Toónimos do Concelho de Óbidos

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Exemplos de Topónimos Moisés Espírito Santo e Teresa Perdigão

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Gronho e Rocha do Gronho •

Trata-se dum rochedo e duma falésia à entrada do mar na Lagoa de Óbidos repetido no interiror, do lado oposto à Foz do Arelho.

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Gronho e Rocha do Gronho • • • •

gronho grôn [grôn] «garganta»

Está traduzido por Boca do Rio, topónimo do outro lado da costa, na Foz do Arelho.

A entrada do mar da Lagoa de Óbidos apresenta exactamente uma forma de garganta (embora nem sempre seja como está no mapa porque a areia é movediça). Perto da Boca do Rio, no concelho de Caldas da Rainha, temos

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Porto do Carro • •

karu: [caro] «porto, cais, dique, entreposto ou celeiro»

Porto é a tradução de Carro e está duplicado/traduzido por Juncal do Armazém

Pedras da Aberta • • •

Na margem do Atlântico, a norte da Foz do Arelho (conc. Caldas da Rainha): eberta [eberta] «outra margem», «margem oposta»

O nome foi dado a este sítio pela gente do Arelho ou pelos que frequentavam o Gronho? (4 grôn: «garganta, pescoço»; 23 karu: «mandar, ordenar, dominar» (empresa, feitoria); 2 «porto, muro, cais, dique, plataforma, silo, celeiro, entreposto, centro comercial, banca e mercado» e «ser 4 curto»; 2 eberta: «outra margem»; 2 ebertu: «margem oposta»).


Ponta do Espichel, Ardonha e Corvo

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Ponta do Espichel •

É hoje uma língua de areia, perto do Bom Sucesso onde, segundo alguns documentos, a Lagoa de Óbidos é mais funda

• • •

shpi sh’ôl [xepixeuôl] «duna . profunda»

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Ponta do Ardonha •

É um cabo, no limite do concelho das Caldas, que define uma pequena enseada da Lagoa de Óbidos onde hoje se atracam pequenos barcos.

• • •

adr ani [adrânia > ardânia] «cercado, adro ou parque . dos barcos, da frota

• • • • •

‘dr ani [âudrânia] [âudrónia] >aurdónia «reunião ou alinhamento . dos barcos, da frota»

Ainda hoje, a enseada delimitada pela Ponta da Ardonha é um ancoradouro de barcos de recreio ou pesca. Na Ribeira de Santarém, sobre a areia do Tejo, existe o sítio Ónias (barcos, frota) que foi um antigo ancoradouro. 7


Ponta do Corvo •

Correspondente a Ardonha mas na outra margem

• • • •

qarbu ou qarabu [carbo] «entrada ou interior»

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Rua do Mel Gasto ou do Malgasta •

Nome duma rua do Arelho que desemboca numa estrada que desce para a Lagoa. Um informante de 50 anos disse-nos que o nome era Malgasta, mas «como parecia mal [sugeria a existência dum vizinho esbanjador] escreveram na placa Mel Gasto».

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Mel Gasto ou Malgasta Malgasta • • • •

magalu ashtu [magalastu] [> malgastu > melgasto] «barco . preso, cativo»

Foi a referência dum ancoradouro. A estrada terminava na Lagoa.

Há outros Malgasta, Malgasto ou Malgosto a sul: Malgasta, em Serra d’El Rei (nome duma pequena região) por onde passa o rio São Domingos, e Malgosto num afluente do rio Trancão perto de Loures e de Odivelas, rios que teriam sido navegáveis.

• (2 magalu ou magulu «barco»; 2 astu ou wastu «cativo»; magalu ashtu > magalastu: a última vogal duma palavra cai perante a primeira da segunda).

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Vau •

Nome de povoação sede de freguesia. Termo muito usado para designar um sítio de travessia de rio ou pântano.

