A Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento

Page 1



ÍNDICE

A DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL E DESENVOLVIMENTO I. INTRODUÇÃO: ORIGENS E DESENVOLVIMENTO DA DOUTRINA II. CONCEITOS BÁSICOS DA DSN E DESENVOLVIMENTO 1. SEGURANÇA NACIONAL, SEGURANÇA INTERNA E OPOSIEÇAO QUADRO SEGURANÇA NACIONAL 2. GEOPOLÍTICA: O PAPEL DO BRASIL NO CONTEXTO INTERNACIONAL 3. O MODELO ECONÔMICO DA DSN E DESENVOLVIMENTO

p. 01 “ 04 “ 09 13 14


1

A DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL E DESENVOLVIMENTO

por MARÍA HELENA MOREIRA ALVES I.

INTRODUÇÃO: ORIGENS E DESENVOLVIMENTO DA DOUTRINA

Margaret Crahan identificou as origens da ideologia de segurança nacional na América Latina já no século XIX, no Brasil, e no início do século XX, na Ar1

gentina e no Chile. Elas vinculam-se então a teorias geopolíticas, ao antimarxismo e às tendências conservadoras do pensamento social católico, expressas por organizações como a Opus Dei, na Espanha, e a Action Françai2

se. Com o advento da guerra fria, elementos da teoria da guerra total e do confronto inevitável das duas superpotências incorporaram-se à ideologia da segurança nacional na América, Latina. A forma específica por ela assumida na região enfatizava a "segurança interna" em face da ameaça de, "ação indireta", do comunismo. Desse modo, enquanto os teóricos americanos da segurança nacional privilegiavam o conceito de guerra total e a estratégia nuclear, e os franceses, já envolvidos na Guerra da Argélia, concentravam

1

2

Ver Margaxet E. Crahan, "National Security Ideology and Human Rights", t., e defendida no X Congresso Internacional de Filosofia, promovido pela Sociedade Interamericana de Filosofia e a American Philosophical Association, Florida State University, Tallahassee, 18 a 23 de outubro de 1981, p. 713. Ibid, p. 12-22.

suas atenções na guerra limitada como resposta à ameaça comunista, os latino-americanos, preocupados com o crescimento de movimentos sociais da classe trabalhadora, enfatizaram a ameaça da subversão interna e da guerra revolucionária. Além disso, a ideologia latino-americana de segurança nacional, especialmente em sua variante brasileira, volta-se especificamente para a ligação entre desenvolvimento econômico e segurança interna e externa. Alguns trabalhos já foram publicados sobre a ideologia da segu-rança 3

nacional no Brasil.

Neste capítulo,

3

Entre os livros que abordam especificamente a Dooutrina de Segurança Nacional e sua ideologia, tal como se desenvolveu no Brasil, estão: Eliezer Rizzo de Oliveira, Políticas e Ideología no Brassil 19641969 (Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1976); Joseph Comblin, “The National Security Doctrine” in The Repressive State: The Brazilian National Secuty Doctrine in Latin America (Toronto: LARU Papers, 1976); Joseph Comblin, A Ideologia da Segurança Nacional: O Poder Militar na América Latina (Rio de Janeiro; Editora Civizaçao Brasileira, 1977); José Alfredo Amaral Gurgel, Segurança e Democracia (Rio de Janeiro: Livraría José Olympio Editora, 1975, e a importante pesquisa e analise organizada por Dom Cãndi-


MARÍA HELENA MOREIRA ALVES concentrar-nos-emos na obra do General Golbery do Couto e Silva, de longe o teórico brasileiro mais influente, e nos preceitos da Escola Superior de Guerra (ESG). Uma análise dos manuais da ESG, em especial o Manual Básico da Escola Superior de Guerra, é instrumento importante para compreendermos a Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento, dada sua relevância no treinamento profissional e ideológico tanto dos militares brasileiros de alta patente quanto de altos tecnocratas da burocracia de Estado. Uma tal análise é fundamental para a compreensão do desenvolvimento do Estado de Segurança Nacional e das reações dos detentores do poder aos desafios da oposição. Já nos referimos à prioridade dada ao desenvolvimento de um corpo orgânico de pensamento para o planejamento de Estado e as políticas de segurança e desenvolvimento. Também mencionamos o importante papel desempenhado pela ESG ao incorporar civis como alunos e na qualidade de professores visitantes ou permanentes. A ESG consolidou, assim, uma rede militar-civil que institucionalizou. e disseminou a Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento. Esta rede, organizada na Associação dos Diplomados da Escola Superíor de Guerra (ADESG), promovia conferências, seminários, debates e cursos por todo o país, levando os princípios e doutrinas

2 da ESG a outros protagonistas políticos 4

civis e militares. A ESG influenciou os currículos de outras escolas militares bra-sileiras. Alfred Stepan assinala a propagação da doutrina a outros centros de treinamento civis e militares, especialmente a Escola de Comando do Estado-Maior (ECEME), o estabelecimento de mais alto nível para adestramento do comando militar. Stepan acompanha os seguintes desdobramentos: em 1956, o currículo da ECEME não mencionava conferências sobre contra-insurgêncía ou estratégias de segurança interna; em 1961, os cursos sobre segurança nacional já se haviam tornado mais influentes. Em 1968, o currículo da ECEME contava um total de 222 horas de aula dedicadas exclusivamente à discussão da doutrina de Segurança Interna, e outras 129 à análise de formas não-clássicas de guerra. Apenas 21 horas eram dedicadas a tópicos militares tradicionais como defesa territorial. con5

tra agressão externa ao país. Tudo isto é tanto mais significativo quando se sabe que, para ser promovido a general ou designado titular de qualquer posto de comando, todo oficial brasileiro deve ser graduado pela ECEME.

4

5

do Padim, bispo de bauru (São Paulo), cuja versão reduzida foi publicada in SEDCC (Serviçao de Documentaçao). Volume 1, 1969 (Rio de Janeiro Editora Vozes) com o titulo “A Doutrina de Segurança Nacional a Luz de Doutrina da Igreja”.

Sobre a influência da ADESG e seu importante papel na disseminação da ideologia de segu. rança nacional e na conspiração para derrubar o governo de João Goulart, ver Renê Dreifuss, 1964: A Conquista do Estado, op. cít., p. 456, nota 8; p. 73-82 e 417-456. Ver Alfred Stepan, Os Militares na Política, op. cit., p. 133. Ver também Alexandre de Barros, The Brazilian Military: Professional Socialization, Political Performance and State Building, tese de PhD, Chicago University, 1978..


A DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL E DESENVOLVIMENTO Tal como é desenvolvida no Manual Básico, a doutrina da escola evoluiu de uma definição parcial de segurança interna e externa para uma visão mais abrangente da segurança nacional integrada ao desenvolvimento econômico. Segundo as normas atualmente em vigor, a ESG ocupar-se-á basicamente da "Doutrina Política Nacional de Segu6

rança e de Desenvolvimento". O Manual Básico estabelece ainda uma distinção entre o que define como a formulação de uma "doutrina política geral aplicável ao país" como um todo, a "doutrina militar" e a "doutrina de infor7

mação". A "doutrina política" será desenvolvida com exclusividade e "absoluta liberdade na sua especulação e 8

formulação" pelo Curso Superior de Guerra da ESG. A "dou-trina militar", por outro lado, será elaborada sob supervisão e responsabilidade diretas do, Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA). Quanto à "doutrina de informação” a ESG não tem responsabilidade especial sobre a "produção das informações". A metodologia de coleta de informações é confiada à Escola Nacional de Informações, que, ligada ao Serviço Nacional de Informações (SNI), adestra 9

agentes de alto nível. É importante observar esta aparente "divisão do trabalho" entre várias organizações, para o desenvolvimento e coleta de, informação sobre questões de segurança interna. Embora não se envolva diretamente na "produção das informações” a ESG efetivamente lida com o que denomina "doutrina de utili6

7

Manual Básico de Escola Superior de Gerra (Estado das Forças Armadas - Escola Superior de Guerra, Departamento de Estudos, 1976), p. 20. Ibid., p. 20-21.

3

zação das informações". O Manual Básico explica que esta é de responsabilidade da ESG porque a informação é utilizada no contexto da doutrina política, que é da exclusiva competência da 10

Escola. A ESG funciona, portanto, como pólo teorizador da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento.


MARÍA HELENA MOREIRA ALVES

4

II. CONCEITOS BÁSICOS DA DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL E DESENVOLVIMENTO A Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento foi formulada pela ESG, em colaboração com o IPES e o IBAD, num período de 25 anos. Tratase de abrangente corpo teórico constituído de elementos ideológicos e de diretrizes para infiltração, coleta de informações e planejamento políticoeconômico de programas governamentais. Permite o estabelecimento e avaliação dos componentes estruturais do Estado e fornece elementos para o desenvolvimento de metas e o planejamento administrativo periódicos. xxxx

1. SEGURANÇA NACIONAL SEGURANÇA INTERNA E OPOSIEÇAO A Doutrina de Segurança Naciongal começa com uma teoria da guerra. Os preceitos da ESG, abrangem diferentes tipos de guerra: guerra total; guerra limitada e localizada; guerra subversiva ou revolucionária; guerra indireta ou psícológica. A teoria da guerra total baseia-se na estratégia militar da guerra fria, que define a guerra moderna como total e absoluta. Em vista do imenso poder destrutivo das armas nucleares e do inevitável confronto das duas superpotências –os Estados Unidos e a União Soviética–, a teoria conclui que a guerra não mais se limita ao território dos países beligerantes ou a setores específicos da economia ou da população. O General Golbery do Couto e Silva define assim o conceito: Hoje ampliou-se o conceito de guerra (...) a todo o espaço territorial dos Estados beligerantes, absorvendo na

voragem tremenda da luta a totalidade do esforço econômico, político, cultural e militar de que era capaz cada nação, rigidamente integrando todas as atividades em uma resultante única visando à vitória e somente à vitória, confundindo soldados e civis, homens, mulheres e crianças nos mesmos sacrifícios e em perigos idênticos e obrigando à abdicação de liberdades seculares e direitos custosamente adquiridos, em mãos do Estado, senhor todo-poderoso da guerra; (...) mas, sobretudo, ampliou-se também na escala do tempo, incorporando em si mesma o pré-guerra e o pós-guerra como simples manifestações atenuadas de seu dinamismo avassalante -formas larvadas da guerra, mas no fundo guerra. De guerra estritamente militar passou ela, assim, a guerra total, tanto econômica e financeira e política e psicológica e científica como guerra de exércitos, esquadras e aviações; de guerra total a guerra global; e de guerra global a guerra indivisível e –por que não reconhecê-lo?– permanente. A "guerra branca" de Hitler ou a guerra fria de Stalin substitui-se à paz e, na verdade, não se sabe já distínguir onde finda a paz e onde começa a guerra 11

(...). Como os Estados Unidos e a União Soviética estão irrevogavelmente envolvidos numa guerra total que não pode ser combatida ativamente, pela possibilidade de destruição completa das duas nações, a guerra contemporânea, segundo esta teoria, assume diversas formas: guerra nuclear, em sua forma 11

8 9 10

Ibid., p. 20. Ibid. Ibid

Golbery do Couto e Silva, Conjuntura Política Nacíonal, O Poder Executivo & Geopolítica do Brasil (Rio de Janeiro- Livraria José Olympio Editora, 1981), p. 24.


A DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL E DESENVOLVIMENTO total ou ilimitada; e guerras limitadas ou localizadas, pelas quais as duas superpotências medem suas respectívas capacidades de controlar determinados territórios, mas quase caem na guerra nuclear total. Além disso, a guerra pode ser declarada ou não-declarada, referindo-se esta última classificação às formas de guerra revolucionária ou de

rra insurrecional e a guerra revolucionária. Estas são assim definidas: GUERRA INSURRECIONAL: conflito interno em que parte da população armada busca a deposição de um governo. GUERRA REVOLUCIONÁRIA: conflito, normalmente interno, estimulado ou auxiliado do esterior, inspirado geralmente em uma ídeologia, e que visa à conquista do poder pelo 15 controle progressivo da nação.

