Paisagens do silêncio em Leonilson e Louise Bourgeois

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PAISAGENS DO SILÊNCIO EM LEONILSON E LOUISE BOURGEOIS Ana Lúcia Beck1

“A peça é o produto de um desafio.” (Bourgeois, 2000, p. 170.) “Entre o artista e o espectador, cria-se, portanto, uma transferência de paixão a paixão, de emoção a emoção ou uma identificação que somente poderá ser dita se o segundo conseguir determinar por que foi tão fortemente afetado.” (Willemart, 1995, p. 29.)

Louise Bourgeois, fotogravura, 1992/93. (Disponível em: www.moma.org/explore/collection/lb/. Acesso em setembro 2013).

Refletir sobre a presença ou a ideia de silêncio na obra artística talvez demande uma negativa de verbalização. Com esse propósito, poderia se apresentar uma experiência muda. Não sendo isso possível, retorna-se à palavra: no, no, no. A gravura plena de nãos de Louise elabora uma imagem que afirma e nega – ao mesmo tempo – a presença do verbo e sua duplicidade em imagem. Meu primeiro mestre de yoga, o carioca Franciso Cosmelli, ensinou-me: “Yoga é 1

Doutoranda em Literatura Comparada pelo IL/ UFRGS, Mestra em História, Teoria e Crítica da Arte pelo IA/UFRGS, Bacharel em Desenho pelo IA/UFRGS. Atua como artista e professora universitária. Uma visão mais ampla de sua produção plástica e textual está acessível em: www.paraisonaotemnome.blogspot.com e www.issuu.com/palavraimagem. Contato: analuciabeck@gmail.com.


eficiência na ação.” Porém, contrariamente ao que o senso comum ocidental pensaria, a eficiência na ação demanda a prática e a constância do exercício de aquietamento. Há o silêncio da imobilidade física que prepara para a meditação e a meditação que exercita observar as imagens e as palavras do balbucio e da tagarelice de nossa mente. Dessa observação não reativa, nascem os rasgos de silêncio. Mouna é como se chama a prática de não falar, não verbalizar. Aquietar a mente, localizar o lugar do silêncio significa, nesse sentido, ultrapassar o mar de imagens e palavras que inundam nossa mente. Suspender nãos, deixar-se não dizer, suspender desejos, ações que se costuram na prática meditativa. O silêncio é o que está, já é. Ainda assim, é o exercício mais difícil: observar, calar. Silenciar é colocar a fala em potência. Pontuar estas experiências é uma tentativa de localizar em que sentido o silêncio me interessa e em que medida se traduz em uma experiência que contribui para o olhar para certos aspectos das obras de Leonilson e Louise. Não se trata de propor uma leitura definitiva ou mesmo completa das obras desses artistas, mas de desenvolver uma reflexão inicial sobre a relação e a tensão entre fala e silêncio, que podem ser associadas a algumas de suas obras e que podem ser aprofundadas em uma reflexão mais ampla sobre seus processos criativos. Louise e Leonilson foram artistas de destaque, respectivamente, na 23ª e 24ª edições da Bienal de São Paulo, em 1996 e 1998. Tal pode ser considerado um marco inicial do reconhecimento e visibilidade de suas obras no Brasil. Curiosamente, quase 20 anos se passaram até que, em 2011 ambos, coincidentemente, tivessem grandes exposições retrospectivas a eles dedicadas no Brasil2. Essas retrospectivas trouxeram à tona profícuo debate sobre suas obras, indicando a necessidade de retomada e revisão de aspectos críticos já considerados, assim como recuperando e indicando lacunas de estudo e de abordagem, reafirmando a significativa contribuição das mesmas para as Artes Visuas e para o campo mais amplo dos debates sociais contemporâneos. No âmbito deste artigo, interessa pontuar a contribuição de suas obras para a reflexão sobre o silêncio, a paisagem e o processo criativo no contexto da arte contemporânea.

