A magia do inverno

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São Paulo 2018


Whichwood

Copyright © 2016 by Tahereh Mafi All Rights Reserved. © 2017 by Universo dos Livros Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.

Diretor editorial: Luis Matos Editora-chefe: Marcia Batista Assistentes editoriais: Aline Graça e Letícia Nakamura Tradução: Mauricio Tamboni Preparação: Luís Protásio Revisão: Mariane Genaro e Cely Couto Arte: Aline Maria e Valdinei Gomes Projeto gráfico: Valdinei Gomes Capa e ilustrações: Rafael Nunes Cerveglieri Leitura de Original: Rayanna Pereira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 M162m

Mafi, Tahereh

A magia do inverno / Tahereh Mafi ; tradução de Mauricio Tamboni. – São Paulo : Universo dos Livros, 2017. 288 p. : il. (Furthermore ; 2)

ISBN 978-85-503-0255-3

1. Literatura infanto-juvenil2. Contos de fadas I. Título II. Tamboni, Mauricio

Título original: Whichwood

17-1775

Índices para catálogo sistemático:

CDD 028.5

1. Literatura infanto-juvenil

Universo dos Livros Editora Ltda. Rua do Bosque, 1589 – Bloco 2 – Conj. 603/606 CEP 01136-001 – Barra Funda – São Paulo/SP Telefone/Fax: (11) 3392-3336 www.universodoslivros.com.br e-mail: editor@universodoslivros.com.br Siga-nos no Twitter: @univdoslivros


Aos meus pais, pelas longas noites que passamos lendo poesia persa e tomando infinitas xĂ­caras de chĂĄ



Nossa histรณria comeรงa numa noite gelada


Os primeiros flocos de neve caíam em ligeiras

espirais; eram grandes como panquecas e brilhavam alvos em seus movimentos. Desgrenhadas, as árvores ostentavam folhas brancas; a luz da lua refletia no lago congelado; a noite era leve e tudo era vagaroso e a neve calava a Terra num sono profundo e ah, o inverno se aproximava veloz. Para a cidade de Whichwood, o inverno era uma distração bem-vinda; os habitantes prosperavam no frio e deliciavam-se com o gelo (a primeira nevasca era terrivelmente deliciosa) e todos estavam bem preparados, com alimentos e festividades que garantiam o aconchego durante toda a estação. A Yalda, a maior celebração da cidade, acontecia no solstício de inverno, e a terra de Whichwood estava entusiasmada com a expectativa. Whichwood era um vilarejo distintivamente mágico; a Yalda, o feriado mais importante da cidade, era uma noite fortemente mágica. Acontecia na última noite do outono, a mais longa do ano. Era um momento de trocar presentes e beber chá e se deleitar com banquetes infinitos – e era também muito mais do que isso. Agora as coisas estão um pouquinho agita-

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A magia do inverno das (algo estranho está prestes a acontecer e não posso me ­distrair quando enfim acontecer), então discutiremos os detalhes mais ­ adiante. Por ora, esteja ciente de uma coisa: cada nova tempestade de neve chegava com centímetros de animação renovada e, agora faltando apenas dois dias para o inverno, o povo de Whichwood mal conseguia conter seu júbilo. Com uma única e notável exceção. Existia somente uma pessoa em toda Whichwood que nunca participava das celebrações de alegria da cidade. Somente uma pessoa fechava suas cortinas e expressava irritação com a música e a dança naquela noite mágica. E ela de fato era uma pessoazinha bem esquisita. Laylee odiava o frio. Aos treze anos, há muito já havia perdido aquele otimismo precioso e inabalável reservado quase que exclusivamente aos jovens. Não tinha senso de extravagância, o menor interesse pela decadência, a menor tolerância para gentilezas. Não. Laylee odiava o frio e odiava aquele reboliço e sentia asco não apenas dessa estação de festas, mas também daqueles que gostavam daquilo tudo. (Para ser justa, Laylee não gostava de muitas coisas – inclusive de sua sina na vida –, mas talvez o inverno fosse a coisa de que ela menos gostasse no mundo.) Caísse granizo ou caísse neve, ela era forçada a trabalhar sozinha por longas horas no frio; suas rótulas congelavam enquanto ela arrastava cadáveres para dentro de uma enorme banheira de porcelana em seu quintal. A menina esfregava pescoços amolecidos e pernas quebradas e unhas sujas até seus próprios dedos congelarem, e depois dependurava esses membros mortos e pesados para secar – só para voltar mais tarde e quebrar os pingentes de gelo dos queixos e dos narizes dos defuntos. Para ela, não havia feriado nem férias e nem mesmo uma rotina. Ela trabalhava quando seus clientes a procuravam, o que significava que em breve estaria com trabalho até os ossos. Em Whichwood, entendam, meus caros, o inverno era uma estação disputadíssima para morrer.