12

insurreição. A guerra clássica, ou convencional, é politicamente declarada, sendo por natureza limitada. É basicamente concebida como uma guerra de agressão externa, combatida entre Estados e na qual um país declara guerra a outro em reação a um ataque externo. Desse modo, no caso da guerra convencional, toda a capacidade produtiva e a população de um país são mobilizadas para unilo em torno da luta contra a agressão de outro país. Até a Segunda Guerra Mundial, era esta a forma mais comum de guerra. É ela, por definição, uma guerra de ataque e defesa, mas de uma população unida contra um inimigo 13

externo definido. A guerra nãodeclarada ou não-clãssíca, por outro lado, é uma guerra de agressão indireta: "pode incluir o conflito armado no interior de um país, entre partes de sua 14

população". O manual da ESG definea como guerra de "subversão interna". O conceito empregado abrange a gue-

12 13

14

Ibid., p. 24 Estas definições são tornadas ao manual básico de treinamento da Escola Superior de Guerra. Ver Manual Básico da ESG, op, cit., especialmente "Seção 1: Guerra Contemporãnea”, p. 65-82. Todas as definições de guerra, exceto se explicitado em contrário, são tomadas a esta seçao do manual. Ibid., p. 78-79.

5

O Manual Básico também deixa claro que o conceito de guerra revolucionária não envolve necesariamente o emprego da força armada. Abrange todaíniciativa de oposição organizada com força suficiente para desafiar as políticas de Estado. Além disso, a guerra revolucionária é automaticamente vinculada à infiltração comunista e a iniciativas indiretas por parte do comunismo internacional controlado pela União Soviética. É aqui que se torna essencial para a teoria o conceito de "fronteiras ideológicas” oposto ao de "fronteiras territoriais". Na guerra revolucionária, a guerra ideológica substitui a guerra convencional entre Estados no interior das fronteiras geográficas de 16

um país. Este ponto é fundamental para a teoria do "inimigo interno" e da agressão indireta. Diz o Manual Básico da ESG: A guerra revolucionária comunista é do segundo tipo em nossa definição da guerra não-clássica. Os países comunistas, em sua ânsia de expansão e domínio do mundo, evitando engajar-se em um confronto direto, põem em curso os princípios de uma estratégia em que a arma psicológica é utilizada, explo15 16

Ibid., p. 78. Ibid., p. 79.


6

MARÍA HELENA MOREIRA ALVES rando as vulnerabilidades das sociedades democráticas, sub-reptícia e clandestinamente, através da qual procuram enfraquecê-las, e induzi-las a submeter-se a seu regime sociopolítico. A guerra revolucionária comunista tem como característíca principal o envolvimento da população do país-alvo numa ação lenta, progressiva e pertinaz, visando à conquista das mentes e abrangendo desde a exploração dos descontentamentos existentes, com o acirramento de ânimos contra as autoridades constituídas, até a organização de zonas dominadas, com o recurso à guerrilha, ao terrorismo e outras táticas irregulares, onde o próprio nacional do respectivo país-alvo é utilizado como 17

combatente. Desse modo, a guerra revolucionária assume formas psicológicas e indiretas, de maneira a evitar o confronto armado, tentando conquistar "as mentes do povo", e lentamente disseminar as sementes da rebelião até encontrarse em posição de iniciar a população contra as autoridades constituídas. Como a guerra revolucionária não é declarada e é promovida secretamente por forças externas do comunismo internacional, ela recruta seus combatentes entre a população do "pais-alvo". Por definição, portanto, torna-se suspeita toda a população, constituída de "inimigos internos" potenciais que devem ser cuidadosamente controlados, perseguidos e eliminados. Tornam-se portanto indispensáveis à necessária defesa do pais o planejamento da segurança nacional e em especial um eficiente sistema de coleta de informações sobre as atividades de todos os setores políticos e clã sociedade civil. E isto porque, segundo a teoria da ESG, as forças do comunismo internacional planejam cuidadosamente e montam campanhas de propaganda e 17

Ibid.

outras formas de manipulação ideológica que são em seguida aplicadas secretamente no "país-alvo", de modo a atrair setores da população e debilitar a capacidade de reação do governo. É esta, em suma, a estratégia de ação in18

direta do comunismo. Segundo o Manual Básico da ESG, a maior preocupação, no Terceiro Mundo, deve ser com a guerra revolucionária, e não com a possibilidade de guerra limitada ou total. A União Soviética, de acordo com esta visão, considera a guerra revolucionária a maneira mais eficaz de levar a efeito seu próprio destino imperial, que depende do controle dos países do Terceiro Mundo: Nos países de fraco Poder Nacional, onde as estruturas políticas são instáveis, os processos indiretos de agressão são mais eficazes, potenciali18

Ibid., p. 430. Acrescente-se que, segundo a teoria, a guerra insurrecional, também não-declarada e não-convencional, está mais próxima do conceito tradicional de guerra civil, “ E o tipo de guerra em que parte da população, auxiliada e reforçada, ou não, do exterior, se contrapõe ao governo que detém o poder visando à sua deposição ou pretendendo impor-lhe condições" (p. 79). Em vista do caráter inevitável do atual confronto entre os Estados Unidos e a União Soviética, muitas guerras de independência ou guerras insurrecionais não permanecerão neutras, sendo contaminadas pela "guerra revolucionária comunista" (p. 79). A teoria supõe, portanto, que as guerras de indepen dêncla, as rebeliões contra ditaduras injustas ou opressivas ou quaisquer outras formas de resistência civil ao poder de Estado acabam sendo infiltradas pela guerra fria e pela onipresente luta de marte entre as duas superpotências.


A DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL E DESENVOLVIMENTO zando antagonismos e pressões internos. Torna-se evidente que, nesses casos, a Segurança Interna toma vulto e importância, principalmente quando, além das condições acima, existem outras decorrentes de sua posição geográfica. As chamadas grandes potências podem tirar partido das nações em estágio inferior de desenvolvimento para criar, desenvolver e explorar um clima de insegurança capaz de favorecer a consecução de seus objetivos, de crescente influência ou mesmo domínio, seja político, econômico, psicosso19

cial ou militar. A estratégia de ação indireta determina o estabelecimento de dife-rentes frentes de ação no seio da população, assim como de um método especial de propaganda psicológica e controle ideológico. Segundo a definição, existem duas espécies de "público-alvo". O público interno inclui militares da, ativa e da reserva ou civis que trabalham em Ministérios militares, assim como a Polícia Militar e outras forças paramilitares. O público externo é composto de estudantes, líderes sindicais, meios de comunicação impressos e eletrônicos, grupos sociais influentes como os intelectuais, profissionais, artistas e membros de diferentes ordens religiosas. Esta classificação também inclui setores organizados da vida política e da sociedade civil, como organizações de trabalhadores, estudantes e camponeses, além de clubes, associações de 20

bairro etc. A estratégia indireta procura, assim, explorar a dissensão entre grupos civis e políticos e conquistar posições de liderança para impor um clima de oposição ativa ao governo do país. A campanha psicológica estimula 'a população a empenhar-se na oposição direta, a simpatizar com as reivindi-

