modo concebido como um Todo onde todas as coisas se religam e interagem. (Hampaté Bâ, 2010, p. 169.)

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TEMPO DA PEDRA DE EXU

O candomblé não ocupa apenas um espaço na vida de uma pessoa, o candomblé se torna a vida da pessoa, pois traz uma visão diferente do mundo, onde tudo está conectado. Tendo a visão de que o mundo que vivemos é permeado pelo sagrado, não é possível reservar essas práticas apenas a um local, ou momento específico. O candomblé é vivido e sentido, quase como se fosse respirado, e assim como o oxigênio alimenta nosso corpo, o candomblé nos alimenta com o Asé.

Mapa Macedo

No atravessamento que traça o tempo, a memória, que é registro temporal, vira do avesso, sendo capaz de criar um caminho-futuro-passadopresente. Tempo criado pela memória e desafiado através das encruzilhadas de Exu.

REFERÊNCIAS Nascimento. Wanderson. Sobre os candomblés como modo de vida: Imagens filosóficas entre Áfricas e Brasis. Ensaios Filosóficos, Volume XIII, 2016. Disponível em: http://www. ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo13/11_NASCIMENTO_ Ensaios_Filosoficos_Volume_XIII.pdf Acesso em: 05/06/24

Palavras-chave: Exu; tempo; encruzilhada; caminho; orixá.

Souto. Mariana. Constelações fílmicas: um método comparatista no cinema. 2020. Disponivel em: https://revistas.pucsp.br/index. php/galaxia/article/view/44673 Acesso em: 05/06/24. Bâ. A. Hampetê. A tradição viva. Unesco, 2010. Disponivel em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000042769_por Acesso em: 05/06/24.

Ficha técnica: Título: Tempo da Pedra de Exu Autoria: Mapa Macedo 2021/Salvador BA Desenho feito com Nankin 0.2 e 0.05 com inversão digital das cores. Categoria: Ilustração ou colagem

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TÍTULO AQUi

O curta de animação Juntos Novamente (2021) da Disney nos apresenta um casal de idosos que se uniram pela dança mas que, com o passar dos anos, se afastaram do hobby tão querido por conta de algumas limitações que o tempo inevitavelmente traz ao corpo. Quando uma chuva cai e oferece ao casal a possibilidade de desfrutar da jovialidade novamente, um deles, o senhorzinho, não mede esforços para levar a sua amada até onde a chuva for e aproveitar esse momento até a última gota caída. Para ele, apenas esse momento foi capaz detrazer a sua juventude e habilidades de volta. Porém, quando a sua esposa mostra-se descontente com a atitude dele, percebendo que este não estava mais envolvendo-se nos ritmos e na dança e sim apenas preocupado em permanecer mais jovem e ágil, ele paralisa e desiste da corrida ao seu eu jovem e finalmente percebe que é mais importante estar com a pessoa que se ama mesmo com todas as adversidades que o tempo trouxe do que viver infelize lamentando constantemente por algo que não mais retornará. No início, vemos o homem irritado com a sonoridade do local onde moram, como se toda a movimentação trouxesse lembranças das habilidades das quais ele não pode mais usufruir. Além do som, as imagens presentes na sala dos personagens vindas dos porta-retratos e da televisão, por exemplo, reforçam a ideia da nostalgia sentida pelo homem em relação a um período da sua vida em que considerava ser mais ativo e vívido. Para Vilém Flusser, “imagens têm o propósito de representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, entrepõem-se entre mundo e homem”. As fotografias ostentadas pelo velhinho representam uma parcela do que já foi vivido por ele, ao mesmo tempo que não trazem uma fidelidade do que foi retratado em relação ao como ele se sente hoje, no momento. Ele passaa agir em função dessa imagem, ainda que esta seja um recorte, uma mera representação, do que já se viveu e não voltará, mesmo que uma replicação da mesma seja pensada. É interessante pensar no conceito de imagem relacionado a este filme, especificamente. Fotografias ou qualquer tipo de imagem, principalmente as técnicas como o próprio curta, nos dá a ideia de que algo está sendo criado para

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TENDA SANTA BÁRBARA Autores

Aman Rodrigues

gerar uma emoção, por menorque seja e de qualquer cunho, no seu “leitor”. Ainda sob a ótica imagética de Flusser, podemos afirmar que as imagens técnicas são criadas para imaginar textos, tendo estesconcebido imagens que trazem a concepção de uma parcela do mundo, pela visão de quem o cria. Sendo uma imagem técnica, o curta animado foi fruto de um texto que surgiu de uma ideia que posteriormente virou texto, nesse caso o roteiro. Este roteiro foi escrito a partir da ideia de uma pessoa e esta pessoa pôs em palavras a história que quis contar, e assim esse texto desencadeou no filme. A animação emociona por tratar de um tema universal - envelhecer e suas consequências - utilizando imagens técnicas para envolver o espectador numa representação que pode não parecer tão fiel ao “real”, com o uso de movimentos de dança em situações que seriam impensáveis no cotidiano, com o som acompanhando o ritmo da trama e com a ausência de diálogos, por exemplo. Ainda assim, essa imagem técnica retrata muito bem esse tema universal, contando com os recursos que possui uma história cujo tema é vivido por grande parte da sociedade, como o receio de envelhecer, a sensação de incapacidade e a não aceitação às mudanças.

O registro audiovisual de um grupo e de uma cultura, a exemplo do vídeo realizado pela artista visual e fotógrafa Silvana Mendes, é uma ferramenta de manutenção das temporalidades, é responsável pela perpetuação de memórias coletivas, através das quais as gerações podem reviver rituais, saberes e culturas. Escolher transpor 4 frames do vídeo para a aquarela, linguagem que flui com as águas, é dar mais um caminho à memória, é assentar pequenos momentos no papel. Palavras-chave: Dança; Yemanjá; Mulheres; Oferenda

REFERÊNCIAS: FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia.Editora Hucitec: São Paulo, 1985. p. 7-12. JUNTOS Novamente. Direção: Zach Parrish. Produção: Brad Simonsen. Estados Unidos:Walt Disney Animation Studios, Walt Disney Pictures, 2021. 7 min.

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Ficha técnica: Título: Tenda Santa Bárbara Autora: Aman Rodrigues 2020 Frames do registro audiovisual de Silvana Mendes da Tenda de Santa Bárbara durante oferenda para Yemanjá. Aquarela em papel Canson 300g/m² Categoria: Ilustração ou colágem

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RESUMO: Este artigo, trata-se de uma revisitação ao exercício e a produção do curta “Cajá dos Negros” um filme que condensa as narrativas a respeito do território material e imaterial da Comunidade quilombola de Cajá dos Negros. É um filme que toca em assuntos sensíveis que emergem das memórias dos narradores presentes na produção, envolvendo tempo e sentimentos, por meio de fios que conectam as pessoas, que são esses o território, memória e a família. O objetivo deste artigo é fomentar problematizações sobre a produção de filmes sobre quilombolas, por meio do exemplo empírico de nossa experiência realizamos um retorno ao fazer do curta Cajá dos Negros em seu contexto e produção. Buscando alinhar reflexões teóricas do campo da antropologia e do cinema revisitando algumas obras atuais e antigas para pensar a montagem e o conceito de griotagem. Para isso, citamos as seguintes produções: Touki Bouki: A Viagem da Hiena, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Acossado e MWANY, pensando a idéia de griot evocada pelo Mambety em seu filme Touki Bouki e colocando essa ideia na atualidade querendo dizer que os cineastas negros são os novos griots e utilizando de conceitos como mindscapes e oralituras os novos griots criam imagens e sons para narrar suas histórias e passar ensinamentos ancestrais. Palavras-chaves: Cinema quilombola; memória, território, ação política, oralitura, mindscapes. Introdução Esse trabalho traz consigo uma breve reflexão sobre o complexo contexto politico social e a complexidade envolvendo a produção do filme sobre a comunidade quilombola Cajá dos Negros atrelado a isso o entendimento da funcionalidade cinematográfica quanto ferramenta, orientados pela compreensão que de um certo ponto, esse filme nos foi uma demanda, adentraremos nos aspectos de sua produção, narrativa é ação política. Alagoas é o estado que tem em seu território atualmente tombado o Quilombo dos Palmares, um dos maiores símbolos de resistência ao processo colonial pelo qual o Brasil foi forjado. Atualmente, segundo os dados do INTERAL - Instituto de Reforma Agrária de Alagoas,3 o estado conta com 74 comunidades certificadas pela FCP - Fundação Cultural Palmares. 3

Disponível em: <iteral - Comunidades Certificadas> acesso em 25/06/2023.

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Localizado na Zona Rural do município de Batalha-AL, Brasil. Cajá dos Negros é uma comunidade quilombola, que tem em volta de sua existência processos e lutas diárias em torno de suas reivindicações territoriais e resistências do dia a dia. Que se assemelham e diferem da luta de comunidades do território alagoano, mas que se encontra conectada com as agências e agendas políticas de rede quilombola no estado, capaz de captar aliados institucionais e individuais que somem em suas demandas e necessidades. O filme é fruto desta interação em rede, e também é parte do processo de afirmação identitária da comunidade. Cinema e Identidade O filme Cajá dos Negros, que leva o mesmo nome da comunidade, é produto do contexto da própria comunidade em interação constante com agentes e atores externos, produzido sobre os efeitos de um período pandêmico da Covid 19. A comunidade encontrava-se em constante busca de interação com instituições e pessoas para conseguir ter acesso a recursos públicos ou privados para auxiliar as famílias. Este filme, foi um produzido a fim de evidenciar problemas relacionados a comunidade, para uma iniciativa privada que se propunha realizar doações4. Percebendo a necessidade deste tipo de material, para se mostrar ao mundo o filme é conduzido e consolidando tecnicamente por meio de pessoas específicas (quilombola e aliado), mais a força produtora foi a própria identidade do grupo, atingindo e provocando contribuições diversas por diferentes pessoas. As cenas são um misto de material etnográfico5 com trechos produzidos da interação de jovens da comunidade e a associação quilombola que juridicamente realizava o trabalho de mediação e representação do grupo, é internamente um meio de organizar as ações políticas do grupo, bem como o filme que neste não foi “‘sobre as pessoas’, mas 'com as pessoas' acerca de questões concretas da vida social e cultural.” (RIBEIRO & MARTINS, 2018, p. 1). Por meio de engajamento entre famílias e gerações diferentes, tocando em temas que são comuns entre todos, sonhos e desejos que perpassam a questão territorial e pertencimento étnico. 4

Trata-se de uma filantropa, que contactou a comunidade para saber de suas problemáticas a fim de ajudar, essa ação não se concretizou em sua ajuda, a relação foi se desgastando e seu interesse pela comunidade evair-se com o passar do tempo. 5 Israel encontrava-se realizando pesquisa para o TCC, a fim de concluir sua graduação em Ciências Sociais, que cursava na Universidade Federal de Alagoas - UFAL.

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 Questões técnicas conceituais da produção Se partirmos da premissa que as partículas fundamentais do cinema (ou de um filme) são as imagens, o movimento e o tempo, então talvez analisar o cinema seja como analisar a memória. Segundo Isadora Meneses Rodrigues a memória: [...]enquanto atividade central da consciência é sempre caracterizada por uma mistura caótica de temporalidades, onde articular eventos pregressos na imagem em movimento e no som dos filmes não é jamais conhecer um acontecimento como ele foi de fato. (Rodrigues, 2020)

Essa não linearidade pode deixar as pessoas confusas, entretanto, artisticamente a obra pode ganhar outra conotação de grande obra ou filme clássico. Claro que isso, por si só, não define uma grande obra, muito menos um filme clássico, porém, a depender de quem vai montar e de como o diretor a idealizou podendo ter ótimos resultados que de fato vão conceituar tal obra. Em Deus e o Diabo na Terra do Sol (de 1964), de Glauber Rocha, por exemplo, a montagem salta aos olhos. Apesar de Manuel ser um personagem com agência dentro da narrativa, o tom documental, ajudado por uma iluminação natural e fazendo uso de muitos atores inexperientes, empresta a Manuel muito mais a função de um observador. E é a partir da fuga de Rosa e Manuel que a qualidade de observador dele fica mais evidente e nessa observação não acompanhamos essa história de forma linear e constante, isso se deve a montagem que deu a esta obra o título de um filme clássico brasileiro. Já o filme Acossado (de 1960), de Jean-Luc Godard. O filme utiliza da técnica de montagem para criar uma passagem de tempo, através do jump cut, levando quem assiste a entender que o tempo passou com um corte brusco, sem mudança de eixo da câmera, mudando assim o espaço e o objeto em cena e deixando a câmera no mesmo enquadramento. Nesse caso, a não linearidade faz do mesmo um filme ritmado, esses dois filmes tratam tempo, espaço e memória de formas diferentes, todavia os dois utilizam da passagem de tempo para falar sobre o tema proposto por cada um deles, e assim nos leva a acessar da memória lembranças, sejam do cangaço e vida em terras áridas como em Deus e o Diabo na Terra do Sol mesmo não vivida por nós, porém lida ou vista em outros filmes ou da vida complexa e corriqueira da grande cidade de Paris e os relacionamentos fluidos que lá existem em Acossado. Retomando a questão anterior, para o tempo existir no cinema faz se necessário que haja um fotograma que inicia e outro para dar sequência, criando assim a ideia de passagem temporal, mas não necessariamente tem que ser dessa forma

quebrando totalmente essa ideia de linearidade podemos, pois se nós trabalharmos com a banda sonora criar uma passagem de tempo sem necessariamente inserir um fotograma com imagens, só com a criação imagética. No filme Cajá dos Negros tentamos usar deste recurso para trazer essa criação mental levando o espectador à Batalha estando este com um dos velhos quilombolas conversando na porta de casa sobre o povoado nomeado, segundo Rodrigues as criações imagéticas citada no texto que ele denomina mindscapes (pensagens, paisagens mentais (mind = mente scapes = paisagens), espaços verbais que se equilibram na tensão entre intelecto e emoção, mente e corpo, violência e amor, permanência e fluxo, individual e universal.). Trata-se de um espaço criado pelo corpo, por percepções da mente sobre o mundo. Do ponto de vista teórico, essas geografias de espaços imaginários têm sido chamadas pela teoria literária de mindscapes, um jogo de palavras com o termo landscape (paisagem).” (Rodrigues, 2020)

Assim, após trazer esses conceitos podemos pensar que são indissolúveis tempo e memória de uma forma geral no cinema. Mesmo tentando separá-los, percebemos que estão ligados intrinsecamente em uma simbiose onde um depende do outro para existir, antes de findar esses conceitos vamos introduzir mais um para começar o nosso próximo parágrafo que é performances do tempo espiralar: Poéticas do corpo-tela com foco em oralitura na concepção de Leda Maria Martins na resenha de Giovanna Pinheiro. [...] o pensamento cultural do ocidente formulou uma “falsa dicotomia” entre as duas esferas, ao priorizar o discurso verbal escrito como instância primeira de produção de conhecimento, em contraposição às poéticas orais, que se produzem pela expansão do corpo e da voz. A noção de oralitura formulada por ela, inclusive em outros textos e livros, parece propor um debate relevante sobre essa dicotomia, que é ainda ancorada nos estudos de Paul Zumthor, sobre letra, voz, poesia oral e performance. Por fim, para Leda Maria Martins, na oralitura, “o gesto e a voz modulam no corpo a grafia dos saberes da vária ordem e de naturezas as mais diversas” (p. 41). Portanto, para que a performance ocorra, é necessário recorrer à tessitura das memórias orais, que fundam epistemes da história e das cosmovisões africanas. (Pinheiro, 2023)

Após definir tempo e memória como sendo “uma temporalidade que se curva para frente e para trás, ao redor e para cima, em movimentos espirais que retêm o passado como presente (ou presentifica o passado) para moldar o futuro” (Martins, 2021). Agora vamos de fato entender o contexto desse artigo que é entender o filme Cajá dos Negros em sua linguagem fílmica. Cajá é um filme que se utiliza dos

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 mindscapes e da oralitura para discutir a evasão dos jovens na comunidade quilombola e a problemática da luta pelo espaço entre os quilombolas como pano de fundo é a memória sendo evocada através do som, ou melhor, oralitura qual leva o espectador a criar mindscapes para entender a situação do povoado quilombola. A autora já citada cria a ideia da oralidade atrelada à escrita para justificar seu ponto de que “[...] a ancestralidade é clivada por um tempo curvo, recorrente, anelado; um tempo espiralar, que retorna, restabelece e também transforma, e que em tudo incide, [...]” evocando todos esses conceitos podemos dizer que o cinema é a nova forma que atrelado ao saber ancestral levar o conhecimento e cultura negra para a posteridade, posso dizer que os novos griots são os cineastas negros descendentes dos velhos griots e estes passam suas vivências clivadas em sua pele, sorriso e memória. O filme de Mambety cineasta senegalês, já evocava essa função de griot contemporâneo em seu longametragem Touki Bouki (de 1964), de Djibril Diop Mambety. Este filme que assim como os filmes da Nouvelle Vague em especial Acossado qual inspirou o cineasta tem um grande trabalho em relação à montagem também trabalhando com uma personagem feminina forte e com uma passagem de tempo não linear. Outro filme que desejo citar de um realizador Alagoano chama-se MWANY (de 2013), de Nivaldo Vasconcelos. Sinopse do filme: “Todo coração é uma nação. MWANY (lê-se Muani) é um retrato poético de uma mulher e seu país em uma terra estrangeira."Terra está o Brasil qual a personagem veio morar para conseguir uma formação superior, o filme define os conceitos citados anteriormente pelas autoras Leda Maria Martins e Isadora Meneses Rodrigues. Algumas considerações Cajá dos Negros é um filme etnográfico que tem em sua premissa relatar a atual condição do povo quilombola em sua comunidade o diretor se utiliza de ferramentas narrativas complexas e estruturas não lineares para acessar uma memória afetiva e despertar sobre o tema da evasão dos jovens da comunidade nos seus espectadores não deixando estes enganados como nos filmes de ficção, na verdade, ele enfinca o pé dos mesmos na realidade por mais que está seja dolorosa, evocando no filme essa condição de novo griot Israel foi um meio pela qual relatos de jovens trabalhadores, memórias de seus entes queridos e momentos de descontração entre parentes, Fernando ao aliasse a Israel, torna-se um aliado que encontrasse em uma relação construída sobre meios de afetividade, familiar e

ancestral antes de uma relação acadêmica, o academicismo o produto acadêmico e um resultado ultimo de muitas outras camadas de uma relação, com a própria comunidade. Estamos falando de um filme que se utiliza de conceitos como oralituras e mindscapes para criar uma nova griotagem. Exercer o papel de griot levando a cultura e costumes a próxima geração e ainda se encontra na ação de militar contra a desigualdade social sofrida pelo povo preto que atualmente descende dos quilombos estes invisibilizados pelo estado que desde antes da pandemia sofriam para conseguir um espaço de terra e durante o contexto pandêmico sofreram ainda mais com tal situação, o filme é necessário é contemporâneo a situação do problema agrário é atual e o cinema que sempre teve este papel de além de captar atenção, fazer socializar e alertar desigualdades ele nasceu da necessidade de alertar outra situação, a que realmente importava aos quilombolas naquele momento. Para fazer um filme sobre quilombolas, é necessário ir além do que o Cajá dos Negros foi, é preciso que este ocupe-se em retirar de si todos os aspectos de uma produção ocidental, se trataremos do contexto da etnicidade da forma complexa tal como ela é, esse não seria um filme complexo mais sim um mal filme, pois se trata das ideias e visões de mundo não um aspecto puramente técnico, mais esse é o resultado de até onde podemos ir. REFERÊNCIAS ANJOS, José Carlos dos, and Paulo Sérgio da SILVA. "A rede quilombola como espaço de ação política." Desenvolvimento social e mediadores políticos. Porto Alegre: UFRGS (2008): 155172. Leal, Samuel. "Buscando Aröbönhipopá: comunidade, cinema e território entre os Xavante." Cinema & Território: Revista Internacional de Arte e Antropologia das Imagens 3 (2018): 2638. Lyra, Carla. "Criação musical e rituais: imagens de um Quilombo Urbano em Olinda, Pernambuco, Brasil." Cinema & Território: Revista Internacional de Arte e Antropologia das Imagens (2018): 39-45. Martins Leda Maria. ’Performances do tempo espiralar: Poéticas do corpo-tela’ - Rio de Janeiro : Editora Cobogó, 2021. Pinheiro Giovanna Soalheiro. ‘COMPOSIÇÕES E RITORNELOS: Performances do corpo no tempo espiralar’. literafro. - 2023. p. 3. Ribeiro, José da Silva, and Alice Fátima Martins. "PrefácioCinema e identidade." Cinema & Território: Revista Internacional de Arte e Antropologia das Imagens 3 (2018): 1-1. Rodrigues Isadora Meneses. ‘A paisagem mental da memória no cinema de Alain Resnais’. Significação. - 2020. - p. 290. Rodrigues Isadora Meneses. ‘A paisagem mental da memória no cinema de Alain Resnais’. Significação. - 2020. - p. 291.