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Sob o peso dos meus amores, exposição retrospectiva de Leonilson, ocorreu em São Paulo, no Itaú Cultural e na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre (2012). O Retorno do desejo proibido, dedicada à obra de Louise, foi exposta na Fundação Tomie Ohtake, em São Paulo, e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (2011).


Leonilson (José Leonilson Bezerra Dias, 1957-1993) foi um dos expoentes da Geração 80, momento historicamente significativo para as artes visuais brasileiras. Desde o início de sua carreira, teve sua obra reconhecida pela crítica. Postumamente, continua sendo valorizado e reconhecido nacional e internacionalmente, tanto em função da temática emocional e confessional de muitos trabalhos, como em função do ineditismo formal e material de muitas de suas obras no contexto que lhe foi contemporâneo3. Louise Bourgeois é uma artista plástica franco-americana (1911-2010), considerada, hoje, uma das mais significativas artistas do século XX, principalmente em função de seus conteúdos emocionais e subjetivos, além da grande variedade de técnicas, materiais e dimensões com que trabalhava4.

Ana Lúcia Beck: Desenhando ontem, desenhos sobre papel, 2013. (Disponível em: http://paraisonaotemnome.blogspot.com.br/search/label/desenhando%20ontem. Acesso em março 2014).

Pensar o processo criativo desses artistas realiza-se na medida em que elaboro uma conversa entre o que escuto deles e o que percebo em meu próprio processo. Desenhamos em conjunto a paisagem da criação. Na prática recente, minhas observações têm se detido no processo de trabalho enquanto ele acontece. É entre desenhar e escrever que o processo se constitui. Tal oscilação, tal alternância entre desenhar e escrever, ver e ler, fazer e observar constitui a atividade criativa. Marca-se a criação enquanto espaço intervalar. Cito:

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Para conhecer mais sobre vida, obra e fortuna crítica da obra de Leonilson, sugiro a visita ao site do Projeto Leonilson: www.projetoleonilson.com.br/site.php. 4

Para conhecer mais sobre sua obra, sugiro o site do MoMA (Museum of Modern Art de Nova Iorque) que está no momento realizando a digitalização e disponibilização on-line de aproximadamente 3.500 obras de Louise, que constam em seu acervo: www.moma.org/explore/collection/lb/.


O papel branco chegava a machucar seus olhos. O papel creme era o certo, o indicado; aquele que, diziam, absorvia o toque e a tinta. Nanquim. Achou que estava odiando, o papel absorvia tudo, tudo. Lembrou-se de Louise e sua fala sobre a decisão de abandonar a certa altura a madeira para trabalhar a pedra. A madeira aceitava tudo, era dócil, disse ela. A pedra? A pedra não. A pedra possuía resistência. Resistência: vontade própria. Era necessário negociar com ela, ouvila. Decidiu continuar com o papel comum branco. (Beck, Desenhando ontem, 2013).

A lembrança a que a citação anterior faz menção é desta fala de Louise: A transição [da madeira para o mármore] deriva do fato de que o lado agressivo de minha natureza gostou da resistência da pedra. A madeira é um material macio demais, e sobretudo perecível, e não oferece resistência. Enquanto a resistência que deve ser superada na pedra é um estímulo [...]. É quase jogar com o impossível. [...] É uma luta até o fim. Por isso é um desafio. (Bourgeois, 2000, p. 184).