20

cações da oposição e eventualmente a incitar à revolta contra as autoridades constituídas. O principal problema para o Estado, no combate a esta estratégia indireta do comunismo, consiste em que, potencialmente, o inimigo está em toda parte. A maior prioridade para as ocupantes do poder num país subdesenvolvido é portanto a segurança interna, assim definida: A Segurança Interna envolve aspectos da Segurança Nacional que dlizem, respeito às manifestações internas dos antagonismos e pressões, abrangendo todas as ações que se produzem por intermédio do Estado no sentido de criar condições para a preservação dos poderes constituídos, da lei, da ordem e de garantir os Objetivos Nacionais ameaçados. Inclui, assim, todas as, medidas desencadeadas, para fazer face, dentro das fronteiras do pais, aos antagonismos e pressões de qualquer origem, forma ou natureza. (...) A Segurança Interna integra-se no quadro da Segurança Nacional, tendo como campo de ação os antagonismos e pressões que se manifestem no âmbito interno. Não importa considerar as origens dos antagonismos e pressões: externa, interna ou externointerna. Não importa a sua natureza: política, econômica, psicossocial ou militar; nem mesmo considerar as variadas formas como se apresentem: violência, subversão, corrupção, tráfico de influência, infiltração ideológica, domínio econômico, desagregação social ou quebra de soberania. Sempre que quaisquer antagonismos ou pressões produzam efeitos dentro das fronteiras nacionais, a tarefa de superã-los, neutralizá-los e reduzi-los está compreendida no complexo de ações planejadas e executadas, que se define como Política de 21

Segurança Interna.

19

Ibid., p. 430 Ibid

7

21

Ibid., p. 431


MARÍA HELENA MOREIRA ALVES Considerando-se as definições de "antagonismos" e "pressões", a teoria da Segurança Interna dota o Estado de Segurança Nacional de ampla justificação para o controle e a repressão da população em geral. Pode-se mesmo dizer que fornece um incentivo moral, já que a rigorosa manutenção da Segurança Interna é missão comparável, à defesa do país da ocupação de um exército estrangeiro. Além disso, o caráter oculto da ameaça torna praticamente impossível estabelecer limites para as ações repressivas do Estado e dos poderes militares. O próprio Estado de Segurança Nacional –e freqüentemente seus setores mais intimamente ligados ao Aparato Repressivo– determina em última instância quem é o "inimigo interno" do pais, e que atividades de oposição constituem "antagonismos" ou "pressões". Desse modo, a responsabilidade pelo controle das atividades subversivas ou revolucionárias dota as forças militares de poderes praticamente ilimitados sobre a população. É evidente que semelhante doutrina põe em sério risco a defesa dos direitos humanos. Quando é impossível determinar com exatidão quem deve ser tido como inimigo do Estado e que atividades serão consideradas permissíveis ou intoleráveis, já não haverá garantias para o império da lei, o direito de defesa ou a liberdade de expressão e associação. Mesmo que sejam mantidos na Constituição, tais direitos formais só existem, na prática, segundo o arbítrio do Aparato Repressivo do Estado de Segurança Nacional. Todos os cidadãos são suspeitos e considerados culpados até provarem sua inocência. Tal inversão é raiz e causa dos graves abusos de poder que se verificam no Brasil. Saliente-se também que a teoria do “inimigo interno" induz o governo ao desenvolvimento de dois tipos de estruturas defensivas. Primeiro, o Estado deve criar um Aparato Repressivo e de

8 controle armado capaz de impor sua vontade e ' se necessário, coagir a população. Depois, ele montará uma formidável rede de informações políticas para detectar os "inimigos", aqueles setores da oposição que possam estar infiltrados pela ação comunista "indireta". Tudo isso implica ainda a centralização do poder de Estado no Executivo federal, que poderá então operar o vasto aparato de segurança interna. Seguese também que os setores mais intimamente vinculados à coordenação das forças repressivas e de informação vêm a ser os detentores de facto do poder no interior do Estado de Segurança Nacional. Em textos de meados dos anos 50, o General Golbery do Couto e silva já discutia esta "estratégia contraofensiva". Argumentava ele que a necessidade de uma rede de informações era conseqüência da inevitabilidade da guerra total, uma guerra permanente cujo corolário seria a guerra subversiva ou revolucionária. Impunha-se desenvolver uma estratégia para neutralizar a infiltração e a guerra psicológica levadas a eleito pelo inimigo (o comunismo): "propaganda e contrapropaganda, ideologias tentadoras e slogans sugestivos para uso interno ou externo, persuasão, chantagem, ameaça e até 22

mesmo terror". Em conseqüência, a contra-ofensiva precisava dispensar as stratégias militares clássicas para concentrar-se em novas técnicas de contra-informação e contrapropaganda, desenvolvendo estratégias semelhantes de ação ofensiva. O desenvolvimento de uma nova estratégia em face da "guerra fria permanente" levaria ao que Golbery já então denominava "Grande Estratégia": Temos, assim, na cúpula da Segurança Nacional, uma Estratégia, por muitos denomiriada Grande Estratégia ou Estratégia Geral, arte da competência exclusiva do governo e que coorde-


A DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL E DESENVOLVIMENTO na, dentro de um Conceito Estratégico fundamental, todas as atividades políticas, econômicas, psicossociais e militares que visam concorrentemente à consecução dos objetivos nos quaís se consubstanciam, as aspirações nacionais de unidade, de segurança e de prosperidade crescente. A essa Estratégia se subordinam, pois, tanto a Estratégia Militar como a Estratégia Econômica, a Estratégia Política e uma Estratégia Psicossocial, as quais; se diferenciam umas das outras pelos seus campos particulares de aplicação, e pelos instrumentos de ação que lhes são próprios, embora nunca deixem de atuar solidariamente, seja no tempo, seja no espaço. Não fosse a Estratégia,

9

no fundo, como a própria guerra, indí23

visívele total. Golbery sustentava que o governo deveria organizar-se em funçãe de uma efetiva aplicação dessa Grande Estratégia. O Estado central precisa dotar-se de plenos poderes para organizar a infra-estrutura necessária à Segurança Nacional, e em especial para garantir a Segurança Interna. Ele desenvolveu um modelo teórico das estruturas governamentais que, em termos ideais, deveriam desincumbir-se desta tarefa; para isso, esquematizou as relações entre as diversas organizações de Estado encarregadas de levar a efeito a decisiva "Política de Segurança Nacional.":

