Observatório 35 – Da web 2.0 à web 3.0

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Revista

#35

Da web 2.0 à web 3.0: a economia criativa em transformação e os desafios da regulação

Memória e Pesquisa / Itaú Cultural

Da web 2.0 à web 3.0: a economia criativa em transformação e os desafios da regulação: Economia Criativa / organizado por Itaú Cultural ; vários autores. - São Paulo : Itaú Cultural, 2023. Il ; 1. ed, vol. 35

ISBN: 978-65-88878-77-4

1. Economia criativa. 2. Arquivos digitais. 3. Web. 4. Digital. 5. Revista observatório. I. Itaú Cultural. II. Fundação Itaú.

III. Título.

CDD 306

Bibliotecária Geovanna de Barros Kustovich CRB-8/01063

ISSN 2447-7036

contato: observatorio@itaucultural.org.br

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O Itaú Cultural integra a Fundação Itaú para Educação e Cultura. Saiba mais em fundacaoitau.org.br

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Revista OBS 35 |

A publicação propõe um percurso de entendimento das diferenças entre as eras da internet – da web 1.0 à web 3.0 –, além de criar um contexto de reflexão sobre como o Brasil tem lidado com certas questões relativas a essa evolução.

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Da web 1.0 à web 3.0 e além por Sérgio Branco

Uma Geopolítica Crítica do Direito Autoral por Cláudio Lins de Vasconcelos

Relações entre a desindustrialização brasileira e a indústria criativa por Filipe da Silva, Gustavo Möller e Leandro Valiati

Música nas webs 2.0 e 3.0: do streaming aos tokens por Daniela Ribas Ghezzi

Os desafios da regulação do vídeo sob demanda no contexto da web 3.0 por Alessandra Meleiro e Debora Ivanov

A participação cultural na era digital. O que medir e por quê?, por Pier Luigi Sacco

O impacto da digitalização nos modelos de negócio do setor editorial por Filipe da Silva e Gustavo Möller

O NFT como verbo por Gustavo Perino

NFT e o direito por Gustavo Martins de Almeida

Desafios de privacidade e proteção de dados no metaverso por Felipe Palhares

Do on-line ao on-chain: como as DAO expressam novidade em governança, monetização e comunidades colaborativas na web 3.0 e na era pós-digital por Filipe Santos

Inteligência artificial: fundamentos e relação com a arte por Dora Kaufman

Ensaio artístico por Rejane Cantoni

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Apresentação institucional Carta ao leitor
Sumário

Revista Observatório 35 |

Texto institucional

Desde a sua criação, em 1987, o Itaú Cultural (IC) investe em pesquisas sobre a relação entre arte e tecnologia. Nada mais coerente que a evolução das tecnologias computacionais tenha influência importante na maneira como a organização produz pesquisas, exposições e outras experiências no âmbito cultural. Tendo em vista esse pano de fundo, a edição 35 da Revista Observatório Itaú Cultural coloca-se como meio de reflexão sobre como a web 3.0 – novo caminho traçado pela internet – tem impactado os diversos segmentos da economia criativa e como os aspectos jurídicos e regulatórios são relevantes para se pensar a sustentabilidade do setor no longo prazo.

Para além de se aprofundar nos dados e nas reverberações da evolução da internet no âmbito socioeconômico, a revista também constrói um panorama de uma nova experiência de fruição do objeto artístico que vem surgindo e trazendo novos desafios quanto ao seu financiamento, sua regulamentação e seu consumo. Experiências imersivas, por exemplo, são cada vez mais comuns e engajam cada vez mais o público.

A produção cultural tem ganhado força na web 3.0. Antenado com as atividades do setor, em meados de 2022, o IC propôs um seminário para refletir sobre os caminhos, os limites e as possibilidades da arte na web 3.0, assim como inaugurou o seu primeiro ambiente imersivo. No mesmo ano, a organização também lançou um chamamento para projetos de arte e cultura nesse ambiente virtual. Além de apoiar e fomentar a expansão de espaços de criação artístico-cultural, a iniciativa visa ampliar as discussões e as reflexões sobre os limites da web 3.0, assim como sobre seus possíveis entraves.

Os NFT, a inteligência artificial e as criptomoedas têm colocado em pauta o comportamento do contexto cultural em um ambiente de governança descentralizada, base da web 3.0. E, nesse sentido, é de extrema relevância pensar sobre a regulamentação em um ambiente de difícil monitoramento. Antes de ser uma restrição, o processo regulatório é necessário para criar equidade no universo cultural, evitando desigualdades, insegurança e falta de autonomia por parte dos artistas.

Ao fomentar ações, diálogos e debates sobre o tema, o IC nutre um repertório conceitual que fortalece os laços entre os diferentes atores do campo da cultura: artistas, público, produtores, pesquisadores, desenvolvedores e criadores de novas tecnologias computacionais.

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Revista Observatório 35 | Carta ao leitor

A maneira como acessamos os meios culturais, como uma música, um filme, um livro ou um quadro, há tempos é completamente atravessada pela internet. A evolução para a web 3.0, no entanto, tem intensificado processos e relações que demandam um olhar atencioso no que se refere, por exemplo, ao seu impacto na cadeia produtiva da economia criativa e a como se dão os processos de regulamentação e proteção dos dados do usuário em um cenário ainda nebuloso. A edição 35 da Revista Observatório convida a um mergulho no tema.

A publicação inicialmente propõe um percurso de entendimento das diferenças entre as eras da internet – da web 1.0 à web 3.0 –, além de criar um contexto de reflexão sobre como o Brasil tem lidado com certas questões relativas a essa evolução. Como o surgimento de um modelo de produção mais intensivo em conhecimento impacta o processo de desindustrialização do país? Como países em desenvolvimento lidam com a proteção da propriedade intelectual? Como as disparidades de infraestrutura e letramento digital representam um desafio para o desenvolvimento inclusivo?

Para além dessas questões, a revista concentra-se também em particularidades da web 3.0, cuja principal característica é a descentralização da governança, em oposição ao modelo centralizado nas grandes empresas de tecnologia que atualmente dominam as redes sociais e demais plataformas. Tal descentralização garante maior autonomia e interação, mas desafia aspectos jurídicos, dada a dificuldade de monitoramento. Nesse sentido, crimes cibernéticos, falsificações e discursos de ódio, por exemplo, podem se tornar mais recorrentes. De que forma regulamentações mais claras podem contribuir para garantir melhores experiências e os direitos dos usuários? Os textos da revista trabalham de maneira transversal e fomentam essa reflexão.

O cenário da web 3.0 é também palco do surgimento dos NFT, do blockchain e das criptomoedas – conceitos aprofundados ao longo da publicação –, que têm revolucionado a fruição artística, a relação com o público e o cenário econômico. A Revista Observatório 35 aborda o tema e sua relação com os cenários da música, do audiovisual e das artes visuais.

Os questionamentos são muitos e as respostas, por ora, nem tanto. Que esta edição sirva para guiar sua jornada de conhecimento. Desejamos uma boa leitura e que o mergulho seja produtivo!

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Da web 1.0 à web 3.0 e além

POR SÉRGIO BRANCO RESUMO

A internet faz parte de nossas vidas há pelo menos 20 anos. Contudo, nem sempre da mesma forma. Teóricos do assunto apontam ao menos três ondas de desenvolvimento da internet comercial, popularmente chamadas de web 1.0, web 2.0 e web 3.0. Neste texto, vamos apresentar os principais elementos de cada uma delas, olhando ainda brevemente para o futuro e os dilemas que precisamos enfrentar.

INTRODUÇÃO

Quando pensamos na internet, o que nos vem à mente em primeiro lugar são muito provavelmente redes sociais e aplicativos para todo tipo de atividade. E, mesmo para pessoas que, como eu, chegaram à vida adulta antes do advento da internet comercial, é estranho pensar em um mundo no qual essa tecnologia não estava à nossa disposição. A verdade é que nos acostumamos rapidamente a novas dinâmicas sociais e o mundo pretérito acaba por se embaçar numa névoa de esquecimento. Como era sua vida antes do Google?

Nosso objetivo com este texto é, portanto, apresentar um breve panorama da internet diante dos marcos conceituais de sua evolução. Assim, trataremos das chamadas web 1.0, 2.0 e 3.0, apresentando suas principais características e como foram capazes de impactar o mundo à sua volta. Sabemos, contudo, que historicamente a internet é uma tecnologia recente e que ainda vai passar por inúmeras transformações que, por sua vez, trarão novas ondas de avanço e de incertezas. Por isso, encerramos o texto com algumas das questões que teremos de enfrentar no futuro breve.

A WEB 1.0

A web 1.0 é a internet comercial em seus primeiros anos, na década de 1990 –quem viveu lembra. O conteúdo era estático, institucional e unidirecional. Ou seja, naquele momento histórico, as páginas da internet eram oferecidas no mesmo modelo de acesso para qualquer tipo de informação ou conteúdo – de poucos para muitos. É possível fazer um paralelo com a indústria da arte. Até então, as editoras de livros, as gravadoras e as produtoras de filme escolhiam as obras que estariam à disposição do público, limitado a consumi-las. Tratava-se de um caminho de mão única.

Pedro Bento compara a web 1.0 a uma grande biblioteca. Segundo o autor, até cerca de 2004, a rede funcionava essencialmente de forma unidirecional e para leitura, sendo, grosso modo, estática e fundamentalmente assentada “numa dinâmica de páginas que permitiam aceder a outras páginas”.1 Ele comenta ainda:

Assim, este universo funcionava muito à base de hiperligações que levavam o utilizador de uma página estática para outra, não sendo possível fazer mais nada que não fosse ler ou olhar para as imagens (CORMODE e KRISHNAMURTHY, 2008).

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O conteúdo era estático, institucional e unidirecional. Ou seja, naquele momento histórico, as páginas da internet eram oferecidas no mesmo modelo de acesso para qualquer tipo de informação ou conteúdo –de poucos para muitos

Daí a grande popularidade de portais como o MSN ou o Sapo, onde era possível consultar o tempo, as principais notícias ou os resultados desportivos. Vivia-se a prática de uma sociedade de informação, onde a rede servia para retirar conteúdos e o utilizador era um mero espectador (GIL, 2014). A web funcionava no mesmo sistema da televisão, ou seja, a informação fluía apenas num sentido. Se, como iremos ver, os social media podem ser comparados ao convívio em cafés, bancos de jardim ou bares, a web

1.0 assemelha-se a uma ida à biblioteca: podemos ler tudo o que quisermos, mas é preciso manter o silêncio.

Como se percebe, tratava-se de uma era caracterizada pela não interação entre os usuários da rede. Dentre os principais serviços que podemos identificar com a web

1.0 estão Altavista, Geocities, Cadê, Hotmail, Dmoz, Yahoo! e Google.2

A WEB 2.0

O termo web 2.0 foi concebido por Dale Dougherty e Tim O’Reilly3 quando, em 2004, eles perceberam que muitas novas funcionalidades da internet estavam modificando substancialmente a experiência do usuário na rede mundial de computadores.4

A principal característica da web 2.0 é a produção de conteúdo por parte do usuário.

Para Pedro Bento, na web 2.0 “não existe uma delimitação entre o produtor e o consumidor de conteúdo, assistindo-se a uma aglutinação dos dois papéis por parte do utilizador comum”. Trata-se, portanto, de “uma rede de leitura e de escrita, ligada às plataformas que permitem a partilha de informação, design centrado no utilizador e colaboração entre todos os que frequentam a rede (HIREMATH e KENCHAKKANAVAR, 2016)”.5

Datam dessa época o surgimento das redes sociais (como o Orkut, que começa a operar em 2004 e que nesse mesmo ano alcança a marca de 700 mil usuários no Brasil)6 e a prática de publicar em blogs, 7 que eram diários virtuais, com a paradoxal diferença de que eram públicos, disponíveis, na maioria das vezes, para qualquer pessoa que os acessasse na internet. Também podemos associar à web 2.0 a criação de projetos de conteúdo colaborativo, como a Wikipédia.

A WEB 3.0

A web 3.0 “não é uma reinvenção, mas antes uma progressão, melhoramento ou otimização das ferramentas e canais que já existem”, 8 afirma Pedro Bento.

E segue: 9

Esta nova geração da internet vai assentar em tecnologias já implementadas, alterações em tecnologias existentes e outras que irão ser ainda criadas. A chave que abre esta nova porta tecnológica prende-se com colocar as máquinas a “perceber” os conteúdos, em vez de apenas os mostrar, isto é, que as máquinas aprendam o que os utilizadores querem e sugiram a informação adequada para o que estes procuram (MIRANDA, ISAÍAS e COSTA, 2014). Com efeito, a denominada “web inteligente” vai resolver a falta de estrutura e organização da web 2.0, ligando a in-

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formação de fontes e sistemas díspares para assegurar um cenário mais eficiente, valioso e amigo do utilizador (YEN, ZHANG e PARK, 2015).

É muito comum que a web 3.0 seja referida como “web semântica”, justamente porque o que se busca com ela é dar sentido aos dados e às informações dispostos de modo aleatório na web 2.0. Para Eduardo Magrani, a web 3.0 usará a internet para cruzar dados. Assim, “informações poderão ser lidas pelos dispositivos e estes conseguirão fornecer informações mais precisas”.10 Para o autor, embora o conceito de web 3.0 seja fluido e incerto, “já apresenta algumas características que o distinguem das ondas anteriores. A principal delas são os novos polos de conexão, em que objetos interagem com pessoas e também com outros objetos; por isso a relação com a ideia de internet das coisas”.11 E afirma:12

Com a internet semântica, os dispositivos serão capazes de obter e interpretar as informações fornecidas pelos usuários. Agregando essas informações pessoais, as plataformas poderão individualizar os resultados. Exemplificando: mesmo que duas pessoas façam uma pesquisa usando os mesmos termos, os resultados serão diferentes, pois a busca levará em conta também o histórico e o contexto de cada indivíduo. A web 3.0 e a internet semântica se sustentarão nas enormes bases de dados que serão criadas conforme os clientes utilizem as plataformas dotadas com as tecnologias dessa era.

São características da web 3.0, ainda, a conectividade onipresente, as redes integradas e descentralizadas, as tecnologias de código aberto e os cadastros integrados, nos quais é possível usar apenas uma conta para acessar variados serviços.13 Podemos adicionar à lista também os wearables (tecnologias vestíveis)14 e os assistentes pessoais, por exemplo.

E ALÉM?

É muito difícil (e talvez pouco recomendável) analisar o momento histórico enquanto ele ainda é vivido. Não obstante, nem bem sentimos os efeitos da web 3.0, ainda em pleno desenvolvimento, e há quem fale em web 4.0 e mesmo em web 5.0, 15 16 que estariam fortemente associadas ao uso da inteligência artificial e à conexão constante entre máquinas e humanos.

São características da web 3.0, ainda, a conectividade onipresente, as redes integradas e descentralizadas, as tecnologias de código aberto e os cadastros integrados, nos quais é possível usar apenas uma conta para acessar variados serviços.

Independentemente do grau de desenvolvimento da internet em que queiramos classificar nossos problemas, a verdade é que os desafios para os próximos anos não são simples. A ascensão das redes sociais (típica da web 2.0), associada à personalização de conteúdo e ao uso massivo de algoritmos (um prenúncio do poder da web 3.0), contribuiu, como sabemos, para a disseminação de desinformação e de discurso de ódio, com sua inevitável consequência política.

O Brasil vem debatendo importantes projetos de lei para regular temas que serão o cerne das disputas relacionadas à internet nos próximos anos. Um deles é o Projeto de Lei nº 2.630, de 2020, popularmente conhecido como PL das Fake News. 17

O tema envolve não apenas o compartilhamento de desinformação, mas também

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Não obstante, nem bem sentimos os efeitos da web 3.0, ainda em pleno desenvolvimento, e há quem fale em web 4.0 e mesmo em web 5.0.

a moderação de conteúdo nas redes sociais e nas demais plataformas na internet. A liberdade de expressão se tornou um assunto incontornável, especialmente com tantas pessoas que fazem uso da internet para ganhar seu sustento. Contudo, não é trivial encontrar a linha demarcatória do que pode e do que não pode ser feito e dito na internet. E o assunto se torna ainda mais candente quando a tomada de decisão se dá por algoritmos e sistemas informatizados.