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Filmografia

ENTRE MEMÓRIAS RACIAIS E ESPAÇOS PERIFÉRICOS:

Acossado. Direção: Jean-Luc Godard. Produção de Les Films Georges de Beauregard. França: SNC (Société Nouvelle de Cinématographie), Impéria Zeta Filmes (Brasil), 1960. 1 DVD. Deus e o Diabo na Terra do Sol. Direção: Glauber Rocha. Produção de Jarbas Barbosa, Luiz Augusto Mendes e Glauber Rocha. França: Entertainment One Films, 1964. 1 DVD.

A CONSTRUÇÃO TEMPORAL NO CiNEMA BRASiLEiRO POPULAR COMO

Mwany. Direção: Nivaldo Vasconcelos. Produção de Nivaldo Vasconcelos e Sónia André. Brasil: FILMES ATROÁ e TELA TUDO CLUBE DE CINEMA, 1960. Digital.

EXPRESSÃO E REPRESENTAÇÃO DE iDENTiDADE

Touki Bouki. Direção: Djibril Diop Mambéty. Produção de Cinegrit

Marcela Figueredo Dias Coelho1 Thierri Azevedo de Ornela2

Studio e Kankourama. Senegal: World Cinema Foundation, 1973. 1 DVD. 1 2

Graduanda em Cinema e Audiovisual na UFRB, bolsista do grupo PET Cinema UFRB Graduando em Cinema e Audiovisual na UFRB, bolsista do grupo PET Cinema UFRB

RESUMO: Esse artigo se compõe como ferramenta crítica de denúncia ao imaginário social construído e perpetuado mediante grandes filmes nacionais brasileiros que endossam estereótipos de raça e classe social em suas narrativas das populações periféricas, desumanizando e subjugando identidades e lugares. Mediante pensamentos teóricos de pesquisadoras como Bell Hooks e Elena Cherepanov e buscando escancarar algumas das consequências da negligência e da violência de uma herança escravocrata na dimensão do audiovisual, serão analisados os filmes Tropa de Elite (2007) e Cidade de Deus (2002), além de Um dia com Jerusa (2021) e Marte Um (2022).

estereotipada equivocada nas telas e histórias, incentivando o não alcance e/ou o desinteresse mediante as possibilidades que o cinema pode e deve oferecer para a periferia.

Palavras-chave: Imaginário social; Estereótipos; Raça; Populações periféricas; Cinema brasileiro.

Nesse ínterim, analisaremos obras que tiveram grande alcance de público nacional e internacional e de como essas obras influenciaram e construíram uma consciência social de toda uma sociedade. Com uma lupa nas obras Tropa de Elite (2007) de José Padilha e Cidade de Deus (2002) de Fernando Meirelles e Kátia Lund, filmes muito bem elogiados e premiados no Brasil e exterior que marcaram os anos 2000, fato é que ambos os diretores não possuem vivências das histórias por eles contadas e enquadradas, será possível enxergar como essa reprodução subjuga o acontecer artístico, sobretudo o imagético, de periferias a uma visão limitada que se estendeu e criou lugares únicos de existência no imaginário social de marginalização, violência e perigo. Além de lhes tirar a oportunidade e a vontade de contar suas próprias histórias e explorar suas subjetividades, reforçando um pensamento geral de imagens e imaginários de si redutores a seus estigmas.

Introdução No Brasil, o cinema e o audiovisual têm desempenhado um papel significativo na representação da memória e na construção de narrativas relacionadas à periferia. Através de suas produções, questões sociais, culturais e históricas são abordadas, muitas vezes conectando-se a um senso de identidade e resistência das comunidades periféricas. O cinema, como forma de arte, permite a criação de uma memória coletiva, preservando histórias, experiências e perspectivas. Esse poder de criar, portanto, legitimou e consolidou a construção de um imaginário social racista e elitista que cerca as periferias brasileiras na dimensão do cinema e do audiovisual, sobretudo através da grande popularidade de filmes nacionais, sendo mais um fruto da herança escravocrata. A principal barreira que distancia o Cinema dessa população é a representação proposital e historicamente

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Nesse sentido, o contexto histórico racista no Brasil resultou em exclusão e afastamento da população negra e periférica do cinema como uma possibilidade de lazer e profissão. Isso levou à construção de estereótipos e teve impactos negativos significativos que reverberam nessa população até a contemporaneidade. Sabendo do poder limitante que essa negligência e irresponsabilidade com essas populações marginais causa, essa pesquisa se molda como um documento para ser mais um instrumento científico de denúncia.

Em contrapartida, dando voz e vez a essas populações, entendendo-as como capazes, é uma alternativa de expor quão possível e muito mais responsável é entregar as ferramentas de

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 reprodução do audiovisual a quem vive e conhece de dentro para fora o modus operandi dessas comunidades. Por isso, essa pesquisa também analisa obras de realizadores oriundos de periferia, beneficiados por políticas públicas que garantiram a realização das obras mediante apoio financeiro, dando destaque e olhar a obras que estão se popularizando no meio audiovisual, como Um dia com Jerusa (2021) de Viviane Ferreira e Marte Um (2022) de Gabriel Martins, mostrando como é possível construir narrativas periféricas que se afastam do tema da violência e do crime quando se é dado possibilidade a quem pessoalmente sabe de quem e de onde se está falando. A construção da consciência social da periferia nas narrativas populares Tratando-se de um país historicamente racista, colonizado em um não tão distante passado escravocrata, o cinema e outros meios de comunicação sempre alimentaram uma posição exclusiva e predominantemente violenta, escassa e esquecida quando se trata de lugares e pessoas da periferia. Essa representação equivocada e racista da miséria e violência cristalizou-se nas populações, periféricas ou não, impregnando todas as mentes com essa visão exclusiva e limitada. O racismo é o grande ponto nessa discussão, visto que as comunidades e regiões periféricas, sendo favelas, morros ou subúrbios foram sendo erguidos e habitados a partir do momento em que com a abolição da escravidão de ex-escravizados do período colonial foram empurrados para as margens dos centros das cidades para tentarem a própria sorte e sobreviverem. Desde então tudo o que advinha destes locais foi repreendido e discriminado como o samba, o hip hop e outros tipos de artes, por exemplo. Segundo as pesquisadoras Anjos e Colucci (2020, p. 4), A estereotipagem assegura a ordem, não apenas da posição social, mas também do imaginário, do campo cultural e do simbólico. A aparente divisão pelas cores da pele é, de fato, uma práxis cultural altamente política. Os seres humanos não são apenas diferentes, eles são feitos diferentes. O racismo não é apenas o que os racistas fazem. O racismo é uma lógica cultural profundamente enraizada em uma dialética, uma espécie de código da compreensão cotidiana, que liga um sistema de classificação específico a uma certa distribuição de poder e recursos.

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Os filmes do início do século XX costumavam idealizar as favelas, em contraste com o período do Cinema Novo, que surgiu nos anos 1950. O Cinema Novo abordou de forma proeminente as questões sociais das favelas, adotando os princípios do neorealismo italiano, como filmar nos locais reais, utilizar atores não profissionais e abordar temas contemporâneos. Um dos seus pioneiros, Glauber Rocha, resumiu essa abordagem como a "estética da fome". No entanto, mesmo com os esforços dos cineastas em abordar questões sociais genuínas por meio de seus filmes, ainda é bastante questionável se este estilo retrata com precisão a vida nas favelas.

Na obra, Capitão Nascimento é um homem branco interpretado pelo ator Wagner Moura, bem como a maioria esmagadora dos policiais e combatentes do crime e da violência também são brancos enquanto os criminosos e vilões, são majoritariamente, são atores negros. O protagonista comanda a força especial da polícia militar, cujas ações nas favelas do Rio de Janeiro são preenchidas por violência e tortura. Com poucas exceções de algumas tomadas de moradores inocentes em uma operação policial do BOPE, os filmes mostram principalmente os moradores envolvidos em gangues e violência.

Desde o declínio repentino do Cinema Novo na década de 1970, a estética da fome evoluiu para a estética da violência urbana, que passou a dominar as telas. Os filmes começaram a representar cenários de guerra por território, facções do tráfico de drogas e a violência associada às favelas. Assim, passamos de filmes que exploravam as questões sociais enfrentadas pelos habitantes das favelas para filmes que, atualmente, retratam as próprias favelas e seus moradores como fontes de violência e problemas ligados ao tráfico de drogas.

Apesar disso, o filme dirigido por José Padilha é grandemente elogiado e o protagonista é, até hoje, considerado “herói nacional”, quando esse é um perfeito exemplo de como o perfil de “branco salvador” é validado socialmente. Traduzido do inglês “White savior complex” (CHEREPANOV, 2019), o complexo do branco salvador refere-se a atitudes de pessoas brancas que, por serem brancas, procuram “ajudar” pessoas negras ou não brancas a fim de resgatá-las da vulnerabilidade, mas colocando-se, ainda que de forma inconsciente, numa posição de superioridade como libertadora, salvadora ou edificante. Personagens como esse somados à exclusividade da violência de lugares sociais marginais são propositalmente endossados para legitimar o pensamento social sobre os mesmos.

Com esse imaginário deturpado, vários produtos audiovisuais estrearam protagonizados por cenários e pessoas periféricas, dando nome e prestígio a seus realizadores não-periféricos que estimulavam e enfatizavam o único lugar para essas populações: o do crime e da violência, implantando imageticamente rostos, raça e classe social a um estereótipo já enraizado na consciência popular. Nas grandes e pequenas telas, Tropa de Elite (2007) e Cidade de Deus (2002) são histórias que contribuíram para esse cenário de desqualificação das comunidades, ambos os filmes reduzem tais locais ao que de pior observamos nos seres humanos, como se atitudes criminosas e violentas estivessem ligadas exclusivamente a periferia. Esses dois filmes fizeram muito sucesso tanto no Brasil quanto no exterior, levando essa visão pejorativa das pessoas pobres de favelas para além das fronteiras sul-americanas, desumanizando e subjugando identidades já historicamente prejudicadas. A reprodução de estereótipos e normatização de violência em Tropa de Elite, que acompanha o capitão da força especial da Polícia Militar do Rio de Janeiro mostram que as operações policiais informadas por meio de veículos noticiosos acabam normalizando a violência com cenas do Caveirão do Bope - meio de transporte conhecido da Tropa de Elite - pois o filme ainda é exibido e mundialmente consumido no meio audiovisual, apesar de glorificar tortura, corporação e máquina de guerra genocidas.

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No famoso longa-metragem “Cidade de Deus”, apesar de possuir uma particularidade na sua dualidade imagética e usar o racismo escancarado como uma forma de denúncia, também expõe de maneira perspicaz duas teorias criminológicas que explicam erroneamente como jovens periféricos se envolvem nesse mundo, expondo como essas comunidades são condenadas a serem paisagem de uma violência infinita, visto que o comportamento criminoso é multifacetado e é influenciado por uma ampla gama de fatores, logo não cabe generalização. A primeira teoria lança luz sobre a ideia de que alguns indivíduos possuem uma predisposição inata para o comportamento criminoso, ecoando conceitos ultrapassados do chamado "criminoso biológico". Isso se manifesta de forma notável na transformação do personagem Dadinho, que, ao crescer, assume o nome de Zé Pequeno e se torna um psicopata. A cena que marca sua primeira experiência homicida é emblemática, pois o narrador do filme reflete: "Ele sempre quis governar a Cidade de Deus... Naquela noite, ele satisfez sua sede de sangue". A segunda teoria, por sua vez, sugere que o comportamento criminoso é fortemente influenciado pelo ambiente, incluindo lugares e pessoas. Este aspecto fica implicitamente retratado no filme

quando Zé Pequeno coage outra criança a cometer um ato de extrema brutalidade, forçando-a a matar um bebê. Essas imagens sombrias contribuem significativamente para a estigmatização das favelas como locais intrinsecamente ligados à criminalidade, insinuando que esses ambientes produzem violência de forma inerente. Além disso, embora adolescentes com rádio de câmbio ou armas possam ser avistados em partes específicas das favelas, para aqueles que obtêm sua percepção da favela principalmente através da mídia ou do cinema, o crime frequentemente é retratado de maneira descontextualizada. Essa abordagem problemática se deve ao fato de que esses filmes frequentemente perpetuam a imagem errônea de que a maioria dos moradores das favelas está envolvida em atividades relacionadas a gangues. A cena final de Cidade de Deus deixa uma impressão duradoura na mente do espectador, sugerindo que o pior ainda está por vir. Nela, um grupo de crianças com idades entre cinco e sete anos é retratado percorrendo a favela após a morte de Zé Pequeno, elaborando uma macabra "lista de mortes". O que dá a entender que esses jovens cresceram para formar a temida facção Comando Vermelho (CV), devido ao fato de que esse grupo é conhecido por manter uma lista semelhante. Nos dois filmes, a imagem dos moradores de favelas que portam armas é mais proeminente do que as curtas cenas de moradores trabalhando (em Cidade de Deus) ou espectadores inocentes (em Tropa de Elite) e isso dá protagonismo a crença social na inferioridade dessas populações usada como justificativa para o tratamento policial à criminalidade. Em “Cidade de Deus” um policial recomenda a seu parceiro que fique com dinheiro roubado quando o encontram, justificando sua ideia com a pergunta: “Desde quando tirar dinheiro de nego ladrão é crime?” Nesse sentido, em seu livro “Olhares negros: raça e representação” (2019, p. 38) a professora e ativista antirracista Bell Hooks afirma: A referência aos filmes é enfatizada porque, mais do que em qualquer outra experiência de mídia, eles determinam como a negritude e as pessoas negras são vistas e como outros grupos responderão a nós com base nas suas relações com a construção e o consumo de imagens. (Hooks, 2019, 0. 38).

As conexões diretas implícitas nos filmes com a realidade contemporânea contribuem para uma cultura de medo genuína entre o público enorme que consumiu e ainda consome, solidificando a consciência social geral que cerca o estigma sobre o

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 objeto-tema e cenário-paisagem dessas narrativas. Ambas as obras citadas elevam o zoom da periferia de forma extremamente limitada, alimentando um vórtice narrativo condenado a estereótipos racistas, que ascendem de um passado escravocrata e descendem em um presente que segue perpetuando a violência como justificativa ao que se entende como digno de violência: as periferias. Por isso, o conhecimento do problema dos que compõem essa parte da população é urgente, visto que ele gera a crise e pode incentivar o desejo e as possibilidades da auto representação narrativa. Por um outro olhar nas histórias periféricas do cinema brasileiro Ao longo de toda cinematografia nacional, os filmes lançados e aclamados no meio audiovisual são produções de diretores/realizadores tipicamente não-periféricos, que não possuem uma noção interna da grandeza de particularidades das periferias brasileiras, reduzindo-as a narrativa repetitiva de violência e crime. Essa visão vem sendo reescrita por cineastas que possuem essas vivências por serem nativos e que estão produzindo seus filmes a partir do seu ponto de vista mais humanizado e amplo. Foi sendo cada vez mais necessário a construção de um novo modo de representação, de novas formas de pautar o cotidiano da periferia, a angústia era latente aos que não se sentiam pertencentes à forma hegemônica de fazer cinema. É dessa inquietude de não mais aceitar a imposição de uma mirada exótica de quem não tem a vivência retratada que vem surgindo essa auto representação, novos diretores, produtores, roteiristas estão reivindicando o seu lugar para contar suas próprias histórias. Daniel Ribeiro Duarte e Júnia Torres (2019) em seu artigo sobre cinema indígena dizem, “Este outro cinema urge, escapa de imposições e estereótipos que enclausuram em padrões normativos a diferença constituinte entre os povos e seus modos de ser e olhar o mundo.” enfatizando que tomar para si as rédeas da sua própria história evita que deturpações sejam relacionadas a sua existência e continuam: As razões que levam os povos indígenas a incorporar o vídeo como instrumento de suas culturas se relacionam a uma característica ontológica da imagem cinematográfica, que é a de registrar a duração de um evento, evitando que ele desapareça. A partir do registro de seus rituais, fazeres, saberes e do próprio cotidiano, os realizadores se apropriam do cinema como

mais um dos instrumentos a serem utilizados no empreendimento central e definidor para os povos originários: o de valorização de sua perspectiva, de sua forma singular de ver o mundo e organizar sua existência. (DUARTE, Daniel Ribeiro; TORRES, Júnia. Entre o visível e o invisível – cinema indígena de autorepresentação. 2019. Disponível em: Disponível em: <https://www.buala.org/pt/afroscreen/ entre-o-visivel-e-o-invisivel-cinema-indigenade-auto-representacao>. Acesso em: 17 set. 2023.)