FONTE: Goibery do Couto e Silva, Conjuntura Política Nacional, O Poder Executívo & Geopolítica do Brasil (Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1981), p. 26. A edifícação das estruturas "ideais" pressentidas pelo General Golbery do Couto e Silva foi confiada à rede de in-

xx

22

Golbery do Couto e Sfiva, CqnJuntura Política Xacional... op. cit., p. 25, da seçao Geopolítica do Brasil.

formação e repressão criada após a tomada do poder. Cerca de vinte anos após ter ele delineado esta política, seus conceitos foram reiterados pelo manual da ESG utilizado no treinamento básico daqueles que dirigiriam o aparato. Encontramos assim, nas definições contidas no Manual Bãsico da


MARÍA HELENA MOREIRA ALVES ESG, alguns dos principais conceitos a que recorreu Golbery em sua teorização da Grande Estratégia: A Política Nacional é o processo global orientador utilizado pelo governo para assegurar o pleno desempenho das funções primordiais do Estado (...). Seu conceito será, pois, de grande abrangência no tempo, voltado aos Objetivos Nacionais Permanentes da nação (...). (...) A Política Nacional se desdobra em Política de Desenvolvimento e em Política de Segurança, admitindo, respectivamente, os seguintes conceitos: Política Nacional de Desenvolvimento, integrada na Política Nacional, é a arte de orientar o Poder Nacional no sentido do seu fortalecimento global, visando à conquista e à manutenção dos Objetivos Nacionais. Política Nacional de Segurança, integrada na Política Nacional, é a arte de orientar o Poder Nacional, visando a garantir a conquista ou a manutenção xx

24

dos Objetivos Nacionais. Reunidas, a Política de Desenvolvimento e a Política de Segurança constituem a Política Nacional, também denominada Estratégia Nacional em outra parte do manual da ESG. O manual sintetiza ainda a Estratégia Nacional como "a arte de preparar e aplicar o Poder Nacional, considerados os óbices existentes ou potenciais, para alcançar ou manter os objetivos fixados pe25

la Política Nacional". Estes "óbices existentes ou potenciais” por sua vez, têm diversas origens, que vão da falta de recursos materiais ou problemas rios mercados internacionais a circunstâncias políticas

10 desfavoráveis, causadoras de "fatores adversos” "antagonismos" e "pressões" internos, Os diferentes graus de dificuldade com que se depara o Estado são cuidadosamente definidos no exame da Grande Estratégia contido no manual: Óbices são obstáculos de toda ordem –materiais e espirituais– que podem provir de condições estruturais ou conjunturais, resultantes da natureza ou da vontade humana, e que dificultam ou impedem o atingimento ou a manutenção dos Objetivos Nacionais. Fatores Adversos são óbices de toda ordem, internos ou externos, que se interpõem aos esforços da comunidade nacional para alcançar ou manter os Objetivos Nacionais. Antagonismos são óbices de modalidade peculiar, por manifestarem atividade deliberada, intencional e contestatória à consecução ou manutenção dos Objetivos Nacionais. Pressões são óbices de grau extremo em que a vontade contestatória se manifesta com capacidade de se 26

contrapor ao Poder Nacional. Dependendo de uma avaliação da conjuntura política, a Grande Estratégia deverá planejar ações contra-ofensivas especificamente destinadas a eliminar ou neutralizar os efeitos de cada um dos diferentes níveis ou graus de atividade de oposição. Variam as técnicas expostas no texto da ESG para o enfrentamento de cada nível de oposição. As técnicas contra-ofensivas incluem desde medidas de segurança rotineíras como a verificação de documentos, a vigilância e outros métodos de coleta de informação até medidas de emergência e a mobilização total do 26

23 24

25

Ibid. Ver Manual Básico da ESG, p. 273275. Ibid., p. 288.

Ibid., p., 278. ver também a discussão sobre os óbices nas páginas 288-289. Para uma análise dos óbices e suas relações com os antagonismos, fatores adversos e pressões, ver p. 278-280.


A DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL E DESENVOLVIMENTO poderio das Forças Armadas para enfrentar situações de "pressão", ou seja, de contestação organizada e efetiva à autoridade do governo. Isto ajuda a compreender, como veremos mais adiante, a violenta reação do Estado às greves de metalúrgicos de São Bernardo do Campo em 1980, assim como a subseqüente perseguição a movimentos sociais ligados à Igreja Católica expecialmente no campo e nas comunidades de base. Tais movimentos têni sido definidos como agentes de "pressões", o que exige total mobilização para neutralizar seus efeitos e o perigo que representam para a Política Nacional. A reação às "pressões" pode envolver o estabelecimento de "áreas de emergência" que permitam ao Estado valer-se de todo o seu poder de coerção. O Manual da ESG exemplifica como situações de "pressão" que exigem "Ações de Emergência" as resultantes "da efetivação ou iminência de guerra, insurreição, distúrbios civis, greves ilegais, inundações, incêndios e outras situações de calamidade públi27

ca". As principais diretrizes governamentais dizem respeito às diferentes ações contra-ofensivas capazes de superar os óbices. Estas também determinam as estratégias específicas para as diversas áreas envolvidas no controle de "anta-

gonismos" ou mesmo "pressões", definidas pelo Manual Básico como as estratégias política, econômica, psicossocial e militar. A Estratégia Política define as metas e diretrizes de Estado para a neutralização de óbices, antagonismos ou pressões na esfera política – o próprio Executivo, o Legislativo, o Judi28

ciário e os partidos políticos. A Estratégia Econômica ocupa-se igualmente dos setores privado e público da economia. Esta área é ainda subdividida em políticas específicas para os setores primário, secundário e terciário da economia. Essencialmente, a Estratégia Econômica trata de compilar as informações básicas necessárias a uma política coerente de desenvolvimento econômico, integrada à política de Se29

gurança Nacional. A Estratégia Psicossocial diz respeito, tal como é definida no manual, segundo os objetivos da Política de Segurança Nacional, às instituições da sociedade civil: a família, escolas e universidades, os meios de comunicação de massa, sindicatos, a Igreja, a empresa privada etc. Caberá à Grande Estratégia planejar estratégias 28

27

Uma ampla discussão das manobras de guerra a serem levadas a efeito para fazer frente a cada um dos diferentes níveis de distúrbios que podem resultar de situações ligadas a fatores adversos, óbices, antagonismos ou pressões pode ser encontrada in manual Básico da ESG, p. 291. 2". Esta citação é da página 293. No restante deste trabalho, acompanharernos a aplicação prática da estratégia contraofensiva voltada para a oposiçao em vários períodos, desde 1964.