Outro assunto objeto de um projeto de lei (PL nº 21/20) é a inteligência artificial.18 O país já tem uma Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial, e esse debate regulatório precisa estar alinhado com as práticas internacionais, a dignidade humana e, claro, o desenvolvimento da internet que esperamos para os próximos anos.

CONCLUSÃO

Na primeira década deste século XXI, os direitos autorais foram o grande tema de debate sobre a internet. É só lembrar as discussões acerca de plataformas como o Napster e a busca por novos modelos de negócio que pudessem remunerar autores dentro de um cenário de acesso cada vez mais facilitado às obras.

Na década seguinte, o tema a ascender ao centro do debate foi a privacidade e a proteção de dados. Com a entrada em vigor da Lei nº 13.709, de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD), o Brasil passou a integrar o grupo de países que contam com regulação própria sobre o tema.

Agora, olhamos para outros problemas. Como regular moderação de conteúdo, fake news, deep fake, decisões por algoritmos, inteligência artificial, blockchain e todas as novas funcionalidades que, nem bem nos acostumamos às que conhecemos, vêm se juntar a estas? O avanço veloz da tecnologia impõe ao direito a inglória tarefa de encontrar soluções para problemas que ainda não compreendemos ou que nem sequer sabemos ser um problema. Talvez, um dia, uma web para além da semântica ou da transcendente nos ajude com soluções criativas para os dilemas que suas vantagens, ainda que indiretamente, trazem.

COMO CITAR ESTE ARTIGO

BRANCO, S. Da web 1.0 à web 3.0 e além. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 35, 2023.

SÉRGIO BRANCO

Possui graduação em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), pós-graduação em cinema documentário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV Rio) e mestrado e doutorado em direito civil pela Uerj, com especialização

em propriedade intelectual pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

É cofundador e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio) e sócio da Rennó Penteado Sampaio Advogados.

NOTAS

1. BENTO, Pedro. Uma realidade desconhecida que conhecemos muito bem. Os desafios do marketing futuro à luz da web 3.0.

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2017. Dissertação (Mestrado em Publicidade e Marketing) – Escola Superior de Comunicação Social, Instituto Politécnico de Lisboa, Lisboa, 2017. p. 39. Disponível em: bit.ly/3r8hAbx. Acesso em: 4 maio 2023.

2. Ver: https://ex2.com.br/blog/web1-0-web-2-0-e-web-3-0-enfim-oque-e-isso/. Acesso em: 28 ago. 2022.

3. Fundadores da O’Reilly Media, empresa de educação e conteúdo.

4. Ver: https://www.oreilly.com/ pub/a/web2/archive/what-isweb-20.html. Acesso em: 28 ago. 2022.

5. BENTO, Pedro. Uma realidade desconhecida que conhecemos muito bem. Os desafios do marketing futuro à luz da web 3.0. 2017. Dissertação (Mestrado em Publicidade e Marketing) – Escola Superior de Comunicação Social, Instituto Politécnico de Lisboa, Lisboa, 2017. p. 39. Disponível em: bit.ly/3r8hAbx. Acesso em: 4 maio 2023.

6. Ver: https://www.tecmundo.com. br/mercado/132464-historiaorkut-rede-social-favorita-dobrasil-video.htm. Acesso em: 28 ago. 2022.

7. O termo é de origem americana, proveniente da contração das palavras web (página na internet) e log (diário de navegação).

O termo original seria weblog, mas, com o tempo, acabou sendo abreviado para blog Ver: SCHITTINE, Denise. Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. p. 60.

8. BENTO, op. cit., p. 44.

9. Ibid., p. 45.

10. MAGRANI, Eduardo. Internet das coisas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2018. p. 68.

11. Ibid., p. 68-69.

12. Ibid., p. 71.

13. Ibid., p. 72.

14. Ver, por exemplo: https:// usemobile.com.br/wearable/ Acesso em: 28 ago. 2022.

15. SCHROEDER BALD KLEIN, Júlia; ADOLFO, Luiz Gonzaga. A web 4.0 e os riscos à democracia. Em Tempo, [s. l.], v. 20, n. 1, nov. 2020. Disponível em: https://revista. univem.edu.br/emtempo/article/ view/3132/941. Acesso em: 28 ago. 2022.

16. Ao mesmo tempo, o teórico Pierre Lévy afirma que as ciências humanas ainda estão na Idade Média: https://www1.folha.uol.com. br/ilustrada/2019/09/tecnologiapode-tirar-ciencias-humanas-daidade-media-diz-pierre-levy.shtml Acesso em: 28 ago. 2022.

17. Para saber mais, recomendamos ler: INSTITUTO DE TECNOLOGIA E SOCIEDADE DO RIO. 9 pontos de atenção sobre o PL das Fake News (PL 2630/20). ITS Rio, Rio de Janeiro, 31 mar. 2022. Disponível em: https://itsrio.org/ pt/publicacoes/9-pontos-deatencao-sobre-o-pl-das-fakenews-pl-2630-20/. Acesso em: 4 maio 2023.

18. Para saber mais, recomendamos ler: DRUMMOND, Matheus; CARNEIRO, João Víctor. Panorama regulatório de inteligência artificial no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio, 2022. Disponível em: https://itsrio.org/wp-content/ uploads/2022/04/RelatorioPanorama-IA.pdf. Acesso em: 4 maio 2023.

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REFERÊNCIAS

BENTO, Pedro. Uma realidade desconhecida que conhecemos muito bem. Os desafios do marketing futuro à luz da web 3.0. 2017. Dissertação (Mestrado em Publicidade e Marketing) –Escola Superior de Comunicação Social, Instituto Politécnico de Lisboa, Lisboa, 2017. Disponível em: https://repositorio.ipl.pt/ bitstream/10400.21/8474/1/Disserta%C3%A7%C3%A3oPedroBENTO. pdf. Acesso em: 4 maio 2023.

CORMODE, G.; KRISHNAMURTHY, B. Key differences between web 1.0 and web 2.0. First Monday, [s. l.], v. 13, n. 6., 2008.

GIL, H. A passagem da web 1.0 para a web 2.0 e… web 3.0: potenciais consequências para uma “humanização” em contexto educativo. Repositório Científico do Instituto Politécnico de Castelo Branco, Castelo Branco, n. 5, p. 1-2, 2014.

MAGRANI, Eduardo. Internet das coisas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2018. p. 68.

MIRANDA, P.; ISAIAS, P.; COSTA, C. J.

E-learning and web generations: towards web 3.0 and e-learning

3.0. International Association of Computer Science and Information Technology, [s. l.], v. 81, p. 92-103, 2014.

SCHITTINE, Denise. Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. p. 60.

SCHROEDER BALD KLEIN, Júlia; ADOLFO, Luiz Gonzaga. A web

4.0 e os riscos à democracia. Em Tempo, [s. l.], v. 20, n. 1, nov. 2020. Disponível em: https://revista. univem.edu.br/emtempo/article/ view/3132/941. Acesso em:

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YEN, N.; ZHANG, C.; WALUYO, A.; PARK, J. Social media services and technologies towards web 3.0. Multimedia Tools and Applications, [s. l.], v. 74, n. 14, p. 5.007-5.013, 2015.

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Uma Geopolítica Crítica do Direito Autoral

CLÁUDIO LINS DE VASCONCELOS

RESUMO

Países em desenvolvimento tendem a considerar que a expansão dos parâmetros de proteção à propriedade intelectual beneficia principalmente titulares estrangeiros, com impactos negativos sobre sua balança de pagamentos. Válido para setores intensivos em tecnologia, esse raciocínio não necessariamente se aplica ao campo autoral. Países como o Brasil atuam com destaque em setores importantes da economia criativa. À medida que mais criadores locais tornam-se titulares de direitos sobre suas obras, esse posicionamento deve ser revisitado.

ABSTRACT

Developing countries tend to consider that the expansion of intellectual property protection parameters mainly benefits foreign holders, with negative impacts on their balance of payments. Valid for technology-intensive sectors, this reasoning does not necessarily apply to the copyrights field. Countries like Brazil are prominent in important sectors of the creative economy. As more local creators become holders of rights over their works, this position must be revisited.

INTRODUÇÃO

A noção de geopolítica está tradicionalmente associada à disputa entre Estados pelo controle de territórios e seus recursos. Poder, contudo, é algo que se exerce em diferentes dimensões, inclusive por atores não-estatais, cujos interesses vão além dos recursos físicos. Por isso, em vez de “território”, há quem prefira falar em “lugar”, que BUTTIMER (1985, p. 228) define como o somatório das dimensões simbólicas, emocionais, culturais, políticas e biológicas que tornam um território singular. A riqueza de um lugar compreende a paisagem e sua significação, a partir da experiência humana. A chamada “geopolítica crítica” se desenrola também nesse campo (Ó TUATHAIL, 1996).

Recursos intangíveis em geral só podem ser apropriados economicamente por meio de um direito exclusivo de exploração. Daí, a centralidade do tema da propriedade intelectual (PI) para a economia mundial, cujo eixo de valor há muito se deslocou dos bens de capital para a tecnologia, a estética, a mensagem, o conteúdo intelectual transformado em, ou agregado a, bens de consumo. Como destacou GOWERS (2006, p. 3), marcas, patentes, direitos autorais e outros direitos de PI concentram a maior parte do valor das empresas globais, não importa o setor. Pense Google, Disney, Amazon; ou Bayer, Adidas, Unilever.

A história do sistema internacional de proteção à PI é a crônica da expansão dos interesses de corporações que produzem e distribuem bens intensivos em capital intelectual. Além das inovações técnicas, estão nesse grupo as obras artísticas e literárias, como filmes, músicas e romances. Embora elegendo cuidadosamente até

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que ponto aplicá-los internamente (CHANG, 2003, p. 283), países ricos abraçaram os princípios do sistema desde o nascedouro, em fins do século 19. Países em desenvolvimento, porém, tradicionalmente mantêm posição contrária à expansão dos parâmetros internacionais de proteção.

A história do sistema internacional de proteção à PI é a crônica da expansão dos interesses de corporações que produzem e distribuem bens intensivos em capital intelectual.

Na base desse posicionamento está a constatação de que, como importadores de capital intelectual, países em desenvolvimento têm mais a perder com a oferta de altos níveis de proteção que, em última análise, beneficiarão principalmente titulares estrangeiros. Essa racionalidade tem como pano de fundo a busca pelo progresso técnico local e, por isso, sempre foi afeita aos direitos de propriedade industrial. Na prática, contudo, temas de direito autoral recebem essencialmente o mesmo tratamento diplomático: quanto menos PI, melhor.

Talvez seja momento de reavaliar convicções. Alguns países em desenvolvimento têm tido, historicamente, presença importante em setores da economia criativa. No Brasil, por exemplo, sempre se produziu muito conteúdo, mas apenas recentemente a retenção dos direitos de PI sobre essa produção tornou-se uma questão. A multiplicação das possibilidades de acesso e a desterritorialização do mercado global de mídia abrem oportunidades de exploração do conteúdo, mas é preciso apoio oficial para viabilizá-las, nos âmbitos interno e internacional.

PROPRIEDADE INTELECTUAL E EXPANSÃO CAPITALISTA

Ensina HESSE (2002, pp. 26-45) que a PI – “a ideia de que uma ideia pode ter dono” – é filha do Iluminismo Europeu. Com o rompimento da noção de futuro como desígnio divino, o gênio humano assumiu para si a responsabilidade de gerar as inovações que as sociedades modernas não mais cessariam de demandar, tanto no campo da técnica (máquinas, medicamentos, tecnologia), quanto da expressão artístico-literária. A partir daí, a informação se tornaria fator de produção essencial à competição capitalista, tendência que se aprofunda a cada dia.

Ocorre que o custo de copiar uma informação é insignificante diante do custo de produzi-la. Por isso, na ausência de um direito exclusivo, todos que investissem nessa atividade dependeriam, para a viabilidade de seus negócios, de subsídios ou fontes menos previsíveis de receita. Estariam, ainda, expostos à concorrência parasitária de quem não participou dos custos e incertezas da etapa de criação. O risco de investir em inovação, naturalmente alto, seria insustentável e, no futuro, haveria menos medicamentos, máquinas, filmes, livros e músicas (LANDES e POSNER, 2003).

Esta é, em essência, a narrativa que legitima, sob a ótica econômica clássica, o conceito de PI. Seu integral acolhimento pelo Direito Internacional se deve à expansão territorial dos interesses econômicos dos países exportadores de capital intelectual, em busca de novos mercados ou custos mais baixos de produção. Para evitar a pirataria em larga escala e a consequente erosão dos ativos de suas empresas, esses Estados se empenharam na aprovação de uma série de tratados internacionais, tanto no âmbito da ONU, quanto da Organização Mundial do Comércio – OMC.

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Direitos de PI, por definição, geram efeitos monopolistas. Quem adquire um bem protegido tende a pagar mais do que pagaria se o mesmo bem pudesse ser fornecido por outros concorrentes. Mas é nessa possibilidade de, durante certo período, praticar preços monopolistas que reside a “remuneração” dos inovadores e o incentivo para que sigam no negócio. Em outras palavras, não se nega a ineficiência alocativa gerada pelos direitos exclusivos, mas acredita-se que os ganhos do contínuo desenvolvimento técnico e cultural são suficientes para compensá-la.

O CISMA NORTE-SUL

Consistente quando aplicado no contexto interno, esse arrazoado levanta sérias questões quando transposto para o âmbito internacional, em especial nas relações entre países em estágios diferentes de desenvolvimento. Quando Itália e França se comprometem a garantir um ao outro acesso a seus mercados de bens simbólicos em condições monopolistas, há uma troca, em relativo equilíbrio. Ambos exportam capital intelectual. Entre EUA e Bolívia, contudo, não há troca, pelo menos não em termos paritários. Para que inovações bolivianas tenham acesso ao mercado americano nas condições que as inovações americanas têm acesso ao mercado boliviano, seria necessário, antes, haver estruturas de inovação na Bolívia, em escala relevante.

a produção e distribuição internacional de bens intensivos em capital intelectual impõe condições objetivas inalcançáveis para a maioria dos países em desenvolvimento.

De fato, a produção e distribuição internacional de bens intensivos em capital intelectual impõe condições objetivas inalcançáveis para a maioria dos países em desenvolvimento: ensino de excelência universalizado; investimento contínuo em pesquisa e desenvolvimento; controle das redes de distribuição de conteúdo, etc. Esses países podem barganhar “proteção à PI” por “exportação de commodities”, e é isso que vêm fazendo há décadas. Mas, vender farelo de soja dificilmente compensa, no longo prazo, a importação de tecnologia e conteúdo em larga escala, isoladamente ou embarcados nos bens de consumo.

Por isso, fora do eixo norte-atlântico, o bloco dos países em desenvolvimento sempre se mostrou cético em relação aos propagados benefícios de se garantir parâmetros internacionais de proteção à PI em seus territórios: atração de investimentos diretos; absorção de tecnologia; entre outros. Mais palpáveis são os custos do monopólio, irrecuperáveis nos mesmos termos (SELL, 1998, p. 70). Essa racionalidade foi muito influente no meio acadêmico latino-americano na segunda metade do século 20, graças ao pensamento de PREBISCH (e.g., 1976), FURTADO (e.g., 1980) e outros cepalinos1 da escola estruturalista, pioneiros no estudo da economia pela perspectiva dos países periféricos.

Pautou, também, o posicionamento da diplomacia da região na matéria, que ao longo da segunda metade do século 20 fez o que pôde para frear a expansão dos parâmetros de proteção à PI e evitar que o tema entrasse na pauta do GATT (BARBOSA, 2013, p. 2). O Acordo TRIPS, da OMC (1994), marcou o naufrágio das ilusões desenvolvimentistas em matéria de PI. A diplomacia brasileira tem, desde então, enviado sinais mistos sobre o tema, mas é seguro dizer que na cultura diplomática brasileira a proteção à PI é vista como uma concessão, tanto no campo da propriedade industrial, quanto do direito autoral, o que talvez já não faça sentido.