• • •

ba’u [baáu] «travessia, passagem, atravessar»

Aqui, referiu-se a um caminho que ainda hoje passa pela Quinta da Luz (a 1 km) pelo qual se atravessava o rio Rial (que seria pantanoso) e, em seguida, o rio Arnoia (no sítio da actual Várzea da Rainha) em direcção ao Arelho, Carregal e Óbidos. (2 ba’u: «passar, atravessar»)

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Locereira •

Um sítio que é hoje um alto valado sobranceiro à Várzea que, outrora, foi uma extensão da Lagoa ou do mar. No local encontram-se grandes pedras que deslizaram da encosta.

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Locereira • • •

l’sr ar’ [lâucer érâu] «contenção do . solo agrícola».

A julgar pelas grandes pedras caídas da encosta (segundo nos disse um agricultor proprietário), teria sido uma muralha para reter a terra agrícola. .

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Casal da Almarjoa •

Nome dum sítio na margem do rio Arnoia em frente e oposta a Óbidos, no estreito, com uma mansão arruinada.

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Almarjoa • • •

alu mshô’ [alu maxoua] «quinta, mansão, villa, sítio do . carregamento, carga, levantamento ou transporte», «tributo» e «sentença, pronúncia».

Teria sido a referência ao local dum cais de carga/descarga, à entrada/saída do estreito. O vocábulo mashô’, para além de «carregamento e transporte», também significa «fardo, tributo», pelo que podemos ainda supor que fosse um local de cobrança ou portagem.

(Linguisticamente, não é legítimo considerar Almarjoa como uma deformação de «margem» com um «artigo árabe (al-)» porque margem não evolui para marjoa. A forma almarjoa contradiz a regra da evolução linguística chamada da simplificação ou do «menor esforço». As palavras evoluem da fórmula mais complexa e difícil para a fórmula mais simples e fácil de pronunciar: é mais difícil dizer almarjoa do que almargem. Em contrapartida, o r de Almarjoa foi introduzido, isso sim, por associação com «margem e para abrir a dicção). 15


Quinta do Paimoga •

Nome duma quinta ou mansão contígua de Almarjoa já no interior do que foi a extensão da antiga Lagoa, em frente das ruínas de Eburobrittium (cidade romana), na distância mais curta em linha recta entre a entrada e as ruínas.

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Paimoga • • • • • •

ph m’ôg [pameuôg] «boca, entrada . do abastecimento, das provisões, do stock», do celeiro. p’h m’ôg [paêmeuôg] «lado, flanco, ou margem, beira, ou limite, fronteira, ou canto, lado . do abastecimento, das provisões, do stock», do celeiro.

Portanto, «entrada» ou «cais de abastecimento, das provisões», do celeiro.

Paimoga situa-se à entrada do que foi a extensão da antiga Lagoa. A significação «margem ou beira de abastecimento» condiz com o conceito de cais e de entreposto. Pode ser uma duplicação de Almarjoa mas com a ideia de «entrada» (referente a um território). De qualquer maneira foi um cais e referiu-se a «provisões« que se poderá traduzir por «celeiro».

Nos limites dos concelhos de Lourinhã/Peniche, há o Casal do Pai Mogo e Forte de Pai Mogo (na costa), com a mesma significação. 17


Casal da Coxa • • •

qs [câsse, côsse] «beira, margem, confim».

É o nome dum sítio em frente e a oriente Óbidos que, no passado, constituía a margem da Lagoa ou do mar.

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Caxinas • • • • • •

É um sítio a norte de Paimogo e contíguo do Senhor da Pedra; outrora delimitava a Lagoa (ou o mar): qs ym [cassim] «borda do . mar» (beira-mar)

• • •

No concelho de Alcobaça, temos Cós que foi uma margem do mar. Na Póvoa de Varzim, uma praia de pesca tem o nome de Caxinas. A parte sul da praia da Nazaré chama-se Caxim, exactamente e sem nenhuma evolução fonética; de qas ym [cassim] «beira-mar».

Havia confusão entre o se e o xe que ainda hoje persiste entre nós. 19


Rio Arnoia •

Nome do rio que passa em frente de Óbidos e que, a montante, disperso por várias valas e braços, se confunde com o Rio Rial (ou Real).