11

29

Ampla discussão sobre a "Expressão Política" encontra-se ín Manual Básico da ESG, Seção I, "Expressão Política do Poder Nacional - O Poder Político", p. 303325. Esta referència aos quatro componentes principais da expressão política está à p. 310. O Setor econômico, ou o modelo económico, é detalhadamente analisado na Seção II: "Expressão Econômica do Poder Nacional - Poder Econôrnico” p. 329-351 do Manual Básico da ESG. ,Os conceitos mencionados nesta seção não diferem muito daqueles empregados nos primeiros textos dos autores da ESG, nos anos que antecederam a tomada do poder.


MARÍA HELENA MOREIRA ALVES

12 3. a qualidade e quantidade de pessoas que integram esses núcleos;

específicas para enfrentar óbices, antagonismos e pressões advindos de cada 30

uma dessas áreas. A Estratégia Militar, finalmente, deve controlar a Marinha, o Exército, a Aeronáutica e todas as corporações paramilitares da vasta es-

4. as repercussões emocionais provocadas pela sua atuação no seio da população;

31

5. a proporção entre o número de núcleos contestatórios e núcleos de mera oposição;

trutura militar brasileira. Para que surta o desejado efeito a contra-ofensiva em cada área de oposição potencial, impõe-se proceder a periódicas análises conjunturais que determinem a política apropriada a ser aplicada a cada alvo específico. Será possível então decidir que grau de coerção é exigido para o nível de oposição encontrada em cada um dos setores em questão na sociedade. A correta dose de coerção depende do grau de "inconforinismo" existente (oposição ou

6. a proporção entre eleitores inscritos nos partidos de situação e nos de oposição; 7. a proporção entre o número de votos obtidos pelos partidos de situação e oposição; 8. quantidade, qualidade e grau de aceleração das correntes de 33

32

contestação). O Manual Básico sugere que este seja determinado segundo os seguintes "índices": 1. a maior ou menor quantidade de núcleos de inconformismo; 2. o grau de intensidade de sua atuação;

30

31

32

A área psicossocial é debatida Na Seção III, "Expressão Psicossocial do Poder Nacional -Poder Psicossocial” p. 355-371 do Manual Básico da ESG. A área militar é abordada na Seção IV "Expressão Militar do Poder Nacional - Poder Militar" p. 375-410 do Manual Básico da ESG. Discutiremos mais pormenorizadamente o setor militar na análise do Aparato Repressivo do Estado de Segurança nacional. Manual Básico da ESG, p. 319, “Inconformismo (Oposição e ontestação)".

opinião pública. Quanto maior o potencial de organização e penetração dos núcleos de oposição na opinião pública, mais séria será a ameaça para o Estado. Num alto nível de organização, a oposição já não representa um "óbice" ou "atividade antagônica", entrando para a categoria mais séria da "pressão" e por isso exigindo maior grau de coerção. Em resumo, o planejamento e administração do Estado de Segurança Nacional implica o desenvolvimento de diretrizes governamentais que determinem políticas e estruturas de controle de cada área política e da sociedade civil. Para levar a efeito tal programa, tem sido necessário assumir pleno controle do poder de Estado, centralizá-lo no Executivo e situar em posiçõeschaves do governo os elementos mais integrados à rede de informação e à programação da Política de Segurança Interna. Examinaremos em capítulos posteriores como isto foi posto em prática e como os controles específicos para cada uma das áreas de oposição 33

Ibid.


A DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL E DESENVOLVIMENTO desenvolveram-se em constante relacionamento dialético com esta mesma oposição. 2. GEOPOLÍTICA: O PAPEL DO BRASIL NO CONTEXTO INTERNACIONAL O segundo elemento importante da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento é a maneira como encara o lugar específico do Brasil na arena de confronto das superpotências mundiais. O mais influente dos estudos geopolíticos a este respeito tem sido Geopolítica do Brasil, do General Golbery do Couto e Silva, cuja tese resumiremos a seguir. Segundo Golbery, o destino de uma nação é em grande parte determinado por condições geográficas. Não só o poder no país e sua capacidade de atingir pleno desenvolvimento econômico dependem dos recursos de que é dotado, como até mesmo as alianças políticas e estratégicas entre os países têm relação com suas respectivas posições geográficas, e são por elas parcialmente determinadas. Num clima de guerra total e permanente, não há lugar para a neutralidade. As superpotências estão empenhadas numa luta de vida e morte; o tempo e as barreiras geográficas anulam-se diante da moderna tecnologia de guerra; como não é possível permanecer de fora, todos os países devem tomar partido. A escolha deste já é em grande parte geograficamente determinada. Em vista de sua posição geográfica, o continente latinoamericano está claramente comprometido com o campo dos Estados Unidos, permanecendo inevitavelmente em sua esfera de influência e controle. 0 poderio econômico do "Gigante do Norte" anula a possibilidade de neutralidade para a América Latina; o -destino manifesto impele os países latinoamericanos a se juntarem aos Estados Unidos na defesa geral do Ocidente

13

contra a ameaça de expansão comunista, representada pelas ambições impe34

rialistas da União Soviética. O General Golbery sustenta que a América Latina é de decisiva importância no quadro das alianças ocidentais, especialmente para os Estados Unidos, e que, no interior da América Latina, o Brasil é o parceiro mais importante. Ele chega a afirmar que os países ocidentais industrializados e os Estados Unidos "não podem prescindir das Américas Central e do Sul" por determinadas razões, entre as quais a necessidade de apoio latino-americano nas Nações Unidas, o abastecimento em materiais estratégicos, o controle e proteção do tráfego marítimo e de rotas oceânicas para a África, a segurança coletiva e a disponibilidade de recursos demográficos para operações militares fora do 35

continente. A superioridade do Brasil nesta parceria deriva de sua posição geográfica (em termos de controle do Atlântico Sul), de seus vastos recursos naturais –especialmente minerais estratégicos– e de sua grande população. Embora aceite a necessidade de subordinação ao "Gigante do Norte” Golbery reivindica a posição de barganha de um aliado privilegiado. Argumentando que o Brasil deve fixar um alto preço por sua situação privilegiada, Golbery afirma: Quando vemos os EUA negociarem, a peso de dólares e auxílios vultosos de toda a espécie (...) o apoio e a 34

35

Este é um breve resumo de extensa e complicada teoria sustentada pelo general Goibery Do Couto e Silva. Para maiores detalhes -inclusive mapas, gráficos, estratégia e planejamento militar- ver Galbery do Couto e Silva, Conjuntura Política Nacional... op. cit., seção Geopolítica do Brasil, especialmente p. 95-138. Ibid., p. 246.