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A DESTERRITORIALIZAÇÃO DO MERCADO DE CONTEÚDO

Obras artísticas e literárias, por serem intangíveis, circulam facilmente entre fronteiras. Ainda assim, o mercado de mídia sempre se valeu de modelos de distribuição com base territorial. Na era analógica, as obras tinham origens diversas, mas sua distribuição era, tipicamente, uma atividade local. Com a internet, produtores de conteúdo originados em qualquer país atingem consumidores mundo afora diretamente, “passando por cima” (daí, over the top, ou OTTs, como são chamados os serviços de mídia por streaming) de todo um estágio da cadeia de distribuição.

A conexão direta entre plataformas estrangeiras e consumidores locais é apenas uma das manifestações de um fenômeno mais amplo, a desterritorialização do mercado de conteúdo, que se aprofundou com a revolução do streaming e multiplicou as oportunidades de acesso a obras de todo o mundo. Processo semelhante ocorre na ponta da produção: uma série concebida no México pode ser produzida na Espanha, por encomenda de uma plataforma americana. Coproduções internacionais existem há décadas, mas em escala menor e tipicamente sob estritos limites regulatórios, que em geral não se aplicam ao streaming.

A conexão direta entre plataformas estrangeiras e consumidores locais é apenas uma das manifestações de um fenômeno mais amplo, a desterritorialização do mercado de conteúdo

É possível supor que a produção cultural nunca foi tão relevante, economicamente. O consumo de conteúdo online , para variados propósitos, ocupa grande parte do tempo das pessoas, para o bem e para o mal. Paga-se com dinheiro, atenção e dados, muitos dados. De qualquer forma, cada tela é uma oportunidade de negócio, que em última análise beneficiará o titular dos direitos patrimoniais sobre o conteúdo. A internet, o streaming e a desterritorialização mudaram muita coisa, mas não o paradigma do investidor como titular da PI. E os maiores investidores continuam sendo os grandes estúdios, majors e plataformas, sediados em países ricos (MARTEL, 2012, p. 450).

Para o Brasil, obras produzidas em regime de prestação de serviços, sob encomenda de canais ou plataformas estrangeiros, são importantes porque geram receita e empregos no curto prazo, mas não contribuem para o acúmulo de PI no país, pois em geral os direitos patrimoniais são alienados na origem. Em termos econômicos, um filme roteirizado, dirigido e produzido por brasileiros, com atores brasileiros e falado em português será um filme estrangeiro, se o titular dos direitos patrimoniais assim o for. O produtor local recebe pelo serviço, mas os resultados da exploração da obra – por décadas, no mundo inteiro – pertencem, em regra, ao financiador.

Daí a centralidade estratégica das políticas públicas de fomento à cultura, como o Fundo Setorial do Audiovisual, um raro caminho para a produção de obras mercadologicamente viáveis cujos direitos de PI permaneçam no Brasil. Trata-se de investimento na aquisição de PI, no melhor interesse nacional, sendo, portanto, pauta legítima de política externa. No século 21, deter ativos informacionais será tão relevante para o desenvolvimento de um país quanto foi deter bens de capital no século 20.

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NOTAS PARA UMA DIPLOMACIA DO DIREITO AUTORAL

Após décadas de constante valorização dos ativos informacionais de caráter tecnológico, a economia mundial entra agora em uma segunda fase desse movimento, em que inovações de caráter puramente estético extrapolam os limites do mercado de mídia para agregar valor a um amplo espectro de bens e serviços. LIPOVETSKY e SERROY (2015) chegam a anunciar a emergência de um “capitalismo artista”, onde não apenas carros, joias e roupas, mas até uma prosaica garrafa de água mineral parece ter pretensões estéticas, na esteira de um processo de radicalização hedonista fundado na priorização da experiência sensorial presente.

A tendência vai além da arte. Em vez de cozinheiros, chefs; em vez de refeições, “experiências gastronômicas”. O capitalismo hipermoderno precificou as paixões, o que levanta sérias questões de ordem filosófica. Em termos práticos, contudo, abre uma rara janela de oportunidade para a ascensão de países em desenvolvimento ao núcleo dos exportadores de capital intelectual. Não de natureza técnica, mas ainda assim essencial para a indústria. Para o Brasil, o mercado das paixões é mais acessível que o de nanotecnologia. É possível atacar as causas do atraso tecnológico, mas não revertê-lo no curto prazo. No campo estético, há chance.

A esse respeito, nota-se que, salvo exceções, a participação de agentes brasileiros no mercado global de conteúdo se concentra nas etapas de criação – composição, roteiro, direção, interpretação, etc. – ou na produção independente. É nesses estágios que nascem os direitos de PI que serão negociados a jusante na cadeia de valor, garantindo a viabilidade de um novo ciclo produtivo. De posse dessa informação, a questão que se coloca à diplomacia brasileira é: como se valer do sistema internacional de proteção, as built, para reter aqui a maior parcela possível do valor econômico das inovações estéticas produzidas no país?

Considere-se os avanços recentes no campo da inteligência artificial (IA), particularmente dos chamados Grandes Modelos de Linguagem, aplicações capazes de produzir textos, imagens e mesmo músicas de forma automatizada. Chatbots e outras aplicações de IA não “criam”, apenas organizam informações preexistentes, conforme instruções. Restringem-se, como qualquer programa de computador, aos domínios da sintaxe-significante, sendo ontologicamente incapazes de atingir o nível da semântica-significado (SEARLE, 1980). Ainda assim, podem produzir um simulacro de arte bom o suficiente para atender a inúmeras demandas de mercado, o que representa um óbvio desafio para criadores humanos, justamente o elo local dessa cadeia global.

No século 21, deter ativos informacionais será tão relevante para o desenvolvimento de um país quanto foi deter bens de capital no século 20.

A diplomacia brasileira deve estar atenta para evitar que obras criadas exclusiva ou essencialmente por ferramentas de IA sejam objeto de proteção autoral, cuja razão de existir é a remuneração e o incentivo à criatividade humana. Conferir direitos autorais a elementos estéticos ou literários produzidos por programas de computador favorecerá a apropriação, por seus desenvolvedores (tipicamente, corporações sediadas em países ricos), dos benefícios econômicos gerados por criadores e artistas de todo o mundo, cujas obras serão capturadas e diluídas em

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sistemas robotizados que, sem regulação, se transformarão em “máquinas de plágio”, que copiam trabalhos sem citar fonte.

Conferir direitos autorais a elementos estéticos ou literários produzidos por programas de computador favorecerá a apropriação, por seus desenvolvedores dos benefícios econômicos gerados por criadores e artistas de todo o mundo.

É necessário que o país defina rapidamente uma posição sobre este tema nos foros internacionais, considerando a posição que seus talentos e empresas ocupam na cadeia global de produção e consumo de conteúdo. No campo dos princípios, seria importante reforçar a posição brasileira em favor da singularidade dos bens culturais em face dos demais, consolidando os parâmetros da Convenção da UNESCO (2005). O texto, uma conquista da diplomacia brasileira, reforça a autonomia dos Estados na elaboração de suas políticas de fomento e proteção à produção cultural local, sem que isso implique violação às normas do comércio internacional.

Diante da internacionalização da competição em um mercado cada vez mais relevante para os países centrais, ninguém deve se surpreender se tal autonomia vier a ser questionada no futuro próximo. E mantê-la é questão de interesse nacional.

CONCLUSÃO

Como Ó TUATHAIL (1996), entendemos que a geopolítica vai além da conquista e defesa de territórios, ou do exercício extraterritorial do poder político. As relações internacionais de poder são mais complexas do que isso e se desenvolvem nos diferentes espaços de transformação política, econômica e social, onde comunicação, cultura e mídia desempenham papel central.

Na dinâmica do poder global, BURKART e CHRISTENSEN (2013) identificam dois fatores-chave no campo comunicacional: (a) as mudanças no ambiente tecnológico e seus reflexos na forma e escala em que se dão os fluxos de mídia; e (b) a reapreciação do papel do Estado, que segue necessário em inúmeras instâncias, diferentemente do que vaticinava o paradigma neoliberal do pós-Guerra Fria.

Seja como for, à medida que mais direitos de PI permaneçam sob titularidade de agentes locais, a eficácia da proteção internacional aos direitos autorais encontra o interesse nacional. Nada disso precisa comprometer a tradicional liderança da diplomacia brasileira em temas caros ao Sul global, como a ampliação das hipóteses de uso livre fundadas no interesse público. Pelo contrário, há novas oportunidades de liderança em meio a mudanças profundas, que cedo ou tarde terão reflexos sobre o Direito Internacional, único campo legítimo para a concretização de pretensões geopolíticas.

há novas oportunidades de liderança em meio a mudanças profundas, que cedo ou tarde terão reflexos sobre o Direito Internacional.

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COMO CITAR ESTE ARTIGO VASCONCELOS, Cláudio Lins de. Uma Geopolítica Crítica do Direito Autoral. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 35, 2023.

CLÁUDIO LINS DE VASCONCELOS

Doutor pela UERJ e mestre pela Universidade de Notre Dame. Professor do Mestrado Profissional em Economia Política da Cultura da UFRGS/Itaú Cultural e da PósGraduação em Direito da Propriedade Intelectual da PUC-RJ. Foi Secretário de Economia da Cultura do Ministério da Cultura, Consultor do Banco Mundial e Assessor Internacional Adjunto do Ministério da Justiça. É membro do Conselho de Economia Criativa da FIRJAN e da Comissão de Direitos Autorais da OAB-RJ.

NOTA

1. Relativo à CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), entidade criada em 1948 no âmbito da ONU para promover o desenvolvimento econômico da região. Em seus primeiros anos, sob a presidência do argentino Raúl Prebisch, a CEPAL tornou-se o principal think tank econômico da região, congregando uma geração de grandes economistas, entre eles o brasileiro Celso Furtado, que pavimentou o caminho para uma doutrina econômica do desenvolvimento com bases locais, o “estruturalismo latinoamericano”. Sua influência se fez sentir em todos os países “periféricos”, como os estruturalistas chamavam os países em desenvolvimento, em contraposição aos países “centrais” (LOVE, 2019).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Denis B. Propriedade Intelectual – A Aplicação do Acordo TRIPs. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

BURKART Patrick e CHRISTENSEN Miyase. (2013) Geopolitics and the Popular, Popular Communication, 11:1, 3-6.

BUTTIMER, Anne. Hogar, Campo de Movimiento y sentido del Lugar. In: RAMÓN, Maria Dolores G. (org.) Teoria y método en la geografia anglosajona. Barcelona: Ariel, 1985, p. 227-241.

CHANG, Ha-Joon. Globalisation, Economic Development and the Role of the State. Londres: Zed Books, 2003

FURTADO, Celso. Pequena Introdução ao Desenvolvimento – Enfoque Interdisciplinar. São Paulo: Editora Nacional, 1980.

GOWERS, A. Gowers Review of Intellectual Property. Londres: The Stationery Office, 2006.

HESSE, Carla. The Rise of Intellectual Property, 700 B.C.-A.D. 2000: An Idea in the Balance. Daedalus, Spring 2002.

LANDES, William M. e POSNER, Richard A. The Economic Structure of Intellectual Property Law. Cambridge, MA.: Harvard University Press, 2003.

LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

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MARTEL, Frédéric. Mainstream: a guerra global das mídias e das culturas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

OMC. Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio. Adotado em 12 de abril de 1994.

OMPI. Tratado de Beijing sobre Interpretações e Execuções Audiovisuais. Adotado em 24 de junho de 2012.

Ó

TUATHAIL, Gearóid. Critical Geopolitics: The Politics of Writing Global Space. Londres: Routledge, 1996.

PREBISCH, Raúl. Crítica al Capitalismo Periférico. Rev. Cepal, Santiago, p. 7-73 1º. Sem. 1976.

SELL, Susan K. Power and Ideas: North-South Politics of Intellectual Property and Antitrust. Nova Iorque: NYU Press, 1998.

UNESCO. Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. Adotada em 20 de outubro de 2005.

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Flora_#12 | Imagem de Rejane Cantoni

Relações entre a desindustrialização brasileira e a indústria criativa

RESUMO

O ganho de relevância da indústria criativa nos últimos 30 anos ocorreu em meio a tendências de desindustrialização. Esse processo foi resultante, entre outros fatores, do surgimento de um modelo de produção mais intensivo em conhecimento. Assim, houve uma absorção do emprego industrial pelos setores de serviços e criativos, dando origem a uma polarização do mercado de trabalho. No entanto, observou-se que a polarização brasileira foi distinta daquela dos países desenvolvidos, pois se caracterizou por uma intensidade criativa menor.

Palavras-chave: indústria; economia criativa; empregos criativos; desindustrialização.

INTRODUÇÃO

Nos últimos 20 anos, a indústria brasileira sofreu transformações que acarretaram uma perda de relevância do setor, que passou de representar quase 30% do produto interno bruto (PIB) brasileiro para, no segundo semestre de 2022, representar apenas 19,9%. Entre as razões históricas para o declínio do setor industrial brasileiro apontadas pela literatura, encontramos a abertura comercial feita nos anos 1990, os juros elevados e a grande valorização do real frente ao dólar (CANO, 2012).

Mais recentemente, na década de 2010, a academia especializada começou a trabalhar com outras teses de impacto sobre a indústria brasileira, de carácter mais profundo quando comparadas aos efeitos conjunturais citados anteriormente. Foram publicadas hipóteses de que uma possível “doença holandesa”1 e uma desindustrialização precoce estariam afetando a indústria nacional. Simultaneamente a esses impactos, começou-se a estudar outros fenômenos que estariam repercutindo na indústria brasileira, como é o caso de uma mudança de paradigma mundial e da polarização do mercado de trabalho.

Durante esse processo de transformação, observou-se uma dinâmica de criação e destruição de postos de trabalho em diversos setores, causando uma mudança estrutural profunda na economia brasileira que afetou particularmente o mercado de trabalho. Como no caso da indústria, os impactos sobre o emprego não foram originados de uma única fonte; destacamos também o papel do progresso tecnológico e das mudanças nos padrões de consumo (RODRIK, 2016; BUCKLEY; MAJUMDAR, 2018). Essas modificações impulsionaram a destruição de empregos industriais em detrimento da criação de empregos nos setores de serviços e criativos.

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No entanto, diferentemente do que se observou em países desenvolvidos, no Brasil, a taxa de criação de empregos intensivos em criatividade não foi suficientemente forte para superar a taxa de criação de empregos nos setores de serviços e naqueles de baixa intensidade tecnológica. Pode-se argumentar que esse cenário é uma consequência da incapacidade da economia brasileira de gerar ou manter setores com alta intensidade tecnológica frente a aspectos conjunturais, políticos e estruturais. Também pode-se pensar que, em parte, a falta de investimento em capital humano específico agravou o impacto e contribuiu para que não se aproveitassem janelas de oportunidade trazidas pelas mudanças de paradigmas tecnológicos – por exemplo, a transformação de uma economia de produção em massa para uma baseada em conhecimento e, por conseguinte, em criatividade.

Dessa forma, o presente artigo tem como objetivo principal estudar a evolução da dinâmica entre a desindustrialização brasileira e a criação de empregos criativos segundo sua intensidade. O artigo está dividido em seções: na primeira, aborda o debate sobre a desindustrialização brasileira; na segunda, trata da dinâmica da criação do emprego criativo nos últimos anos; e, na terceira, traz as considerações finais.

O DECLÍNIO DA INDÚSTRIA BRASILEIRA

Como mencionado, a indústria brasileira passou por períodos não favoráveis nos últimos anos. Isso ocorreu por fatores conjunturais e estruturais, como é o caso das crises econômicas e da “doença holandesa”, respectivamente; ou por mudanças de paradigmas político-econômicos que, por exemplo, deixaram de lado a ideia de um papel mais ativo do Estado, afetando diretamente a construção de uma política industrial no Brasil (BRESSER-PEREIRA; NASSIF; FEIJÓ, 2016). Esses impactos culminaram numa queda significativa na participação da indústria brasileira no PIB nacional. Como pode ser observado no Gráfico 1, a participação da indústria, que chegou aos quase 50% nos anos 1980, atualmente representa pouco menos de 20% do PIB brasileiro, e ainda demonstra uma tendência significativa de queda.