O desafio da pedra e o desafio da imobilidade se aproximam em seu potencial de silêncio, demandando atitudes semelhantes: observação e cuidado, atitudes que se contrapõe ao tagarelar constante da mente, à imposição verbalizada do discurso que não escuta. Em ambos os casos, torna-se necessário suspender o desejo de resposta, ultrapassar a barreira reativa dos ressentimentos para ouvir além da superfície. Ouvir lá, no lugar desde onde o outro fala. Seja esse outro a pedra, o papel, meu próprio corpo. Nesse espaço, reconheço a ideia de resistência que Louise vincula à escolha pela pedra. Resistência que não é imposição da vontade sobre a pedra. Resistência enquanto exercício silencioso, escuta cuidadosa: conversa que estabelecem entre si, artista e material. Artista e material dialogam na experimentação de suas possibilidades mútuas. Sua potência, diria Agamben. Essa ideia de conversação e diálogo que se aloja na resistência pode ser reforçada por outra fala de Louise, quando afirma: Em She Fox o material não dava nada. Caçar, seduzir, tratar uma pedra é realmente enfrentar uma resistência terrível. Como você vai transformar aquilo e fazer a pedra dizer o que você quer, se ela diz “não” a tudo? Ela o proíbe. Você quer um buraco, ela se recusa a fazer um buraco. Você quer suavidade, ela se parte sob o martelo. É a pedra que é agressiva. É uma fonte constante de recusa. Você tem de conquistar a forma. É uma luta até o fim, a cada instante. (Bourgeois, 2000, p. 142).


Louise Bourgeois, She Fox, 1985 (Disponível em: http://www.mcachicago.org/exhibitions/collection/browse/artist/1/188. Acesso em março 2014); e The Sail; 1988 (http://www.artnews.com/2013/07/10/artnews-retrospective/. Acesso em março 2014).

É importante entender com cuidado a ideia de resistência e a escolha dessa palavra pela artista. No original inglês, Louise fala em “deal with a Stone” (Bourgeois, 1998, p. 142) o que difere sutilmente da expressão “tratar uma pedra”. Marca-se a escolha pela expressão with; ou seja, lidar com a pedra. Esta pequena distinção verbal nos ajuda a detalhar a paisagem de conversa entre artista e material. Apontar a paisagem de conversa, de diálogo, marca o que Louise identifica e busca em seu processo criativo: a relação dinâmica entre artista e material. Ao falar da criação de The Sail, Louise aborda novamente esta questão ao mencionar a superação técnica envolvida na elaboração de peças de mármore com um buraco interno que mantivessem tanto a forma esculpida quanto sua resistência interna, suportando a forma desejada. Em ambos os casos, a ideia de resistência evoca a noção de respeito ao material e a necessidade de diálogo entre a realidade deste e o desejo do artista. A conversa se estabelece na medida em que artista e material falam, mas também escutam. Alternam-se entre afirmar e silenciar. A resistência deve ser entendida em termos de cuidado e persistência na observação do material e do processo que com ele se estabelece e não enquanto resistência em impor uma ideia prévia a esta materialidade. É nestes termos que percebo minha escolha ao desenhar: Queria a linha do desenho mais sujo, mais rasurado possível. Que a linha desestabilizasse seu desejo mais primário e superficial, sua vontade de controle, os limites dos seus sabidos e de suas certezas. Desafiava, na rasura, a si mesma. O que seria de fato correr o risco no


desenho? [...] Não ditos afirmados no silêncio às vezes ruidoso da linha, linha nada linear, linha de acaso, de rasura. Linha incontrolada, incontrolável. Havia rasgo no risco, abertura na rasura. A criação ocorria na perda do controle. Descobrir-se era atravessar sua própria superfície, sua imagem superficial refletida no espelho todas as manhãs quando escovava os dentes. (Beck, Desenhando ontem, setembro de 2013).

Tomasz Gudzowaty, fotografia realizada no Mosteiro Shaolin em Deng Feng. (Disponível em: www.gudzowaty.com/#/essays/2. Acesso em janeiro de 2014).