MARÍA HELENA MOREIRA ALVES cooperação de povos ou indecisos ou francamente hostis da Europa Ocidental, do Oriente Médio e da Ásia - justo nos parece façamos valer os trunfos altamente valiosos de que dispomos, para obter os meios necessários ao exercício de uma missão e um dever que decorrem da própria terra que nossos avós desbravaram e defenderam mesmo com seu sangue contra o invasor intruso de eras passadas. Também nós podemos invocar um "destino manifesto", tanto mais quanto ele não colide no Caribe com os de nossos irmãos maio36

res do norte... Este ponto de vista é amplamente compartilhado pelos militares. Permite compreender que o Brasil tenha seguido uma política externa independente, chegando às vezes a entrar em conflito com o governo dos Estados Unidos. Os líderes militares brasileiros acreditam que o mais alto preço deve ser pago pelo constante apoio do Brasil e sua integração à Aliança Ocidental. Além disso, é evidente que os militares nutrem eles mesmos certas idéias subimperialistas, especialmente no que diz respeito às relações entre o Brasil e outros países da América Latina. Desenvolveram, assim, uma "visão pragmática das relações exteriores". Os militares com toda evidência acreditam no "destino manifesto" do Brasil, em sua posição geograficamente estratégica e em seu potencial para alcançar uma posição de superpotência. 3. O MODELO ECONÔMICO DA DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL E DESENVOLVIMENTO O terceiro elemento importante da Doutrina de Segurança Nacional é o relativo ao desenvolvimento econômico. Uma análise dos textos produzidos na ESG contribuirá para esclarecer o mo-

14 delo econômico contido na Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento. Em primeiro lugar, os dois componentes são associados: não pode haver Segurança Nacional sem um alto grau de desenvolvimento econômico. A segurança de um país impõe o desenvolvimento de recursos, produtivos, a industrialização e. uma efetiva utilização dos recursos naturais, uma extensa rede de transportes e comunicações para integrar o território, assim como o treinamento de força de trabalho especializada. Desse modo, estão entre os fatores mais importantes para a segurança de um país sua capacidade de acumulação e absorção de capital, a qualidade de sua força de trabalho, o desenvolvimento científico e tecnológico e a 37

eficácia de seus setores industriais. o desenvolvimento industrial é portanto requisito indispensável da política econômica nacional. o manual da ESG define como meta do desenvolvimento econômico a conquista de completa integração e completa segurança nacional, em especial considerando-se que um país subdesenvolvido é particularmente vulnerável à estratégia indireta do inimigo comunista. Uma estratégia contra-ofensiva possível consiste, assim, em promover rápida arrancada do desenvolvimento econômico, para obter o apoio da população. Embora se ja este o aspecto mais acentuado nos textos de aula da ESG, os escritos do General Golbery concentram-se num aspecto ligeiramente diferente do desenvolvimento econômico. Em termos da defesa global do continente e do país, no contexto da estratégia de defesa ocidental, o desenvolvimento econômico e infra-estrutural do Brasil é essencial para compensar a extrema vulnerabílidade de seus amplos 37

36

Ibid., p. 52.

Manual Básico da ESG, op. cit., P. 338.


A DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL E DESENVOLVIMENTO espaços vazios. Golbery denomina as extensões de terras inaproveitadas e despovoadas de "vias de penetração” que devem ser eficazmente "tamponadas". A política econômica que defende, assim, não se destina a obter o apoio da população, mas a integrar o território nacional, o que seria feito em três fases distintas: 1ra fase: articular firmemente a base ecumênica da nossa proteção continental, ligando o Nordeste e o Sul ao núcleo central. do país, ao mesmo passo que garantir a inviolabilidade da vasta extensão despovoada do interior pelo tamponamento eficaz das possíveis vias de penetração; 2da fase: impulsionar o avanço para noroeste da onda colonizadora, a partir da plataforma central, de modo a integrar a penísula CentroOeste no todo ecumênico brasileiro; 3ra fase: inundar de civilização a Hiléia amazônica, a coberto dos nódulos fronteiriços, partindo de uma base avançada constituída no Centro-Oeste, em ação coordenada com a progressão E.-O. segundo o 38

eixo do grande rio. O aperfeiçoamento infra-estrutural deve incluir redes de comunica-ções, rodovias e ferrovias que cortem a região. Os serviços ferroviários devem inicialmente ser retirados ao controle de subversivos para submeterem-se a cui-

39

dadosa administração. O pais precisa também desenvolver o potencial de navezacão de seus rios e garantir a segu40

rança de seus portos oceânicos. Tais medidas seriam efetivadas na primeira fase da estratégia de desenvolvimento econômico. A segunda fase envolveria a ocupação do "heartland" no interior da Região Central, que inclui os Estados de Mato Grosso e Goiás e o vale do Rio São Francisco, assim como os vales dos grandes tributários do Amazonas, especialmente o Araguaia e o 41

Tocantins. A terceira fase. passaria então do "heartlancl" interior para a conquista da região ama-zônica. Desse.modo, todo o esforço de desenvolvimento e segurança deve partir do firme controle das importantes planícies centrais e do pólo de Manaus, de maneira a formar a proteção de uma. "área 42

concêntrica de manobra". A integração e o desenvolvimento das planícies interiores e da região amazônica são considerados necessários para todas as “manobras de Segurança Nacional", impondo que se dê especial atenção a estas regiões, por muito tempo negligenciadas e ainda vulneráveis à "penetração". É fundamental ter em mente que, na Doutrina de Segurança Nacio-nal, a defesa militar, mais que as necessidades materiais básicas da população, é considerada o principal objetivo do desenvolvimento econômico. o desenvolvimento das vastas extensões do interior brasileiro e da região amazônica é buscado principalmente para "tamponar" possíveis vias de penetração, e não para elevar os níveis de vida das 39 40

38

Golbery do Couto e Silva, Conjuntura Política Nacional, op. cit., seção Geopolítica do Brasil, p. 131-132.