Gráfico 1: Participação histórica da indústria no PIB brasileiro (anual e a preços correntes)

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10,00 0,00 20,00 30,00 40,00 50,00 60,00 1947 1949 1951 1953 1955 1957 1959 1961 1963 1965 1967 1969 1971 1973 1975 1977 1979 1981 1983 1985 1987 1989 1991 1993 1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017 2019 2021
Fonte: elaboração própria com base nos dados das contas nacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Em decorrência do desempenho do setor industrial, na década de 2010, a academia especializada começou a estudar a hipótese de “doença holandesa” no Brasil (BRESSER-PEREIRA, 2010a; BRESSER-PEREIRA, 2010b) e de uma potencial desindustrialização precoce (MARCONI; ROCHA, 2012; RODRIK, 2016).

No primeiro caso, convencionou-se chamar de “doença holandesa” o processo de apreciação do câmbio (valorização da moeda nacional em relação às moedas estrangeiras) junto com um aumento do saldo da balança comercial, que normalmente atuam em sentidos opostos. Esse fenômeno é consequência direta de uma sobrexploração de recursos naturais, e sua existência está diretamente associada à desindustrialização das economias (BRESSER-PEREIRA, 2010a).

Por outro lado, a desindustrialização precoce pode ser explicada por um crescimento no consumo de serviços em detrimento do consumo de bens. Apesar de se tratar de um processo natural, o evento vem sendo observado em economias com maior maturidade, isto é, economias desenvolvidas com níveis mais altos de PIB per capita (PALMA, 2005). No caso do Brasil, o referido ponto de inflexão ocorreu em um nível de PIB per capita muito inferior ao de países desenvolvidos. O Gráfico 2 apresenta a evolução da participação da indústria em comparação com a do setor de serviços nos últimos 25 anos. Como pode ser visto, a participação deste setor apresenta uma rota crescente, em oposição à da indústria.

Gráfico 2: Participação histórica indústria versus serviços (trimestral e a preços correntes) Fonte: elaboração própria com base nos dados das contas nacionais do IBGE.

Segundo Bresser-Pereira (2010a), os impactos da desindustrialização só não foram maiores no período mais recente por causa das políticas de crédito e do aumento do salário mínimo empregados durante os dois primeiros governos Lula (2003-2011). Apesar disso, houve uma perda significativa de capacidade exportadora e de competitividade devida, entre outros fatores, à taxa de câmbio, que é determinada pela entrada de capitais estrangeiros no país, resultado do boom de commodities. Como consequência, a demanda interna não foi capaz de gerar efeitos dinâmicos suficientes para mitigar os impactos negativos do câmbio.

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10,0% 0,0% 20,0% 30,0% 40,0% 50,0% 60,0% 70,0% 1996 T1 1996 T4 1997 T3 1998 T2 1999 T1 1999 T4 2000 T3 2001 T2 2002 T1 2002 T4 2003 T3 2004 T2 2005 T1 2005 T4 2006 T3 2007 T2 2008 T1 2008 T4 2009 T3 2010 T2 2011 T1 2011 T4 2012 T3 2012 T2 2013 T2 2014 T1 2014 T4 2015 T3 2016 T2 2017 T1 2017 T4 2018 T3 2019 T2 2020 T1 2020 T4 2021 T3 2022 T2 PIB indústria (%) PIB serviços (%) Linear [PIB indústria (%)] Linear [PIB serviços (%)]

Palma (2014) enumera quatro causadores de desindustrialização encontrados por especialistas na economia brasileira: 1) conforme as rendas per capita sobem, os países se especializam na produção de serviços tecnológicos; 2) com o aumento das rendas per capita, o emprego no setor de manufatura cai; 3) mudança no nível de renda per capita; e 4) “doença holandesa”. Dessa forma, a desindustrialização brasileira foi agravada por uma série de fenômenos operando simultaneamente.

Apesar de ser uma descrição acurada do processo experienciado, olhar simplesmente para o sentido da transformação não gera conhecimento o bastante sobre o que de fato vem acontecendo internamente na economia brasileira. É importante compreender quais mudanças ocorreram na composição de seu tecido industrial e também nas dimensões do emprego – como a qualidade e o tipo dos empregos gerados.2 Nesse sentido, para este estudo, nos interessam principalmente as causantes 1 e 2 apontadas por Palma (2014).

A POLARIZAÇÃO DO MERCADO DE TRABALHO E A CRIAÇÃO DE EMPREGOS CRIATIVOS

Desde os anos 1990, a economia criativa vem ganhando destaque no mundo acadêmico e aos olhos dos formuladores de políticas públicas. O Reino Unido foi um dos primeiros países do mundo a dar importância à economia criativa e a desenvolver metodologias para determinar as fronteiras do setor e sua importância.

Por seu papel de vanguarda, o governo britânico foi também um dos primeiros a determinar quais seriam as ocupações e atividades econômicas a compor a indústria criativa. Nesse contexto, ganhou destaque o trabalho de Bakhshi, Freeman e Higgs (2013) que introduziu a ideia de determinar os setores criativos de acordo com a sua intensidade criativa. Esses setores seriam aqueles que geram um maior número de empregos criativos e que possuem na atividade criativa o seu diferencial.3 Nessa abordagem, os trabalhadores criativos são definidos como aqueles empregados em ocupações que envolvem criação, inovação e diferenciação, e que são realizadas com base nas capacidades intelectuais específicas do trabalhador individual (CAUZZI, 2019).

O trabalho criativo passou a ganhar ainda mais relevância quando colocado em contraste com o processo de transformação tecnológica. O mundo experienciou uma mudança de paradigma que fez com que o modelo de produção em massa começasse a dar lugar a uma economia baseada em conhecimento. Como pode ser visto no Gráfico 3, nos últimos anos, o número de empregados nos setores criativos cresceu de maneira tímida. E, apesar do crescimento, é importante salientar que o setor demonstrou volatilidade, devida sobretudo ao efeito da pandemia de covid-19, que impactou a parte cultural da indústria criativa de forma desproporcional.

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Uma consequência direta desse novo modelo foi o aumento na demanda por ocupações caracterizadas pelo uso de tarefas cognitivas e manuais, acompanhado de uma redução na demanda por ocupações em que se desempenham tarefas rotineiras (AUTOR; DORN, 2013), como é o caso daquelas predominantes nos setores industriais.

Em razão do impacto dessa nova dinâmica, começou-se a falar em uma polarização dos mercados de trabalho em economias ao redor do mundo. Essa polarização ocorre quando empregos industriais, caracterizados pela execução de tarefas rotineiras, perdem espaço para empregos com exigência mais intensa de tarefas manuais ou criativas. É derivada, por um lado, da perda de força da indústria, e, por outro, do impacto das tecnologias que automatizam processos rotineiros, como é o caso dos robôs industriais, da inteligência artificial e das tecnologias da informação e da comunicação (TIC) (DA SILVA, 2021). Esse fenômeno também foi encontrado na economia brasileira (MACHADO, 2017), no entanto, o crescimento do emprego criativo no país não se deu nas mesmas taxas encontradas em economias desenvolvidas.

Em economias industrializadas não polarizadas, o formato da distribuição de ocupações do mercado de trabalho tenderia a ser representado por uma linha com baixas oscilações, ou seja, existiria uma distribuição quase homogênea entre ocupações manuais, rotineiras e cognitivas. Por outro lado, a polarização do mercado de trabalho dá origem a uma curva em formato de “U”, na qual as caudas representam os trabalhadores que desempenham tarefas manuais (setor de serviços – cauda da esquerda) e cognitivas (setor criativo – cauda da direita), e a parte baixa ao meio representa os trabalhadores que desempenham tarefas rotineiras, isto é, o emprego industrial.

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Gráfico 3: Evolução dos trabalhadores da indústria criativa no Brasil (quarto trimestre de cada ano)
Trabalhadores não criativos empregados nos setores criativos 0 1M 2M 3M 4M 5M 6M 7M 8M 2012.4 2013.4 2014.4 2015.4 2016.4 2017.4 2018.4 2019.4 2020.4 2021.4 Trabalhadores incorporados Trabalhadores criativos empregados nos setores criativos
Fonte: Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural.

Gráfico 4: Polarização do mercado de trabalho e evolução das ocupações cognitivas

Como pode ser observado no Gráfico 4, o comportamento da polarização do mercado de trabalho dos Estados Unidos se diferencia do brasileiro na cauda da direita, ou seja, nas ocupações cognitivas que são empregadas pelos setores criativos. Para que a curva em formato de “U” possa ser similar à de países desenvolvidos, a taxa de expansão do emprego no setor de serviços não pode superar em grandes proporções a criação de empregos nos setores criativos. No Brasil, o que se observa é que a taxa de absorção dos serviços superou a das ocupações cognitivas, ou seja, a criação de ocupações cognitivas pelos setores criativos não foi capaz de capturar significativamente os trabalhadores que perderam seus empregos ao trabalhar nos setores industriais.

Analisando o gráfico, também podemos concluir que a perda dos empregos industriais no país foi acompanhada de uma absorção em ocupações de intensidade criativa baixa. A cauda à direita, que representa o mercado de trabalho dos Estados Unidos, tem uma inclinação e representação muito maiores do que as observadas no Brasil. Para explicar essa diferença de padrão, argumenta-se que foram criados empregos criativos nos setores em que o requerimento de tarefas cognitivas não era tão significativamente maior que o dos empregos industriais. Em outras palavras, cada ocupação demanda um porcentual de tarefas manuais, rotineiras e cognitivas, sendo as criativas aquelas que demandam maioritariamente tarefas cognitivas (DA SILVA, 2021). Nesse sentido, uma ocupação pode ser considerada criativa por exigir apenas uma porcentagem a mais de tarefas cognitivas que uma ocupação rotineira ou industrial.

Assim, para um trabalhador que foi vítima do desemprego tecnológico ou que simplesmente perdeu o emprego por enfraquecimento de sua indústria, é mais fácil reencontrá-lo em outra indústria ou atividade em que não seja necessário um salto gigante de habilidades/tarefas. Certas ocupações, mesmo sendo consideradas criativas, têm uma intensidade criativa menor que outras, pois envolvem o desempenho de atividades mais simples. Como pode ser observado na Tabela 1, no top 20 das ocupações criativas por diversos critérios, aquelas consideradas intensivas em criatividade são minoria.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #35 DA WEB 2.0 À WEB 3.0 33 -0,15 -0,10 -0,05 0,00 0,05 0,10 0,15 0,20 0,25 0,30 -
1 Categorias
Variação na participação no emprego 4 7 10 13 16 19 22 25 28 31 34 37 40 43 46 49 52 55 58 61 64 67 70 73 76 79 82 85 88 91 94 97 100
Variação entre 1991 e 2000 Variação entre 2000 e 2010 Polarização
nos Estados Unidos entre 1980 e 2005 de salário (proxy para nível de habilidade das ocupações) Fonte: Machado, 2017.

Tabela 1: Evolução na demanda por ocupações da indústria criativa no Brasil4

Ranking 1

Ranking 2021 de ocupados (números absolutos)

Administradores de sistemas

Alfaiates, modistas, chapeleiros e peleteiros

Analistas de sistemas

Arquitetos de edificações

Arquitetos-paisagistas

Arquivologistas e curadores de museus

Artesãos de tecidos, couros e materiais semelhantes

Artistas criativos e interpretativos

Atores

Bailarinos e coreógrafos

Desenhistas e administradores de banco de dados

Confeccionadores e afinadores de instrumentos musicais

Artistas plásticos

Chefes de cozinha

Desenhistas e projetistas técnicos

Artesãos não classificados anteriormente

Desenvolvedores de páginas web

Costureiros, bordadores e afins

Desenhistas de produtos e de vestuário

Artesãos de pedra, madeira, vime e materiais semelhantes

Ranking 2

Média de crescimento com covid-19 (2012-2021)

Desenvolvedores de páginas web

Artesãos não classificados anteriormente

Desenvolvedores e analistas de programas e de apps

Desenvolvedores de programas e de aplicativos

Artistas criativos e interpretativos

Profissionais em rede de computadores

Arquitetos de edificações

Administradores de sistemas

Especialistas em base de dados e em redes

Desenhistas e administradores de banco de dados

Técnicos em operações de tecnologia da informação e da comunicação (TIC)

Técnicos da web

Jornalistas

Desenhistas gráficos e de multimídia

Profissionais da publicidade e da comercialização

Analistas de sistemas

Programadores de aplicativos

Desenhistas e decoradores de interiores

Outros profissionais de nível médio em atividades culturais e artísticas

Alfaiates, modistas, chapeleiros e peleteiros

Ranking 3

Média de crescimento sem covid-19 (2012-2021)

Desenvolvedores de páginas web

Desenvolvedores e analistas de programas e de apps

Artesãos não classificados

anteriormente

Desenvolvedores de programas e de apps

Confeccionadores e afinadores de instrumentos musicais

Administradores de sistemas

Arquitetos de edificações

Artistas criativos e interpretativos

Modelos de moda, arte e publicidade

Tradutores, intérpretes e linguistas

Outros profissionais de nível médio em atividades culturais e artísticas

Profissionais em rede de computadores

Desenhistas e administradores de banco de dados

Técnicos em operações de tecnologia da informação e da comunicação (TIC)

Programadores de aplicativos

Gerentes de centros

especializados de diversão e culturais

Jornalistas

Desenhistas gráficos e de multimídia

Profissionais de relações públicas

Costureiros, bordadores e afins

Baixa intensidade (12); média intensidade (6)

Baixa intensidade (5); média intensidade (8)

Baixa intensidade (6); média intensidade (8)

Legenda: Baixa intensidade criativa ; Média intensidade tecnológica ; Alta intensidade tecnológica —.

Fonte: elaboração própria com base em dados da “Pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua” (“Pnad contínua”).

No ranking 1 da Tabela 1, que traz uma foto das ocupações com maior presença nos setores criativos em 2021, podemos observar que apenas duas delas são consideradas de intensidade criativa alta, sendo a maioria dos profissionais alocada naquelas de intensidade criativa baixa. Ao observar o ranking 2, no qual são apresentadas as ocupações mais demandadas no período de 2012 a 2021, considerando a pandemia de covid-19, vemos que as de intensidade criativa alta e tecnológicas se destacaram – argumenta-se que isso ocorreu em razão da intensa digitalização das economias no período.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #35 DA WEB 2.0 À WEB 3. 34

O ranking 3, que busca isolar o efeito da pandemia,4 corrobora a hipótese mencionada, uma vez que mostra que as ocupações mais intensivas em criatividade não permaneceram em uma análise do período imediatamente anterior ao do impacto da covid-19. Cabe mencionar que o ranking 2 não necessariamente reflete a realidade do setor, já que muitas ocupações de baixa e média intensidade criativa foram impactadas pela pandemia, mudando assim a composição do emprego nas indústrias criativas.

Como argumentado no parágrafo anterior, as ocupações de alta intensidade criativa, como analistas de sistemas, dirigentes de serviços de TIC, urbanistas e engenheiros, arquitetos e desenhistas e projetistas técnicos, não estão presentes de maneira intensa na composição da indústria criativa brasileira, o que corrobora a afirmação de que, nos últimos anos, os empregos intensivos em criatividade foram criados em menor grau no país, diferentemente do ocorrido em economias desenvolvidas, como dos Estados Unidos.

CONCLUSÃO

A desindustrialização brasileira, diferentemente do padrão observado em países desenvolvidos, não gerou setores intensivos em tecnologia ou em criatividade. Esse fato estilizado ocorreu, em grande parte, devido a fatores como uma baixa competitividade da economia do país, derivada de uma política cambial de apreciação e de uma conjuntura mundial tecnológica e econômica não favorável. Por outro lado, também podemos apontar que os impactos sobre o mercado de trabalho brasileiro foram maiores por causa de uma deficiência na geração de habilidades para aqueles trabalhadores que perderam seus empregos, restando alocá-los em ocupações que não demandavam um salto grande de habilidades.