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Esta noite, Laylee foi vista franzindo a testa (sua expressão ­ abitual), irritada (talvez mais do que o normal), com o corpo inclih nado (a ponto de asfixia) e teimosamente decidida a colher alguns flocos de neve antes do jantar. Os flocos frescos eram os mais densos e crocantes, um mimo raro para aqueles que conseguiam ser rápidos o suficiente para colhê-los. Se me der licença: sei que parece uma ideia estranha essa coisa de comer flocos de neve no jantar, mas você precisa entender uma coisa: Laylee Layla Fenjoon era uma menina muito estranha e, apesar da (ou talvez justamente por causa da) estranheza de seu trabalho, precisava desesperadamente de um agradinho. Tivera de lavar nove corpos enormes e totalmente apodrecidos hoje – ou seja, quatro além do habitual – uma tarefa, portanto, muito pesada para ela. Aliás, com frequência ela se pegava sonhando com uma vida na qual sua família não precisava cuidar de uma lavanderia de mortos. Bem, estou falando em família, mas, na verdade, Laylee lavava todos os mortos sozinha. Maman havia morrido dois anos antes (uma barata caiu no samovar e Maman, sem se dar conta, bebeu o chá; foi tudo muito trágico), mas Laylee não pudera se dar ao luxo de ter tempo para sofrer. A maioria dos fantasmas seguiam suas vidas e iam embora depois de uma boa escovada, contudo, imagine você!, Maman tinha ficado ali, flutuando pelos corredores e criticando o melhor trabalho de Laylee, mesmo durante o sono enquanto ela dormia. Baba também era totalmente ausente, pois fora embora logo que Maman morreu. Desolado pela perda da esposa, partiu em uma jornada impulsiva logo depois da morte de Maman, decidido a encontrar a Morte para uma conversinha sobre suas escolhas mais recentes. Infelizmente, não a encontrou em lugar nenhum. Pior ainda: o sofrimento havia afetado a mente de Baba de uma maneira tão brutal que, apesar dos dois anos ausente, em todo esse tempo só conseguira viajar até o centro da cidade. Em sua mágoa, não perdeu só o senso de direção, mas também o bom senso. O cérebro de Baba tinha se rearranjado e, na loucura e caos da perda, não

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A magia do inverno restou qualquer espaço para sua filhinha. Laylee era o dano colateral em uma guerra contra o sofrimento, e Baba, que não tinha qualquer esperança de vencer essa guerra, infelizmente sucumbiu ao ópio do esquecimento. A menina com frequência passava por seu pai, todo desorientado, em suas temporadas na cidade. Dava-lhe tapinhas no ombro para mostrar apoio e enfiava uma romã em seu bolso. Mais sobre isso adiante. Por enquanto, vamos manter o foco: era uma noite fria e solitária e Laylee tinha acabado de recolher os últimos flocos de seu jantar quando um barulho repentino a gelou na hora. Duas pancadas altas, um graveto quebrando, um baque abafado, uma inspiração inconfundível e uma onda repentina de sussurros furiosos. Não, não tinha como negar: havia transgressores aqui. Veja bem: essa teria sido uma revelação alarmante para qualquer pessoa comum, mas, como Laylee claramente não era uma pessoa comum, continuou imperturbável. Sentia-se perplexa, todavia. O fato era que ninguém jamais aparecia ali, e que os céus ajudassem quem resolvesse ir àquele lugar – afinal, tropeçar em uma pilha de cadáveres inchados e apodrecidos nunca fez bem a ninguém. Era por esse motivo que Laylee e sua família viviam em relativo isolamento. Haviam adotado como sua casa um castelo pequeno e gelado em uma peninsulazinha no limite da cidade, uma espécie de exílio; essa era uma maldade que Laylee e sua família não haviam feito por merecer, mas, por outro lado, ninguém queria ser vizinho de uma menina cujo trabalho era tão infeliz. De todo modo, a garota não estava nada acostumada a ouvir vozes humanas tão perto de casa, então aqueles sussurros a deixaram desconfiada. De cabeça erguida e alerta, ajeitou os flocos de neve em uma caixa de prata ornamentada – uma antiga relíquia da família – e, na ponta dos pés, sumiu da vista. Laylee não era uma menina que costumava se incomodar com o fardo e o furor do medo; não, ela lidava diariamente com a morte, então o desconhecido que amedrontava a maioria das pessoas exer-