(José Pedro Machado (Dic. Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa) cita um autor espanhol (A.Tovar) que atribui ao nome Arnoia uma origem tartéssica (sem dizer que língua era a desse povo nem o que significa a palavra) e que «talvez esteja representada pelo basco moderno arnaga, ‘seixal’». O problema, dizemos nós, é que se ignora qual fosse a língua dos «tartéssicos» e também falta demonstrar que a língua dos bascos fosse a mesma dos tartéssicos, o que não parece. Depois, segundo as regras da evolução linguística, arnaga não pode derivar em Arnoia. Tudo isto representa um enorme artifício para celtizar os sítios lusitanos, mesmo à custa das regras da linguística que os próprios difundem. Quanto a nós, propomos:)

• •

harru nwh [arrunou] «rio . do prado, da várzea».

Os prados ou várzeas de então seriam os terrenos pantanosos das margens e que, com os assoreamentos, se foram homogeneizando até hoje constituírem a vasta Várzea a montante e a jusante de Óbidos. 20


Topónimos agrícolas Pernobes ou Pernobis •

Nome dum sítio agrícola à entrada da povoação do Arelho (do lado terra). Consta dos mapas e duma placa toponímica de rua. Ninguém nos soube dizer a razão de ser deste estranho nome difícil de pronunciar, apenas nos assinalaram as duas versões fonéticas.

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Pernobes

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Pernobes •

1º pr nwb [pernôb] «fruta . crescer, fazer florescer» Isto é, fruticultura, pomar.

2º pr nwb ‘s [pernôbêsse] ou pr nwb is [pernôbisse] «fruta . crescer, fazer florescer . árvore». Fruticultura, pomar 23


Uma firma de fruta em frente da rua dos Pernobes 24


Brejo •

Nome genérico e topónimo referente a terrenos aráveis húmidos, à beira de cursos de água ou regadios. No Concelho há várias zonas agrícolas classificadas e chamadas Brejo.

• •

bar eshshu [bar exexu > brexo] «campo aberto ou desbravado . fresco, húmido».

Um brejo é exacta e exclusivamente isso: um campo húmido, ou fresco É «campo aberto» por referência à desflorestação ou desmatação (campo fechado), o mesmo que desbravado.

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Brejo • •

(4 bar: «campo aberto ou desbravado»; 2 eshshu: «fresco, e novo»). José Pedro Machado (Dic. Etimológico da Língua Portuguesa) dá esta explicação para a etimologia de brejo (que transcrevemos literalmente mesmo que não a entendamos cabalmente): «Kleinhans (cit. por v. Wrtburg FEW) apresenta o címbrio brag-wair e brag-welt, nomes de plantas aquáticas, e menciona a palavra bracum, com abundante descendência em França (afri. brai, aprov. brac, etc, ‘boue, fange’), a qual seria de origem céltica. ‘Brejo, terra húmida, lodosa, alagadiça que serve para arrozais’ é vocábulo do Sul de Portugal pelo que não parece difícil admitir na sua evolução o intermédio moçarábico á > e, g > j». Depois cita documentos medievais que referem brejum. Entretanto, não explica o que seja o «címbrio» nem as abreviaturas «afri.» e «aprov.». Pelo facto de Brejo ser do «Sul de Portugal» - o que nós contestamos, basta ver os muitos Brejo do concelho de Óbidos - admite que seja do «moçarábico». Ora, a correspondência fonética e semântica com a expressão fenícia é total, donde, segundo as regras da filologia, a origem do nome. Segundo o Reportório Toponímico Militar, existem algumas dezenas de topónimos Brejo, Brejinho, etc. no Norte e no Centro. No sul até é onde encontramos menos Brejo.

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Quinta •

Tradicionalmente, uma quinta era uma empresa agrícola de culturas variadas com habitação para o senhorio e a criadagem, com infra-estruturas e meios próprios (poços ou ribeiros, lagares, estábulos, celeiros…); tendia para ser economicamente auto-subsistente (produzia de tudo o que a família necessitava) e com espaços de lazer (jardins, parques, lagos).

• •

kimtu [kimtu] «família, agregado familiar»

Seria o nome para «reduto habitacional e agrícola duma família». Corresponderia ao que, com a ocupação romana, os colonos chamavam villa rustica.