Apesar de uma maior demanda pela participação de profissionais desempenhando tarefas cognitivas no mercado de trabalho brasileiro nos últimos anos, para aproveitar a janela de oportunidade da economia mais intensiva em conhecimento, a economia do país precisa fortalecer as capacitações de seus trabalhadores e buscar atuar antecipando certas mudanças estruturais, para que os impactos não sejam severos. Tecnologias como a inteligência artificial e a automação mostram impactos cada vez mais realistas, dessa forma, é importante prever possíveis consequências e atuar de maneira a preparar a força de trabalho brasileira para utilizar mais as tarefas cognitivas ou criativas. Finalmente, a adaptação da força de trabalho só é bem absorvida quando existe uma consonância entre políticas, como é o caso das macroeconômicas, cambiais, industriais e de capacitação.

COMO CITAR ESTE ARTIGO

DA SILVA, Filipe; MÖLLER, Gustavo; VALIATI, Leandro. Relações entre a desindustrialização brasileira e a indústria criativa. Revista Observatório

Itaú Cultural, São Paulo, n. 35, 2023.

FILIPE DA SILVA

Graduado em economia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e mestre em economia da indústria e da inovação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é pesquisador da Catavento Pesquisas.

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GUSTAVO MÖLLER

Graduado em relações internacionais e mestre em estudos estratégicos internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é sócio-fundador da Catavento Pesquisas.

LEANDRO VALIATI

Economista e ph.D. em desenvolvimento econômico, com pós-doutorado em indústrias criativas pela Universidade de Paris-Sorbonne (Paris 13), na França. É professor da Universidade de Manchester, no Reino Unido, e pesquisador principal da Catavento Pesquisas.

NOTAS

1. Refere-se à situação em que um aumento no número de exportações de produtos primários valoriza a moeda local, tornando as exportações de produtos manufaturados menos competitivas. Esse fenômeno leva um país a se especializar em produtos primários, o que consequentemente gera uma pressão desindustrializante. Ver: PALMA, J. G. Four sources of “de-industrialization” and a new concept of the “dutch disease”. In: OCAMPO, J. A. (ed.). Beyond reforms: structural dynamics and macroeconomic vulnerability Washington, D.C.: Eclac, 2005. p. 71-116.

2. A especialização na indústria de extração e de serviços de baixa tecnologia, originada pela descoberta de recursos naturais, dá origem a uma economia que não necessariamente obtém os mesmos frutos, em termos de crescimento e desenvolvimento, que uma economia especializada na manufatura (PALMA, 2014). Grande parte desse efeito sobre o crescimento e o desenvolvimento de uma economia está associada à qualidade do emprego sendo gerado.

3. Entre as metodologias para a determinação dos setores criativos, existem as baseadas em fatores subjetivos e complexos, como é o caso do modelo de círculos concêntricos, dos textos simbólicos e das redes sociais. E, além dessas, existem os modelos baseados em diretrizes institucionais, como é o caso daqueles da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi) (2003), que se destacam por ter como base os direitos autorais. Por último, existe também o modelo da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad, na sigla em inglês) (2008), baseado no comércio internacional.

4. Para isolar o efeito da pandemia de covid-19, considerou-se esse período como um outlier, isto é, uma observação com comportamento muito diferente dos outros presentes na base de dados. Dessa forma, optou-se pela exclusão dos respectivos dados da série temporal.

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REFERÊNCIAS

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BUCKLEY, P.; MAJUMDAR, R. The services powerhouse: increasingly vital to world economic growth. Deloitte Insights, 2018.

CANO, W. A desindustrialização no Brasil. Economia e Sociedade, Campinas, SP, v. 21, n. 4, p. 831-851, 2012.

CAUZZI, C. L. Determinando os setores criativos brasileiros: aplicação do modelo de intensidade criativa. 2019. Dissertação (Mestrado em Economia) – Universidade Federal

do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.

DA SILVA, Filipe. Technological change and polarization of the brazilian labor market. 2021. Dissertação (Mestrado em Economia da Indústria e da Tecnologia) –Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.

DEPARTMENT FOR CULTURE, MEDIA & SPORT Creative industries

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INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA

Pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua. Rio de Janeiro: IBGE, v. 1.6, 2019. Notas técnicas.

MACHADO, A. Existe polarização no mercado de trabalho brasileiro?

Radar: Tecnologia, Produção e Comércio Exterior, v. 53, p. 13-17, 2017.

MARCONI, N.; ROCHA, M. Taxa de câmbio, comércio exterior e desindustrialização precoce: o caso brasileiro. Economia e Sociedade, Campinas, SP, v. 21, p. 853-888, 2012.

PALMA, J. G. De-industrialisation, “premature” de-industrialisation and the dutch-disease. Revista Necat, Florianópolis, v. 3, n. 5, p. 7-23, 2014.

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Anexos

ANEXO 1:

As 20 ocupações criativas mais demandadas e suas respectivas

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posições no ranking (por ano) Ocupação 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 Administradores de sistemas 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 Alfaiates, modistas, chapeleiros e peleteiros 22 27 2 2 2 2 2 2 2 2 Analistas de sistemas 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 Arquitetos de edificações 4 6 5 4 4 4 4 4 4 4 Arquitetos-paisagistas 5 5 6 6 5 5 5 5 6 5 Arquivologistas e curadores de museus 6 4 4 5 6 6 6 6 5 6 Artesãos de tecidos, couros e materiais semelhantes 7 7 7 8 7 7 8 7 7 7 Artistas criativos e interpretativos não classificados anteriormente 9 9 10 10 10 9 9 10 8 8 Atores 14 13 13 13 14 14 14 12 9 9 Bailarinos e coreógrafos 17 18 19 14 12 11 13 14 11 10 Desenhistas e administradores de bases de dados 35 34 33 23 20 16 12 13 14 11 Confeccionadores e afinadores de instrumentos musicais 18 17 17 19 15 17 17 18 15 12 Artistas plásticos 10 10 11 11 11 10 11 11 13 13 Chefes de cozinha 19 19 23 15 9 12 15 16 16 14 Desenhistas e projetistas técnicos 25 20 21 22 22 20 19 17 17 15 Artesãos não classificados anteriormente 8 8 9 9 8 8 7 9 12 16 Desenvolvedores de páginas de internet (web) e multimídia 28 24 24 24 23 22 22 21 19 17 Costureiros, bordadores e afins 11 14 16 21 17 19 18 20 20 18 Desenhistas de produtos e de vestuário 16 16 18 16 18 18 20 19 18 19 Artesãos de pedra, madeira, vime e materiais semelhantes 2 2 8 7 16 15 10 8 10 20 Fonte: elaboração própria com base em dados da “Pnad contínua”.

ANEXO 2:

Ocupações criativas e grupos ocupacionais dos setores criativos

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Código “Pnad contínua” Descrição Publicidade e marketing 1221 Dirigentes de vendas e de comercialização 1222 Dirigentes de publicidade e relações públicas 2431 Profissionais da publicidade e da comercialização 2432 Profissionais de relações públicas Arquitetura 2161 Arquitetos de edificações 2162 Arquitetos-paisagistas 2164 Urbanistas e engenheiros de trânsito 3118 Desenhistas
técnicos Artesanato 7312 Confeccionadores
instrumentos musicais 7313 Joalheiros e
preciosos e semipreciosos 7317 Artesãos de
semelhantes 7318 Artesãos de tecidos,
semelhantes 7319 Artesãos não classificados anteriormente 7531 Alfaiates, modistas, chapeleiros e peleteiros 7532 Trabalhadores qualificados da preparação da confecção de roupas 7533 Costureiros, bordadores e afins 7534 Tapeceiros, colchoeiros e afins Design 2163 Desenhistas de produtos e de vestuário 2166 Desenhistas gráficos e de multimídia 3432 Desenhistas e decoradores de interiores 7316 Redatores de cartazes, pintores decorativos e gravadores Filme, TV, vídeo, rádio e fotografia 1431 Gerentes de centros esportivos, de diversão e culturais 2654 Diretores de cinema, teatro e afins 3431 Fotógrafos 3521 Técnicos de radiodifusão e de gravação audiovisual
Categoria
e projetistas
e afinadores de
lapidadores de gemas, e artesãos de metais
pedra, madeira, vime e materiais
couros e materiais

e analistas de programas, de aplicativos (software) e multimídia não classificados anteriormente

Fonte: elaborado pelo Observatório Itaú Cultural com base em IBGE (2019), com ocupações e categorias ocupacionais inspiradas no DCMS (2014).

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #35 DA WEB 2.0 À WEB 3. 40 Categoria Código “Pnad contínua” Descrição TI, software e serviços de informática 1330 Dirigentes de serviços de
e da comunicação 2356 Instrutores em tecnologias
2511 Analistas de sistemas 2512 Desenvolvedores
2513 Desenvolvedores
2514 Programadores
2519 Desenvolvedores
2521 Desenhistas
2522 Administradores
2523 Profissionais
2529 Especialistas
3511 Técnicos
comunicação 3512 Técnicos
3513 Técnicos de
computadores 3514 Técnicos da web Editorial 2641 Escritores 2642 Jornalistas 2643 Tradutores, intérpretes e linguistas Museus, galerias e bibliotecas 2621 Arquivologistas e curadores de museus 2622 Bibliotecários, documentaristas e afins 3433 Técnicos em galerias de arte, museus e bibliotecas Música, artes cênicas e artes visuais 2354 Outros professores de música 2355 Outros professores de artes 2651 Artistas plásticos 2652 Músicos, cantores e compositores 2653 Bailarinos e coreógrafos 2655 Atores 2656 Locutores de rádio, TV e outros meios de comunicação 2659 Artistas criativos e interpretativos não classificados anteriormente 3435 Outros profissionais de nível médio em atividades culturais e artísticas 5241 Modelos de moda, arte e publicidade Gastronomia 3434 Chefes de cozinha
tecnologia da informação
da informação
de programas e de aplicativos (software)
de páginas de internet (web) e multimídia
de aplicativos
e administradores de bases de dados
de sistemas
em rede de computadores
em base de dados e em redes de computadores não classificados anteriormente
em operações de tecnologia da informação e da
em assistência ao usuário de tecnologia da informação e da comunicação
redes e sistemas de
Flora_#22 | Imagem de Rejane Cantoni

Abismo digital: desigualdades e privações no acesso à internet no Brasil

POR JOÃO PAULO DE RESENDE CUNHA, LUÍSA GONÇALVES

MEIRELES, MAÍRA SARUÊ MACHADO E RACHEL RUA BAPTISTA

RESUMO

O artigo busca mapear as desigualdades de acesso à internet no Brasil, compreendendo suas principais características e consequências para o acesso a oportunidades em áreas como educação, cidadania e mercado de trabalho. Dessa forma, mostra que as disparidades de infraestrutura e no letramento digital geram privações importantes para a população mais vulnerável e representam um desafio central para o desenvolvimento inclusivo do país.

INTRODUÇÃO

O crescimento do uso da internet e os avanços tecnológicos que vêm ampliando as possibilidades da rede abrem espaço para debates sobre como esses desenvolvimentos impactam a estrutura comunicacional, as novas formas de socialização, as possibilidades de aprendizagem, a produção cultural, o mercado de trabalho e a própria oportunidade de os indivíduos se constituírem enquanto sujeitos reflexivos e participativos. Em sociedades desiguais como o Brasil, entretanto, não se pode empreender esses debates sem considerar como essas transformações afetarão de maneira diferenciada grupos com maior e menor acesso às inovações. Embora o país tenha vivenciado, nos últimos anos, avanços importantes na digitalização da sua população, ainda enfrentamos barreiras de acesso que refletem problemas estruturais da sociedade brasileira.

Com o objetivo de caracterizar melhor esse cenário de abismos digitais presentes no Brasil, um estudo conduzido pelo Instituto Locomotiva em parceria com a PwC Brasil buscou sistematizar dados públicos e dados proprietários para subsidiar o necessário debate sobre os desafios para se ampliar a inclusão digital no país, alguns dos quais destacaremos neste artigo.

GAPS DIGITAIS

Os avanços fundamentais na ampliação do acesso escondem, no entanto, grandes assimetrias que persistem no uso da internet entre diferentes segmentos da sociedade brasileira.

Segundo o levantamento de 2021 da pesquisa sobre o uso das tecnologias da informação e da comunicação nos domicílios brasileiros, a “TIC domicílios”, conduzida pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) (NIC.br, 2022), 81% dos brasileiros com mais de 10 anos haviam acessado a internet nos últimos 3 meses. No estudo de 2011 (NIC.br, 2012), uma década antes, essa proporção era de apenas 46%. Segundo os dados mais atualizados, 82% dos domicílios têm acesso

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à internet, enquanto em 2011 essa proporção era de apenas 36%. Ou seja, os brasileiros vivenciaram um crescimento expressivo do acesso à internet nos últimos dez anos. Os avanços fundamentais na ampliação do acesso escondem, no entanto, grandes assimetrias que persistem no uso da internet entre diferentes segmentos da sociedade brasileira. Ainda há uma proporção elevada de pessoas que declaram nunca ter acessado a internet entre indivíduos com mais de 60 anos (47%) e entre os que não cursaram o Ensino Fundamental (66%). Mas, mesmo ao considerarmos aqueles que são internautas, indivíduos de menor renda e moradores de territórios mais pobres, estratos predominantemente compostos de pessoas negras, seguem enfrentando múltiplos desafios relacionados a qualidade da conexão, custo do serviço, acesso a equipamentos e letramento digital, que prejudicam diretamente a sua capacidade de usufruir das potencialidades da internet em comparação às pessoas de maior renda.

Como evidência de que a chegada da internet a parcelas mais amplas da população está longe de significar um acesso pleno e igualitário às oportunidades digitais, calculamos um indicador de privação on-line a partir de uma pesquisa telefônica conduzida pelo Instituto Locomotiva com 1.228 internautas de 16 anos ou mais de todas as regiões do país. Com base na experiência declarada de limitações ocasionadas pela falta de dados disponíveis ao longo do último mês, o indicador foi calculado considerando as seguintes situações: 1) não poder ficar o mês todo conectado; 2) dispor de uma quantidade de dados insuficiente para atender às suas necessidades; 3) ficar sem dados no celular antes do que gostaria; 4) deixar de acessar conteúdos que gostaria por falta de dados; 5) ter que adiar o acesso a algum conteúdo até chegar a alguma conexão wi-fi; 6) precisar se preocupar com economia de dados; 7) precisar ficar ligando e desligando o 3G/4G do celular para evitar o consumo de dados; e 8) ter ficado limitado ao uso de determinados aplicativos por falta de dados.

apenas 36% dos internautas brasileiros declararam não ter experimentado nenhuma das situações de privação on-line no último mês, grupo que chamamos de “plenamente conectados”.

Os resultados são preocupantes: apenas 36% dos internautas brasileiros declararam não ter experimentado nenhuma das situações de privação on-line no último mês, grupo que chamamos de “plenamente conectados”. Outros 33% declararam ter enfrentado entre uma e quatro dessas situações no último mês, grupo que chamamos de “parcialmente conectados”. E 31% declararam ter enfrentado cinco ou mais dessas situações apenas no último mês, grupo que chamamos de “subconectados”.

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Para além do fato de que praticamente dois em cada três internautas brasileiros declararam vivenciar situações de privação na sua experiência digital, limitando suas possibilidades, os perfis mais expostos a essas privações são justamente aqueles tradicionalmente mais vulneráveis em outras dimensões da vida social.