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cia pouco efeito sobre alguém capaz de conversar com fantasmas. (Essa última informação era secreta, obviamente – Laylee sabia que era melhor não contar às pessoas da cidade que via e conversava com os espíritos de seus entes queridos; não tinha o menor interesse em ser chamada para fazer mais trabalho do que aquele que já se acumulava em seu galpão.) Então, enquanto dava passos cuidadosos em direção ao castelo modesto no qual vivia, não sentiu medo, mas um formigamento de curiosidade. E, conforme o sentimento se aquecia em seu coração, ela piscava os dois olhos, grata e surpresa por sentir um sorriso brotando em seu rosto.

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Maman pairava na entrada quando Laylee abriu a por-

ta pesada de madeira e, ainda enquanto a mãe-fantasma se preparava para gritar uma ou outra nova queixa, um repentino golpe de vento bateu a porta atrás das duas, fazendo Laylee dar um salto mesmo contra sua vontade. Ela fechou os olhos e expirou duramente, as mãos ainda fechadas, segurando a caixa de prata. – Onde você estava? – Maman exigiu saber, passando perto das orelhas de Laylee. – Não se importa com meus sentimentos? Você sabe como me sinto solitária quando fico trancada aqui totalmente sozinha… (Certo, claro, aqui está outra informação: Maman assombrava a casa deles e nenhum outro lugar – não porque fosse incapaz, mas simplesmente porque não tinha vontade. Era uma mãe um tanto apegada.) Laylee ignorou Maman. Nesse momento, soltava o lenço antigo, com motivos florais e franjas excessivas, que cobria sua cabeça. Em seguida, abriu os fechos de seu manto de pelos e dependurou ambas as peças para secar próximas à porta principal. A pele era presente

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de uma raposa que havia guardado para ela os fios que perdera no verão, e esta noite Laylee se sentia especialmente grata por esse calorzinho extra. – … ninguém com quem conversar – Maman lamuriava-se. – Ninguém faz o menor esforço para se solidarizar com a minha ­condição… A garota costumava ser mais solidária com a condição de Maman, mas por fim aprendeu, do modo mais duro, que aquele fantasma não passava de um eco de sua mãe verdadeira. Maman fora uma mulher vibrante e interessante, mas essa interação transparente flutuando na cabeça de nossa heroína tinha pouca personalidade e ainda menos encantos. No fundo, no fundo, os fantasmas eram criaturas excessivamente inseguras, que se ofendiam com qualquer desfeita imaginável; requeriam mimos constantes e só encontravam conforto em suas meditações românticas sobre a morte – as quais, como você deve imaginar, transformavam-nos em companhias muito desagradáveis. Maman continuava envolvida em seu solilóquio dramático, tomando o cuidado de descrever com excesso de detalhes a monotonia de seu dia. Laylee por sua vez, sentou-se na mesa da cozinha e sequer se importou em acender uma lâmpada, afinal, não havia nem uma lâmpada para acender. Ela vivia sozinha há dois anos agora, cuidava de si mesma e pagava as contas, mas, não importava o quanto Laylee trabalhasse, nunca havia dinheiro suficiente para voltar a dar vida à casa. Laylee tinha um dom. Contava com um talento mágico que permitia a ela (e àqueles de sua linhagem, algo que herdara de Baba) lavar e preparar os mortos destinados a Otherwhere, mas esse trabalho tão pesado jamais deveria ser realizado por uma única pessoa – e menos ainda por alguém tão jovem. Apesar de seus enormes esforços, a menina via seu corpo se deteriorando lentamente; e, quanto mais tempo passava enfrentando a decomposição da vida, mais fraca ficava. Não tinha tempo para ser uma garota vaidosa, mas, se pas-