15

41 42

Ibid., p. 132. Ibid. Ibid., p.132-133. Ibid., p. 133.


MARÍA HELENA MOREIRA ALVES populações dessas áreas. Isto se aplica em especial aos programas de desenvolvimento das regiões das planícies centrais ao longo das margens dos rios Araguaia e Amazonas. Como é sabido, encontram-se precisamente nas regiões central e amazônica as maiores riquezas minerais do Brasil, um dos "trunfos" estratégicos do General Golbery. o principal objetivo do modelo econômico é refor çar o potencial produtivo do país para aumentar seu poder de barganha na arena geopolítica global. As vantagens que daí pudessem decorrer para a população são secundárias para as considerações de ordem geopolítíca que determinam a fixação de prioridades. Para aumentar a produção industrial, é necessário estimular e desenvolver um complexo industrialmilitar. o modelo considerado mais desejável para a industrialização é o capitalista. o manual da ESG analisa explicitamente as relações capitalistas, dando especial atenção às contradições e problemas levantados pela teoria marxista. Chega à conclusão de que Marx estava errado principalmente porque não anteviu. a potencialidade reguladora do poder de Estado, desenvolvida na economia keynesiana, corno maneira de gerir o sistema capitalista e eliminar os problemas conservando suas vantagens. Os teóricos brasileiros da Doutrina de Segurança Nacional rejeitam abertamente o capitalismo de laissez-faire. Não acreditam na "mágica do mercado", considerando-a uma forma ultrapassada de desenvolvimento econômico capitalista, nem viável nem desejável atualmente, em especial no contexto de um país em desenvolvimento. É neste ponto que os teóricos brasileiros mais parecem afastar-se de seus colegas chilenos e argentinos. Eles sustentam a necessidade de um Estado forte, capaz de aplicar uma série de incentivos e penalidades fiscais para regular o modelo de desenvolvi-

16 mento econômico numa economia quase toda centralmente planejada. o capitalismo moderno, na ótica da ESG, deve buscar um modelo baseado em forte interferência do Estado rio planejamento econômico nacional, na produção direta e no investimento infra-estrutural, com eventual apropriação direta dos recursos naturais por este mesmo Es43

tado. o modelo mais se aproxima, portanto, do capitalismo de Estado que da variante de laissez-faire. o "capitalismo liberal" é uma insensatez que leva diretamente aos problemas estudados por Marx; o potencial regulador do Estado permite superar tais contradições e realizar o poder de desenvolvimento da capacidade industrial de um 44

país. As práticas do regime militar desde 1964 têm sido razoavelmente coerentes com esta análise. A participação do Estado no planejamento e regulamentação da economia atingiu níveis inéditos de centralização a partir daquele ano. Também aumentou consideravelmente o envolvimento do Estado na produção direta e na exploração de recursos minerais, através de empresas 45

estatais.

43

44 45

Manual Básico da ESG Op. cit., p. 343. Ibid., Capítulo IV, p. 147-167. Este ponto será mais; detalhadamente examinado em capitulas posteriores. É Interessante assinalar que tal interpretação econômica resultou no que tem sido chamado de "tripé econõmico" brasileiro, constituído de uma aliança entre o capital de Estado, o capital privado nacional e o capital das corporações multinacionais,


A DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL E DESENVOLVIMENTO

17

Em resumo, o modelo econômico congrega os seguintes principais elementos: 1. Trata-se de um modelo de desenvolvimento capitalista baseado numa aliança entre capitais de Estado, multinacionais e locais. o manual da ESG considera a contribuição das corporações multinacionais positiva para o desenvolvimento econômico de um país, apesar de poder gerar 46

considerável oposição ínterna. 2. A segurança, como elemento do conceito de "desenvolvimento com segurança", implica a necessidade de controlar o meio político e social, de modo a garantir um clima atraente para o investimento multinacional. A paz social também é necessária para a obtenção de taxas máximas de acumulação de capital, permitindo que o rápido crescimento econômico forje uma "arrancada" desenvolvimentista. Finalmente, o elemento de "segurança" do modelo impõe a ocupação das planícies centrais dos Estados que margeiam os rios Araguaia, São Francisco e Amazonas, para garantir a defesa das fronteiras e "tamponar" vias de penetração que podem ser vulneráveis à agressão comunista. 46

Ver, por exemplo, p. 338: Cabe menção especial às empresas multinacionais, inegáveis exemplos de eficácia e eficiência econômica. Dotadas de grande flexibilidade organizacional, constituem poderosos compleitos capazes de exercer ponderável influência no campo econômico (...). A expansão atual das multinacionais; vem sendo objeto de crescente preocupação, mesmo nas nações inais desenvolvidas, por ma potencialidade de gerar óbices. Há, contudo, consenso no sentido de considerar sua contribuição positiva (...).

3. O desenvolvimento econômico não está voltado para as neces sidades fundamentais, e a política de desenvolvimento não se preocupa muito com o estabelecimento de prioridades para a rápida melhoría dos padrões de vida da maioria da população. Os programas de educação, segundo a ESG, devem ocupar-se sobretudo com o treinamento de técnicos que participarão do processo de crescimento econômico e industrialização. Outros programas voltados paran necessidades básicas, como habitação de baixo custo, saúde pública e educação primária, são considerados menos prioritários. Em última instância, o modelo econômico destina-se a aumentar o potencial do Brasil como potência mundial. Para tais metas primordiais e relevantíssimas, segundo enfatiza o manual da ESG, pode ser necessário o sa47

crifício de sucessivas gerações.

47

Ibid., p. 339: As nações que alcançaram rápido desenvolvimento realizaram, ao longo de sua formação histórica e econômica, considerável esforço de poupança, Este esforça pode significar diferentes graus de sacrifício de sucessivas gerações, uma vez que toda poupança induzida corresponde a urna redução de consumo. Quando uma política econômico-financeira, compatível com os Objetivos Nacionais Permanentes, conduz a um sacrifício do tipo mencionado, há sempre certo grau de consenso geral, senão ostensivo, ao menos admitida, embora possa ocorrer relativo desequilibrio na distribuição desse sacrifício.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.