A proporção de internautas subconectados, aqueles mais afetados por privações on-line no último mês, é maior entre pessoas de menor renda, menor escolaridade, negras e moradoras das regiões Norte e Nordeste. Por outro lado, entre a minoria plenamente conectada, que declarou não ter vivenciado nenhuma das situações avaliadas no último mês, destacam-se os mais ricos, mais escolarizados, brancos e moradores da Região Sul. Os subconectados também relatam em maior proporção precisar acessar a internet usando wi-fi da casa de amigos e parentes, e depender mais de bônus fornecidos pelas operadoras de telefonia, indicando menor autonomia para poderem usufruir da rede quando de fato precisam ou desejam.

Gráfico 2: Classe socioeconômica por nível de privação on-line entre internautas

Classe socioeconômica por agrupamento de internautas conforme nível declarado de privação on-line

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Gráfico 1: Nível de privação on-line entre internautas
31% 36% 33%
Grupos de internautas conforme nível declarado de privação on-line Plenamente conectados Parcialmente conectados Subconectados Fonte: Instituto Locomotiva, 2021 . Fonte: Instituto Locomotiva, 2021. Critério de classificação de renda a partir de Brasil, 2012.
A e B C D e E Plenamente conectados Parcialmente conectados Subconectados 27% 20% 8% 62% 63% 18% 29% 65% 8%

Assim, apesar da forte expansão da proporção de internautas na última década, a realidade de acesso replica ainda assimetrias presentes em outras dimensões da vida social. Famílias mais pobres e moradoras das regiões Norte e Nordeste, estratos majoritariamente compostos de pessoas negras, estão muito mais expostas às múltiplas limitações resultantes de uma conexão de menor qualidade. Em termos práticos, isso significa, por exemplo, menor condição de jovens pobres utilizarem plenamente recursos on-line na sua educação ou exercitarem competências digitais que serão mais tarde exigidas no mercado de trabalho. Dessa forma, ao mesmo tempo que trazem grandes potencialidades, as inovações digitais no Brasil também acabam por se tornar uma nova dimensão na qual as desigualdades se manifestam e se reproduzem.

FONTES DE DESIGUALDADE DIGITAL

Para compreender as desigualdades digitais no país, devemos olhar para dois eixos: o da infraestrutura, relacionado a amplitude e distribuição de sinal, custo de acesso, qualidade do sinal e equipamentos de acesso; e o do letramento digital, que trata das habilidades e competências para o uso da internet.

INFRAESTRUTURA

Segundo um levantamento realizado em agosto de 2021 pelo movimento Antene-se1 a partir do IBGE e da Teleco, em todas as capitais do Brasil há defasagem na infraestrutura que garante conectividade ao cidadão. Quanto menor a disponibilidade de antenas para atender aos usuários, menor será a velocidade de conexão com a internet. Nenhuma capital brasileira apresenta a quantidade recomendada de antenas para uma boa conectividade, que é de até mil habitantes por infraestrutura, mas as áreas com a maior média de habitantes por infraestrutura disponível são justamente os distritos de menor renda, comprometendo a conectividade de famílias que vivem em territórios mais pobres.

Essas disparidades de infraestrutura são agravadas, ainda, pela enorme diferença na capacidade de aquisição privada de serviços de dados entre famílias de maior e menor renda. Conforme dados da POF/IBGE2, famílias de renda mais alta [25 salários mínimos (SM) ou mais] gastam 30 vezes mais em telefonia, internet e TV em comparação às famílias de menor renda (até dois SM).

Gráfico 3: Gasto mensal familiar com pacote de telefone, TV e internet por classe de rendimento

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R$ 300 R$ 250 R$ 200 R$ 150 R$ 100 R$ 50 R$ 0 2 a 3 SM 3 a 6 SM 6 a 10 SM 10 a 15 SM 15 a 25 SM 2 SM 25 SM
Fonte: Instituto Locomotiva (2021) a partir da POF/IBGE. Valor inflacionado pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) para 31 de agosto de 2021.

Ainda conforme a “TIC domicílios 2021”, apenas 23% dos domicílios brasileiros com acesso à internet contam com banda larga fixa de alta velocidade [51 megabits por segundo (mbps) ou mais]. Essa média omite também grandes disparidades regionais e socioeconômicas: o acesso à banda larga fixa de maior velocidade alcança 34% na Região Sul, mas apenas 14% na Região Nordeste; e avança os 40% entre as famílias com renda superior a dez SM, mas é de apenas 14% entre as famílias que vivem com até um SM. Inversamente, 29% dos domicílios conectados nem sequer possuem internet disponibilizada por meio de banda larga fixa, sendo 41% entre famílias de menor renda conectadas, proporção que cai para 7% entre as famílias mais ricas, conforme indicado nos gráficos 4 e 5.

Gráfico 4: Acesso à internet com velocidade de 51 mbps ou mais por região e renda

% de domicílios com acesso à internet com velocidade de 51 mbps ou mais por região e renda familiar

Fonte: NIC.br, 2022.

Gráfico 5: Ausência de banda larga por região e renda familiar

% de domicílios que não possuem banda larga fixa por região e renda familiar

Fonte: NIC.br, 2022.

famílias de menor renda sofrem com menor disponibilidade de sinal, dispõem de menos acesso à banda larga fixa de alta velocidade, dependem mais do celular como dispositivo exclusivo

Em síntese, enquanto famílias de maior renda vivem em territórios com melhor infraestrutura e têm condições de contratar equipamentos e serviços de melhor qualidade, as famílias de menor renda sofrem com menor disponibilidade de sinal, dispõem de menos acesso à banda larga fixa de alta velocidade, dependem mais do celular como dispositivo exclusivo de acesso – o que representou um enorme desafio para o ensino remoto de crianças de baixa renda durante a pandemia de covid-19 – e precisam recorrer a pacotes de dados de baixo custo, com

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100 75 50 25 0 Nordeste Sul Norte Centro-Oeste Região Renda familiar Até 1 SM Mais de 1 SM até 2 SM Mais de 2 SM até 3 SM Mais de 3 SM até 5 SM Mais de 5 SM até 10 SM Sudeste Mais de 10 SM
Região Renda familiar Sudeste 28 Centro-Oeste 28 Até 1 SM 41 Mais de 1 SM até 2 SM 32 Mais de 2 SM até 3 SM 23 Mais de 3 SM até 5 SM 14 Mais de 5 SM até 10 SM 9 Mais de 10 SM 7 Nordeste 35 Sul 18 Norte 39

planos pré-pagos sujeitos a interrupção frequente de acesso ou limitação de uso a determinados aplicativos “zero rating”. Essa combinação restringe fortemente as experiências digitais e pode afetar diretamente o acesso a oportunidades de trabalho, estudo e desenvolvimento de novas habilidades oferecidas pela internet.3

LETRAMENTO DIGITAL

Embora as questões de infraestrutura apresentem dados importantes para pensar nos abismos digitais, eles não se limitam a esse aspecto. O Brasil enfrenta importantes desafios de letramento digital de sua população, novamente atingindo sobretudo os segmentos mais vulneráveis. Em um ranking produzido pela Economist Impact ao avaliar o nível de inclusão digital, The inclusive internet index (2022), o Brasil ocupa o 60º lugar entre cem países no indicador de letramento digital. As dificuldades relacionadas à Educação Básica também são um agravante no desenvolvimento das competências digitais. De acordo com os dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa),4 na avaliação mundial da educação feita pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) com 79 países, o Brasil obteve um dos dez piores desempenhos em matemática, apresentando também um fraco desempenho em leitura, o que prejudica a possibilidade de se utilizarem plenamente os recursos da internet. Além disso, mais de 8 milhões de alunos matriculados nas redes municipais e estaduais de Educação Básica estão em escolas sem acesso à banda larga. Outros 124 mil estudantes estão em escolas que nem sequer têm energia elétrica. Entre as instituições que oferecem Ensino Médio, uma em cada quatro não tem internet para o ensino e a aprendizagem.5

O Brasil enfrenta importantes desafios de letramento digital de sua população, novamente atingindo sobretudo os segmentos mais vulneráveis.

Esse cenário resulta em sérias dificuldades para a consolidação de habilidades digitais, com boa parte dos jovens brasileiros apresentando incapacidade de interpretar de forma autônoma os conhecimentos disponíveis na internet, o que traz consequências negativas que podem envolver uma maior vulnerabilidade em relação tanto a golpes e fraudes quanto a conteúdos de desinformação.

CONCLUSÃO

Os abismos digitais existentes entre a população brasileira não só refletem as disparidades socioeconômicas do Brasil como também contribuem para reforçá-las, trazendo consequências que podem ser percebidas em praticamente todas as esferas da sociedade.

Na educação, as desigualdades de infraestrutura prejudicam sobretudo uma geração de jovens brasileiros estudantes de escola pública, e o letramento digital deficiente se expressa não somente em competências de programação e lógica computacional, mas também na falta de autonomia de interação com os meios tecnológicos e na formação crítica de cidadãos. Em uma sociedade cada vez mais digitalizada, esses déficits também implicam um impacto na produtividade e na produção de riqueza do país, uma vez que o mercado exige, cada vez mais, profissionais capacitados para atuar no meio digital. Segundo uma análise realizada pela PwC para o Fórum Econômico Mundial (WEF; PWC, 2021), o investimento

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acelerado na qualificação e na requalificação dos trabalhadores em termos de inclusão digital pode adicionar ao menos 6,5 trilhões de dólares ao produto interno bruto (PIB) global até 2030, e criar 5,3 milhões de empregos (líquidos). Na América Latina, esse movimento poderia proporcionar um aumento médio de 7,7% no PIB do continente.

Hoje, as camadas da população mais afetadas por esses abismos – sobretudo pessoas mais pobres, negras e residentes nas regiões Nordeste e Norte do país – ficam presas a um ciclo vicioso: a baixa digitalização dificulta o acesso a empregos, o que impacta negativamente a renda e a possibilidade de digitalização, contribuindo para a manutenção das estruturas sociais que perpetuam essas desigualdades. Romper com esse ciclo envolve priorizar investimentos em inclusão digital, considerando a superação de barreiras de infraestrutura e de letramento digital, para que a cultura digital possa atingir e beneficiar de forma mais ampla e inclusiva a população brasileira, e para que o termo “abismo” não seja mais uma boa analogia para descrevê-la.

JOÃO PAULO DE RESENDE CUNHA

Bacharel em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP), com especialização em análise econômica pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) e MBA em economia e gestão pela Université Grenoble Alpes, na França. É diretor de pesquisa do Instituto Locomotiva.

LUÍSA GONÇALVES MEIRELES

Bacharela em relações internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é analista de comunicação do Instituto Locomotiva.

MAÍRA SARUÊ MACHADO

Bacharela em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP) e mestra em sociologia pela mesma instituição. É diretora de pesquisa do Instituto Locomotiva.

RACHEL RUA BAPTISTA

Bacharela em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP) e mestra e doutora em antropologia social pela mesma instituição. É gerente de pesquisa qualitativa do Instituto Locomotiva.

NOTAS

1. TELECO, 2021. Antene-se para o sinal da Desigualdade. Disponível online em: https://antenese.org.br/ estudos-do-antene-se/ Acesso em 31/05/2023.

2. Cf. INSTITUTO LOCOMOTIVA; PRICEWATERHOUSECOOPERS. O abismo digital no Brasil: como a desigualdade de acesso à internet, a infraestrutura inadequada e a educação deficitária limitam nossas opções para o futuro. São Paulo: Instituto Locomotiva; PwC, 2022.

3. Ver: INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR Acesso à internet móvel: franquia de dados e bloqueio do acesso dos consumidores. São Paulo: IDEC, 2019. Disponível em: https:// idec.org.br/publicacao/acessointernet-movel. Acesso em: 11 maio 2023.

4. BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Pisa 2018 revela baixo desempenho escolar em leitura, matemática e ciências no Brasil Brasília, DF: MEC, 2019.

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5. Ver: INSTITUTO RUI BARBOSA Comitê Técnico da Educação. Informes. Vitória: CTE-IRB, 20202021. Disponível em: https:// projetoscte.irbcontas.org.br/ projetos/. Acesso em: 16 set. 2022.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Maria Elisabeth Bianconcini. Letramento digital e hipertexto: contribuições à educação. In: PELLANDA, Nize Maria Campos; SCHLÜNZEN, Elisa Tomoe Moriya; JUNIOR, Klaus Schulünzen (org.). Inclusão digital: tecendo redes afetivas/cognitivas. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

BRASIL. Ministério da Educação. Pisa 2018 revela baixo desempenho escolar em leitura, matemática e ciências no Brasil. Brasília, DF: MEC, 2019.

BRASIL. Secretaria de Assuntos Estratégicos. Relatório de definição da classe média no Brasil. Brasília, DF: SAE, 2012.

ECONOMIST IMPACT The inclusive internet index. Economist Impact, 2022. Disponível em: https://impact.economist.com/projects/inclusive-internet-index. Acesso em: 11 maio 2023.

FANTIN, Monica; GIRARDELLO, Gilka Elvira Ponzi. Diante do abismo digital: mídia-educação e mediações culturais. Perspectiva, Florianópolis, v. 27, n. 1, p. 69-96, 2009.

INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR Acesso à internet móvel: franquia de dados e bloqueio do acesso dos consumidores. São Paulo: Idec, 2019. Disponível em: https://idec. org.br/publicacao/acesso-internetmovel. Acesso em: 11 maio 2023.

INSTITUTO LOCOMOTIVA; INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR Barreiras e limitações no acesso à internet e hábitos de uso e navegação na rede nas classes C, D e E. São Paulo: Instituto Locomotiva; Idec, 2021.

INSTITUTO LOCOMOTIVA; PRICEWATERHOUSECOOPERS. O abismo digital no Brasil: como a desigualdade de acesso à internet, a infraestrutura inadequada e a educação deficitária limitam nossas opções para o futuro. São Paulo: Instituto Locomotiva; PwC, 2022.

INSTITUTO RUI BARBOSA. Comitê Técnico da Educação. Informes

Vitória: CTE-IRB, 2020-2021. Disponível em: https://projetoscte. irbcontas.org.br/projetos/ Acesso em: 16 set. 2022.

NÚCLEO DE INFORMAÇÃO E COORDENAÇÃO DO PONTO

BR (NIC.br). (2012). Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros: pesquisa TIC Domicílios, ano 2011. Disponível em: https://cetic.br/media/ analises/apresentacao-ticdomicilios-2011.pdf. Acesso em: 11 maio 2023.

NÚCLEO DE INFORMAÇÃO E COORDENAÇÃO DO PONTO

BR (NIC.br). (2022). Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros: pesquisa TIC Domicílios, ano 2021. Disponível em: https://cetic.br/pt/arquivos/ domicilios/2021/individuos/ Acesso em: 11 maio 2023.

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TELECO, 2021. Antene-se para o sinal da Desigualdade. Disponível online em: https://antenese.org.br/ estudos-do-antene-se/. Acesso em 31 maio 2023.

SCHWARTZ, Gilson. Exclusão digital entra na agenda econômica mundial. Folha de S.Paulo, São Paulo, 18 jan. 2000.

WORLD ECONOMIC FORUM; PRICEWATERHOUSECOOPERS. Upskilling for shared prosperity

Genebra: WEF; PwC, 2021. Disponível em: https://www3.weforum. org/docs/WEF_Upskilling_for_ Shared_Prosperity_2021.pdf. Acesso em: 11 maio 2023.Contabilização de bens culturais digitais gratuitos no PIB da Economia da Cultura e das Indústrias Criativas: considerações metodológicas

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Flora_#24 | Imagem de Rejane Cantoni

Música nas webs 2.0 e 3.0: do streaming aos tokens

RESUMO

Neste artigo, exploramos as relações entre música e tecnologias digitais, com ênfase na transição de um modelo baseado em algoritmos de recomendação com governança centralizada e pouco transparente (web 2.0) para um modelo em que a propriedade da identidade digital passa a ser o elemento principal de uma governança descentralizada e mais transparente (web 3.0).