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A magia do inverno sasse mais do que alguns minutos na frente do espelho, talvez se ­transformasse em uma grande narcisista. Aliás, se seus pais estivessem por perto para encorajar seu ego, talvez Laylee já tivesse perdido completamente a cabeça. Então, para ela, era um golpe de sorte não ter a mãe nem um espelho para encher sua cabeça de bobagens, pois uma inspeção mais atenta de seu reflexo revelaria uma garota de beleza incomum. Era magra, de corpo firme, longilíneo e elegante; entretanto, eram seus olhos – suaves, que mais pareciam os de uma boneca – que a destacavam. Uma olhadela em nossa amiguinha era suficiente para deixar agitados aqueles que a conheciam, mas era o segundo olhar que acordava os medos das pessoas. Sejamos claros aqui: a aparência de Laylee não inspirava admiradores. Não era uma menina de brincadeiras e sua beleza era tão irrelevante para ela quanto aqueles que veneravam isso. Ela nasceu bonita, entende? Seu rosto era uma dádiva que ela não podia perder. Pelo menos, não ainda. Mas seu trabalho já cobrava um preço, e ela não mais podia ­ignorar as mudanças em seu reflexo. Embora suas madeixas castanhas antes fossem lustrosas e pesadas, agora começavam a perder a cor; Laylee começava a ficar grisalha, das pontas para a raiz, e em seus olhos, que no passado foram de um âmbar profundo e rico, agora habitava um tom cinza vidrado. Até o momento, sua pele fora poupada; mesmo assim, os olhos pedregosos contra o bronze profundo de sua tez a faziam parecer a lua, distante e perpetuamente triste. Porém, Laylee tinha pouca paciência para a tristeza e, embora no fundo sentisse uma dor enorme, preferia ficar furiosa. Então ela era, na maior parte do tempo, uma menina irritável, nada gentil, furiosa, e poucas amenidades podiam distraí-la da morte constante que requeria sua atenção. Esta noite, deslizou um olhar derrotado pelos muitos cômodos de sua casa fria e prometeu a si mesma que um dia estaria bem o suficiente para reformar as janelas quebradas, as cortinas rasgadas, as tochas que não acendiam e as paredes desbotadas. Embora trabalhasse duro todos os dias, Laylee raramente rece-

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bia pelo que fazia. A magia que corria em suas veias a tornava por ­sangue a ser uma mordeshoor e, quando os mortos eram entregues à sua porta, não lhe restava escolha senão acrescentá-los à pilha. O povo de Whichwood sabia disso e com frequência exagerada tirava proveito dela – umas vezes, pagavam muito pouco; outras, sequer pagavam. Mas um dia, Laylee jurou, ela devolveria luz e cor à penumbra a que sua vida se reduzira. Maman aparecia e sumia diante do rosto da filha, infeliz por ser tão claramente ignorada. Com o desânimo repuxando seu rosto, Laylee usava a mão para afastar a figura insubstancial da mãe-fantasma. A menina se esquivou duas vezes, então enfim desistiu, levando sua refeição para a sala de jantar esparsamente mobiliada e, uma vez sentada na parte mais macia do tapete surrado, abriu a caixa com os alimentos. O cômodo era iluminado somente pela luz da lua, que teria de ser suficiente. Laylee apoiou o queixo em uma mão e mastigou em silêncio um floco de neve do tamanho de seu rosto enquanto pensava melancólica nos dias que costumava passar com crianças da sua idade. Já fazia muito tempo que deixara a escola e às vezes sentia saudade. Mas estudar era uma espécie de luxo reservado aos filhos de pais que tinham trabalho e estabilidade doméstica – e, a essa altura, ela não podia sequer fingir ter nada disso. Mordiscou outro floco de neve. Os primeiros flocos da estação eram feitos totalmente de açúcar – essa era uma mágica específica de Whichwood. E, embora soubesse que deveria comer algo mais saudável, a menina simplesmente não dava a mínima. Esta noite, queria relaxar. Então comeu todos os cinco flocos em uma única sentada e se sentiu muito, muito bem por ter feito isso. Enquanto isso, Maman tinha acabado de concluir seu monólogo e agora abordava problemas mais urgentes (o estado geral da casa, a bagunça mais especificamente na cozinha, os corredores empoeirados, os cabelos quebradiços e as mãos calejadas da filha) quando Laylee se retirou para o andar de cima. Essa era a rotina diária de

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A magia do inverno Maman, e a menina se esforçava para ser paciente. Tinha parado de responder à mãe-fantasma havia um bom tempo – o que ajudava um pouco, mas também significava que vários dias se passavam sem Laylee conseguir dizer uma só palavra, e a solidão começava a deixar cicatrizes. Nem sempre ela fora uma criança tão silenciosa, mas, quanto mais raiva e ressentimento se acumulavam dentro dela, menos ela se atrevia a falar. Era uma menina que raramente falava porque tinha medo de uma combustão espontânea.

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