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Quinta • •

(2 kimtu «família». O u terminal acadiano pode ser um som vocálico indefinido e, a, u…). J.P. Machado diz que «vem do latim, Quintana, Via Quintana (rua transversal do acampamento romano, por detrás do Praetorium onde se fazia o mercado […]. De qualquer maneira [prossegue este autor] a origem da designação continua obscura, mas derivaria acaso da agrimensura romana». Depois diz que os nossos documentos medievais referem quintãa, quintana e, desde o séc. XVI, quinta. É evidente que a quinta lusa dificilmente teria origem naquela rua de Roma, nem se entende que derive duma «divisão em cinco partes». Não há documento nenhum que diga que uma quinta é «uma quinta parte».

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Charneca •

Campo bravio com vegetação espontânea, geralmente pinheiros, carvalhos, sobreiros e mato. No passado as charnecas do Centro do País eram terrenos baldios destinados ao pastoreio livre e à recolha de lenha.

• • •

tser nqh [tsarnêqa] «estepe . livre» (de qualquer compromisso, pagamento ou imposto).

Estepe livre, isto é, terra baldia, sem proprietário, não sujeita a pagamentos ou impostos e de que qualquer um se podia servir.

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Várzea •

Nome e topónimo dado a um terreno fértil, plano e servido por cursos de água. Para além da conhecida Várzea da Rainha, há outras micro-regiões no concelho de Óbidos chamadas Várzea.

• •

bar s’h [barsea] «campo aberto ou desbravado de . cereal».

Nome claro, «campo de cereal». Há 30 anos ainda significava isso, antes que os pomares alinhados ocupassem as várzeas.

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Vรกrzea

Vรกrzea, Amoreira, Brejo e Arroteia sรฃo muito frequentes no concelho (Cadastro Rural)

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Topónimos culturais Mina ou fonte de Jaboé •

Nome duns campos (e recentemente duma urbanização) na periferia da povoação da Amoreira onde vemos uma majestosa fonte (mina ou poço) de abóbada que ressalta na paisagem, chamada Mina de Jaboé com uma escadaria interior por onde se ia à água. Houve autores que escreveram sobre a povoação da Amoreira mas não notaram esta grandiosa fonte de abóbada.

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Mina ou fonte de Jaboé

Fonte ou Mina de Jaboé, Amoreira. Comporta uma escadaria interior para se ir à água. De que época datará esta fonte ou mina?

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Jaboé shabu hh [xabu éa] «puxar água . água» Fonte ou mina de «puxar ou tirar água» (com corda ou escada), para a diferenciar das fontes que são bicas. O nome Jaboé implica uma redundância: xabu já significa «tirar água, ou dar água».

• • • •

Aribana Corujeira Bujardia Fonte dos Corações 34


Fonte dos Corações é hoje uma urbanização cujo nome procede duma fonte contígua dum riacho. Uns 300 metros separam a fonte da moderna urbanização.

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O nome da fonte dos Corações remete para fonte dos amores, dos namorados ou dos casamentos como centenas de outras fontes do País. Os espaços das fontes eram sítios de convívio, de encontros, de lazeres e de reconhecimento ou publicitação dos namorados. Num passado remoto, as fontes (certas fontes) foram até os locais onde se realizavam os casamentos.

Segundo o Cadastro Rural de Óbidos, as terras agrícolas a jusante do riacho/fonte chamam-se: Aribana

• • • •

Bujardia (Casal da) E a montante da fonte, onde nasce o riacho que alimenta a fonte, a uns 200 metros da fonte, Corujeira.

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Os três nomes encontram-se num raio de 1 km da fonte.

• Aribana ary banh [aribane] «parceiros ou parentes . unidos harmoniosamente». «parceiros ou parentes . casados» «parceiros . Procriadores ary bnh [aribená] parceiros . constituintes de família» •

O termo banu significa, simultaneamente, «formar ou unir harmoniosamente, criar ou procriar, criador e progenitor», e «constituir família».