MÚSICA E WEB 2.0:1 UM DIAGNÓSTICO RÁPIDO

A disputa por atenção nas plataformas que sustentam a difusão musical – como Instagram, TikTok, YouTube e Spotify – é um exemplo de como o tráfego na internet se concentrou em poucas plataformas, e de como as big techs2 são centrais hoje para a produção cultural. As redes sociais3 são essenciais para redirecionar o tráfego da audiência para plataformas de streaming,4 e o esforço para levar as pessoas de um “lugar” para o outro é tão grande que requer cada vez mais tempo e recursos dos artistas (MULLIGAN, 2021).

Isso tem um enorme impacto nos modelos de negócio na área da música, cada vez mais desenvolvidos em torno do marketing de conteúdo e das fronteiras porosas entre artistas e influenciadores (CHIOCCARELLO, 2020). Para esses “criadores de conteúdos” digitais, compreender a semântica de cada uma das mídias sociais é fundamental para a conversão de pessoas em consumidores, objetivo último do marketing de conteúdo. Contudo, o design de plataforma dessas mídias – originalmente centrado na geolocalização e nas interações one-to-one de seus usuários – tem se transformado no sentido de globalizar o alcance dos conteúdos. Isso graças ao redesenho do social graph5 das redes sociais (LEMOS, 2022), cada vez mais desterritorializado. Se, por um lado, a distribuição mais global de conteúdos pode beneficiar artistas em busca de audiências mais amplas, por outro, o redesenho do social graph torna essa audiência cada vez mais culturalmente distante dos criadores, além de conduzir a criatividade à produção de conteúdos cada vez mais padronizados. Dessa forma, não só a relação entre o artista e seus fãs é cada vez mais mediada pelas big techs, mas os próprios processos culturais de construção de identidades são mediados por essas plataformas, cujos objetivos são eminentemente comerciais.

Não obstante, a principal forma de se ouvir música hoje é mediada por algoritmos de recomendação,6 que coletam, armazenam e tratam uma enorme quantidade de dados para predizer gostos e vender publicidade on-line. A esse processo se dá o nome de comoditização da música, caracterizada pela produção dos bens culturais de maneira padronizada e em larga escala mundial, pelo preço determinado não pelos produtores, mas pela relação entre a oferta e a demanda internacional, e por ter como objetivo tão somente ser gancho para a economia da

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atenção e a captura de dados pelas big techs. Isso faz do mercado musical uma das fronteiras do capitalismo de dados ou de vigilância (ZUBOFF, 2021). Pensar o mercado musical no âmbito da gestão cultural exige pensar também nas transformações dos meios digitais que o sustentam, bem como no papel das techs nesse processo.

O modelo de negócio das techs é o acesso às pessoas, e seu business é a venda de audiência microssegmentada para a publicidade on-line: os sistemas algorítmicos coletam e tratam informações pessoais, cruzam variáveis e criam perfis individuais para cada usuário da rede com o objetivo de predição de nossos padrões de consumo. Em certo sentido, os sistemas de recomendação nos conhecem melhor do que nós mesmos. Enquanto usuários, porém, não temos acesso às informações associadas a nossos perfis individuais. A identidade digital de cada usuário da internet, com todas as informações qualitativas associadas ao seu perfil individual, não é conhecida pelos próprios usuários, mas é utilizada como ativo principal para a venda de anúncios on-line pelas big techs. Quando fazemos login num serviço digital – por exemplo, uma assinatura de um jornal – por meio de nossos perfis preexistentes no Google, na Apple ou no Facebook, as empresas envolvidas trocam entre si informações valiosas sobre nosso comportamento digital para nos oferecer produtos e serviços de maneira direcionada. Embora estejamos expostos a tais anúncios, não conhecemos as razões que nos levaram a eles. É por isso que dizemos que, na web 2.0, os usuários não detêm a propriedade de sua identidade digital, tanto pelo uso de serviços de terceiros para login quanto pelo total desconhecimento dos atributos de identidade relacionados ao seu perfil digital.

os sistemas algorítmicos coletam e tratam informações pessoais, cruzam variáveis e criam perfis individuais para cada usuário da rede com o objetivo de predição de nossos padrões de consumo.

Controlar o tráfego na internet é crucial para essas empresas, pois é a partir do controle centralizado do tráfego que se podem coletar dados, realizar a microssegmentação da audiência e atualizar constantemente os sistemas de recomendação, de acordo com as preferências e os interesses transitórios dos indivíduos (SANTINI, 2020). Há um alto custo no desenvolvimento dessas tecnologias, e por esse motivo o mercado musical em nível global continua organizado sob um modelo concentrador, ainda que haja a percepção de que a internet aproximou os produtores dos meios de difusão (GHEZZI, 2022).

Nesse modelo, em que o tráfego na internet se concentra em poucas plataformas ou aplicativos, tudo reforça a governança centralizada das big techs. O sistema de pagamentos das plataformas de streaming é um exemplo disso: ele não é estruturado em torno do que cada usuário escuta individualmente (sistema user-centric),7 mas sim em torno da participação (market share) de cada faixa no total de reproduções da plataforma (pro-rata).8 Nesse sistema, a participação da faixa no total de reproduções é usada como denominador para a distribuição dos pagamentos (GHEZZI; IDEA, 2021). O valor a ser pago pela música não é definido pelos titulares dos direitos autorais, pois depende de um cálculo pouco transparente sujeito ao modelo de negócio das techs e das grandes gravadoras (WALRAVEN, 2022).

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não é conhecida pelos próprios usuários, mas é utilizada como ativo principal para a venda de anúncios on-line pelas big techs.

A questão da concentração impõe-se quando colocamos em discussão os sistemas de recomendações algorítmicas da plataforma. Um dos critérios usados para a recomendação de músicas é a popularidade da faixa.9 Dentro dos perfis de gosto previamente mapeados da audiência, os algoritmos recomendam as faixas mais populares. Se a remuneração é feita pela participação ou pela popularidade da faixa, e se o sistema de recomendação prioriza as faixas populares dentro do seu perfil de usuário, temos uma bola de neve que faz com que os artistas mais populares permaneçam ainda mais populares. As plataformas não são neutras e reforçam a popularidade dos que já são populares e contam com ações promocionais robustas. O modelo é estruturalmente concentrador, e acaba favorecendo catálogos ligados às chamadas gravadoras majors.

DA WEB 2.0 PARA A WEB 3.0

A concentração monopolística da indústria cultural (ADORNO; HORKHEIMER, 1985; GHEZZI, 2003) sempre foi um gargalo para a distribuição e a legitimação de bens simbólicos (BOURDIEU, 1998; GHEZZI, 2011). E, apesar da percepção de que a internet aproximou os produtores dos meios de difusão – o que não deixa de ser verdade, embora revele uma visão simplista –, o maior gargalo dos produtores culturais parece ter migrado do “acesso aos meios de produção e difusão” para o “acesso à audiência e a disputa pela atenção” (MULLIGAN, 2021) nesses meios, que depende, em grande medida, das recomendações algorítmicas.

Contudo, o desenvolvimento tecnológico, especialmente do blockchain, 10 tem permitido que se vislumbrem outras formas de relacionamento com os meios digitais além das recomendações algorítmicas. A web 3.0 tem mais a ver com uma nova forma de uso das tecnologias – que preconiza a descentralização como elemento principal de sua governança – do que com novos suportes ou dispositivos. Termos como “posse da identidade digital”, “descentralização do tráfego”, “governança distribuída”, “contratos inteligentes” (smart contracts), “transparência” e “comunidades digitais” ganham cada vez mais força, e se constituem como elementos centrais da web 3.0. O blockchain permite que usuários de internet tenham identidades (ou carteiras digitais) intransferíveis associadas aos seus perfis, geridas individualmente sem intermediários como o Google ou o Facebook, que monetizam dados pessoais, o que possibilita uma série de novos usos de nossa identidade digital na internet. Nesse sentido, a web 3.0 é uma reação ao modelo concentrado das redes sociais e das plataformas cuja governança altamente centralizada nos aparta da propriedade de nossas identidades digitais e nos impede de atribuir valor aos produtos tributários de nossa identidade digital.

A web 3.0 tem mais a ver com uma nova forma de uso das tecnologias – que preconiza a descentralização como elemento principal de sua governança – do que com novos suportes ou dispositivos.

NFT é a sigla de non-fungible token, “token não fungível”, em português. Não fungível significa não substituível. Uma nota de 10 reais é fungível, pois ela pode ser substituída por qualquer outra mantendo o seu valor. Já um objeto artístico original não pode ser substituído nem mesmo por sua cópia, portanto, seria não fungível. Quando há algum NFT associado a um bem digital original (como uma músi-

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ca, uma imagem, uma postagem em rede social ou um GIF), este se torna único e sua propriedade também. Isso porque a propriedade desse bem é associada a uma identidade digital por meio de blockchain, o que garante a exclusividade na posse desse bem originalíssimo. Assim, mesmo que haja cópias digitais, apenas quem detém o NFT associado ao bem original é o proprietário exclusivo, pois é dele o registro de originalidade da obra digital – que, por ser registrado em blockchain, é rastreável e praticamente impossível de ser fraudado.

É essa unicidade que explica o valor monetário que esses bens adquirem em leilões ou em plataformas de comercialização de NFT. Tais plataformas – como a brasileira Phonogramme –11 associam NFT não só a músicas, mas a qualquer objeto ou experiência relacionada à música. Por exemplo, participação nos royalties de streaming (que transformam os compradores em acionistas do fonograma, havendo distribuição de benefícios econômicos por tracking), encontros com o autor (meet and greet), entradas especiais em shows etc. Essa forma de monetização da música e das experiências associadas a ela, em que os próprios artistas mensuram o valor econômico de suas obras, só é possível quando os usuários da internet compradores de NFT detêm a propriedade de sua identidade digital por meio de carteiras em blockchain. Dito de outra forma, sem a propriedade da identidade digital, não seria possível associar a posse de bens únicos a um determinado usuário da internet, tampouco comercializar tais bens.

a web 3.0 é uma reação ao modelo concentrado das redes sociais e das plataformas cuja governança altamente centralizada nos aparta da propriedade de nossas identidades digitais e nos impede de atribuir valor aos produtos tributários de nossa identidade digital.

Se na web 1.0 o login em plataformas e serviços exigia um nome de usuário e uma senha para cada serviço, e na web 2.0 os logins podem ser feitos com perfis individuais de propriedade das big techs, na web 3.0 o login se dá por meio da conexão de sua própria carteira digital em blockchain ao serviço desejado, sem que os dados de tráfego sejam transferidos ou monetizados por terceiros. A web 3.0 dá às pessoas direitos de propriedade, isto é, a capacidade de possuírem a propriedade de sua identidade na internet. A propriedade da identidade digital é um conceito fundamental, e seus usos estão apenas começando a se desenhar.

O FUTURO DA MÚSICA NA INTERNET E SEUS DESAFIOS

Os primeiros usos do blockchain e da web 3.0 que parecem ter ganhado alguma relevância foram as criptomoedas.12 Durante o período mais crítico da pandemia de covid-19, entre 2020 e 2021, os NFT se multiplicaram, justamente por representarem uma possibilidade de renda alternativa para artistas e agentes culturais altamente impactados pelos bloqueios e quarentenas do período. O descontentamento de parte do meio musical com a economia da cultura altamente oligopolista das big techs – a despeito das previsões otimistas do relatório “Music in the air”, do banco de investimentos Goldman Sachs – 13 fez com que os NFT fossem vistos como algo maior do que uma alternativa temporária relacionada às restrições da pandemia. Os NFT passaram a ser considerados por muitos como elementos de monetização direct-to-fan, ou de uma governança descentralizada da monetização da música em ambiente digital, na qual o valor da obra é determinado por seu criador (WALRAVEN, 2022) tendo como base seus valores funcional, emocional

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O descontentamento de parte do meio musical com a economia da cultura altamente oligopolista das big techs fez com que os NFT fossem vistos como algo maior do que uma alternativa temporária relacionada às restrições da pandemia. Os NFT passaram a ser considerados por muitos como elementos de monetização direct-to-fan, ou de uma governança descentralizada da monetização da música em ambiente digital, na qual o valor da obra é determinado por seu criador

ou como investimento. O valor pode ser atribuído por seu criador de acordo com critérios como raridade ou engajamento de sua base de fãs (fan base), e não por um cálculo pro-rata em que a música é elemento de captura de atenção para publicidade on-line, e sobre o qual o criador não tem o menor poder de decisão.

A organização descentralizada autônoma (DAO, na sigla em inglês) Water and Music 14 tem realizado diversos levantamentos envolvendo NFT e música, pois entende que esse é o futuro dessa indústria, por possibilitar novas formas de remuneração a criadores e uma governança descentralizada. A DAO ajuda a indústria da música a repensar as abordagens tradicionais de criatividade, monetização e engajamento dos fãs. O seu objetivo é encorajar os membros da organização para obterem “uma nova compreensão do mercado, contextualizando seu posicionamento na Web3, mas também para agirem, concebendo novas estratégias para projetos Web3” (WATER AND MUSIC, 2022). O primeiro levantamento da DAO informa que, em 2021, o mercado de NFT musicais movimentou mais de 86 milhões de dólares, sendo que: os artistas independentes representaram a maioria (64%) das vendas, enquanto os artistas de grandes gravadoras representaram a minoria (36%); o gênero mais popular por participação na receita foi o eletrônico (65%), seguido do hip-hop (19%); e, entre fevereiro e dezembro de 2021, o preço médio por música NFT caiu 46%, de 18,8 mil para 10,2 mil dólares por unidade (WATER AND MUSIC, 2022). Um outro levantamento de NFT musicais está sendo realizado pela Futurx, DAO liderada por Nicolás Madoery, primeira comunidade latino-americana de aprendizagem e intercâmbio sobre música e tecnologia baseada na web 3.0.15

Apesar das perspectivas positivas, há inúmeros limites para a plena realização das potencialidades preconizadas pela web 3.0, pelo blockchain e pelos tokens únicos. Além da falta de um ambiente regulatório, com relação a direitos autorais ou ao consumo energético do blockchain, observa-se que os desafios vão mais no sentido da adoção do que propriamente de questões mais abrangentes, como a regulação. Haveria pelo menos cinco grandes desafios a serem superados para que a web 3.0 passe de promessa a realidade, descritos a seguir.

O primeiro deles seria uma mudança de mentalidade na forma como nos relacionamos com as nossas identidades digitais. Enquanto sociedade, temos uma fraca percepção de como as big techs usam os dados de tráfego associados à nossa identidade para a venda de publicidade on-line, e de como isso contribui para um modelo concentrador e unilateral do ambiente digital. A naturalização dessa lógica impede uma abertura para novas formas de pensar a identidade em ambiente digital, bem como para novos modelos de organização, participação e governança. E, se não nos abrimos para novas possibilidades e funcionalidades, nem sequer conseguimos perceber as vantagens dos novos usos das identidades tokenizadas, experimentadas apenas por um grupo de usuários interessados em novas tecnologias e soluções, os chamados early adopters

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As vantagens das identidades tokenizadas (únicas e validadas por blockchain) podem ser mais bem percebidas se pensarmos no exemplo dos dados médicos, cujo valor de uso parece ser mais visível que o dos dados de tráfego na internet. Ninguém seria favorável que planos de saúde ou convênios médicos usassem os seus dados médicos pessoais (como histórico de doenças, resultados de exames e medicações utilizadas) para cobrar mais caro por remédios e por serviços prestados a você. Substituam-se os planos de saúde pelas big techs e os dados médicos pelos dados de tráfego. Não costumamos nos importar quando essa apropriação de dados pessoais acontece com nosso comportamento individual na internet para que os anunciantes nos acessem. Estamos acostumados com a centralização operada pelas big techs, e não nos damos conta de que tudo o que envolve identidade no ambiente digital pode ser radicalmente transformado pela tokenização, no sentido de maior privacidade e transparência. Com as carteiras digitais em blockchains – como Ethereum, 16 Algorand, 17 Polygon, 18 Solana 19 e Cardano, 20 entre outras) –, 21 os aspectos comportamentais associados às nossas identidades digitais não são comercializados à nossa revelia, como acontece atualmente, pois as operações de troca de informações seriam rastreáveis e auditáveis. É necessário ter consciência do funcionamento e dos limites da web 2.0 para que novos modelos de governança possam emergir. Na conferência Da indústria ao ecossistema da música, ocorrida no Festival CoMA – consciência, música e arte em julho de 2022, Martin Giraldo fez uma contribuição importante para pensarmos na mudança de mindset na indústria da música. Para ele, são necessários alguns entendimentos e atitudes para se pensar em um novo ecossistema musical na web 3.0:

1. É necessário entender que o mundo tem novas regras do jogo; 2. É necessário adotar uma narrativa de progresso coletivo e não apenas de modelo de negócio, visto que a indústria não define o que é progresso; e 3. Diante das mudanças tecnológicas, é necessário utilizarmos a nova infraestrutura (de monetização direta, financiamento descentralizado, etc.) para promover as mudanças que queremos no ecossistema da música (GIRALDO, 2022).