A preservação da identidade é o alicerce da memória de um povo, ter o controle das suas ações garante a manutenção dos saberes e tradições, mantendo-os da forma mais fiel possível à vontade comunitária. Um dia com Jerusa (2021) e Marte Um (2022) são dois desses filmes que trazem narrativas periféricas explorando a subjetividade das identidades sem estereotipá-las, tendo roteiros extremamente delicados, sensíveis e preocupados em entregar ao público uma perspectiva diferente dos exemplos estigmatizados anteriores, se atendo ao compromisso de mostrar uma visão mais humana das pessoas que moram em regiões periféricas, ampliando as narrativas e representatividade. Em Um dia com Jerusa a diretora Viviane Ferreira mostra, com sutileza, o dia da senhora Jerusa, interpretada lindamente por Léa Garcia, que vive sozinha e está arrumando a sua casa para a visita da família para comemorarem o seu aniversário, enquanto faz os preparativos recebe a visita de Silvia (Débora Marçal), uma pesquisadora de opinião que pretende aplicar um questionário sobre sabão em pó. Nesse encontro entre duas mulheres negras de gerações diferentes, ficamos compenetrados nas individualidades de cada personagem. Ao decorrer do questionário Silvia se sente incomodada com a falta de objetividade de Jerusa ao responder, a senhora, com sua calmaria, relata momentos íntimos do seu passado de tal maneira que vai desacelerando a forma como Silvia lida com o seu cotidiano. No filme, as aflições de Silvia, a solidão de Jerusa, a pobreza e loucura dos moradores de rua daquele subúrbio vão sendo costuradas pelo amor do casal em situação de rua, pelo cuidado entre Silvia e Jerusa e pela memória ancestral de uma população que constrói sua própria história. Com foco na solidão de pessoas idosas, nesse caso uma mulher negra, Viviane Ferreira nos mostra a potência e legado que existe dentro desses sujeitos que acumulam experiência. O filme traz em sua narrativa a possibilidade de vivenciar experiências de um

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 outro tempo, um tempo ancestral, que adentra no contexto contemporâneo olhando para o que veio antes, dilatando as relações atuais. No célebre filme de Gabriel Martins, “Marte Um”, somos levados ao interior da família Martins, uma família negra de classe média baixa morada de uma região de subúrbio mineira que sente a tensão da chegada do novo governo de um presidente da extrema-direita. A nova realidade do país, e consequentemente da família, assombra seus integrantes, que sonham com a possibilidade de novos lugares, espaços e profissões. O pai é zelador de um prédio na área nobre da cidade, dono de uma gentileza admirável, tratando a todos com consideração na esperança de ser correspondido de tal forma. A mãe é uma faxineira que acorda muito cedo para estar no serviço, cortando a cidade nos transportes públicos para conseguir estar nas casas que trabalha. A filha é uma jovem estudiosa que está decidida a se mudar com sua namorada. O filho é um excelente jogador de futebol e sofre uma pressão do pai para que ele se profissionalize, porém o seu desejo mesmo é se tornar um astrofísico e colonizar Marte. No desenrolar das individualidades, a família vê as dívidas se acumulando, a aflição aumentando diante das pressões e a necessidade de revelar seus segredos. E nesse momento a resiliência da família acontece de forma simples mas impactante, na forma de afeto, onde seus medos, inseguranças e, também, anseios são ouvidos e acolhidos por todos, afinal ir a Marte é um sonho possível. Nessa obra, enxerga-se a construção individual de personagens, mostrando quão profundo, humano e sensível um olhar profissional que acontece de dentro para fora pode oferecer uma perspectiva muito mais verídica e cuidadosa quando se coloca a câmera nas mãos de quem conhece pessoalmente a periferia e suas tantas outras facetas, para DUARTE e TORRES (2019), esse cinema reflete sobre uma perspectiva que considera de que modo os aspectos culturais e antropológicos afetam a construção da imagem e narrativa. Esses filmes nascem de vivências periféricas e em comunidade, seja em Salvador onde nasceu Viviane Ferreira, São Paulo onde o filme é rodado, mais especificamente no bairro do Bixiga, no qual tem uma grande população de periferia suburbana afrodescendente, e Contagem onde nasceu Gabriel Martins e rodou o filme. Tais locais comungam de herança ancestral que é transpassado pela tela. Considerações finais A escolha de análise desses filmes se deu por

Tropa de Elite e Cidade de Deus serem os filmes que alcançaram maior sucesso no país no período de seu lançamento, dando destaque ao último que disputou o Oscar como melhor filme estrangeiro. Essas obras marcaram gerações e ditaram a forma como a sociedade se relacionava, bordões como “não vai subir ninguém”, “peça pra sair” e “Dadinho é o caralho, meu nome agora é Zé Pequeno” são algumas das falas dos personagens principais Capitão Nascimento e Zé pequeno que ficaram popularizadas socialmente, tornando esses filmes muito mais do que apenas um produto para entreter, mas contribuindo para uma nova forma de interação e percepção em relação a como a periferia é narrada e pensada. Em contrapartida, os filmes Um dia com Jerusa e Marte Um estão nessa pesquisa, pois foram projetos fruto dos primeiros editais de longa-metragem para pessoas negras, fruto de uma das políticas públicas do governo Luiz Inácio Lula da Silva (2006 - 2010). O diretor Gabriel Martins relata em entrevista para o “Cinema em Cena”: “Lula abriu muitas portas para pessoas pretas e periféricas na universidade… Eu sou fruto disso por ações afirmativas no cinema. Marte Um é fruto de uma ação afirmativa, de um edital voltado para artistas pretos”. Reforçando assim a importância das ações afirmativas para que mais histórias sejam contadas por pessoas que historicamente, sem oportunidades, hoje consigam. A análise da construção do imaginário social da periferia no cinema requer uma abordagem interdisciplinar. É necessário considerar não apenas os aspectos estéticos e narrativos das produções cinematográficas, mas também os contextos históricos, sociais e culturais que moldam essas representações. Através dessa abordagem, podemos compreender mais profundamente as complexidades e nuances da identidade periférica no cinema brasileiro. A construção temporal no cinema brasileiro deve refletir a diversidade e autenticidade da identidade periférica. É necessário ampliar o espaço para os cineastas periféricos contarem suas próprias histórias, trazendo uma perspectiva de vivência e domínio territorial. A representação da periferia no cinema deve ser um reflexo fiel das experiências, lutas e conquistas das comunidades periféricas. O cinema de periferia surge como uma ferramenta poderosa para dar voz e visibilidade a essas comunidades, permitindo uma reescrita da narrativa da periferia e a construção de uma memória coletiva mais justa e representativa, visto que isso influencia diretamente na caminhada social para um futuro antirracista sólido e tempo e memória são aliados muito importante nisso tratando-se de audiovisual.

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MOViMENTEM-SE NEGRES

Referências ANJOS, Alinny Ayalla Cosmo dos; COLUCCI, Maria Beatriz. CINEMA, REPRESENTAÇÕES E IMAGINÁRIO SOCIAL: a periferia brasileira em foco. In: Anais do 9º Coninter. Anais...Campos dos Goytacazes (RJ) UENF, 2020.

Letícia Cristina

SOUZA, G. O ponto de vista político no cinema de periferia. Galaxia (São Paulo, Online), n. 24, p. 115-126, dez. 2012.

Um homem dança sobre a estrada de ferro enquanto evoca a presença de seus semelhantes em uma dança de afirmação do ser. Do ser negro. Ser negra. Seres negres. Na presença do senhor do ferro (ogunhê!), vislumbramos a possibilidade de criar lugares extremamente pretos. Assim como nas imagens que vemos dos bailes funk dos anos 90, o videoclipe Rela (2022), com música de Negro Leo feat. May Tuti, nos diz que podemos trilhar caminhos que nos levam a espaços nossos. Onde se possa esbanjar melanina sem nenhum pudor, e com toda a resistência do movimento negro, das negras se movimentando de negros em movimento. Relando seus corpos um contra o outro, trocando energias. De cada movimento dessa dança exala um desejo de união. E mesmo que Américo Tabu dance sozinho, ele também faz parte dessa união. União preta que o fortalece. Nesse videoclipe dirigido e montado por Gyodai tudo se repete, pois não é suficiente que vejamos apenas uma vez. Precisamos ver, e rever, e ver de novo, e de novo, e seguir revendo até que se fixe em nossos olhos e mentes a imensidão que a negritude carrega. Ecoa em minha cabeça a voz de Victoria Santa Cruz quando disse: Negra! Si Negra! Soy Negra! Após assistir Rela fica o desejo de que sempre encontremos maneiras de abrir caminhos para criar e perpetuar possibilidades de existências negras, para que possamos viver negro, dançar negro, e movimentar-se negro com a perspectiva de existir plenamente livres e confortáveis em nossa negritude!

ZANETTI, Daniela. Cenas da periferia: auto-representação como luta por reconhecimento. In: E-Compós, v. 11. Brasília: 2008, p. 1-16. HOOKS, Bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019. DUARTE, Daniel Ribeiro; TORRES, Júnia. Entre o visível e o invisível – cinema indígena de auto-representação. 2019. Disponível em: Disponível em: <https://www.buala.org/pt/afroscreen/entre-o-visivele-o-invisivel-cinema-indigena-de-auto-representacao>. Acesso em: 17 set. 2023. CHEREPANOV, Elena. Ethics for Global Mental Health: from good intentions to humanitarian accountabillity. New York: Routleged, 2019. CINEMA EM CENA. Marte Um: entrevista com o diretor do representante do Brasil no Oscar. Disponível em: <https://www.cinemaemcena.com.br/ coluna/ler/2695/mar te-um-ent revista-com-o-diretor-dorepresentante-do-brasil-no-oscar>. Acesso em: 17 set. 2023. VIANA, Iara Félix Pires. “Cineastas negras: trajetórias socioespaciais e narrativas cinematográficas” - Pautas silenciadas e diálogos ausentes: uma análise fílmica de O Dia de Jerusa. https://www.copene2018. eventos.dype.com.br/resources/anais/8/1538343348_ARQUIVO_ IaraPiresViana-copene.pdf.

Referências filmográficas CIDADE de Deus. Direção de Fernando Meirelles e Kátia Lund. Rio de Janeiro: Globo Filmes. 2002. 130 min. TROPA de Elite. Direção de José Padilha. Rio de Janeiro. Globo Filmes; Universal Studios. 2007. 118min. UM dia com Jerusa. Direção de Viviane Ferreira. São Paulo. Odun Formação De Bens Culturais. 2020. 74min. MARTE um. Direção de Gabriel Martins. Minas Gerais. Filmes de Plástico. 2022. 115min.

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AFROFABULAÇÕES EM RELA (2022): NOVAS PERSPECTiVAS PARA TRANSiTAR Haniel Lucena Rela (2022), videoclipe dirigido por Gyodai da música de Negro Leo feat. May Tuti, traz para o quadro fílmico elementos estéticos interessantes enquanto formato, performance e manipulação da imagem. Além de escutarmos a música, é possível perceber que existe um trabalho de articulação das imagens que não somente acompanha a trilha musical, mas recria os espaços por onde os corpos negros circulam. Rela carrega consigo uma carga poética de percursos, caminhos e trajetórias através de encruzilhadas reais e também imaginárias. Assumindo o vídeo como linguagem, a obra provoca um certo embaralhamento de tempo através da montagem que rearticula os frames através de várias modificações. Seja pelo uso do recurso jump cut, provocando os curtos saltos de movimento, como também pelos diversos reverses. A utilização de tais ferramentas de edição faz com o que o quadro acompanhe melhor a música no sentido de ritmo como também evoque uma dimensão de um tempo pendular, que vai e que volta. Um aspecto bem interessante deste trabalho é o uso das imagens de arquivo retiradas de um baile funk do Rio de Janeiro em 1994. O uso deste material enriquece o videoclipe sobretudo quando refletimos sobre noções implicadas na territorialidade. Os espaços que os corpos negros ocupam, o ambiente do baile funk e a manifestação da dança pop nos subúrbios da cidade nos leva a refletir sobre questões raciais implícitas a esse recorte. A performance de Américo Tabu casa muito bem com as imagens de arquivo por expandir esses questionamentos e nos levar para outros caminhos. A visualidade construída no figurino de Américo pode nos remeter a Exu, principalmente se

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Revista +Cinemas Revista +Cinemas Uma revistaUma do grupo revista PET do Cinema grupo PET UFRB Cinema – ISSN UFRB 2595-9921 – ISSN 2595-9921 analisarmos pensando nos trilhos. O conceito de trajetos, escolhas e tempo está presente na obra assim como a ancestralidade seja através do corpo ou do som. A composição da música traz consigo aspectos da musicalidade negra, que mais uma vez amplia os sentidos do clipe. O uso de elementos percussivos na sequência final ainda é acrescida de batuques muito próximos ao maracatu, sobretudo à canção Maracatu Atômico, de Chico Science. Rela projeta uma fabulação afrofuturista a partir das assimilações entre imagem, música e montagem.

Os textos dessa sessão fizeram parte do trabalho intitulado Dossiê Corpas Infinitas: descoordenadas para transitar — Rela, de Gyodai (Negro Leo) 1. Para visualizar o videoclipe Rela do artista Negro Leo feat. MAY TUTI visite o QR code abaixo.

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Disponível em <https://viureview.medium.com/dossi%C3%AA-corpasinfinitas-descoordenadas-para-transitar-rela-de-gyodai-negroleo-840830c4dd02>

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CÁPSULAS SONORAS SONatório (Laboratório de Pesquisa, Prática e Experimentação Sonora): Daniele Costa, Gabriel Amarante, Girlan Tavares, Joanne Labixa, José Brito, Laíse Gaspar, Lina Cirino, Marina Mapurunga, Stephanie Sobral e Victor Brasileiro.

Resumo: Cápsulas Sonoras é uma obra de arte sonora e web arte realizada em um ambiente virtual onde o/a interator/a navega em um espaço em que se depara com cápsulas sonoras de universos paralelos e tempos distintos do Planeta Terra. Este é um trabalho realizado coletivamente pelos e pelas integrantes do SONatório durante o período da pandemia da COVID-19. Cápsulas Sonoras é inspirada na literatura de ficção científica (Ursula K. Le Guin, Octavia Butler, George Orwell) e em textos de Ailton Krenak (Ideias para adiar o fim do mundo, O amanhã não está à venda e A vida não é útil). As cápsulas são carregadas de memórias afetivas; elas partem de mensagens de nanofios de silício implantados no corpo humano, de gravadores obsoletos ou de gravações de campo de universos paralelos em anos passados e futuros. Que outras configurações da Terra seriam/são possíveis? Se continuarmos vivendo como estamos, desmatando florestas, poluindo mares, rios e lagoas, criando cada vez mais ambientes e alimentos artificiais, como sobreviveremos? Como podemos adiar o fim do mundo? Estas são algumas das indagações motivadoras para a criação das cápsulas sonoras. Cápsulas Sonoras procura trazer uma reflexão sobre nosso modo de vida, sobre formas de sobrevivência e resistência.

Equipe responsável pela web arte Cápsulas Sonoras

Palavras-chave: Cápsulas Sonoras; SONatório; Arte Sonora; Webarte; Fabulação.

Acesse o QR Code e confira a web arte sonora

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A TRANSGENERIDADE DIANTE DA FICÇÃO AUDIOVISUAL BRASILEIRA Dante Gabriel Lima2 2

Graduando em Cinema e Audiovisual pela UFRB

RESUMO: Procura-se entender como as produções audiovisuais de ficção contribuem para a construção do imaginário construído ao redor do corpo transgênero na sociedade brasileira. Para tal, será feito um paralelo entre a narrativa da personagem Ivan na novela A Força do Querer (2017) e a personagem Cassandra na série Manhãs de Setembro (2021). Conclui-se que atravessar tais narrativas em tela exige responsabilidade e estudo, além de ser primordial a participação de pessoas trans diversas em todo o processo, desde a concepção da ideia até a execução da mesma. Palavras-chave: Audiovisual brasileiro; Transgênero; Transfake; Produção Audiovisual; Representatividade Introdução Representatividade, grosso modo, significa representar politicamente os interesses de determinado grupo, classe social ou povo, não se tratando apenas de uma organização de grupos buscando seus interesses representados e garantidos, mas, também, da formação identitária do indivíduo deste grupo. Por esse motivo, esta é uma temática importante de ser discutida e analisada em produções audiovisuais. Durante todo o caminho da vida, concorrendo com as estruturas de poder estabelecidas na sociedade, as pessoas tentam descobrir quem são, como se sentem e como os outros a veem. A produção audiovisual de ficção é um desses modos de ver, considerando-se um espelho que pode levar as pessoas a não se sentirem assemelhadas com o que é refletido, reforçando o processo de distanciamento da sociedade por aqueles que não se sentem representados. Diante disso, será abordado como a representação de pessoas transgêneras no audiovisual constrói um imaginário na sociedade como um todo, seja para pessoas trans com suas subjetividades ou pessoas cisgêneras com seus preconceitos. Em uma estrutura em que ninguém se encaixa perfeitamente, construída e nutrida apenas por uma pequena porcentagem de pessoas, quanto

mais se assemelha deste grupo, mais poder você tem. Essa logística gera frustrações e este não pertencimento rebate em cada pessoa de maneiras diferentes através do seu lugar na sociedade. Pessoas trans desafiam uma questão intrínseca ao nascimento de qualquer ser humano: a relação entre a genitália e seu gênero e, por consequência, suas expressões e obrigações sociais. A cultura estabelecida na sociedade - não só brasileira atualmente está pautada em uma estrutura binária que se agarra a essas delimitações de gênero que foram passadas através de gerações de uma maneira que adoece desde a infância, com ou sem intenção de quem cria uma criança. A discussão se complexifica ainda mais quando se questiona essas denominações binárias que apresentam uma única possibilidade: nascer “homem ou mulher”. Esta dicotomia é contestada de diversas maneiras na história e, atualmente, as pessoas que se identificam com o termo guarda-chuva da Não Binariedade são alguns dos condutores desse questionamento. Neste cenário, o ideal de corpo “certo” é atrelado ao corpo cisgênero, sendo ele improvável de se alcançar pelos mesmos, enquanto os corpos transgêneros são colocados enquanto “errados”. A maior diferença se dá a partir do momento em que, considerando apenas o marcador social do trans ou cisgênero, existem diversos espelhos na mídia e produções audiovisuais para estes últimos se sentirem representados, ao mesmo tempo em que as narrativas trans se encaixam boa parte das vezes em clichês. Na história do cinema mundial, personagens que divergem da norma são interpretados por atores pertencentes a ela, criando e reforçando a “Única História” (ADICHIE, 2018) acerca da comunidade que eles representam. Um termo bem conhecido que se refere a uma situação destas é o blackface, em que atores brancos interpretam personagens pretos caricatos, utilizando maquiagem para escurecer a pele. Foi a partir deste termo, que foi criado o conceito de transfake, que se refere ao artifício de utilizar atores e/ou atrizes cisgênero para o papel de

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 pessoas transgêneras. A prática, é muito frequente mundo afora em produções audiovisuais, e contribui fortemente é um dos diversos contribuintes para perpetuar a visão estereotipada sobre os pessoas trans. Através do contraste entre pontos específicos da narrativa de duas produções brasileiras, será possível distinguir uma narrativa contundente e produtiva para o que deve ser atrelado ao termo representatividade, de uma narrativa facilmente associada à expressão “faca de dois gumes”. Manhãs de Setembro (PrimeVideo) e A Força do Querer (estúdios Globo) são duas produções que possuem em seus enredos pessoas transgêneras e, dentre todas as suas diferenças, a mais palpável está na seleção de elenco. A novela de 2017 tem como intérprete de um de seus eixos narrativos a atriz Carol Duarte, uma mulher cisgênera, que interpreta o personagem transmasculino Ivan. Não é o caso da série brasileira Manhãs de Setembro (Luís Pinheiro e Dainara Toffoli, 2021), da plataforma de streaming PrimeVideo. O enredo traz Cassandra, que deixou sua cidade natal determinada a ser livre e viver com independência, perseguindo sua carreira como cantora, quando ela é confrontada por um filho que não tinha conhecimento de ter concebido no passado. Cassandra é interpretada por Liniker, uma multiartista e travesti, e é uma personagem elaborada para além das questões que envolvem sua identidade de gênero. O oposto costuma acontecer com frequência: personagens trans são pautados no sofrimento de maneira frequente, e os clichês pelos quais se constrói essa relação entre a violência e a transgeneridade são perigosos. Narrativas trans diante da sociedade Segundo a escritora Chimamanda Adichie (2018, p. 3), “poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa”. Assim, pode-se entender que histórias contadas a partir de um ponto de vista dominante intensificam estereótipos e estipulam a narrativa de um determinado grupo. Levando em conta este conceito, denominado por Adichie como “o perigo de uma única história”, e os dados aqui apresentados em relação à participação de pessoas trans no cinema, é possível compreender a importância desta participação de maneira horizontal em produções audiovisuais. Apesar de personagens trans poderem vir com a intenção de representar essa comunidade, são raras as obras audiovisuais que colocam essas pessoas no centro de suas produções, seja em frente às câmeras

ou atrás delas. Assim, o controle destas narrativas fica nas mãos de pessoas que, em sua maioria, não pertencem a este grupo, ou sequer buscam contato com pessoas transgêneras. O transfake só entrou em pauta para discussões mais abrangentes há poucos anos. Em 2017, um coletivo de atrizes e atores trans, chamado Coletivo T, se juntou para formular um abaixo-assinado contra a prática do transfake, onde enfatizam dados que dizem respeito às circunstâncias sociais das pessoas trans: Somos a população mais estigmatizada e marginalizada da nossa sociedade. O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Nossa segunda causa de morte é o suicídio. A vida média de uma pessoa trans é de apenas 35 anos. Mais de 90% da nossa população está na prostituição, pois o mercado de trabalho não nos aceita. Lutamos pela normalização e humanização de nossos corpos e identidades (...) (Representatividade Trans Já Diga NÃO ao TRANSFAKE, 2021)

É impossível falar sobre o audiovisual brasileiro sem primeiro falar sobre a transfobia que atravessa o país. O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, e é o que mais consome conteúdo de cinematografia pornográfica, as maiores buscas são para filmes com pessoas trans. Pesquisas feitas em 2016 revelam que os homens brasileiros são os maiores espectadores de pornografia trans. Assim como dados divulgados pela ONG Transgender Europe apontam o país como responsável por 42% dos 295 casos de assassinatos de pessoas trans em 2015 ao redor do mundo. (GOMES, Helena. 2017)

Compreender o fenômeno do consumo excessivo e generalizado de pornografia envolvendo corpos trans é paradoxal. Anualmente, grandes sites divulgam relatórios que destacam as categorias e palavras-chave mais procuradas em seu catálogo. Em 2016, um desses canais colocou o Brasil no topo desse consumo. No entanto, o foco da discussão aqui exposta não está nisso. Essa informação foi fornecida apenas para ilustrar o contraste do quanto esses corpos são frequentemente colocados em uma posição de “desejo” ao mesmo tempo que de violência. Qualquer representação que não se encaixe nesse conceito de "sexualização oculta" não é considerada adequada para a reprodução nas telas de cinema. O transgénero confirma a fantasia da fluidez

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 comum à noção de transformação da pósmodernidade, para outras apresenta o poder duradouro do sistema de género binário e para um outro universo confirma a visão utópica de um mundo possível, cheio de diferentes subculturas (Halberstam, 2005:89-93).