Tal qual o lutador de karatê que precisa sentir qual é a dose exata de força que deve imprimir ao golpe de sua mão para quebrar uma pilha de tijolos (National Geographic Channel: Fight Science), a resistência sustenta o desejo na medida do golpe. Encontra-se a medida correta da força a empregar5. Suspende-se o ímpeto da afirmação para localizar-se o silêncio. Resistir é não machucar-se. Este é o ponto da conversa que acontece em perpétua tensão com o silêncio da escuta. Conversa em potência. Ouvir a pedra, ouvir o traço mesmo do lápis sobre o papel, coloca em perspectiva que o artista precisa, em alguns momentos, calar-se. Se é conversação o que o artista busca estabelecer em termos de relação com o material, essa conversa é realizada na medida em que tece falas e escutas, afirmações e silêncios. A paisagem de silêncios de Louise evoca, por um lado, a impossibilidade de todos nós de comunicarmos verbalmente o inconsciente e os desejos. Mas, por outro lado, evoca a presença do silêncio na fala. O que a princípio pode parecer uma falha, um problema – a 5

Apesar das divergências existentes entre a perspectiva religiosa e filosófica presente na concepção e na prática Shaolin (www.shaolin.org.cn/en/index.aspx), que aproxima a luta de um exercício de consciência do desejo, e o viés adotado pela pesquisa da National Geographic, em ambos os casos fica evidente que a aplicação da força (a ação do desejo) não se trata de uma exteriorização realizada sem a exata percepção do movimento adquirida pelo monge/lutador. É nesse sentido que o exemplo e a aproximação com nosso objeto de estudo interessa: o caráter determinante, irrevogável e imprescindível desempenhado por uma forma de consciência do gesto, do movimento, do impulso, do desejo enfim, que excede a noção de pensamento. Entre o gesto e o pensamento há outro lugar. É lá que a criação acontece.


impossibilidade de comunicar – rasga o tempo da afirmação autoral ao abrir espaço para a escuta. A potência da escuta, na falência da língua, torna-se marca gravada na pedra. Quando Louise opta pela pedra, quando permaneço com a folha branca, quando Leonilson seleciona seus tecidos, assistimos a escolhas e decisões de um processo artístico que não se elabora simplesmente sobre a tradição técnica, cujas escolhas se baseiam na noção de adequação. A ideia de adequação dos materiais e procedimentos guarda certa expectativa de garantia de resultados, logo, de controle. Assim, a fala de Louise – que se cala, deixando subentendidos tais aspectos – ultrapassa a questão pessoal de escolha de materiais e se inscreve em uma discussão cara à arte contemporânea: a pesquisa no percurso criativo. Opta-se pelo problema e não pela solução. A solução, não importa, é pura derivação. A escolha da pedra por Louise aprofunda o espaço da relação do artista com o material e desta relação com o que surge como produto final ou resultado. A esta altura, tanto os termos produto final como resultado tornam-se inadequados para nomear o que se constitui através do processo criativo. Para Freud, a escritura continua sendo uma forma de expressão do artista no sentido de que ela provém do seu psiquismo, exprime-o, explica-o. Ele não pode entender ainda que a escritura, ou qualquer forma de arte, define um quadro ou um Simbólico no qual entra e molda-se o artista. A matéria escolhida, seja a pedra, a linguagem, os sons ou as cores, tem também seu papel e trabalha o escultor, o escritor, o músico ou o pintor. (Willemart, 1995, p. 84) [grifo meu].

Moldar o artista, silêncio que já está. Nem produto, nem resultado, mas, na obra plástica, corpo. Corpo em potência de ser e de não ser. Potência de abraçar e incorporar o que retém e aquilo que não retido ainda está contido em si. A presença de palavras em variadas situações6, na obra plástica de Leonilson e Louise, estende esta imagem da tensão entre fala e silêncio ao processo criativo. Em Louise e Leonilson, encontramos alternância entre obras que possuem grande parcela de elementos verbais e aquelas em que há tensão entre elementos verbais e visuais, e ainda outras que podem ser vistas como metáforas dessa tensão que é horizonte entre o dizer e o não dizer.