A encosta a montante do riacho-fonte dos Corações (onde nasce o riacho) chama-se Corujeira. 38


Corujeira: qr sheru [qârexeru] «fonte do . coração» Fonte dos Corações é a tradução literal de qâre sheru, «fonte do coração» - derivou em Corujeira por esta ser uma palavra portuguesa foneticamente mais próxima.

Segundo os dicionários, o termo sheru tanto significa «coração» como «oráculo». A mesma fonte podia ser dos namorados e casamentos e, simultaneamente, lugar de oráculos e adivinhações.

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Corujeira qr sheru [qârexeru] «fonte do . oráculo» ( proclamações ou adivinhações). qr ashr [qâraxar] «fonte de . dizer que alguém é feliz» (fonte das felicitações, ou dos oráculos fastos). qr shr [qârexir] «fonte de . insidiar ou de assediar» «fonte de . cantar»

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qr ‘shr [qârouxer] «fonte da . riqueza» qr usharu [qâruxaru] «fonte do . membro viril, pénis». qra sheru [qaràxeru) «proclamar ou expor . o oráculo ou o coração» «invocar ou evocar . o coração ou o oráculo» qrh sheru [qarexeru] «encontrar . o coração ou o oráculo» 41


Bujardia (Casal da) Terras agrícolas e pequena povoação contíguas de Aribana, a jusante da fonte bshr d’ [bexardei] «boas notícias . conhecer, saber» bshr d’h [bexardeiê] «boas notícias . procurar» As «boas notícias» podem ser oráculos e adivinhações, inclusivamente referentes a casamentos como era costume. 42


Aribana, Corujeira e Bujardia são três topónimos contíguos (num raio de 1 km)

que podem ser sinónimos ou complementares, todos traduzidos por Fonte dos Corações. Apesar da grande diferença fonética entre Bujardia e Corujeira, foram sinónimos ou duplicações. Esta variedade de nomes para a mesma fonte explica-se pela variedade da cultura popular em que as aldeias vizinhas se exprimiam diferentemente quanto ao mesmo local: uns diziam que a fonte era «de unir parceiros ou namorados» (ary bane), outros que era a «fonte dos corações e dos oráculos» (qor xeru) - os brincalhões até podiam chamar ao local «fonte do pénis» (qor uxaru) - e outros substituíam «oráculos» por «saber boas notícias» (bexar deia) que é a mesma coisa. Os três nomes por que era conhecida a fonte nas redondezas, sendo muito proferidos e usados, não se perderam nem se substituíram: colaram-se uns aos outros nos sítios. Não conseguimos ouvir nas aldeias vizinhas notícias ou memórias dessa fonte (que hoje se encontra isolada e sem uso enquanto o habitat tradicional desapareceu); mas a explicação não poderia ser outra: dos amores, dos corações.

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Portanto, Fonte dos Corações é a tradução literal de qôre sheru que derivou foneticamente para Corujeira com mudança de significação (terra de corujas), um decalque fonético. Trata-se dum tipo de corrupção linguística de que encontramos muitos casos na toponímia. Milhares de topónimos parecem hoje portugueses só porque foram corrompidos, sobretudo pela escrita, pelos cartógrafos e pelos letrados. Corujeira passaria impunemente por «terra de corujas» e Bujardia por «terra das bojardas» ou «porque alguém daí só dizia bojardas», se não houvesse Aribana (intacto e sem significação portuguesa) e o nome «fonte dos Corações». A variedade de significações, entendidas separadamente, mas podendo todas ser válidas, aceitáveis ou complementares a condizer com o terreno, é uma particularidade das antigas línguas semitas que não podemos desenvolver aqui. Aribana, Corujeira, Bujardia, Fonte dos Corações: Local de encontro de namorados, de parceiros para constituir família, Local de casamentos e dos amores, Local de notícias, Local de oráculos ... quanta vivência cultural expressa em quatro topónimos contíguos. Esta fonte e estes quatro topónimos são relíquias de grande valor cultural. 44


Azenha do Traquemas Nome duma azenha (perto do Olho Marinho) hoje destruída. Da casa já nada existe; o ribeiro secou (ou foi desviado); a vala ou levada que fazia mover a mó está obstruída. Mas ainda aí fomos encontrar, à superfície do solo agrícola, a mó fixa (ou de baixo) encaixada no seu suporte ou eixo que está enterrado, em frente da antiga vala que fazia mover o eixo e a mó de cima.