A representação desses corpos no cinema abriu uma grande margem para analisar como essa imagem foi, e está sendo usada, essa utilização e reprodução de “personagens não tradicionais” quase sempre são de formas expectáveis, e destinadas a surpreender e chocar o público alheio àquela realidade. Com isso, é inevitável associar o audiovisual brasileiro à transfobia que atravessa o país. A representação desses corpos no cinema abriu uma grande margem para analisar como essa imagem foi, e está sendo usada. Essa utilização, associada à reprodução de “personagens não tradicionais”, quase sempre são de formas expectáveis, construídas por um imaginário cisgênero, que enfoca centralmente a dor dessas personagens, dando ênfase apenas a sua identidade de gênero com o objetivo de surpreender e chocar um determinado público. Tudo isso sob o pretexto de “querer dar voz” ou “trazer a discussão” para o público. Mas é indispensável discutir a responsabilidade daqueles que contam essas histórias, além de analisar através de quais pontos essa discussão é colocada para o público. Transfake: a ponta do iceberg A atriz e pesquisadora Renata Carvalho, fundadora do Movimento Nacional de Artistas Trans (Monart), em entrevista à iG Queer, disse que o transfake não ocorre somente na comédia, mas também no drama. A autora conclui que pessoas transgêneros existem nos roteiros, nas novelas, nas peças de teatro, mas não lhes é permitido que seus corpos estejam presentes para representar papéis, principalmente os protagonistas. Carvalho aponta ainda que atuou no filme “Vento Seco”, que não se fala sobre transexualidade e travestilidade, e a minha personagem é cisgênero. Mesmo assim, a maioria das reportagens no Brasil saiu dizendo que a personagem era trans, pelo fato de eu interpretar ela. Esse mito do corpo neutro não chega aos corpos trans, negros e periféricos. Quem pode começar do zero, sem sexo, é o homem branco, cisgênero e publicamente heterossexual. O teatro foi feito para ele. (JORDÃO, 2021, s/p)

Toda essa imagética, só reafirma os velhos

estereótipos negativos sobre as pessoas trans, e vem à tona o problema de uma pessoa cis interpretar esses papeis: a projeção da ideia de um corpo irreal. A falta de representatividade artística só ajuda a reforçar a representação de que as pessoas trans não são pessoas de verdade, estando ali apenas para diversão, e que, uma vez findo o processo, voltam a suas vidas de pessoas cisgêneras “reais”. E nesse âmbito de irrealidade, esses estereótipos negativos influenciam a formação da identidade dos sujeitos, já que o cinema e a mídia, em geral, têm grande visibilidade. Praxedes e Pinheiro (2020), em uma pesquisa realizada entre os anos de 2014 e 2018, examinaram a quantidade de personagens e pessoas LGBTs atuantes no cinema. A pesquisa foi realizada pela Escola de Comunicação e Jornalismo da University of Southern California (USC) Annenberg e analisou os 100 principais filmes produzidos no Brasil, de maior bilheteria de cada ano. Analisando 500 filmes desta pesquisa, entre os anos de 2014 e 2018, apenas um personagem transgênero aparece, o que reforça a ideia de marginalização das histórias destas pessoas. Tabela 1 – Número de personagens LGBTs nos 500 principais filmes analisados entre 2014 e 2018 Escola de Comunicação e Jornalismo da USC Annenberg

Fonte: Smith et al. (2019)

Diante desses resultados conseguimos ter uma ideia panorâmica de como o cinema brasileiro exacerba as narrativas, cujo foco é voltado a pessoas cisgêneras e heterossexuais. Vale ressaltar que, assim como foi dito por Carvalho (2021), recorrentemente temos produções nacionais de filmes mainstream que se utilizam do transfake. Ou seja, as obras sempre partem de uma representação a partir do homem cis, e comumente estão atrelados ao gênero de comédia. E, mais uma vez, fica evidente a ligação entre a transfobia e as produções cinematográficas brasileiras.

Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 acordo com Pires e Silva (2014): O cinema, como artefato cultural que é, pode e deve ser explorado como forma de discurso que contribui para a construção de significados sociais. A junção das técnicas de filmagem e montagem com elenco e o processo de produção resultam num conjunto de significações que precisam ser partilhadas por quem o acessa, para que as imagens irradiadas possam produzir sentidos que, muitas vezes, tornam-se determinantes para suas vidas. (PIRES; SILVA, 2014, p.608)

Entende-se, portanto, que as narrativas cinematográficas possuem relevância para a percepção de toda uma sociedade sobre um grupo de pessoas. Isso estabelece o quão grande é a responsabilidade de uma equipe ao desenvolver narrativas de quaisquer grupos que não os dominantes (branco, cisgênero, heteronormativo e patriarcal). Contudo, como já foi dito antes, o mais comum em roteiros que passam por essas pessoas é a espetacularização do seu sofrimento, fomentando o estereótipo de uma vida condenada a dor não só para os que veem de fora (pessoas cisgêneras), mas também para os que vivem aquilo (jovens transgêneros). Dessa forma, séries e filmes, que contemplem outras ramificações da vida de pessoas transgêneras, são fundamentais para a quebra dos estereótipos estabelecidos pelo cisheteropatriarcado. E quem melhor do que as próprias pessoas para ajudar a contar tais histórias? Existem inúmeros atores e atrizes trans para atuarem em tais papéis, além de inúmeros cineastas para atuarem por trás das câmeras. É aí que entra a série Manhãs de Setembro (figura 1), um exemplo recente de produção brasileira que conta com pessoas trans, desde sua protagonista até os integrantes da produção. Além da empregabilidade de pessoas trans, isso também levanta a questão de humanizá-las através de histórias que abordem suas vidas para além de sua identidade de gênero. Figura 1: Cassandra (Liniker) e Gersinho (Gustavo Coelho) em Manhãs de Setembro.

Produções Audiovisuais e seus impactos Sociais Diante do cenário de marginalização no qual pessoas trans estão inseridas, entende-se a necessidade da concepção de histórias que, para serem fiéis às suas vivências, precisam envolver elas mesmas. A distribuição destas histórias é uma parte importante para o combate a este cenário e o cinema é um dos meios para esta disseminação, pois de

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Fonte: fonte: https://portalpopline.com.br/manhas-desetembro-liniker-importancia-comunidade-trans/ [acesso em

18 jul. 2023]

Representatividade de dois gumes Na série da PrimeVideo, Cassandra (Liniker), inicialmente, nos é apresentada como uma entregadora de aplicativos com dificuldades para fazer a carreira de artista decolar. A aparição de Leide (Karine Teles), uma antiga amante, que revela ao espectador a identidade de gênero da protagonista como uma mulher trans, ao revelar a existência de um filho de 10 anos de idade. Este é um primeiro ponto que quebra com o padrão das narrativas acerca de pessoas trans, pois é comum que haja um espetáculo nesses momentos. Na maioria das vezes, estas pessoas são colocadas como “mentirosas” que se passam pelo gênero oposto e, portanto, em algum momento são desmascaradas, como se sua identidade de gênero fosse uma grande revelação. Este é o caso da cena de revelação da identidade de Ivan, na novela A Força do Querer. A novela Força do Querer foi lançada em 2017 e teve como um de seus eixos centrais a história de um homem transgênero chamado Ivan. Criado por Eugênio (Dan Stulbach), um advogado ambicioso, e Joyce (Maria Fernanda Cândido), uma mulher que exerce à vera a feminilidade, Ivan atravessa um processo árduo com sua transição de gênero, passando por uma luta consigo mesmo, com a família e com a sociedade. Um dos momentos mais marcantes desse processo é o de revelação para a família. Ivan se reúne com seus familiares para contar sobre sua identidade de gênero e, em meio à sua fala uma das frases que ele diz “eu nunca fui feminina, eu sou um trans”. A escolha semântica para esta frase é infeliz pois ela transforma “ser transgênero” em uma “coisa”, em um tipo de gente, de maneira pejorativa. Durante o discurso dele, é evocada a ideia do descontrole e “loucura” tanto pela sua própria atitude, quanto pelas frases proferidas por seus familiares. Delírio, surto, “chamem um psiquiatra”, são alguns dos termos utilizados ao se referir à revelação de Ivan. Estes colocam esse acontecimento neste lugar de insanidade mental que é negativo para a comunidade, pois a transgeneridade, até 2019, ainda estava categorizada como doença mental na CID-11, a classificação oficial de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). Estes acontecimentos transfóbicos que permeiam a vida de Ivan são importantes de serem discutidos, contudo, não foram abordados de maneira responsável. Com Cassandra, a transfobia sofrida pela personagem causa impactos diários, em diferentes níveis, mas é tratada de maneira sensível,

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 considerando que sofrer violência não é o único aspecto de sua vida. São apresentadas situações ao redor dela de maneira realista, sem a fetichização de suas dores, seja lidar com os comentários desagradáveis de estranhos na rua quanto à sua aparência ou com a insistência de Leide em tratá-la no masculino. Mas mesmo diante de tudo isso, espectadores se deparam com uma travesti negra independente financeiramente e que possui uma rede de afeto em sua maioria estável. Figura 2: Cassandra (Liniker) e Ivaldo (Tomás Aquino) em Manhãs de Setembro (2021), dirigido por Luís Pinheiro e Dainara Toffoli

fonte: https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/series/estreladapela-cantora-liniker-manhas-de-setembro-chega-emjunho-ao-prime-video-56212 [acesso em 14. julho 2023]

Com isso, existe uma quebra com a solidão destinada aos corpos trans em sua "única história”, seja em relações amorosas ou familiares, e o afeto é introduzido como fio condutor de toda a trama. Já a narrativa de Ivan abraça clichês já repetitivos para a “história única” contada sobre o corpo dele, tecendo sempre uma história por meio de sua dor. Existem inúmeras cenas em que Ivan confronta um espelho (figura 3), seja aos prantos por não se reconhecer nele, ou se agredindo de maneira física. Apesar de o espelho ter um significado simbólico sobre a maneira como uma pessoa se enxerga, essa relação é frequentemente utilizada em narrativas sobre pessoas trans nessa contextualização de “nascimento no corpo errado”. A maneira como são pensadas e executadas as cenas do confronto entre o corpo e si mesmo caminham para um clichê pautado no que deve ser o feminino e o masculino. Ademais, é um reforço do distanciamento entre o corpo e a pessoa, como se não fossem um só, desumanizando a transgeneridade. Apesar desses episódios disfóricos acontecerem com pessoas trans, a repetição deles é um reforço da violência que atravessa esses corpos, ainda mais quando a palavra disforia não é citada nenhuma vez durante a trama, atrelando esses episódios a um tipo de loucura. Considerando a dinâmica de uma novela, essa repetição se dá de maneira frequente e, durante semanas, a relação entre o corpo trans e a violência

é reforçada continuamente. Isso reduz a complexidade da transgeneridade a ponto de não ser apenas um descaso, mas uma violência. Tudo isso é colocado sem entrar em detalhes sobre outros personagens, como Elis, que se apresenta diversas vezes durante a trama juntando dois termos completamente distintos, criando um termo inexistente e problemático: “travesti/transformista”. Esta personagem é mais um ponto da novela que reforça esta relação do “corpo errado”, ao afirmar constantemente que não é trans por não ter problemas com seu corpo. Figura 3: Ivan (Carol Duarte) em A Força do Querer.

Reprodução Globoplay - episódio exibido em 11/05/2017

Já a série protagonizada por Liniker possui um tempo diferente e o utiliza muito bem para desenvolver todas as suas personagens de maneira complexa, mostrando suas qualidades, defeitos e lutas sem seguir a lógica de espetacularização de suas dores. Passando por problemas socioeconômicos, de raça, gênero e sexualidade, a série integra pessoas de diversos grupos marginalizados, em frente e atrás das câmeras. E foi este um dos motivos que fez a multiartista Liniker aceitar fazer o papel de Cassandra. Tal função foi preenchida pela também multiartista Alice Marcone. A roteirista fala em entrevista ao Adorocinema sobre a necessidade de uma equipe horizontal de roteiristas, que divergem por suas diferentes vivências e pontos de vista: Então eu sou uma defensora da diversidade por trás das câmeras, onde a gente precisa de pessoas com perspectivas diferentes, porque é isso que vai nos ajudar a quebrar os estereótipos que vêm de uma visão muito etnocentrada de um grupo só. (JESUS, 2021)

Todos estes pontos tornam Manhãs de Setembro uma produção audiovisual exemplar para a pauta de representatividade no cenário brasileiro do audiovisual. É interessante compreender o lugar dessas duas narrativas na sociedade já que uma novela possui um público muito mais abrangente e está teve uma

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 das maiores audiências da Globo até então. Ela traz um arco narrativo interessante, atravessando não só a identidade de gênero, mas a sexualidade de Ivan, que foi tratada de maneira mais coesa do que sua transgeneridade. Contudo, A Força do Querer peca ao redor de conceitos básicos estabelecidos pela comunidade trans anos antes dela ir ao ar, o que prejudica o possível valor social que ela tem. Ao abraçar tantos clichês problemáticos sob o pretexto de “representar uma discussão importante”, essa narrativa se torna uma faca de dois gumes. É de fato uma discussão importante, mas quando o custo de se discutir é a sanidade de quem se enxerga naquilo, é preciso debater, problematizar e cobrar mudanças sobre essas narrativas. Diante disso, é importante valorizar as produções do cinema independente brasileiro, pois ele contribui de forma sem igual para a multiplicidade de narrativas, visto que é através dele que diversas pessoas marginalizadas têm lutado pela oportunidade de contar suas próprias histórias. A exemplo disso temos o curta Perifericu (2019 – figura 4), que conta com um coletivo de pessoas travestigeneres e periféricas na direção e produção. O filme tece uma trama humanizada e potente, que, através de muito afeto, impõe a existência destes corpos como seres reais, diferente dos estereótipos impostos. Figura 4: “Perifericu”, dirigido por Nay Mendl, Rosa Caldeira, Stheffany Fernanda e Vita Pereira (2019 - SP)

Portanto, compreende-se que ao abordar uma narrativa relacionada a uma comunidade, é crucial conduzir uma análise aprofundada, com a participação daqueles que fazem parte dela, a fim de evitar que a narrativa em questão seja uma perspectiva "de fora para dentro", reforçando estereótipos. A inclusão de pessoas trans em todas as fases de uma produção cinematográfica, desde a concepção do roteiro e dos personagens até a seleção dos atores, desempenha um papel fundamental na promoção de mudanças significativas. Somente dessa forma, as narrativas que abordam essa comunidade poderão se distanciar dos estereótipos que limitam sua representação e, em vez disso, se aproximarem de uma visão que respeite a diversidade da comunidade transgênera. O transfake é apenas um ponto mais visível, tal qual a ponta de um iceberg, em meio a uma discussão muito maior em relação às problemáticas do que se diz “diversidade” nos dias de hoje. A representatividade por si só não irá desmantelar os estereótipos criados e reforçados por narrativas construídas de fora pra dentro, mas ela é uma ferramenta muito importante e perigosa quando se trata das façanhas do capitalismo, com sua capacidade de incorporar temas em favor do lucro financeiro. Afinal, quais são as possibilidades de se enxergar que uma pessoa trans terá através desse cenário? É preciso que se construa nas entranhas da estrutura (já que a destruição e reformulação da mesma é uma discussão para outros textos) uma maneira de apresentar a transgeneridade junto de pessoas trans, para que mais delas vejam que exista algo para além do sofrimento ao não se adequar à norma. REFERÊNCIAS

Fonte: https://www.planoaberto.com.br/perifericu-bonde-e23-minutos/ [acesso em 14.dez 2021]

Considerações finais Diante disso pode-se enfatizar o perigo da “Única História” (ADICHIE, 2018) acerca da comunidade trans, que fomenta sua invisibilização e marginalização. Afinal, qual foi o custo deste debate que a novela “A Força do Querer” levou para o seu público? Apesar de abordar questões sociais importantes envolvendo identidade de gênero e sexualidade, a relação entre o corpo trans e a violência foi reafirmada diversas vezes, além de endossar a narrativa de “corpo errado” e outras dezenas de agressões à essa população.

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. Acesso em: 12 ago. 2023. ARAUJO, B. S. de; MONTEIRO, D. F. P. Transvestigeneres Contra o Estado, Atena Editora, p. 1–388, 2020. Acesso em: 20 jul. 2023. GOMES, Heloisa, Por que o país que mais consome pornografia trans é também o que mais mata travestis? Aratuon, 31 jan. 2017. Disponível em: https://aratuon.com.br/geral/2017-01-31/ por-que-o-pais-que-mais-consome-pornografia-trans-etambem-o-que-mais-mata-travestis/. Acesso em 16 set. 2023. HALBERSTAM, J. Jack. In Queer Time and Place - Transgender Bodies, Subcultural Lives, New York, NYU Press. Disponível em: http://ieas-szeged.hu/downtherabbithole/wp-content/uploads/ 2018/02/Judith-Halberstam-In-a-Queer-Time-and-

Place_-Transgender-Bodies-Subcultural-LivesSexual-Cultures-2005.pdf. Acesso em: 29 ago. 2023.

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921

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JESUS, Nathalia. Manhãs de Setembro: Liniker e Karine Teles falam sobre protagonismo trans e novos formatos de família na série do Amazon Prime Video. AdoroCinema, 25 jun. 2021. Disponível em: https://www.adorocinema.com/noticias/series/ noticia-159386/. Acesso em: 10 ago. 2023.

BATCHAN: A iDENTiDADE E ANCESTRALiDADE NO CiNEMA NiPO-BRASiLEiRO MEDiADO PELO PROTAGONiSMO DAS AVÓS

JORDÃO, Pedro. Transfake: a exclusão de pessoas trans que fortalece os estereótipos na arte: Em analogia ao blackface, o termo é referente à interpretação de personagens transgêneros por atores e atrizes cisgêneros. [S. l.], 12 mar. 2021. Disponível em: https://queer.ig.com.br/2021-03-02/transfake-a-exclusaode-pessoas-trans-da-arte-que-fortalece-os-estereotipos. html. Acesso em: 16 julho 2023.

Bagdá Sakugawa1 Caê Sayuri Miyamoto2 Marina Mapurunga de Miranda Ferreira3 1

Discente do curso Cinema e Audiovisual-UFRB, bolsista do grupo PET Cinema UFRB Discente do curso Cinema e Audiovisual-UFRB, bolsista do grupo PET Cinema UFRB e membro do VISU- Grupo de Pesquisa e Extensão em Arte, Imagem e Visualidades da Cena 3 Professora Mestre em Comunicação do curso de Cinema e Audiovisual na UFRB; Artista e pesquisadora que atua no campo da arte sonora, da música e do audiovisual e Tutora do grupo PET Cinema UFRB 2

PIRES, Maria da Conceição Francisca e SILVA, Sergio Luiz Pereira da. O cinema, a educação e a construção de um imaginário social contemporâneo. Educação & Sociedade [online]. 2014, v. 35, n. 127, pp. 607-616. Disponível em: <https:/ /doi.org/10.1590/S0101-73302014000200015>. Epub 29 Jul 2014. ISSN 1678-4626. Acesso em: 16 mai. 2023.

RESUMO: O presente artigo pretende explorar a importância do reconhecimento da multiplicidade racial no contexto brasileiro, abordando o caso específico das identidades nipo-brasileiras representadas no audiovisual, destacando como a memória desempenha um papel crucial na revisitação e análise crítica dessa diversidade. A partir da visionagem e análise de dois curtas nacionais, Bá ,de Leandro Tadashi e Batchan ,de Hugo Katsuo, é ilustrado como a ancestralidade e a identidade da comunidade nikkei são representadas na ficção e no documentário.