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Refiro-me ao fato de que ocorrem variações relativas tanto à quantidade de elementos verbais e visuais presentes nas obras, bem como relativas ao “tipo” de relação que estabelecem no espaço plástico, assim como, em ambos, há farto material escrito de cadernetas, diários, anotações sobre o processo plástico.


Louise Bourgeois, manuscrito em folha solta, 1962; e monotipia, 1948. (Disponível em: www.moma.org/explore/collection/lb/. Acesso em setembro 2013).

Entre afirmar e falar? Mostrar e dizer? Metáfora do falar que também indica a ação do leitor suspenso entre as possibilidades de ver e não ver, ler e não ler. Imagens que recuperam a noção da rasura no processo criativo, em qualquer processo de fala. Rasura que abre espaço, lugar, tempo para a escuta. Em Leonilson, há afirmações contundentes, aquelas com dentes, suspensas na tensão entre medo e desejo, afirmando e rasurando o dito e o não dito. Mas há também as afirmações mínimas. Há o cheio, o vazio e algumas imagens cheias de vazio, cheias do silêncio das imagens que não se acompanham de palavras. Há silêncio em imagem e mesmo em palavras. Silêncios graves.


Leonilson, tinta preta sobre papel, sem data; Cheio, vazio, bordado sobre voile e tecido de algodão, 1993; e tinta acrílica e pérolas sobre lona, 1990. (Cassundé e Resende, 2012, p. 158, 149 e 170).

Há tanta delicadeza em Cheio, vazio; delicadeza de outra ordem do bordado com aplicação de pequenas pérolas. Em ambos afirma-se, mas quanta diferença há neste dizer. Quanta diferença entre estes dizeres e destes para com essa minha fala que tenta, com muito insucesso, durante dias, escrever o silêncio. Como transportar para a densidade do verbo, para o que de definitivo irá a ele vincular, a experiência e contemplação de devaneio na paisagem que estas obras oferecem? Tão macios são os tecidos em oposição à pedra. Falas de carícias, nebulosas subjetivas do sujeito que em amor – e na sua impossibilidade – cala-se. Agir em amor é agir no silêncio... Abandono à pedra e volto-me à imagem do tecido. Louise e Leonilson interessam-se e emocionam-se, conversam em silêncio com o pedido do tecido: ganhar forma, corporificar-se. Não há corpo no tecido antes que o desejo nele intervenha. O tecido, fala em silêncio. É necessário moldá-lo para com ele afirmá-lo e nesse ponto o paradoxo se intensifica. A possibilidade de reflexão se imbrica e se articula quando Louise dá corpo ao silêncio do não dito, à voz que não sai no tecido. Tal complexidade da relação entre potência e impotência desenha a paisagem de afetos e desafetos, horizonte inconsciente. Nessa paisagem acidentada, Leonilson e Louise dão forma ao desejo.


Leonilson: Isolado, frágil, oposto, urgente, confuso – costura e bordado sobre voile, 1990. (Cassundé e Resende, 2012, p. 49).

A resposta amorosa talvez fosse mergulhar no silêncio.

Leonilson, desenho sobre papel, 1985 (registro da autora) e Ana Lúcia Beck, bordado em tecido da série Infinitude, 2005. (Disponível em: http://paraisonaotemnome.blogspot.com.br/search/label/infinitude. Acesso em março 2014).

“Desenho para suprimir o indizível. O indizível não é problema para mim. É até o início do trabalho. É o motivo do trabalho; a motivação do trabalho é destruir o indizível.” (Bourgeois, 2000, p. 363). Destruir o indizível, que imagem impossível... Ouso pensar que tal imagem de destruição não se sustenta em uma concepção de anulação do indizível, mas, justamente em sua possibilidade de suspensão através da localização no silêncio. A fala de Louise marca também que seu trabalho se inicia a partir de uma energia ou pulsão, de uma vontade e um desejo que não se apresentam em termos de imagem. Trata-se de ímpeto, de vontade para a ação. Mobilidade agitada. Em outra fala, Louise afirma: “It´s not an image that I am seeking. It´s not an idea. It is an emotion you want to recreate, an emotion of wanting, of giving, and of destroying.” (Celant, 2010, p. 114). Recriar uma emoção, criar na emoção de desejar, de oferecer, de