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Azenha do Traquemas. À superfície do solo e à beira dum canavial que foi ribeiro, a mó fixa ainda lá está 46 agarrada ao eixo que ficou enterrado. É tudo quanto resta da velha azenha (mesmo assim ainda resta!).


Este nome Traquemas é uma bela relíquia etno linguística:

Traquemas 1º tr qmh, [tarquema, tarquemo] «dar voltas, tornear, desandar . cereal» «dar voltas, tornear . farinha»

2º tar qmh tar qemu [tarquema ou toarquema] «excelência, qualidade do . cereal» «excelência, qualidade da . farinha»

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3º thr qmh thr qemu [terquema, terquemo] «puro . cereal» «pura . farinha» 4º twr qmh, tar qemu [tôrquema, tarquemo] «dar . cereal» «restituir . farinha» 5º twr qmh [tarquemag] «dar, pagar ou restituir . farinha» 48


6º tar qms [târkemasse] «dar, pagar ou restituir . uma pequena quantia, um punhado ou uma mão-cheia». ou «tornear, dar voltas (por) . uma pequena quantia, um punhado ou uma mão-cheia» 7º tr qmh ash tar qemu ash [tarquemaxe, tarquemaxe] «tornear . cereal . um pouco, coisa insignificante» «restituir, pagar . farinha . um pouco, coisa insignificante».

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Traquemas significou uma destas expressões ou todas? «Desandar, dar voltas ao cereal para restituir farinha» está correcto. «Excelente grão/farinha» também podia ser. Moinho de «pagar um pouco de farinha» (de pagar uma maquia) é provável, o que o podia distinguir de outros próximos que seriam gratuitos, comunitários; ou devemos traduzir por «restitui, dá farinha (em troca de grão)»?... enfim, um jogo de palavras muito sugestivo para um moinho. O vocábulo tar tanto significa «dar, restituir» como «tornear, dar voltas» como é próprio dos moinhos. «Uma pequena quantia, uma mão-cheia» era o que se chamava «maquia», uma pequena quantidade de farinha que o moleiro cobrava pelo seu trabalho. Veja-se como qms [qemasse] («punhado, pequena quantia») e qemu ash [qemax] («farinha . um pouco») estão fonética e semanticamente próximos, o que é uma característica destas línguas relacionada com a origem das palavras como explicámos na Fonte dos Corações, de modo que os vocábulos ou expressões homófonos tendem a ser sinónimos ou complementares. O nome tanto podia referir-se a um moinho que cobrava maquia (os comunitários eram gratuitos) como consistir num slogan publicitário, e muito criativo. Veja-se o efeito em três dialectos: tr, tar qemah - «tornear . cereal» tar qemah - «excelência do . cereal» twr qemu - «restituir . farinha» twr qem ash - «restituir . farinha . um pouco». twr qemas - «restituir . um punhado, uma mão-cheia» São alguns exemplos de cerca de 70 topónimos lusitano-fenícios/púnicos do Concelho de Óbidos.

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UMA ORAÇÃO LUSITANA (DE ÓBIDOS) PELA CHUVA O Senhor da Pedra de Óbidos foi um santuário invocado em favor da chuva, segundo consta de documentação do séc. XIX. Encontramos uma antiga oração pela chuva ao Senhor da Pedra, mas em fenício/púnico. Vejamos: a aldeia do Pinhal de Óbidos (na margem oposta do rio Arnóia e a uns quatro quilómetros do Senhor da Pedra), durante a festa em honra da sua padroeira, Santa Ana, organiza em Setembro uma procissão onde figuram duas imagens: Santa Ana e Santo Agostinho. Este último faz, digamos, parceria com a padroeira. É obrigatória a presença da imagem de Santo Agostinho na procissão, bem enfeitada com flores, e até nos disseram que um homem teve de ir a uma povoação afastada buscar flores para enfeitar o seu andor. Porquê esta obrigação de figurar Santo Agostinho na procissão? Porque, disseram-nos, «Santo Agostinho é o santo da chuva». «É o santo que dá a chuva» Ora, na história, nos costumes e na liturgia católicas, por um lado, e nas devoções e cultos da religião popular, por outro, não há nenhuma razão para se invocar Santo Agostinho em favor da chuva. Depois, este santo não tem absolutamente nenhum culto na religião popular portuguesa nem, por outro lado, é orago católico de paróquias portuguesas. Este Santo Agostinho do Pinhal de Óbidos é único. 51