PRAXEDES, Max Suel; PINHEIRO, Mirian Moema Filgueira. O ousar (re)existir de Bree em Transamerica: um estudo de caso sobre a representação da transexualidade no cinema. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – VIRTUAL – 1º a 10/12/2020, [S. l.], p. 1-15, 10 dez. 2020. Disponível em: http://www.intercom.org.br/sis/ eventos/2020/resumos/R15-1780-1.pdf. Acesso em: 29 ago. 2023. REPRESENTATIVIDADE Trans Já - Diga NÃO ao TRANS FAKE. [S. l.], 24 jun. 2021. Disponível em: https://www.change.org/p/satedrepresentatividade-trans-j%C3%A1-diga-n%C3%A3o-aotrans-fake?signed=true. Acesso em: 12 set. 2023.

Palavras-chave: Nipo-brasieliro; Identidade; filmes, memória.

NAIDIN, Julia. Entrevista com Indianara Siqueira. MARCAÇÕES E MOBILIZAÇÕES EM TEMPOS DE BIOPODER, http://www. revistalatinoamericana-ciph.org/numero-3/, n. 3, p. 131-146, 25 jan. 2018. Acesso em: 15 jul. 2023.

Introdução O reconhecimento da multiplicidade do cenário racial dentro da brasilidade implica diretamente em um movimento contínuo de reconstrução da memória etnográfica brasileira, pautada na revisitação e análise crítica de como essa diversidade se estruturou desde o período colonial. Portanto, a memória, em seu estado de maleabilidade, torna-se o motor central para a invenção de um imaginário onde a branquitude não exerce o seu papel heroico e usual de protagonismo.

SMITH, S.L.; CHOUEITI,M.; PIEPER, K.; YAO, K.; CASE, A.; CHOI, A.. Inequality in 1,200 Popular Films: Examining Portrayals of Gender, Race/Ethnicity, LGBTQ & Disability from 2007 to 2018. Disponível em: . Acesso em: 10 de setembro de 2023. Filmografia MANHÃS de Setembro. Dainara Toffoli e Luís Pinheiro. Q2 Filmes. 2021. Amazon Prime Video. A Força do Querer. Rogério Gomes e Pedro Vasconcelos. Rede Globo. Rio

Os fluxos migratórios internacionais na primeira década do século XX, precedente da revolução industrial brasileira, em um país agrário e não integrado nacionalmente (Ocada, 2006); foram um fator eminente para a aparição e perpetuação de novos grupos sócio-culturais até então não pertencentes à história desse território. Em 1908, partindo no navio Kasato Maru do Porto de Kobe e desembarcando no Porto de Santos, chegam os

de Janeiro: TV Globo, 2017. PERIFERICU. Roda Caldeira, Stheffany Fernanda, Nay Mendl,

Vita

Pereira. Well Amorim. 2020.

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primeiros imigrantes japoneses no Brasil (Ennes, 2001). Iniciando assim um trânsito exponencial e regular ao decorrer do século, e, consequentemente, uma nova visão e constituição da identidade nipônica fora do Japão. Historicamente, questões relacionadas à identidade e à diversidade têm sido observadas em diversos contextos, incluindo eventos como a colonização da África e da Ásia e os movimentos migratórios. Dessa forma, é a diferença cultural e sua percepção que têm colocado a questão da "identidade" no cerne dos debates relacionados à imigração. No contexto dos fluxos migratórios, a diversidade étnica, nacional, linguística, cultural e fenotípica entre os diferentes grupos em contato, juntamente com a dinâmica de "distribuição" e as disputas de poder entre esses grupos e seus membros dentro das estruturas sociais, constituem a base central desse processo identitário. (Ennes, 2011) Levando em consideração a teoria proposta por Gilberto Freyre em relação à formação do povo brasileiro, há, então, um espaço esvaziado de existência identitária dentro das classificações étnico-raciais. Freyre afirma que dentro do imaginário popular, o povo brasileiro é ser formado por três figuras: o branco colonizador, o negro escravizado e o índio nativo. A partir dessa perspectiva, a comunidade nipônica e nipodescendente (apesar de que não só ela, mas de todos imigrantes não-brancos) admitem um lugar inexistente dentro da formação do ideário brasileiro. Assim, Lia Schucman, em seu estudo “Entre o ‘encardido’, o ‘branco’ e o ‘branquíssimo’” (2012), contesta esse tripé racial consagrado por Freyre. Afirmando que existem diferentes tipos de

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 “branquitude” com grupos de diferentes características que são todos enquadrados nessa mesma categoria: “aqui é branca qualquer pessoa com feição branca, mesmo que sua ascendência esteja muito longe dos colonizadores brancos brasileiros” (Schuman, 2012, p.69). Ainda nessa mesma pesquisa, Lia expõem a visão dos entrevistados sobre os japoneses e seus descendentes, que são deixados de lado na categoria de povo brasileiro, vistos como um grupo fora da composição nacional. Segundo Marcelo Ennes sobre a identidade nipo-brasileira: Levando em consideração a teoria proposta por Gilberto Freyre em relação à formação do povo brasileiro, há, então, um espaço esvaziado de existência identitária dentro das classificações étnico-raciais. Freyre afirma que dentro do imaginário popular, o povo brasileiro é ser formado por três figuras: o branco colonizador, o negro escravizado e o índio nativo. A partir dessa perspectiva, a comunidade nipônica e nipodescendente (apesar de que não só ela, mas de todos imigrantes não-brancos) admitem um lugar inexistente dentro da formação do ideário brasileiro. Quem é o nipo-brasileiro? Ele não é brasileiro e não é japonês. Não é brasileiro porque suas origens são japonesas e não é japonês porque vive e/ou nasceu no Brasil. O contrário também é verdadeiro. O nipo-brasiliero é brasileiro porque e/ou nasceu no Brasil e também é japonês por ter nascido e/ou herdado disposições práticas e simbólicas de seu país de origem ou de seus pais e avós (Ennes, 2011)

O intuito da disrupção do pensamento homogeneizador da nacionalidade transgride a conceitualização essencialista baseada na equivalência nacionalidade-identidade, em uma tentativa de abranger as diversidades e desigualdades dos grupos sociais e de criação de espaços (Ennes, 2011). ] As identidades vêm, junto ao pensamento pósmoderno e sua intrínseca relação com a globalização, com uma reformulação onde o descentramento se torna cerne da análise substituindo o pensamento essencialista-identitário. Homi Bhabha cunha o termo "entre- lugares", a fim de articular uma legitimidade nas amorfidades culturais causadas pela intersecção de culturas no encontro de grupos étnicos-sócioculturais, proporcionando nessa mistura, uma completude dentro do processo de formação identitário: O que é teoricamente inovodor e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos

que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esse “entre-lugares” [...]. É na emergência dos intertícios - a sobreposição e o deslocamento de domínios da diferença - que as experiências intersubjetivas e coletivas de nação são negociados. (Bhabha, 2003, p. 19-20)

Considerando o hibridismo cultural que está presente no conceito dos entre-lugares, no presente artigo pretende-se analisar de forma crítica o curtametragem Bá (2015), de Leandro Tadashi e o documentário Batchan (2020) de Hugo Katsu. Com a tríade analítica pautada na questão identitária; ancestral; e de representação nipônica dentro do cinema brasileiro. O eixo temático "tempo e memória" será um pilar estruturante para nossa discussão, orbitante nas relações entre avós e netos nipobrasileiros, suas aproximações e distanciamentos geracionais.

Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 são disseminados durante toda a obra. A começar pelo próprio nome do filme, que é uma palavra de origem japonesa — Bá trata-se de um diminutivo da palavra batchan que significa “avó” em japonês —. Para além, é exposto escancaradamente nos primeiros minutos do filme, quando o pai de Bruno recebe a sua mãe dizendo "Irasshaimase", justamente um modo de dizer “benvinda". O uso de expressões japonesas intrincadas e mescladas com o falar brasileiro trazem uma nova camada interpretativa àqueles que convivem com imigrantes, filhos, netos ou bisnetos destes, que por sua vez, têm, mesmo que inconscientemente, uma absorção e reprodução de elementos culturais de seus ancestrais. Outros elementos elaborados pela direção de arte também demonstram essa intersecção de Brasil-Japão, como por exemplo, o uso do saibashi4 durante a preparação dos bolinhos de chuva. Hoje com o desenvolvimento de gerações mais integradas à cultura receptora, a manutenção da cultura de origem se tornou mais dícil e complexa. No entanto, o que se vê é uma mudança dos grupos nipo-descendentes, principalmente jovens que tendem a encarar a preservação da cultura japonesa através de uma releitura das tradições e da estética do Japão. [...] Não é mais possível trabalhar com a ideia de indentidades nipo-brasileiras constituídas por netos (sanseis) e bisnetos (yonseis) de japoneses (Nakamuura, 2014, p. 15-17)

2. Análise dos filmes 2.1. Bá Ficha Técnica e Sinopse Bá é um curta-metragem do gênero de ficção dirigido por Leandro Tadashi lançado no ano de 2015 (Brasil), produzido pela Cigano Filmes, contando com a direção de fotografia de Taís Nardi, com a direção de arte por Rafael Blas e som direto por Fernando Russo; estrelando Henry Jun Kanashiro como Bruno, Yuriko Miamoto Shimata como Bá (avó), Fabio Yoshihara como pai, Lumi Kin como mãe e Letícia Aya como a irmã. O filme discorre de forma sutil e progressiva a integralização de um novo membro dentro do cotidiano familiar que é retratado a partir dos olhos de Bruno: um menino nipônico de cinco anos. Somos introduzidos a este novo membro, Bá, a sua avó, que por motivos de saúde (na sua entrança encontramos-a com um braço lesionado e enfaixado) ou até mesmo por conta de sua idade; é recrutada e acolhida dentro de sua casa. Bruno vê seu mundo, suas dinâmicas e a própria materialidade de sua casa sendo totalmente alteradas pela presença de sua avó que agora faz parte do seu convívio concomitantemente aos seus pais e sua irmã. A princípio, há um estranhamento e certa aversão a essa “invasão”, que, entre plantas e bolinhos de chuva, desmancham-se dando lugar ao estreitamento de laço genuíno e potente entre Bruno e sua Bá. A ancestralidade e o relacionamento familiar na ficção Os elementos híbridos da cultura nipo-brasileira

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É interessante notar como os objetos de cena exercem um papel motriz na construção de afeto avó-neto. Bá é apresentada para o espectador com uma flor (assemelha-se à uma papoula), na qual tendenciosamente fazemos uma analogia com a própria individualidade material da personagem. Conforme acontece a acomodação dos objetos da mudança, Bruno vê seu quintal tomado, gradativamente, pela presença das plantas de sua avó. O que simboliza a concretização da chegada dela e seu deslocamento com o novo cenário de lar. O clímax do filme também é inscrito através dessa representação quando Bruno, em um momento de angústia e impotência causado pela discussão de seus pais acerca da mudança de rotina causada pela presença de Bá, quebra o vaso que ela trazia consigo na primeira cena de sua aparição. Sequencialmente, dois atos ainda circunscrevem esses mesmos elementos: o encontro de Bá com Bruno após a quebra do vaso, que aparece com terra no rosto — um elemento também pensado pela equipe de arte — e a cena do desfecho, na qual, revela-se ao 4

Saibashi é um utensílio da cúlinaria japonesa semelhante ao hashi, porém com o comprimento até duas vezes maior (30cm ou mais), utilizado para a manipulação dos alimentos

espectador o limiar desse ato, que à priori aparenta impulsivo e infantil: o replantio da flor de sua avó com outra flor (figura 1) , desta vez, a analogia enquanto a própria individualidade material de Bruno e a aceitação de Bá enquanto parte da vida dele e essencialmente integrado à sua existência a partir deste ato. Então ali eles crescem e no mesmo vaso florescem, juntos. Figura 1 - Cena de Bá

Fonte: captura de tela pelo autor 5

O espelho ficcional: a realidade inextirpável Ao pensarmos na história da imigração japonesa para o Brasil, os descendentes ainda predominam majoritariamente nas terceira e quarta gerações. Nesse contexto, os avós desempenham um papel central como detentores da ancestralidade nipônica e como elementos determinantes na formação da identidade das gerações subsequentes. Esses avós são os guardiões de tradições, valores e narrativas familiares que remontam ao Japão, e ao compartilhálos com seus netos, estabelecem uma conexão direta com a cultura e a história japonesa. Essa transmissão intergeracional não só preserva a riqueza cultural, mas também nutre um senso de pertencimento e orgulho entre os descendentes japoneses, fortalecendo a identidade étnica e proporcionando uma compreensão mais completa de suas raízes.. As avós concentram as forças de cura em nossas comunidades. Ao mediar conflitos, as avós sabem que conflito é fundamento, e mediação de conflito também é fundamento. Portanto, no meu caso, linhagem é linguagem. A performance de uma avó é uma performance coletiva de todas as avós, É a performance de toda uma linhagem de mulheres, que se manifesta em multimeios e multidireções, atuando e enfrentando várias camadas afetivas por vezes traumáticas. São plurivozes ancestrais. (Motta, 2022, p. 3333)

Dessa forma Julia Mi Na Wu (2022) escreve sobre a existência de uma constante troca dentro da relação sujeito-objeto no filme e é justamente isso que possibilita a narrativa da obra. Wu ainda afirma que: “ O que acontece é que tanto no sujeito quanto no 5

BÁ. 9 dez. 2014. . Publicado pelo canal Leandro Tadashi. Disponível em: https://vimeo.com/leandrotadashi/ba.

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 objeto, há a construção de uma identidade – a identidade do personagem que é visto e vê, e a identidade do cineasta-câmera que vê a personagem e o que a personagem vê.” Partindo dessa hipótese, é possível elaborar que Tadashi reflete a si mesmo em seu curta para fabular uma identidade compartilhada tanto sua própria quanto das suas personagens. Pode-se supor ainda que o filme "Bá", de Leandro Shimata, é um retrato semi- autobiográfico da infância do diretor, que também cresceu em uma família de imigrantes japoneses no Brasil. O que evidencia ainda essa afirmação dá-se pelo fato da personagem Bá ser interpretada pela própria batchan do diretor, Yuriko Miamoto Shimata. Assim como em outro curta-metragem de sua filmografia, "Oyasuminasai6" (2011), onde Yuriko também é encarregada ao protagonismo da obra; ressaltando a importância do vínculo avó-neto dentro do repertório do diretor.

2.2. Batchan Ficha Técnica e Sinopse Já em Batchan de 2020, o diretor Hugo Katsuo traz um aspecto mais poético ao seu documentário, onde conta um pouco a história de sua batchan, com foco na relação dela com a religião. O curta conta então a história de Luiza Okabayashi, uma nipobrasileira que se encontrou em uma corrente espiritualista que faz sincretismo com religiões como catolicismo, xintoísmo e candomblé. O curta conta com a direção, roteiro e produção de Hugo Katsuo; direção de fotografia por Mariana de Lima; direção artística por Caroline Meirelles; som direto por Cintya Ferreira; e ainda Montagem e Correção de Cor de Luiza Catalani e Edição e Mixagem de Som por Mari von Seckendorff.

A ancestralidade e a identidade O filme começa com um poema recitado por Hugo, nele descobrimos que esse se trata de um filme in memorian de sua batchan. Logo depois ouvimos a voz de Luiza, as imagens são de uma estrada enquanto ela aconselha sobre o modo de viver. Só depois que somos apresentados a sua imagem, e enquanto conhecemos sua casa também conhecemos a sua história de vida. No curta é visto que a religião representou um

ponto central na vida de Luiza Okabayashi. Ela se identifica como médium mas não segue nenhuma corrente espírita específica, participando de um sincretismo religioso com elementos de diferentes origens. O sincretismo religioso pode criar sistemas de crenças únicos e complexos, nos quais as fronteiras entre religiões tradicionais se tornam difusas. Ele pode promover a tolerância religiosa ao permitir que as pessoas incorporem elementos de várias tradições em suas práticas espirituais (Ferretti, 2001). Através das práticas religiosas, rituais e tradições espirituais, as comunidades mantêm viva a lembrança de eventos significativos do passado e de figuras veneradas. Segundo Ferretti (2001), a crença em entidades espirituais ou divinas pode estar associada à ideia de que nossos antepassados continuam a existir em algum plano espiritual, o que promove a manutenção da conexão com eles. Assim, os rituais religiosos também servem como ocasiões para compartilhar histórias e memórias, solidificando a ligação entre as gerações e proporcionando consolo e orientação. Além disso, muitas religiões enfatizam a importância da moralidade e da conduta ética, que são transmitidas como parte da herança cultural e moral. No curta Batchan, Luiza Okabayashi conta que sempre teve mediunidade desde criança, porém ela própria demorou a aceitar e entender essa sua conexão espiritual. Luiza mesma diz que não queria ser espírita, mas acredita que é a missão incubida a ela, é seu trabalho. Assim sendo, é possível inferir que para a batchan Okabayashi o seu sincretismo religioso é onde ela se achou, onde está o seu “entrelugar”. Um lugar onde se criou uma identidade própria entre a sua “brasilidade” e “japonesidade”, onde é possível trazer aspectos dessas duas partes de sua identidade. Como ela mesma fala que começa uma sessão espírita rezando em japonês, com uma oração xintoísta, e encerra com uma oração católica, em português.

Oyasuminasai é uma expressão que significa boa noite em japonês

tratar de religiosidade, o curta Batchan também traz um pouco da história de Luiza enquanto parte da comunidade de imigrantes japoneses no Brasil. Diferentemente do curta Bá, na obra de Katsuo os elementos derivados da identidade miscigenada são mais difusos e menos óbvios, mas ainda assim bastante presentes. Como exemplo: quando somos apresentados ao relato de Luiza sobre seu ensino da língua japonesa, e como ele foi interrompido por conta da Segunda Guerra Mundial. Já que nesse período o ensino do japonês foi proibido em todo o país por conta dos conflitos políticos decorrentes da guerra. Da mesma forma, a experiência da protagonista nas escolas de ensino formal, que em decorrência à vivência dentro dos núcleos de colônias japonesas e pouco contato com a língua portuguesa. Assim, acaba sendo bastante comum histórias de filhos de imigrantes começaram a frequentar a escola sabendo apenas sua língua materna, o japonês. Porém, há ainda os aspectos mais delicados. Como a forma de Okabayashi falar, muito comum e característico de batchans, o enrolar da língua e a construção não usual das frases. Assim como a decoração da casa dos avós de Katsuo, a lanterna de papel, o quadro com escrita japonesa na parede, mas não só esses elementos como também um quadro da santa ceia na sala e figuras religiosas católicas ao lado de uma figura de uma gueixa japonesa (figura 2).

A preservação da memória de nossos antepassados desempenha um papel fundamental na construção de nossa identidade presente e futura. Isso nos ajuda a entender melhor quem somos, de onde viemos e quais são os valores que foram transmitidos ao longo das gerações. A memória de nossos antepassados pode servir como guia para as decisões que tomamos no presente e molda nossa visão de futuro, permitindo-nos honrar o passado enquanto navegamos e desbravando nossos futuros.

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Então, assim como ocorre no curta de Leandro Tadashi, torna-se possível e mais ainda, provável, a identificação entre sujeito e objeto, uma auto identificação entre quem filma e quem é filmado. E ademais, acrescentamos aqui que há também a possibilidade dessa identificação se estender ao espectador, enquanto sujeito que toca e é tocado pela obra. Por consequência, Hugo se vê em seu filme, e nós enquanto espectadores que compartilhamos de uma certa identidade, nós enxergamos também.

Conclusão Dessa forma, vale salientar o simbolismo presente na relação entre avós e netos. Relação essa que desempenha um papel fundamental na preservação e transmissão da ancestralidade, representando um elo vital entre diferentes gerações. Eles atuam como guardiões da sabedoria acumulada ao longo do tempo, tanto dentro da família quanto de suas vivências independentes. Por outro lado, os netos, ao absorverem essas narrativas e experiências, conectam-se mais profundamente com sua própria herança e identidade, evidenciando o importante papel dos avós como liames entre o passado, o presente e o futuro da família. Esse trato intergeracional desempenha um papel significativo no enriquecimento da compreensão da história pessoal e coletiva, bem como na promoção da coesão familiar e da continuidade cultural.