destruir. A emoção das palavras violentas de Leonilson, de seus silêncios graves, das falas com agulha e dentes, a doação de seus bordados. A segunda afirmação de Louise nos faz perceber melhor que, com relação às suas obras e às de Leonilson, além de uma questão de temática que interessa localizar, é necessário indicar que a obra é fruto de mobilidade. Mobilidade que designa as forças de cunho subjetivo, que promovem o trabalho. Haverá, em ambos, ações de ordem técnica, mas, principalmente, ações de escolha subjetiva que elaboram a dimensão autoral na obra e que também merecem ser consideradas. No caso destes artistas, destacamos o silêncio enquanto espaço de suspensão do desejo e de escuta, tanto do material quanto do próprio desejo. Imagem de suspensão que associo à experiência de execução da postura da árvore, ou Vrikâsana (Hermógenes, sem data, p. 108). Um dos pés firmemente colado ao solo, conectado à terra, braços elevados e mãos abertas em contato com o céu. Suspensão é a sustentação dos contrários, dos opostos. Lugar da potência. É a força motriz que parte do desejo – que não o perde de vista, do alcance das mãos – e alcança a realidade da matéria que move o movimento criativo. Em Leonilson, é muitas vezes a ação de doação que institui o movimento na realização de bordados, principalmente. O desejo enquanto força motriz não é, portanto, algo dado, que necessita apenas “ser expresso” no trabalho; ele é, de fato, energia que articula, com outras dimensões do sujeito, a conversa que elabora o trabalho, a obra. Talvez seja exatamente isso o que mostra Leminski quando diz: objeto do meu mais desesperado desejo não seja aquilo por quem ardo e não vejo seja a estrela que me beija oriente que me reja azul amor beleza faça qualquer coisa mas pelo amor de deus ou de nós dois seja (Leminski, 2013, p. 47)


O poema de Leminski reforça um desejo de forma cuja concepção difere da tradição da forma. Segundo a tradição, a forma era pensada em termos estéticos. Nas artes visuais, isto correspondia à tomada de decisões criativas em função de um desejo que era identificado e perseguido em função de certa ideia de beleza, esta associada, por sua vez, às maneiras de ver, perceber e avaliar contorno, cor, textura, aspecto gráfico, composição. A própria ideia de composição nascia de um olhar sobre a obra feita, pronta. A composição e um pensamento sobre o processo que a constituíra era pensada em função das características formais, ou seja, valores da forma em si. Algo de alguma maneira já dado, posto que presente no material em potencial e na imagem que se procurava captar enquanto ideal. Note-se que esta noção de potencial não é a potência de Agamben, que entende a potência na ambivalência de poder ao mesmo tempo e sem anulação de uma possibilidade pela outra, ser e não ser. Que é não porque não possa deixar de ser, mas justamente por poder ser ou não ser. Ideia de potência cuja possibilidade de afirmação não se elabora a partir da anulação de seu contrário, de seu oposto, mas em sua afirmação. O desejo de uma forma que o artista alcance na suspensão de seu desejo, institui uma forma que é considerada sob aspectos outros que não suas características estéticas e formais. É em função desse horizonte que devemos considerar a opção de muitos artistas contemporâneos por decisões criativas, que ocorrem em função de aspectos do processo. E estes, fica claro, desequilibram, desmontam e diluem as prévias categorias de belo e feio, e a própria noção estética da forma. É neste ponto, creio, que a obra adentra o espaço em que é capaz, de fato, de nos emocionar; é quando nos calamos, posto que é necessário vê-la e ouvi-la com olhos e ouvidos que ainda não temos. Demanda de silenciamento que também suspende a expectativa do espectador. Em alguma medida, em simetria ao que ocorre durante o processo de criação, espectador e obra inauguram uma paisagem de relação. Ambos alteram-se e modificam-se, afirmam e calam na paisagem. Paisagem cujo horizonte é o desejo; “[...] limiar de um invisível que escapa aos poderes do sujeito [...]” (Collot, 2013, p. 83). A noção de uma forma não estética, enquanto preocupação artística, é afirmada tanto por Louise como por Leonilson. A importância da costura para Leonilson, por exemplo, mostra e significa decisões criativas executadas em função de aspectos