A razão é que a origem deste «santo da chuva» nos rituais duma aldeia vizinha do Senhor da Pedra que foi provedor da chuva, resulta dum efeito linguístico que podíamos classificar de atavismo cultural: neste local, a expressão Santo Agostinho é o resultado fonético duma oração pela chuva, mas na língua dos fenícios/púnicos – shamutu agô sty nou que significa «Chuva, ribeiro, beber ou embeber, por favor»

leitura

-

significa -

shamutu ahw shty n’ [xâmutu agô xetí nâu] >>>>>>>>>>>>

Santo Agostinho

«chuva . ribeiro . beber . por favor»

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variante fonética: shamutu h gosh shty n’ leitura - [xâmutu a góx xetí nâu] >>>>>>>>>>>> Santo Agostinho significa - «chuva . a terra seca . embeber . por favor»

outra variante fonética: shamutu ahh shty n’ leitura - [xâmutu agué xeti nâu] >>>>>>>>>>>>> significa - «chuva . irmão . beber . por favor»

Santo Agostinho

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Dizendo ahw [agô] significa «ribeiro ou pântano», dizendo ahh [agué] o significado é «irmão». Tanto dá um como o outro uma vez que os ribeiros eram divinizados; a prece podia dirigir-se ao «espírito do rio». Note-se esta pérola linguística: um decalque, com continuidade/mudança de fonética/semântica: shamutu = «chuva» > «santo da chuva» A frase decalcada deu o nome Santo Agostinho. É por isso que, nesta aldeia, é o «santo da chuva». O decalque é perfeito. A rogação era: «Chuva, irmão ou ribeiro ,(para) beber, por favor» Ou «Chuva (para) terra seca embeber, por favor».

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A quase-associação entre «pântano ou ribeiro» e «irmão» parecerá estranha, mas é como consta dos dicionários; a razão estará na divinização dos ribeiros, enquanto o tratamento de «irmão» para uma divindade subalterna era frequente. Essa seria a fórmula ritual, mágica, que os rogantes proferiam, neste local, ao espírito do rio (ou ao próprio rio divinizado) – que passou a ser o Senhor da Pedra Pelo efeito dum atavismo cultural a fórmula mágica, que seria muito conhecida e repetida, resistiu às mudanças de língua e de religião confundindo-se com um nome dum santo da religião católica quando este penetrou na região. Só falta saber a época em que esta confusão línguas se processou; mas não podemos saber. Este tipo de atavismo cultural é específico da oralidade, da religião popular e da magia que primam pelo esforço em garantirem a fidelidade às palavras. É como dizer fórmulas como aleluia, vade retro, abrenúncio, kyrie eleison sem se conhecer a significação, sabendo-se apenas que são palavras «fortes», eficazes, insubstituíveis. A religião e a língua mudaram mas as palavras sagradas «fortes, milagrosas», continuaram no novo sistema linguístico. Cf. ESPIRITO SANTO, M.: Religião Popular Portuguesa, Lisboa, Assírio e Alvim, 1990, pp. 145-155.

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O processo linguístico de adaptação duma fórmula antiga, dum topónimo, etc. ao nome dum santo é muito comum, entre nós como em toda a Europa. Também se assemelha aos casos da invenção de santos locais a partir dos antigos topónimos (Sangalhos – São Galios). Segundo o historiador eclesiástico Padre Miguel de Oliveira, os topónimos Santa Iria que existem no País foram topónimos indígenas que derivaram numa santa.

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Imagem de Santo Agostinho, da igreja do Pinhal, O SANTO DA CHUVA

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