Figura 2 - Cena de Batchan

A realidade e o fílmico

Entretanto, não somente a religião. Para além de 6

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Fonte: captura de tela pelo autor 7

Por conseguinte, há nessa casa uma representação identitária, mas não se trata de brasileiros, nem japoneses. O que reside nas imagens do documentário é uma casa de nipobrasileiros, essa cultura única e plural, que só pode existir nesse “entre-lugar” específico. 7

BATCHAN (2020). . Publicado pelo canal Hugo Katsuo. Disponível em: https://vimeo.com/385337225

Através do processo de fragmentação e da diversidade de crenças entre os nipo-brasileiros nos campos da representação na mídia e na sociedade, é evidente como o discurso contribui para a divisão do indivíduo, muitas vezes submetido ao rótulo racial superficial (Wu, 2022). O fazer fílmico torna-se, portanto, um dos norteadores de quebra de estereótipos e exotização da população asiática, não se restringindo apenas aos japoneses, muito menos unicamente aos amarelos; uma cadência essencialmente política de reafirmação e de construção empática para com a espectatorialidade. Enxergar o nipo-brasileiro no audiovisual é reapresentar o Brasil como amarelo também, o que pode ser perturbador para aqueles que desejam uma "origem pura" inatingível e tentam neutralizar o corpo nipo-brasileiro, considerando-o como estrangeiro, propagando um eterno lugar apátrida. Olhar para o nipo-brasileiro no cinema é fazer cada brasileiro revisitar as noções de formação identitária e colocar a sua própria concepção de "brasilidade" em crise e perceber sua "falta", o buraco aberto pelo entrelugar: o audiovisual atua como um agente ativo para

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manifestar que recusar a pluralidade ética-racial é um ato negligente e irrealista na construção da corporalidade brasileira.

“JUNTOS NOVAMENTE”, O TEMPO E A IMAGEM TÉCNICA1

REFERÊNCIAS BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. 395 p. ISBN 9788570411563.

Taísa Patrício de Jesus

ENNES, Marcelo Alario. Imigração japonesa e produção de "entre-lugares": uma contribuição para o debate sobre identidades. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, 2011, São Paulo. Organizadora: Marieta de Moraes Ferreira, 2011. ISBN 978-85-98711-08-9. Disponível em: https://anpuh.org.br/index.php/documentos/anais/categoryitems/1-anais-simposios-anpuh/32-snh26?start=2240. Acesso em: 26 jul. 2023.

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O curta de animação Juntos Novamente (2021) da Disney nos apresenta um casal de idosos que se uniram pela dança mas que, com o passar dos anos, se afastaram do hobby tão querido por conta de algumas limitações que o tempo inevitavelmente traz ao corpo. Quando uma chuva cai e oferece ao casal a possibilidade de desfrutar da jovialidade novamente, um deles, o senhorzinho, não mede esforços para levar a sua amada até onde a chuva for e aproveitar esse momento até a última gota caída. Para ele, apenas esse momento foi capaz detrazer a sua juventude e habilidades de volta. Porém, quando a sua esposa mostra-se descontente com a atitude dele, percebendo que este não estava mais envolvendo-se nos ritmos e na dança e sim apenas preocupado em permanecer mais jovem e ágil, ele paralisa e desiste da corrida ao seu eu jovem e finalmente percebe que é mais importante estar com a pessoa que se ama mesmo com todas as adversidades que o tempo trouxe do que viver infelize lamentando constantemente por algo que não mais retornará. No início, vemos o homem irritado com a sonoridade do local onde moram, como se toda a movimentação trouxesse lembranças das habilidades das quais ele não pode mais usufruir. Além do som, as imagens presentes na sala dos personagens vindas dos porta-retratos e da televisão, por exemplo, reforçam a ideia da nostalgia sentida pelo homem em relação a um período da sua vida em que considerava ser mais ativo e vívido. Para Vilém Flusser, “imagens têm o propósito de representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, entrepõem-se entre mundo e homem”. As fotografias ostentadas pelo velhinho representam uma parcela do que já foi vivido por ele, ao mesmo tempo que não trazem uma fidelidade do que foi retratado em relação ao como ele se sente hoje, no momento. Ele passaa agir em função dessa imagem, ainda que esta seja um recorte, uma mera representação, do que já se viveu e não voltará, mesmo que uma replicação da mesma seja pensada. É interessante pensar no conceito de imagem relacionado a este filme, especificamente.

ERRETTI, S. F., Notas sobre o sincretismo religioso no Brasil modelos, limitações e possibilidades. Revista Tempo, n6(11), p, 13-26. ISSN: 1413-7704. Niterói, 2001 Disponível em: https:// www.redalyc.org/articulo.oa?id=167018156002. Acesso em: 10 set. 2023 MOTTA, Aline. A água é uma máquina do tempo. Rio de Janeiro: Círculo de poemas, 2022. 144 p. ISBN 9786584574045. NAKAMURA, Mariany Toriyama. Memória e Identidades NipoBrasileiras: Cultura Pop, Tecnologias e Mediações. 2013. 98 p. Dissertação de mestrado — Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Disponível em: https://doi.org/10.11606/D.27.2013. tde-31012014-160015. Acesso em: 22 jul. 2023. SCHUCMAN, L. V.. Entre o "encardido", o "branco" e o "branquíssimo": raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. 2012. Universidade de São Paulo, [s. l.], 2012. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/ 47/47134/tde-21052012-154521/. Acesso em: 29 Maio. 2023. WU, Julia Mi Na. O Estado em criação: o Nipo-Brasileiro no Audiovisual. 2022. 115 p. Dissertação de mestrado — Universidade do Estado de São Paulo, São Paulo, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.11606/D.27.2022.tde19092022-161941. Acesso em: 22 jul. 2023. Filmografia BÁ. 9 dez. 2014. 1 vídeo (14 min 11 s). Publicado pelo canal Leandro Tadashi. Disponível em: https://vimeo.com/ leandrotadashi/ba. Acesso em: 17 set. 2023. Batchan (2020). 16 jan. 2020. 1 vídeo (16 min 38 s). Publicado pelo canal Hugo Katsuo. Disponível em: https://vimeo.com/ 385337225. Acesso em: 17 set. 2023.

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Fotografias ou qualquer tipo de imagem, principalmente as técnicas como o próprio curta, nos dá a ideia de que algo está sendo criado para gerar uma emoção, por menorque seja e de qualquer cunho, no seu “leitor”. Ainda sob a ótica imagética de Flusser, podemos afirmar que as imagens técnicas são criadas para imaginar textos, tendo estesconcebido imagens que trazem a concepção de uma parcela do mundo, pela visão de quem o cria. Sendo uma imagem técnica, o curta animado foi fruto de um texto que surgiu de uma ideia que posteriormente virou texto, nesse caso o roteiro. Este roteiro foi escrito a partir da ideia de uma pessoa e esta pessoa pôs em palavras a história que quis contar, e assim esse texto desencadeou no filme. A animação emociona por tratar de um tema universal - envelhecer e suas consequências - utilizando imagens técnicas para envolver o espectador numa representação que pode não parecer tão fiel ao “real”, com o uso de movimentos de dança em situações que seriam impensáveis no cotidiano, com o som acompanhando o ritmo da trama e com a ausência de diálogos, por exemplo. Ainda assim, essa imagem técnica retrata muito bem esse tema universal, contando com os recursos que possui uma história cujo tema é vivido por grande parte da sociedade, como o receio de envelhecer, a sensação de incapacidade e a não aceitação às mudanças. REFERÊNCIAS: FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia.Editora Hucitec: São Paulo, 1985. p. 7-12. JUNTOS Novamente. Direção: Zach Parrish. Produção: Brad Simonsen. Estados Unidos:Walt Disney Animation Studios, Walt Disney Pictures, 2021. 7 min.

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A NOUVELLE VAGUE E O CINEMA DE WES ANDERSON: UMA ANÁLISE DAS SEMELHANÇAS E DIVERGÊNCIAS ENTRE ACOSSADO (1960) E O GRANDE HOTEL BUDAPESTE (2014)1 Taísa Patrício de Jesus2 1

Análise desenvolvida na disciplina Cinema I (Mundo), ministrada pela Profª Drª Fernanda Martins no semestre 2021.1, do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. 2 Graduanda em Cinema e Audiovisual pela UFRB.

RESUMO: A presente análise comparativa busca refletir sobre as semelhanças técnica, estética e narrativa que envolvem os longas-metragens Acossado (1960), de Jean-Luc Godard e O Grande Hotel Budapeste (2014), de Wes Anderson. O trabalho propõe-se a traçar paralelos entre seus personagens, além de analisar esses filmes e seus papéis nos movimentos cinematográficos da qual fazem parte - a Nouvelle Vague e a American New Wave. Palavras-chave: Análise comparativa; acossado; O Grande Hotel Budapeste; Cinema de Autor. Introdução Refletir sobre o fazer cinematográfico ao longo do tempo e de sua história é perceber e identificar movimentos e estilos que perpassam pelos desejos, sensações e a relação de interdependência e influência, direta ou indiretamente, entre seus realizadores e estudiosos de diferentes épocas. Este trabalho busca analisar estética e narrativamente os filmes Acossado (1960), dirigido por Jean-Luc Godard, e O Grande Hotel Budapeste (2014), de Wes Anderson, traçando um paralelo entre as suas semelhanças e/ou diferenças estilísticas, bem como a ideia atribuída à esses diretores/realizadores de um fazer cinematográfico autoral, único e identificável. Acossado (1960) e o cinema de autor Em Acossado (1960), acompanhamos a história do breve relacionamento entre o bon vivant francês Michel Poiccard (vivido por Jean-Paul Belmondo) e a jovem estudante americana Patrícia (vivida pela também americana Jean Seberg) na capital francesa nos anos 1960. Depois de assassinar um policial numa rodovia, Michel decide ir atrás de alguém que lhe deve algum dinheiro e encontra Patrícia, com quem havia tido um encontro romântico anteriormente em Nice. Enquanto tenta convencê-la de ir para Roma com ele, Michel segue sua vida

Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 de autor, que vigora até os dias de hoje. Acossado (1960) é um dos grandes exemplos desse movimento por concretizar os desejos de seus realizadores: o uso proposital do preto e branco, diálogos sobre o cotidiano contendo fluxos de pensamento e textos improvisados aproveitando da real vivência dos atores, o tom sensual e libertador com que os personagens se tratam e exprimem uns aos outros, além de inovações técnicas como o uso de inúmeros jump cuts para dar dinamicidade à trama e uma narrativa não-linear ilustram perfeitamente tudo o que se esperava e o que era valorizados pelos críticos e cinéfilos em busca de um frescor nos filmes que viriam. Imagem 1 - Frame de Acossado (1960)

agitada entre pequenos furtos, roubos, a atração sexual latente pela jovem e a vontade de viver intensamente até o último suspiro. O filme é um marco do movimento cinematográfico de vanguarda do cinema moderno surgido na Europa que influencia as produções até os dias atuais, a chamada Nouvelle Vague. O movimento surgiu a partir da inquietação de jovens estudantes e apreciadores do cinema pela necessidade de um fazer cinematográfico tendo como uma das fontes as obras americanas e produções de várias partes do mundo que eram desconhecidas da época. Para este grupo, que era empenhado em estudar à finco e analisar de forma crítica todo o tipo de produção, fazia-se necessário uma ruptura no que era tido como tradicional e o que era exaltado pela indústria a fim de trazer uma maior diversidade e dinamicidade nos filmes, tanto na narrativa como nas filmagens e edição. Com isso, acreditava-se que levar as filmagens para as ruas, abandonando os grandes estúdios e abdicando de grandes orçamentos, além da aposta em jovens atores e pouca preocupação com roteiro e perfeição, era uma forma mais pura de fazer cinema. Outro ponto de grande importância para os grupos de estudiosos formados pelos cinéfilos e críticos que propunham essa renovação era dar liberdade e maior poder de produção ao diretor. Na época, eram os estúdios e produtores que detinham as rédeas de um filme. Para os seguidores da Nouvelle Vague, eram os diretores que deveriam realizar uma produção de acordo com o que eles mesmos acreditavam. Neste sentido, aos diretores seriam dados o status de verdadeiros autores de suas obras, tanto no sentido real quanto figurado. Todo filme produzido seria reconhecido por causa de seu realizador, que deveria pôr a sua própria ideologia, estilos de filmagem e linguagem utilizadas, criando assim uma valorização do chamado cinema

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Fonte: Acossado (1960)

Neste diálogo presente na imagem 1, vemos Patrícia e Michel falando abertamente sobre temas que eram tratados com muito pudor na época. Por todo o filme, eles comentam sobre seus desejos íntimos. O Grande Hotel Budapeste (2014) e o cinema de Wes Anderson O Grande Hotel Budapeste (2014) é um filme dirigido e roteirizado pelo seu idealizador, o americano Wes Anderson. Nele, acompanhamos a história do jovem Zero (Tony Revolori), um imigrante que chega ao recinto do título localizado na fictícia República de Zubrowka e torna-se o mensageiro e fiel escudeiro do concierge Monsieur Gustave (Ralph Fiennes). Zero conta como foi acolhido pela aura e rotina do estabelecimento e as aventuras vividas ao lado do tutor e conselheiro, que mais tarde viria se tornar um grande amigo, em um período entre a Primeira e Segunda Guerras Mundiais. O filme é bastante dinâmico, trazendo elementos cômicos e dramáticos, onde há um ótimo equilíbrio entre o visual, a narrativa e a realização. Wes Anderson é conhecido por criar filmes com uma atmosfera lúdica, por vezes fantástica, rica em luzes e cores vibrantes ou em tons pastéis. Além de O Grande Hotel Budapeste, longas-metragem como Moonrise Kingdom (2012), Os Excêntricos Tenenbaums (2001) e A Crônica Francesa (2021), e as animações O Fantástico Senhor Raposo (2009) e Ilha de Cachorros (2018) ilustram perfeitamente o cinema feito por

Anderson, com personagens carismáticos e dúbios, e que chamam a atenção por sua estética marcada pelo uso das cores, além do apreço pelo uso milimetricamente calculado da simetria em seus enquadramentos. Imagem 2 - Frame de O Grande Hotel Budapeste, (2014)

Fonte: O Grande Hotel Budapeste (2014)

O artista surge como um dos expoentes do cinema independente contemporâneo, a American New Wave, movimento cinematográfico quase experimental, inspirados nos filmes cult produzidos entre 1960 e 1970, nascido do descontentamento de artistas com os grandes estúdios, utilizando-se de tecnologias mais baratas e assegurando o total poder dos idealizadores sobre a sua produção, ideia plantada desde a Nouvelle Vague francesa. Embora os filmes de Wes Anderson não tenham tido tão pouco orçamento como geralmente os filmes indie se propunham a ter, eles têm na sua essência as características do movimento. Se, no início, o cinema independente surge como antítese, oposição ou mesmo resposta a Hollywood, as fronteiras entre ambos, atualmente, parecem bem mais difusas. Talvez faça mais sentido pensar o cinema independente americano, hoje, como paralelo ou complementar ao mainstream. (SUPPIA; PIEDADE; FERRARAZ, 2008, p. 278)

Relações entre o ícone da Nouvelle Vague e o cinema (quase) indie de Wes Anderson À primeira vista não é tão reconhecível a relação entre os dois filmes listados: enquanto um é preto e branco e traz com um maior tempo de tela atores jovens e desconhecidos, o outro chama a atenção pelo uso recorrente dos tons fortes e uma lista enorme de atores consagrados e que são colaboradores recorrentes do diretor. Porém, existem aspectos narrativos e ideológicos que traçam um paralelo entre as obras. Em termos narrativos podemos evidenciar a tensão de uma perseguição que impulsiona os protagonistas, envolvendo bandidos e polícia, e há uma liberdade e certo amoralismo nos diálogos, com personagens livres e bem resolvidos sexualmente. Seguindo o primeiro aspecto, em Acossado (1960) o personagem Michel acaba assassinando uma policial e durante toda a sua história o vemos fugindo dos

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 investigadores, encontrando apoio em seu interesse amoroso Patrícia, que o ajuda apenas por poder ficar mais tempo com o rapaz e descobrir se o ama de fato ou não. Já em O Grande Hotel Budapeste (2014), Monsieur Gustave e Zero tentam fugir da polícia depois do concierge ser considerado responsável pela morte da Madame D., antiga hóspede e amante de Gustave que havia lhe deixado uma herança. Perseguidos pelas autoridades e por bandidos que buscam reaver a herança, o aprendiz e seu mentor percorrem por vários locais e encontram vários aliados a fim de saírem ilesos das acusações infundadas. Nos dois filmes, a montagem dinâmica cria a tensão necessária para as perseguições e mantém o espectador atento aos possíveis acontecimentos futuros. Ainda fazendo um paralelo entre narrativas, percebemos que os protagonistas são bem resolvidos sexualmente e com o que esperam de um relacionamento. No filme de 1960, Patrícia e Miguel têm uma liberdade quanto ao tema que era pouco discutida na época. Ambos compartilham, por exemplo, os números de parceiros sexuais que já tiveram na vida e falam abertamente sobre o que desejam fazer um com o outro, especialmente o rapaz. Já na produção de 2014, Zero, ao narrar o início do seu trabalho com o excêntrico Monsieur Gustave, revela os inúmeros envolvimentos do chefe com hóspedes, sendo estas preferencialmente velhas, ricas, loiras e inseguras, e que o patrão o fazia não apenas para satisfazer seus próprios desejos, mas como uma forma de oferecer um serviço de excelência para as senhoras, o que era o mote do estabelecimento.

A imagem 3 expõe um diálogo entre o casal, após o moço observar e tocar os seios de Patrícia no meio da rua, sem nenhum pudor. Já na Imagem 4, Monsieur Gustave aparece na cama após uma relação sexual com uma das hóspedes do Grande Hotel Budapeste. Wes Anderson é um desses autores que marcam a sua assinatura nas suas histórias repletas de personagens excêntricos, planos simétricos em demasia, uso comum da movimentação de câmera panorâmica rápida - chicote pelo jargão - uma explosão de cores, fortes ou pastéis. É interessante notar que Acossado (1960) traz características que se cruzam esteticamente com O Grande Hotel Budapeste (2014), com o uso também da simetria, os diversos primeiros planos nos protagonistas, a utilização de jump cuts para dinamizar a história e a ausência deliberada de cores em prol única e exclusivamente da estética.

Imagem 8 - Frame de O Grande Hotel Budapeste, (2014)

Fonte: O Grande Hotel Budapeste, (2014) Imagem 9 - Frame de Acossado (1960)

que na contemporaneidade é comum identificarmos os filmes que têm características marcantes e seus diretores-escritores. Conseguimos dizer qual filme é um Spike Lee Joint, ou do Quentin Tarantino, Martin Scorsese ou Pedro Almodóvar, por exemplo, e assistimo-nos apenas pelo fato de ser idealizado por estes, por gostar dos seus estilos ou temas abordados recorrentemente. O mesmo acontece com Acossado (1960), que se tornou um dos filmes mais conhecidos de Godard, assim como O Grande Hotel Budapeste (2014) é para Anderson, sendo estas obras que marcam o modo de escrever com a câmera dos seus criadores. REFERÊNCIAS MANEVY, Alfredo. Nouvelle Vague. In.: MASCARELLO, Fernando. (Org.) História do Cinema Mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006, p. 221-252. MASCARELLO, Fernando. Cinema Hollywoodiano Contemporâneo. In.: MASCARELLO, Fernando. (Org.) História do Cinema Mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006, p. 333-360.

Imagem 5 - Frame de Acossado (1960) Fonte: Acossado (1960) Imagem 10 - Frame de O Grande Hotel Budapeste, (2014)

SUPPIA, Alfredo; PIEDADE, Lúcio; FERRARAZ, Rogério. O Cinema Independente Americano. In.: BAPTISTA, Mauro; MASCARELLO, Fernando; (Orgs.) Cinema Mundial Contemporâneo. Campinas, SP: Papirus, 2008, p. 261-280. Flmográficas O GRANDE Hotel Budapeste. Direção: Wes Anderson. Produção: Wes Anderson, Scott Rudin, Steven Rales, Jeremy Dawson. Estados Unidos / Alemanha: Fox Searchlight Pictures, 2014. 100 min.