processuais7 e, além destes, pela escolha de certo lugar de criação: aquele que mobiliza o sujeito. Fala Leonilson: Eu não me preocupo com a forma, não me preocupo com a cor, não me preocupo com o lugar. Praticamente não tenho essas preocupações estéticas. Quando vou fazer um trabalho, estou diante do material e me preocupo com as partes que se juntam, por exemplo, dois tons de feltro ou uma camisa rasgada como um voile. (Leonilson apud Resende. In Beck, 2004, p. 136)

Esta não preocupação com a forma é próxima àquilo a que se refere Louise, quando afirma: “[...] nunca acreditei no romantismo da “verdade do material”. A única coisa que conta é se o resultado tem validade plástica” (Bourgeois, 2000, p. 82). Devemos então considerar que a validade plástica a que Louise se refere, esclarece também a escolha de Leonilson, que não está totalmente explicitada em sua fala. Ambos marcam a procura que se articula na suspensão do desejo. Procura por situações e condições que, em conversa com o material, elaboram, na obra, o que ainda não pôde ser pensado, visto ou sentido. Sustentar o processo, para além de qualquer desejo primário. Neste ponto, entramos em contato com um problema presente em parte da produção artística contemporânea: a incapacidade de sustentação. Entende-se o valor do conceito do processo artístico, mas, pensar o conceito, ou a partir do conceito, é muito diferente de corporificá-lo na obra plástica. E é na ausência de um corpo sustentado na suspensão do desejo que a obra torna-se rascunho de si mesma: incompletude carente de potência. Eu o fiz da melhor forma que pude, considerando que objeto se transformou naquilo que é, e que esse processo não esteve totalmente sob controle do desejo consciente ou da premeditação. A flutuação de possibilidades pode ser entre instantâneo, devagar, abrupto, repentino, reexaminável ou definitivo. (Bourgeois, 2000, p. 90)

Mergulhar no silêncio: Diferente do Deus da Bíblia, que cria a partir do nada, o escritor, depois de espojar-se e de ter feito silêncio ao seu redor, atravessa esse nada para criar seu texto. Aquém desse nada, brota a faísca da criação. (Willemart, 1995, p. 100)

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Sobre o valor e dimensão da costura no processo artístico de Leonilson, vide: Beck, 2005.


Willemart define a escritura8 enquanto espaço entre duas rasuras. Assim, define o processo criativo enquanto um vai e vem, um fazer e desfazer, riscar e rasurar 9, um conceber e desfazer-se em cujo intervalo atua o inconsciente do artista: “campo de batalha bombardeado por forças estranhas a cada rasura e não como um fluxo constante” (Willemart, 1995, p. 117). O rasurar, ainda segundo Willemart, será identificado como a região onde o escritor/ criador se entrega à paixão da ignorância, onde recua o limite do conhecimento (Willemart, 1995, pp. 163-164). Lugar de suspensão acionado no processo de criação artística. Assim, a paisagem desenhada pelos movimentos da criação pode ser identificada enquanto região, segundo definido por Willemart em referência a Prigogine: Entendemos o conceito de região [...] como um conjunto de pontos e de trajetórias que, dentro de um espaço determinado, trocam de posições e se cruzam, relativizam as dimensões do tempo e do espaço e criam novas trajetórias, permitindo uma nova descrição da região. (Willemart, 1995, p. 36).