Fonte: Acossado (1960)

ACOSSADO. Direção: Jean-Luc Godard. Produção: Georges de Beauregard. França: SNC, 1960. 130 min

Imagem 6 - Frame de O Grande Hotel Budapeste, (2014)

Imagem 3 - Frame de Acossado (1960)

Fonte: O Grande Hotel Budapeste, (2014)

Fonte: O Grande Hotel Budapeste, (2014) Imagem 7 - Frame de Acossado (1960) Fonte: Acossado (1960) Imagem 4 - Frame de O Grande Hotel Budapeste, (2014

Nas duas imagens acima, vemos o uso em ambos os filmes da simetria e o detalhamento nos rostos dos personagens. Em seguida, vemos a opção da coloração, que marca o estilo dos diretores. Enquanto Godard se utiliza do preto e branco para mostrar uma Paris estilosa, porém comum e não tão encantadora, Anderson abusa das cores para dar o tom fantasioso e exagerado às suas narrativas. Conclusão

)

Fonte: O Grande Hotel Budapeste, (2014)

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As relações entre as duas obras se dão também pelo viés ideológico de suas produções. Sabemos que a Nouvelle Vague veio consolidar o que conhecemos como cinema de autor. Os críticos de cinema e cinéfilos que partiram para a realização de seus próprios enredos a partir do que acreditavam, fortaleceram a ideia que cada diretor era o detentor maior e o responsável legal do que produzira. O conceito foi tão bem aceito

Fonte: Acossado (1960)

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ViAGEM NO TEMPO E LOOPiNGS TEMPORAiS: UMA CONSTELAÇÃO FÍLMiCA Beatriz Dantas Cerqueira de Oliveira1 Marina Mapurunga de Miranda Ferreira 2

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Graduanda em Cinema e Audiovisual pela UFRB e bolsista do PET Cinema Docente do curso de Cinema e Audiovisual da UFRB e tutora do PET Cinema - UFRB.

RESUMO: Este artigo se dedica à análise de quatro produtos audiovisuais com o intuito de entender como eles se relacionam entre si e com o cânone de filmes de loopings temporais, buscando formar uma constelação fílmica a partir deles. Essa análise inclui dois episódios de séries animadas para televisão, Porto Papel (2016) e Steven Universo (2013), além de dois longas-metragens: O Feitiço do Tempo (1993) e No Limite do Amanhã (2014). Estes filmes apresentam diversidade de gêneros, público alvo e utilização da linguagem cinematográfica, aspectos importantes dentro da construção deste texto. Para este fim, foram utilizados os métodos de análise comparada Constelações Fílmicas (SOUTO, 2019) e o método estabelecido por Guy Roland Micklethwait (2012), voltado para análise narrativas de viagem no tempo. Palavras-chave: viagem no tempo; ficção científica; fantasia; Steven Universo, constelação fílmica. Introdução Este artigo se dedica a observar a presença de filmes de diversos gêneros que apresentem loopings temporais, um importante nicho dos filmes de ficção científica dentro de outro subgênero, os filmes de viagem no tempo. Esse exercício de análise de em um gesto de constelação fílmica, a partir dos estudos de Mariana Souto (2019). Nesse sentido, serão analisados dois filmes de ficção científica e dois episódios das séries animadas para televisão que se adequam a essa premissa e se caracterizam enquanto ficção científica a partir dos seus loopings temporais. O primeiro objeto de análise é Steven e os Stevens (2014), episódio integrante da primeira temporada da série estadunidense Steven Universo, criada por Rebecca Sugar e exibida no Cartoon Network durante os anos de 2013 e 2018. Em Steven Universo o público é apresentado a

Steven, um garoto de 11 anos, metade Crystal Gem1 e metade humano, ao seu universo mágico e à jornada de amadurecimento de Steven e sua família. O segundo episódio analisado é Corra, Matilde, Corra (2016), o qual faz parte da primeira temporada da série chilena intitulada Porto Papel (2016). Esta série utiliza a técnica desenvolvida por seus criadores chamada de papermotion, que mescla o uso de paper toys (bonecos tridimensionais feitos em papel) com o stopmotion. Nela, acompanhamos as férias de Matilde, 12 anos, na cidade de Porto Papel, onde mora seu avô, o pirata Barba Crespa. Durante a viagem, Matilde descobre que cada dia ela acorda com um poder diferente, e tem o desafio de aprender a entendê-los e controlá-los. A escolha dessas séries e desses episódios foi motivada sobretudo por uma característica comum aos dois: eles podem ser caracterizadas enquanto séries de cunho fantástico mas que, no episódio analisado, lidam com o tópico não só da viagem no tempo mas também das histórias de loopings temporais. Essas narrativas podem ser entendidas enquanto histórias nas quais um ou mais personagens revivem uma ou mais vezes um período específico dentro do espaço-tempo de sua diegese, seja por vontade própria ou não. Em relação aos longa metragens, foram escolhidos Feitiço do Tempo (1993), dirigido por Harold Ramis e No Limite do Amanhã (2014), dirigido por Doug Liman. Ambos, abordados mais adiante, irão trazer aspectos importantes que se relacionam ao cânone das viagens no tempo e sobretudo aos filmes de looping temporal. Existem diversas formas de representar a viagem no tempo dentro do audiovisual, cada uma dessas histórias irá representar a ficção científica a partir 1

Seres alienígenas cuja forma física existe a partir da materialização da energia dos cristais dos quais são feitos.

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 das regras que regem a construção de seu próprio mundo, e cada uma delas irá lidar com as implicações das viagens no tempo à sua própria maneira. Nesse sentido, as explicações dadas pelos exemplos analisados a seguir nem sempre estarão diretamente associadas com as respostas oferecidas pela ciência a respeito do funcionamento do universo ou das reais implicações do fenômeno viagem no tempo fora da ficção. Para Piassi e Pietrocola (2009), não é possível ignorar que a obra ficcional segue suas próprias leis: aquilo que um cientista consideraria um erro pode constituir uma estratégia narrativa fundamental para que a história atinja o efeito pretendido pelo autor. (Piassi, Pietrocola, 2009, p. 3)

A partir das contribuições feitas por Guy Roland Micklethwait em seu texto Models of Time Travel: A comparative Study Using Films (2012), foram adotados critérios que buscam traçar aproximações e distanciamentos entre os objetos de análise ao longo deste texto. Assim, serão analisadas a maneira como cada um irá lidar com o mecanismo de viagem no tempo, as suas explicações e as suas consequências para cada um dos personagens. Nesse sentido, o método utilizado para o desenvolvimento das análises foi a constelação fílmica (Souto, 2019). A partir dele, é possível valorizar as particularidades de cada uma das narrativas analisadas com um enfoque na experiência do pesquisador em relação às imagens que compõem seu corpus de pesquisa além de destacar “tensões e afinidades entre as obras/estrelas, ainda que essa conversa não tenha sido por elas planejada” (Souto, 2019, p. 9). Esse método busca proporcionar à escrita uma liberdade no que diz respeito às construções imagéticas e fabulações geradas pelo ato de escrever. Construir as constelações, aqui, é fazer com que cada estrela ou corpo ocupe um espaço de aproximação ou distanciamento com os demais. Constelar é uma forma de produzir chaves de leitura, de decifrar um enigma a partir de sua visão em uma teia de relações. O objeto se abre quando ganha consciência da constelação na qual se encontra. A constelação tem, assim, um poder revelador, de ajudar a produzir uma releitura, sendo capaz de inspirar o presente ou de trazer alguma espécie de redenção para os ocorridos do passado. (SOUTO , 2019, p. 8)

Assim, este texto busca entender a maneira pela qual cada um dos episódios lida com os cânones constituídos pelos longas metragens, com as viagens no tempo, estabelece o seu funcionamento, seja a partir de um dispositivo específico ou não, as suas implicações em relação a linha do tempo e as importantes consequências do ato de viajar no tempo

para cada um dos protagonistas. A ficção científica, a viagem no tempo e o seu subgênero, filmes de looping temporal A ficção científica apareceu no cinema pela primeira vez em Viagem à Lua (1902), dirigido por George Meliès, ainda no período do cinema silencioso. Entretanto, enquanto gênero, a ficção científica tem sua origem associada sobretudo à literatura, e a escritores como Jules Vernes, Mary Shelley e HG Wells. Os temas da ficção científica são descritos por Oosterbeek (2021) como estruturas narrativas que encerram em potência uma reflexão sobre uma série de visões associadas ao papel da tecnociência nas nossas sociedades, servindo propósitos tão variados como imaginar utopias construídas sobre o desenvolvimento científico, dar palco às ansiedades que esse mesmo desenvolvimento encerra. (OOSTERBEEK, 2021, p. 14).

Já para Piassi e Pietrocola (2009), esse gênero não é necessariamente científico, pois esse emprega uma racionalidade do tipo científica para produzir conjecturas sobre a realidade. Por meio da derivação ou variação, sua narrativa é pautada pela conjectura dentro dos limites da racionalidade lógico-causal. (Piassi, Pietrocola, 2009, p. 4)

No cinema, esse gênero se estabelece na década de 1950, e alcança sua maior popularidade durante os anos de 1970 através dos blockbusters2 (Suppia, 2016). Ainda segundo Alfredo Suppia (2016), em relação ao cinema de ficção científica contemporâneo, as narrativas de viagem no tempo e de paradoxo temporal se apresentam enquanto temas recorrentes nas histórias contemporâneas. Uma importante referência no que diz respeito à filmes de ficção científica é o estudo realizado pelo australiano Roland Micklethwait, intitulado Models of Time Travel: A comparative Study Using Films3 (2012). Ao longo desse estudo, o autor irá mapear 100 longas metragens cujas histórias sejam atravessadas por viagens no tempo, em um esforço de compreender as diversas mecânicas adotadas em filmes e as consequências para cada linha do tempo. Esses dados são cruzados com as teorias 2

Termo utilizado para se referir a filmes estadunidenses de grande sucesso de público e bilheteria. 3 O texto não foi traduzido para o português e seu título pode ser entendido como “Modelos de Viagem no tempo: um estudo comparativo a partir de filmes”

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 entrevistas feitas com espectadores. Nelas, o intuito foi de identificar como esse público percebe esses atravessamentos e são atravessados por eles nos filmes que consomem. Dessa forma, o objetivo era formar um catálogo a partir desses filmes, a partir do qual se pudesse reproduzir o modelo de análise para futuras narrativas audiovisuais e ampliar as discussões em torno do cinema de ficção científica e das possibilidades da viagem no tempo em si. O texto de Micklethwait faz a divisão entre 5 tipos de relação entre o passado e futuro, levando em consideração aquilo que pode e aquilo que não pode ser alterado a partir das viagens no tempo. São elas: 1. Regra do passado aberto - futuro aberto: um viajante do tempo viaja para o passado e suas ações podem causar alterações nesse passado que irão reverberar no futuro para o qual ele voltará. 2. Regra do passado aberto - futuro fechado: Apesar de um viajante poder fazer alterações no passado, o que quer que seja alterado no passado não irá repercutir no futuro. 3. Regra do passado fechado - futuro aberto: A viagem para o passado apenas permite assistir aos eventos e as intervenções não são possíveis. Já as viagens para o futuro representam momentos que não aconteceram, e por isso podem levar ações que resultarão ou não em um futuro diferente daquele observado. 4. regra do passado fechado - futuro fechado: nada poderá ser alterado nem no passado, nem no futuro. Por mais que um viajante acredite estar alterando o futuro, suas ações irão levar a exata concretização do futuro que essa pessoa já conhece. 5. Passado indefinido: não é uma regra mas se relaciona com narrativas nas quais não é possível definir se o passado é fechado ou aberto, já que todas as viagens no tempo são para o futuro. Entretanto, a classificação de Micklethwait não dá conta de diversas particularidades analisadas ao longo deste texto. Entre elas, a principal é a questão das datas de lançamento, uma vez que no estudo citado são apenas analisados longas metragens de diversas partes do mundo com mais de 80 minutos (Micklethwait, 2012, p. 103) lançados até o final de 2008. Além disso, a análise não inclui séries ou curtas e médias metragens, deixando de lado

produções que também poderiam contribuir para esse panorama. Nessa perspectiva, dos produtos audiovisuais analisados neste artigo, apenas o longa-metragem O Feitiço do Tempo (1993) está incluso na classificação do autor em questão. Um outro fator que interessa a esta pesquisa é a questão da presença de filmes voltados ao público infanto juvenil, uma vez que parte significativa deste corpus de pesquisa é de episódios de séries televisivas voltadas ao público infanto juvenil. Apesar de conter diversos filmes de classificação livre, o estudo comparativo de Micklethwait apresenta poucos filmes infantojuvenis. Nessa perspectiva, faz se necessária a compreensão de que outros estudos na área são necessários para que haja uma maior compreensão das produções de diversas linguagens, público alvo e gêneros narrativos. No que diz respeito ao tema deste estudo, os filmes de loopings temporais se caracterizam enquanto narrativas de viagem no tempo nas quais um ou mais personagens revivem um período específico dentro do espaço-tempo de sua diegese específico uma ou mais vezes, seja por vontade própria ou não. Looping temporal, o estabelecimento desse subgênero e objetos de análise Neste capítulo, serão apresentados os dois filmes que compõem parte do corpus de pesquisa bem como uma breve análise de suas estruturas e estratégias narrativas a fim de estabelecer parâmetros da constelação fílmica com os outros elementos da análise deste artigo. Além disso, também estão inclusas as sinopses dos episódios de animação seriada analisados nos capítulos seguintes, Steven e os Stevens (2014) e Corra, Matilde, Corra (2016) Nessa perspectiva, um dos filmes mais importantes na historiografia de filmes que trazem loopings temporais é o longa-metragem norte americano Feitiço do Tempo (1993), dirigido por Harold Ramis. Esse filme apresenta o jornalista e meteorologista Phil Connors, uma pessoa arrogante que uma vez por ano vai a contragosto até a cidade de Punxsutawney, nos Estados Unidos, para cobrir o dia da marmota, tradicional evento da cidade no qual uma marmota anuncia o final do inverno. Entretanto, depois de um dia na cidade, ele se vê preso numa eterna repetição do dia da marmota até que ele consiga estabelecer comportamentos mais saudáveis em relação a si mesmo e, sobretudo, em relação aos outros.

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 A escolha deste filme se baseia na sua relevância na cultura pop, e sobretudo no estabelecimento de parâmetros importantes em relação a representação de loopings temporais no audiovisual, essencialmente no que diz respeito à construção do efeito de looping. A principal maneira com a qual o longa realiza esse feito é a partir da repetição de movimentos de câmera, enquadramentos, falas e movimentação de atores e até da trilha sonora em algumas de suas sequências. Esses aspectos da mise-èn-scène são adotados pela narrativa enquanto elementos de repetição temática e de fácil reconhecimento. Esses elementos atuam sempre chamando não só a atenção do público quanto também do protagonista que vive a experiência de looping temporal. Ao longo dos anos seguintes da historiografia de ficção científica, outros filmes também adotaram essa mesma maneira de demarcar a existência de loopings temporais. Essa construção age causando um estranhamento de viés cômico mas também trágico. A empatia para com o protagonista vem do fato de Phil ser o único na cidade com consciência do que ocorre na medida em que, para todas as outras pessoas, aquela é sempre a primeira vez que o dia da marmota acontece em 1993. Apesar de Phil desconhecer a existência de uma realidade externa à realidade dele, o público sabe que divide com o protagonista um segredo importante e se torna cúmplice da eterna repetição do dia da marmota. Essa repetição acontece primordialmente nas primeiras vezes em que o protagonista realiza a viagem no tempo, durante o estabelecimento do looping. Os momentos mais frequentes em que essa marcação ocorre são nos instantes iniciais, em que o protagonista acorda e interage com as pessoas durante a manhã. Entretanto, conforme o looping progride e Phil revive as mesmas situações diversas vezes, ele próprio acaba por realizar mudanças. Na medida em que o mecanismo da viagem no tempo está estabelecido: o público sabe que toda vez que Phil dormir ele irá acordar em sua cama no início do dia da marmota, torna-se cada vez menos necessário mostrar esses dois pontos do looping em tela. O segundo longa metragem analisado é No Limite do Amanhã (2014). Aqui, a raça alienígena intitulada de “Mímicos” está operando invasões em diversos planetas do universo, incluindo a Terra. O protagonista do filme, William Cage, um oficial do exército americano de alta patente mas sem experiências de combate em campo, é punido e enviado para lutar ao lado de soldados na linha de frente da batalha final contra essa invasão alienígena. Nos primeiros minutos de batalha, ele é morto por um

Mímico que despeja nele parte de seu sangue. Ele, entretanto, acorda novamente no início do dia anterior à batalha. Ele se vê preso morrendo repetidas vezes nesse looping até que descobre que a oficial Rita Vrataski também teve essa habilidade no passado, e que agora os humanos têm uma chance de vencer a disputa por poder antecipar alguns dos acontecimentos através de Cage. Em relação aos outros objetos desta análise, tem-se Steven e os Stevens (2014), que compõe o arco narrativo da primeira temporada da série Steven Universo. O episódio se inicia com a chegada de Pérola, Garnet, Ametista e Steven ao Altar Marinho, a localização do artefato buscado pelo grupo, a Lendária Ampulheta. Este lugar, localizado no fundo do oceano, é uma sala repleta de ampulhetas diferentes que buscam confundir aqueles que buscam pela verdadeira ampulheta. Enquanto o grupo procura, Steven encontra uma pequena ampulheta dourada, sem saber que esta se trata do artefato tão importante. Ao retornar para o templo das Crystal Gems, Steven, ainda carregando a sua ampulheta, decide encontrar-se com o seu pai, Greg, para ensaiar para o evento da cidade que irá ocorrer à noite, o Praiapalooza. Ao chegar no lava a jato, seu pai o avisa que infelizmente não poderá tocar com ele a noite, devido ao incidente com um barco em seu lava a jato. Chateado, o garoto diz “ninguém gosta de você, barco. Eu queria voltar lá e dizer para o meu pai que você é muito grande” (Steven Universo, 2014, 2:44 2:46). Ao dizer essas palavras, ele retorna instantes antes do momento em que o barco fica preso, e entende que carrega consigo a ampulheta mágica e pode, portanto, viajar no tempo. O último episódio apresentado aqui é Corra, Matilde, Corra (2016). Nele, Matilde acorda e descobre que toda vez que seu amigo Carlos for devorado por um tubarão, seus poderes farão com que ela volte no tempo, retornando para o início do dia. Ela ganha, então, a oportunidade de conseguir reverter o trágico acidente que seu melhor amigo sofre, mas antes, ela precisa entender exatamente quais as extensões de seus poderes. Constelar presente, passado, futuro: Ad aeternum Em relação às causas da viagem no tempo, suas regras e implicações, cada narrativa busca trazer elementos que dialoguem com os seus respectivos universos fantásticos estabelecidos em outros episódios. Esse fator faz com que dentro desse

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 corpus de análise exista uma gama de enfrentamentos diferentes nas possíveis junções entre narrativas de ficção científica, cinema de ação e narrativas fantásticas. No caso de Steven e os Stevens (2014), o começo do episódio já estabelece a existência do artefato de origem gem4 chamado de Lendária Ampulheta, porém sem explicar exatamente quais são as suas funções. Steven, sem saber de seu potencial mágico, a leva consigo no bolso e realiza, sem perceber, a sua primeira viagem no tempo. Dessa forma, fica estabelecido que a Lendária Ampulheta obedece aos comandos e aos desejos de quem a carrega, podendo ser ativada por voz ou não. É estabelecido que ela é capaz de viajar para qualquer ponto do espaçotempo que seu portador desejar. Um fato interessante é que a viagem no tempo realizada pela Lendária Ampulheta transporta não somente a pessoa que a carrega como também outros objetos que estejam com ela. Essa característica, entretanto, pode ser entendida enquanto algo aleatório. Na primeira viagem Steven, ele estava andando de patinete com capacete, a Ampulheta no bolso e carregava seu ukulele nas costas. Entretanto, ao voltar para o passado, o patinete cai na calçada junto com o capacete e permanecem no presente mas o ukulele viaja com o garoto em todas as vezes que isso ocorre. Em Corra, Matilde, Corra (2016), já não há mais a presença de um artefato que torna possível os eventos de viagem no tempo e de looping temporal. Nesse caso, a causa desses eventos é a própria Matilde e os seus poderes. Todas as vezes em que Carlos é morto pelo tubarão, ela volta para o início de seu dia até que consiga reverter e salvar seu amigo. O curioso é que, como os poderes não são exatamente controlados por ela, ela não controla o fato de viajar no tempo toda vez que Carlos é devorado. Quando finalmente ela percebe uma relação entre a morte de Carlos e o fato de voltar para o início do mesmo dia, ela compreende que seus poderes do dia estão relacionados à sobrevivência de Carlos. A estratégia dela passa a ser, então, tentar impedir de diferentes maneiras que Carlos morra para finalmente interromper o looping temporal. Em Feitiço do Tempo (1993), o filme não dá nenhuma explicação concreta para aquilo que causa as viagens no tempo em si. Os únicos fatores que podem ser associados são a grande nevasca que ocorre na cidade de Punxsutawney e o fato de que, 4