É nessa região identificada enquanto espaço de mobilidade, seja do ir e vir pelo espaço, seja de constituição das marcas e acidentes do espaço, o lugar onde a rasura acontece. Ela também é uma espécie de silenciamento. De alternância entre ser, não ser e poder ser. Trata-se de uma região de limites móveis, indefinidos. Região recortada onde sobreposições acontecem, onde alternâncias ocorrem. O calar e o silenciar, no sentido aqui proposto de busca pela forma não estética e de paisagem da criação, deve ser compreendido enquanto valor positivo. Existe a impotência de falar, mas interessa, sobretudo, a fala e o silêncio em potência. Assim, o calar pressupõe a possibilidade de falar e de calar e uma escolha pelo silêncio. Trata-se de legitimar e identificar a paisagem da conversa. Esta paisagem equilibra e contrapõese ao ruído do mundo. Não é, de fato, um lugar fácil. Pois não se trata de negar ou abafar o ruído, mas, justamente, de suspendê-lo. Criar o espaço entre a areia e a onda do mar. Desdobra-se, então, a carne do mundo, “o próprio corpo não é senão uma dobra na carne do mundo, graças ao qual este acede à consciência [..]” (Collot, 2013, p. 38), neste lugar que é a paisagem desenhada pelo estar no mundo. A obra institui-se no corpo e a 8

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No sentido que ele mesmo amplia às criações artísticas em geral.

Na dimensão significativa do universo do desenho, será o rasurar também considerado apagamento, na medida em que é o apagar do já realizando com a elaboração de novo riscar sobre este.


paisagem é lugar visual, mas também sensação, sonoridade, temperatura. Paisagem que é estar no mundo no sentido do espaço habitado de Bachelard (2000), espaço que excede o espaço geométrico; lá, o pensamento se torna pensamento-paisagem (Collot, 2013): aconchego é qualidade da chegada diluem-se limites, fronteiras em um mundo que perde a cada dia chegar-se vagarinho perde-se o espaço de diluição entre ser e ter entre estar e sentir sim permanecem em mim os jardins da infância jardins de escuta de música ao longe das tampas das panelas, das roupas no varal, do feijão no fogo, das galinhas e ameixas da casa da vizinha falta-me o espaço de diluição chegar não é oblíquo carícia não é imposição chegar-se abraçar o silêncio quanto aconchego havia na distância no silêncio silêncios do pensamento deixar-se estar nos braços do mundo (Beck, Paraiso não tem nome, postagem de 13 de abril de 2013).

O pensamento-paisagem pode ser associado à paisagem de criação de Louise e Leonilson e aproximado à criação quando elabora a paisagem identificada por Willemart, em sua leitura de Lacan, como litoral (Willemart, 1995, pp. 143-144). E muito isso também me diz sobre a possibilidade de observação silenciosa, sobre a possibilidade de meditação que acontece na suspensão do ruído do vai e vem das ondas... Litoral, paisagem em suspensão.


Louise Bourgeois, cabeça em tecido da série The Fabric Works, 1998 (Celant, 2010, p. 98), e Leonilson, acrílica sobre lona, O que seus olhos me dizem, 1983 (Cassundé e Resende, 2012, p. 115).

Nas idas e vindas entre as rasuras, na suspensão do desejo, na conversa e escuta com o material, institui-se a paisagem desenhada no processo criativo de Louise e Leonilson: faixa litorânea onde fala e silêncio se alternam, onde afirmação e apagamento trocam de lugar10, e o artista, em diálogo com o outro, elabora seu local de criação: litoral recortado entre a pedra e o mar.

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Sobre a relativização do tempo no processo criativo em Louise e Leonilson, vide Beck, 2012.


Ana Lúcia Beck, fotomontagem, 2011. (Disponível em: http://paraisonaotemnome.blogspot.com.br/2011_02_01_archive.html. Acesso em março de 2014).

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