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toda vez que Phil vai dormir, ele acorda novamente no dia 5 de março, o dia da Marmota. No caso do protagonista de No limite do amanhã (2014), o poder que torna Cage capaz de reiniciar o dia do confronto final entre humanos e Mímicos é na realidade uma capacidade que essa raça alienígena já possuía e utilizava como vantagem desde os primeiros momentos da invasão na Terra. Estes, seres que agem como uma colmeia guiada por um só ser, entendem espaço e tempo de maneira totalmente diferente dos terráqueos: não concebem presente, passado e futuro de forma linear. Entretanto, por conta da primeira vez que o soldado americano é morto, ele adquire esses poderes e estabelece uma conexão com o restante da colmeia. Os poderes o prendem em um período de dois dias: ele sempre acordará no seu primeiro dia na base, e caso morra no intervalo entre esse momento e o dia seguinte, o looping se reiniciará. Esse elo, apesar de fundamental para a narrativa do filme, é regido por regras. Por estar relacionado a mistura do sangue do humano com o Mímico, caso Cage receba uma transfusão de sangue por conta de ferimentos em batalha, a habilidade de reiniciar o dia é perdida, assim como aconteceu com Rita anteriormente. Essa conexão estabelecida entre Cage e o Mímico que controla a colmeia também age a nível mental, concedendo a ele a capacidade de acessar e compreender momentaneamente o espaço-tempo de maneira similar ao alienígena. Dessa forma, o humano consegue vislumbrar flashes do presente, passado e do futuro, incluindo a localização desse Mímico e com isso a possibilidade de encerrar o conflito no planeta. Aqui, pode-se traçar o paralelo entre o longametragem e o episódio de Porto Papel (2014), na medida em que é a morte de um personagem que motiva a volta no tempo e a criação dessas repetições. É justamente a sobrevivência de Carlos e de William Cage que mantêm as histórias em curso. Para além disso, tanto Corra, Matilde, Corra (2016), O Feitiço do Tempo (1993) e No Limite do Amanhã (2014), fazem com que seus protagonistas reiniciem o looping durante o despertar do dia vivido repetidamente. Imagem 1 - Mecanismo de viagens no tempo e causa dos loopings

Origem relacionada à cultura alienígena das Crystal Gems

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A garota interfere, sem querer, diversas vezes na maneira como Carlos acaba no mar ou na forma como o policial prende o homem que fugia com um saco de dinheiro. Conclui-se, portanto, que o modelo deste episódio segue a segunda regra: passado fechado - futuro aberto.

Fonte: autoria própria.

Em relação às regras estabelecidas em cada uma das histórias, foi utilizada a catalogação feita por Micklethwait (2012) para buscar um entendimento maior em relação ao funcionamento das linhas do tempo. O texto de Micklethwait faz a divisão entre 5 tipos de relação entre o passado e futuro, levando em consideração aquilo que pode e aquilo que não pode ser alterado a partir das viagens no tempo. São elas: regra do passado aberto - futuro aberto; regra do passado aberto - futuro fechado; regra do passado fechado - futuro aberto; regra do passado fechado futuro fechado; regra do passado indefinido.

O que ocorre neste caso pode ser entendido como um paralelo direto ao longa metragem Feitiço do Tempo (1995), na medida em que os dois loopings temporais são regidos por regras semelhantes, a despeito do momento em que o ciclo de viagens no tempo é interrompido. Todas as vezes que Phil vai dormir, o passado é reiniciado até o momento em que ele acorda pela primeira vez no dia da marmota. Ele, assim como Matilde, pode escolher diversas maneiras de aproveitar o seu dia, incluindo roubar um banco e ser preso. Todos esses eventos acontecem e são apagados, existindo apenas nas memórias dos protagonistas.

No caso de Steven e os Stevens (2014), às suas tentativas de alterar o passado e impedir que um barco fique entalado no lava a jato de seu pai levam a mudanças dos acontecimentos, entretanto, a consequência dessa alteração é ainda mais desastrosa do que o acontecimento original. Da segunda vez que ele tenta impedir ele é impedido por uma outra versão de si mesmo.

No caso de No Limite do Amanhã (2014), o futuro está em aberto. Todas as vezes em que Cage morre, seja em batalha ou não, tudo que ele viveu é reiniciado restando a ele somente as memórias, fundamentais para garantir a ele minutos a mais em batalha da próxima vez. Após descobrir a localização do Mímico que controla a colmeia, o soldado é ferido no conflito e levado até um hospital de campanha, onde recebe uma transfusão de sangue, que apesar de salvar sua vida retira a habilidade de viajar no tempo. Mesmo assim, ele e Rita decidem seguir o plano de matá-lo, e encerrar a invasão.

Nesse momento, a narrativa nos revela que existe uma versão temporalmente anterior de Steven, de agora em diante chamado de Steven-1, que já viveu esses mesmos antes do Steven que é mostrado no começo do episódio, de agora em diante chamado de Steven -2. Eles decidem formar uma banda, e voltam no tempo mais duas vezes para recrutar mais dois Stevens, o Steven-3 e o Steven-4. Nesse sentido, é possível concluir que tanto o passado quanto o futuro estão em aberto nesse episódio, o qual se adequa a primeira regra do passado aberto - futuro aberto.

Na madrugada do primeiro para o segundo dia, ao acionar diversas granadas e jogá-las no Mímico, Cage morre mais um vez, atingido pelo sangue do alienígena, adquirindo mais uma vez a capacidade de reiniciar o dia. Dessa vez, ele retorna um dia antes do que ele costumava retornar, e com a morte desse mímico, a invasão se retira do planeta. Esses acontecimentos indicam que passado e futuro estão em abertos na medida em que para os Mímicos essas distinções e classificações do espaço-tempo não fazem necessariamente sentido.

No caso de Corra, Matilde, Corra (2016), existe um looping no qual a garota passa a viver repetindo o mesmo dia. Nesse sentido, o passado dela até o momento em que ela acorda permanece inalterado durante todo o episódio. Já em relação ao futuro, todas as vezes em que Carlos é devorado pelo tubarão, tudo aquilo que Matilde viveu é apagado. O looping, neste caso, não apresenta caráter causal, no sentido em que tudo que matilde fizer até o momento em que o seu dia recomeçar será apagado.

Imagem 2 - Relações entre passado e futuro

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 membros da banda, o Steven-1 utiliza a viagem no tempo enquanto uma estratégia de fuga, revisitando diversos outros momentos do próprio episódio, configurando mais uma vez o caráter de looping. Em determinado momento, é possível ver o grupo se encontrar com o próprio grupo, segundo antes de viajarem no tempo novamente. Para ampliar a sensação de estranhamento e tensão entre as personagens, o episódio reutiliza os mesmos critérios descritos anteriormente. Fonte: autoria própria.

O último critério de interesse nessa constelação fílmica é a maneira pela qual a experiência de viajar no tempo irá afetar cada um dos personagens. No caso de Matilde, a existência do looping está estabelecida de maneira bastante clara pela narrativa: Ela acorda, e vive o seu dia até que em determinado momento, Carlos cai no mar e é morto pelo tubarão, ela acorda e tudo se repete dentro dessa mesma estrutura. Aqui, a narrativa se utiliza da repetição de sequências, enquadramentos, diálogos para demarcar o looping. Porém, ao final do episódio ela consegue impedir Carlos de competir no campeonato de skate. Os dois vão passear na praia e lá conta para ele o que aconteceu nas vezes anteriores. Animado, ele chega a errônea conclusão de ser imortal e volta correndo para a água, e um tubarão é visto indo atrás do menino. Matilde é, então, a única protagonista que não vivencia o fim definitivo de seu looping. Ela encerra o episódio chegando a conclusão de que “Vai ser um longo dia…” (9:57 - 10: 00). No caso de Steven Universo, as várias versões do Steven existem a partir do momento em que o Steven-1 decide voltar no tempo. Essas diferentes versões irão viver o mesmo dia de diversas formas diferentes. É essa primeira versão, Steven-1, que descobre que é sim possível alterar o futuro, é a responsável não só pela origem dos conflitos do episódio mas também pela sua resolução. Os elementos que fazem com que esse episódio possa ser incluído como um exemplo de looping são a repetição de alguns planos, principalmente o momento da primeira viagem no tempo de Steven. Observada a partir do ponto de vista de Steven-2, Steven-3 e de Steven-4, esse momento utiliza o mesmo enquadramento, a mesma movimentação dos atores e os mesmos diálogos em todas as vezes que aparece, com a exceção da interação entre os Stevens, que intervém na linha do tempo. Além disso, após o desentendimento entre os

Steven-1, desesperado, decide ir até o momento em que tudo começou: a descoberta da Lendária Ampulheta no Altar Marinho. Ele é seguido pelo grupo composto pelos outros três Stevens. Logo, o Altar está repleto de versões temporalmente diferentes do mesmo grupo, que lutam entre si e assustam o Steven-não-viajante, que não reconhece a si mesmo naqueles outros Stevens: “Não somos mais os Stevens que já fomos” (Steven e os Stevens, 2014, 9:52 - 9:54). É justamente o Steven que primeiro passou pela experiência de viajar no tempo que tem a epifania e conclui a respeito da interferência negativa da viagem no tempo sobre si e suas outras versões. Após a quebra da ampulheta e o desaparecimento das versões geradas pela viagem no tempo, o Steven-não-viajante se torna a versão que irá aparecer nos outros episódios da série. Isso faz com que haja uma quebra de expectativas: as versões do Steven que puderam aprender algo com a experiência desaparecem, deixando para o Steven-não-viajante os momentos de horror ao ver várias versões de si serem apagadas da existência e o conselho que recebe do Steven-1, “Seja legal para sempre, Steven” (Steven e os Stevens, 2014, 10:16 - 10:18). Steven-nãoviajante guarda, em tese, todas as qualidades e virtudes associadas à pureza que os outros Stevens perderam durante todo esse processo.

Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 cidade e deixa de agir somente em prol do próprio benefício. Essa situação pode ser entendida como uma ação do destino, que quis que Phil se tornasse uma pessoa mais amorosa e menos egoísta. Assim como nos exemplos anteriores, No Limite do Amanhã (2014) utiliza essas repetições em sua estrutura até que o público se familiarize com os pontos de início e fim do looping. Porém, conforme a narrativa progride, outras partes do mesmo dia são vividas por Cage, e a narrativa se diversifica. Estar preso no looping faz com que, além de adquirir treinamento de batalha, ele também passe a se importar diretamente com aqueles que estão ao seu redor. Ele passa várias das repetições tentando salvar não só a si mesmo mas, primordialmente, salvar Rita e as pessoas de seu batalhão, morrendo diversas vezes no lugar delas. Um dos poucos momentos em que os enquadramentos e a mise-èn-scène permanecem os mesmos do início ao fim do filme são durante os primeiros encontros de Rita e Cage, demarcando a importância que ela adquire na vida dele após viver milhares de vezes o mesmo dia ao lado dela. Essas experiências, levam Cage a se apaixonar pela soldado. Quanto mais vezes ele a vê morrer no campo de batalha, mais ele deseja que consiga vencer o conflito e pôr um fim a esse ciclo de mortes, tanto a dele quanto daqueles que ele se importa. Imagem 3: Jornada das personagens

Com a possibilidade de um futuro diferente e sem a possibilidade de viajar no tempo e recrutar outros Stevens, o Steven-não-viajante convence as Crystal Gems a tocarem com ele no Praiapalooza. O grupo, então, toca uma nova versão da música “Steven e os Stevens”, agora intitulada “Steven e as Crystal Gems”, na qual o garoto descreve os acontecimentos do episódio a partir do seu ponto de vista.

Dentre os quatro protagonistas, Steven é o único que interage com mais de uma versão de si mesmo, demarcando essa semelhança entre os outros três não só no nível de experiências do personagem mas também em termos de estrutura narrativa e dos dispositivos que regulam essas viagens.

O final do ciclo de repetição do dia da marmota, em O Feitiço do Tempo (1993), ocorre apenas quando Phil, após viver muitas vezes o mesmo dia, compreende melhor a si mesmo e aos outros. Ele desenvolve uma grande afeição pelas pessoas da

Em termos de gênero, apesar de todos os quatro exemplos serem interligados pela ficção científica, o filme que mais interage com este gênero é No Limite do Amanhã (2014). Isso acontece na medida em que o filme também apresenta um outro arquétipo

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Fonte: autoria própria

comum no sci-fi, a invasão alienígena e ação. No caso de Steven Universo (2013) e Porto Papel (2014), o caráter mágico permeia todas as temporadas das duas séries, e no caso da série estadunidense, existe uma mistura equilibrada entre os elementos de ficção científica que justificam a existência do fantástico em sua narrativa. Os poderes das Crystal Gems existem enquanto característica inerente a sua natureza alienígena, assim como os poderes dos Mímicos em No Limite do Amanhã (2014) . Mesmo que O Feitiço do Tempo (1993) leve esse nome, não há nenhum elemento que necessariamente remete a magia em sua história. O looping ao qual o jornalista Phil Connors está preso não apresenta nenhuma explicação dentro da diegese, seja através de um sistema de magia ou da presença de artefatos e poderes alienígenas. Essas diferenças de gênero irão afetar diretamente a forma como cada um lida com esse efeito de viagem no tempo. Para além dos critérios de classificação dos eventos fantásticos, é preciso demarcar também os atravessamentos sociais de cada uma dessas produções. Matilde é a única mulher entre todos os exemplos analisados aqui. Para além disso, Porto Papel (2014), enquanto um desenho animado chileno, é a única produção que destoa do contexto estadunidense no qual todas as outras três foram produzidas, mesmo que para mídias diferentes ou em décadas diferentes. Isso sinaliza a importância de observar a presença de narrativas de cunho fantástico e/ou de ficção científica fora das produções hollywoodianas nas quais elas se solidificaram. Ao trazer Matilde e Steven, esta análise demarca que é possível produzir ficção científica de qualidade para outros públicos, sobretudo quando se trata de público infanto juvenil, ao qual a animação se destina. A presença de produtos infanto juvenis com classificação livre em meio a outros de público mais amplo com classificação livre, como é o caso de O feitiço do Tempo (1993), e a produtos com classificação indicativa para maiores de 14 anos, neste caso o longa No Limite do Amanhã (2014), pode indicar que nesta constelação o fator determinante é, de fato, o subgênero dos loopings temporais. Não há aqui um juízo de valor em relação às diferenças de público alvo e como elas se desdobram nas complexidades narrativas, e sim a compreensão de que cada uma irá adotar as suas estratégias para adaptar as premissas da ficção científica e alcançar os efeitos pretendidos a partir da linguagem cinematográfica. Ouroboros: um ciclo de fabulação através da constelação

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Revista +Cinemas Uma revista do grupo PET Cinema UFRB – ISSN 2595-9921 De maneira geral, ao longo deste artigo, foram analisadas algumas formas pelas quais as narrativas de looping temporal de desdobram, seja no cinema de ação, ou em animações seriadas voltadas para o público infanto-juvenil. As quatro obras analisadas - O feitiço do Tempo (1993), No limite do Amanhã (2014), Steven e os Stevens (2014) e Corra, Matilde, Corra (2016) - se entrecruzam e se relacionam das mais diversas formas, com a possibilidade de formação de diferentes constelações, baseadas na experiência de fruição fílmica específica tida por mim no desenvolvimento deste trabalho. Nesse sentido, as diferenças entre cada uma dessas histórias podem ser demarcadas através de seus múltiplos gêneros cinematográficos, que incluem fantasia, ficção científica e comédia. Além disso, também vale destacar as diferenças em termos de linguagem, com a presença de duas animações e dois filmes em live-action. As próprias animações divergem em termos de técnica utilizada, sendo uma delas feita inteiramente em 2D e outra que mescla o 2D com o paper motion. Porém, o principal atravessamento em comum, para além da presença da viagem no tempo e do looping temporal, são as maneiras similares através das quais cada um deles comunica para o público esse looping. Como observado anteriormente, a maneira pela qual O Feitiço do Tempo (1993) demarca a repetição de acontecimentos através dos loopings se tornou uma das maneiras mais utilizadas no cinema de ficção. Isso pode ser observado na maneira como todos os outros exemplos observados aqui repetem enquadramentos, diálogos, movimentação de câmera, sons diegéticos e extra-diegéticos para tal. Para além disso, Steven e os Stevens (2014) apresenta o modelo de viagem no tempo com o passado aberto - futuro aberto, no qual é possível viajar tanto ao passado quanto ao futuro e alterar os eventos de toda a linha do tempo. No caso de No Limite do Amanhã (2014), que segue o mesmo modelo, apenas é possível viajar para o passado. Essa possibilidade de alterar passado, presente e futuro vem, portanto, da capacidade dos Mímicos de vislumbrar passado e futuro de forma não linear. Os outros dois exemplos apresentam em comum a configuração de passado fechado - futuro aberto, na qual é possível alterar o futuro indefinidas vezes mas tendo como âncora um momento específico no passado. Tudo que ocorreu antes deste momento não poderá ser alterado. Essa semelhança pode também ser associada ao fato de que o episódio Corra, Matilde, Corra (2016) traça paralelos diretos com O Feitiço do Tempo (1993).

Na medida em que o gatilho que leva Matilde voltar no tempo é associado à morte - como ocorre com Cage - quanto o momento no passado que demarca a possibilidade de mudanças no futuro: o ato de acordar, assim como acontece com Phil. Esses três protagonistas também compartilham entre si o fato de que todas as mudanças em suas atitudes, enquanto desdobramentos diretos de suas experiências no espaço-tempo, não tiveram a participação de outras versões temporalmente diversas de si, como ocorre com Steven. Nessa perspectiva, tudo aquilo que - a partir das limitações de cada modelo de linha do tempo - depende do livre arbítrio de cada um dos quatro protagonistas, poderá ser alterado e contribuirá para o desenvolvimento de cada uma das narrativas e para a subjetividade de cada um deles. Estudo buscou compreender melhor o funcionamento das mecânicas internas de cada uma das narrativas, a partir de contribuições de diversos autores, sobretudo Souto (2016) e Micklethwait (2012). Entretanto, é vital o reconhecimento de que existem outros filmes que também se assemelham às narrativas consteladas aqui e que este tema não foi, portanto, esgotado. Faz-se necessário, então, a continuidade de pesquisas que envolvam animações, viagens no tempo, filmes de ficção científica e sobretudo aqueles que articulam os loopings temporais. REFERÊNCIAS AFONSO, Adriana; ELOY, Sara. As visões futuristas no cinema: a morfologia da cidade futura nos filmes de Ficção Científica. arq. urb, n. 11, p. 166-191, 2014. Disponível em: https://revistaarqurb.com.br/arqurb/article/view/365. Acesso em: 17 set. 2023. BARRETO, Paulo Gabriel Medina Paess. A viagem no tempo nas narrativas cinematográficas. Revista Escaleta. Revista escaleta, RJ, v. 2, n. 1, dez. 2021. P. 46 - 62. Disponível em: https:/ /escaleta.espm.edu.br/wp-content/uploads/2022/12/ArtigoPaulo-Barretto-.pdf. Acesso em: 11 set. de 2023.

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