O segundo grande desafio a ser superado está relacionado a informação, educação, dados e traduções para a adoção plena da web 3.0. É necessário haver um processo contínuo de educação para a adoção de novos modelos de organização do ambiente digital. Sem informação qualificada que oportunize a mudança de mentalidade e a adoção massiva das ferramentas da web 3.0 (carteiras blockchain, contratos inteligentes, NFT, DAO), não haverá uma mudança significativa em relação ao modelo atual. No caso brasileiro, traduções de materiais de referência22 (quase todos em inglês) para a língua portuguesa – e que contemplem também nossas particularidades culturais – e outros tipos de mediações são absolutamente necessárias, pois as barreiras linguísticas e culturais impõem um nível adicional de dificuldade à questão de adoção e onboarding do ecossistema musical.

O terceiro desafio está relacionado a tecnologias mais gentis. É necessário que a tecnologia dialogue com o campo cultural de maneira mais horizontal, e não apenas de um ponto de vista tecnicista. Quanto mais simples melhor, pois criadores não deveriam ser especialistas em blockchain e contratos inteligentes a

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priori. Interseções entre ecossistemas tecnológicos e musicais não são fáceis, e sem um diálogo horizontal entre esses campos será difícil vislumbrar projetos musicais na web 3.0 que vão além dos NFT , pois a inovação não encontrará espaço para emergir. Tecnologias mais gentis contribuiriam para uma inovação no escopo dos projetos, e as universidades poderiam se envolver mais nessa área. Institutos de arte e/ou de ciências humanas poderiam criar linhas de pesquisa transdisciplinares que enfoquem a produção simbólica, e não apenas o desenvolvimento tecnológico em si.

O quarto desafio a ser enfrentado diz respeito à responsabilidade dos players da tecnologia em relação ao ecossistema musical. Na indústria fonográfica, a passagem do consumo de mídias físicas para o streaming (e a consolidação do Spotify) não considerou o impacto que a nova forma de remuneração por royalties de direitos autorais e conexos teria no pool de receitas dos compositores (ERIKSSON et al. , 2019). O modelo de negócio pro-rata , as subscrições pagas por publicidade e o preço das assinaturas das plataformas foram pensados para o onboarding das pessoas a esse modelo, e não visando à sua sustentabilidade para as classes criativas. Os novos usos das tecnologias e as novas propostas de governança têm que necessariamente envolver artistas e seus ecossistemas enquanto stakeholders , no sentido de que a produção cultural é um bem público. Plataformas não podem usar a produção cultural apenas como commodity ou como instrumento a serviço da publicidade on-line , caso contrário, os erros da web 2.0 serão repetidos. Governança descentralizada, com diversos stakeholders , não significa que o modelo de negócio das big techs será inviabilizado. Significa apenas reconhecer que há vários interesses e direitos em jogo, e que uma governança multilateral, com responsabilidades compartilhadas, pode ser boa para todo o ecossistema. É necessário apenas chegar a bons termos, o que pode ser atingido com a mediação qualificada de políticas culturais para as tecnologias (GHEZZI; IDEA, 2021). A responsabilidade de se chegar a um sistema mais transparente e justo não deveria ser só dos artistas, mas também das indústrias culturais e das políticas públicas.

Finalmente, o quinto desafio está relacionado com escalabilidade. Um novo ecossistema digital, centrado na governança descentralizada e na propriedade das identidades, requer adoção em massa para que seus benefícios possam ser usufruídos por todo o ecossistema. Embora deva haver a convivência dos modelos web 2.0 e web 3.0, sem escala na adoção, o primeiro deles vai prevalecer sobre as possibilidades do segundo. Nesse sentido, a plataforma que proporcionar um melhor processo de onboarding vai ter lugar central no mercado.

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COMO CITAR ESTE ARTIGO

GHEZZI, Daniela R. Música nas webs

2.0 e 3.0: do streaming aos tokens. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 35, 2023.

DANIELA RIBAS GHEZZI

Historiadora formada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestra e doutora em sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista em gestão e políticas culturais pela parceria entre a Universidade de Girona, na Espanha, e o Observatório Itaú Cultural. Foi consultora da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e do Mercosul Cultural, além de pesquisadora do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Presta consultoria para instituições como o Centre National de la Musique (CNM), da França, e o Ministério de Cultura e Juventude da Costa Rica. É diretora da Sonar Cultural e professora de music business em diversas instituições e iniciativas.

NOTAS

1. Costuma-se dizer que a web

1.0 era a internet estática e sem interatividade do início dos anos 1990, em que o login em plataformas e serviços exigia um nome de usuário e uma senha para cada serviço. Já a web 2.0 é o momento seguinte da internet, em que o acesso se dá principalmente por aplicativos de grandes corporações que controlam o tráfego na rede e os dados de navegação dos internautas, sendo que o login em qualquer plataforma pode ser feito usando o perfil do usuário nessas corporações (Google,

Facebook etc.). Esse é o modelo atual da internet, muito suscetível às recomendações algorítmicas realizadas a partir da captura de dados de tráfego. Voltaremos ao assunto mais adiante.

2. Empresas de tecnologia geralmente localizadas no Vale do Silício, nos Estados Unidos, que criaram serviços inovadores apoiadas em um modelo de negócios escalável, dinâmico e ágil. Também são conhecidas como as big five: Apple, Amazon, Alphabet (controladora do Google), Microsoft e Facebook (agora Meta).

3. Segundo estatísticas do grupo Meta, o Instagram atingiu 2 bilhões de contas ativas mensais em todo o mundo, diminuindo a distância em relação ao Facebook, do mesmo grupo, que é a maior rede social do mundo, com 2,96 bilhões de usuários ativos mensais (MENDES, 2022). Segundo o relatório “Digital AdSpend 2021”, do IAB Brasil (associação que representa o mercado de publicidade digital no país), foram investidos 30,2 bilhões de reais em publicidade digital no Brasil entre 2020 e o primeiro semestre de 2021. O estudo também revela que mais da metade (54%) do total do investimento publicitário no mesmo período se destinou às plataformas de mídias sociais.

4. A principal plataforma de streaming da atualidade é o Spotify, que globalmente tem 195 milhões de assinantes pagos e 456 milhões de usuários ativos mensais, número que combina usuários pagantes e usuários sustentados por anúncios (INGHAN, 2022).

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5. Em português, “gráfico social”, diagrama que ilustra as interconexões entre pessoas, grupos e organizações em uma rede social.

6. Dados da International Federation of Phonograph Industry (IFPI) afirmam que o streaming foi responsável por 65% das receitas globais de música gravada em 2021, totalizando 16,9 bilhões de dólares (IFPI, 2022).

7. Sobre os impactos da adoção do modelo de pagamento usercentric, ver: CENTRE NATIONAL DE LA MUSIQUE (CNM). Le CNM évalue l’impact d’un changement éventuel de mode de rémunération par les plateformes de streaming. CNM, Paris, 27 jan. 2021. Disponível em: https:// cnm.fr/le-cnm-evalue-limpactdun-changement-eventuel-demode-de-remuneration-parles-plateformes-de-streaming/ Acesso em: 29 out. 2022.

8. Pro-rata é sinônimo de rateio: tudo que é arrecadado é dividido entre todas as músicas que foram reproduzidas. Seria como colocar todos os pagamentos numa caixa, contabilizar todas as faixas reproduzidas em outra caixa e dividir a receita pelos plays, chegando-se então ao valor por play (ou per-play). O cálculo é refeito a cada mês de acordo com tudo o que foi pago e reproduzido, e por isso o valor por play não é fixo. As faixas mais tocadas são as que mais vão receber pagamentos em royalties, que abrigam, além da margem de 30% da plataforma, direitos autorais (cerca de 12%) e direitos conexos de produtores, intérpretes e músicos (cerca de 58%).

9. Popularidade da faixa: número entre zero e cem atribuído a cada faixa de acordo com o seu nível de popularidade isoladamente no Spotify, sendo cem o mais popular. É calculada por algoritmo e baseada, na maior parte, no número total de reproduções que a faixa teve e quão recentes são essas reproduções. Todas as faixas da plataforma têm um número atribuído nesse intervalo, portanto, a popularidade não é um ranking, mas um índice calculado pela própria plataforma que leva em consideração o número de vezes que a faixa foi tocada e quando (músicas executadas com mais frequência hoje recebem valores maiores do que se fossem somente sucessos do passado) (SONAR CULTURAL; FIMS, 2021).

10. Blockchain (“cadeia de blocos”, em tradução livre) é uma tecnologia utilizada para registros de transações na internet. O blockchain armazena informações de transações em lotes, chamados de blocos, organizados em uma rede distribuída. Esses blocos recebem uma espécie de impressão digital única – um código matemático chamado hash – e são interligados. A rede distribuída ou descentralizada favorece a validação da informação por toda a cadeia, e não por apenas um agente, o que contribui para a segurança do sistema. O conjunto de blocos se organiza em ordem cronológica, formando uma linha contínua, daí o termo chain, ou “corrente”. Desse modo, os registros de informações são protegidos por criptografia e conectados uns aos outros, não podendo ser alterados ou excluídos depois de sua verificação. Caso haja tentativa de

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alteração da informação contida nos blocos, a informação não é reescrita, é criada uma nova transação, que será analisada pela rede descentralizada e incluída em um novo bloco de informações após o bloco original. Dessa forma, é possível rastrear e auditar toda a sequência de informações, mas não é possível adulterá-la.

11. Ver: https://phonogram.me/ Acesso em: 19 maio 2023.

12. Criptomoedas são qualquer forma de moeda digital/virtual que usa criptografia blockchain para garantir a realização e a verificação de transações.

13. O relatório anual “Music in the air” é feito com base em cifras de arrecadação de direitos autorais, vendas de discos, números do streaming e receitas com shows, entre outras fontes de receita. Segundo o relatório de 2022, a previsão é que o mercado musical chegue a um faturamento de 131 bilhões de dólares em 2030, dos quais 40% (52,3 bilhões) seriam capturados apenas pela indústria fonográfica (streaming e venda de discos). No relatório anterior, de 2021, a previsão para a indústria fonográfica em 2030 era menor, de “apenas” 45 bilhões de dólares em receitas. Considerando que o relatório anual da IFPI computou receita de 26 bilhões de dólares em 2021, a previsão do Goldman Sachs para 2030 representa o dobro do faturamento atual dessa indústria. Segundo o banco, haverá um crescimento contínuo do mercado musical nos próximos oito anos, tornando-o atrativo para aportes oriundos de fundos de investimento. Tal potencial explicaria a recente onda de compra de catálogos musicais consagrados (os de

Bob Dylan, por exemplo), e também a movimentação em torno da compra e venda de NFT. Contudo, a despeito de tais previsões otimistas, persistem problemas antigos que prejudicam a remuneração de artistas, como a falta de pagamento de direitos conexos a intérpretes e músicos acompanhantes no streaming; problemas na identificação de fonogramas e créditos retidos; e remuneração mais alta a autores no streaming (atualmente na casa dos 12%), entre outros.

14. Uma DAO é mais uma aplicação da web 3.0, possível graças à posse da identidade digital em blockchain e à tokenização. Nesse caso, a DAO Water and Music, liderada por Cherie Hu, se organiza em torno do propósito comum de ser uma “rede de pesquisa e inteligência para o novo negócio da música. Nossa missão é tornar a indústria da música mais inovadora, cooperativa e transparente. Conseguimos isso por meio de uma abordagem social para a troca de conhecimento, construindo sistemas colaborativos para que profissionais da música criem, distribuam e discutam insights acionáveis e líderes do setor”. A governança das decisões é descentralizada e as responsabilidades são compartilhadas entre os membros: “Adotamos uma abordagem coletiva para operações e tomada de decisões, capacitando os membros de nossa comunidade a satisfazer suas próprias curiosidades inatas e buscar suas próprias agendas de aprendizado e projetos de pesquisa autodirigidos. Por meio desse processo, esperamos

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elevar a compreensão mais ampla de nossos membros sobre o cenário da indústria da música e equipá-los com as ferramentas e mentalidades para navegar com sucesso”. Disponível em: https:// www.waterandmusic.com/starthere/. Acesso em: 19 maio 2023.

15. Ver: https://futurx.net/. Acesso em: 19 maio 2023.

16. Ver: https://ethereum.org/pt-br/ Acesso em: 19 maio 2023.

17. Ver: https://www.algorand.com/ Acesso em: 19 maio 2023.

18. Ver: https://polygon.technology/. Acesso em: 19 maio 2023.

19. Ver: https://solana.com/. Acesso em: 19 maio 2023.

20. Ver: https://cardano.org/. Acesso em: 19 maio 2023.

21. Para mais informações sobre tipos de carteiras em blockchain, ver: INFOMONEY. Carteiras de criptomoedas: conheça os diferentes tipos e saiba por que são importantes. InfoMoney, 18 out. 2022. Disponível em: https:// www.infomoney.com.br/guias/ carteira-de-criptomoedas/. Acesso em: 19 maio 2023.

22. A DAO Water and Music realizou traduções colaborativas de seus relatórios para o espanhol, mas ainda não para o português. Em espanhol, ver: WATER AND MUSIC. Informe $stream temporada 1. Water and Music, [s. d.]. Disponível em: https://stream.waterandmusic. com/s1-es/. Acesso em: 19 maio 2023.

REFERÊNCIAS

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ERIKSSON, Maria; FLEISCHER, Rasmus; JOHANSSON, Anna; SNICKARS, Pelle; VONDERAU, Patrick. Spotify teardown: inside the black box of streaming music. Cambridge: Ed. MIT Press, 2019.

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GHEZZI, Daniela Ribas. Música em transe: o momento crítico da emergência da MPB (19581968). 2011. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011. Disponível em: https:// repositorio.unicamp.br/Acervo/ Detalhe/787379. Acesso em: 29 out. 2022.

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Flora_#27 | Imagem de Rejane Cantoni

Os desafios da regulação do vídeo sob demanda no contexto da web 3.0

RESUMO

Este texto revisa a “Análise de impacto regulatório” (“AIR”) do mercado de vídeo sob demanda (video on demand, VoD) no Brasil, elaborada pela Agência Nacional do Cinema (Ancine), que se detém, de forma aprofundada, no estudo das opções de modelagem de um marco regulatório, considerando histórico, características, relações de competição e enquadramento tributário. São traçados, também, paralelos com as medidas adotadas pela comunidade europeia, bem como percorridos os marcos regulatórios do setor audiovisual brasileiro desde o início da década de 1990 – evidenciando a dimensão de seus impactos –, de forma a reforçar a importância do avanço da regulação do VoD em nosso país.

DA WEB 2.0 À WEB 3.0:

A ECONOMIA CRIATIVA EM TRANSFORMAÇÃO

Temos assistido ao crescimento exponencial das redes e das tecnologias de informação e comunicação nos mais diferentes setores produtivos nas últimas décadas. Particularmente, o advento da internet impulsionou o desenvolvimento de várias tecnologias, como os web browsers, o e-commerce na web 1.0 e os conteúdos imersivos disponíveis na web 3.0, o que possibilitou que processos de trabalho, comércio e serviços – e a economia como um todo – migrassem para o espaço virtual, em mundos construídos nas chamadas realidades estendidas (MACIEL; MELEIRO, 2022).

Em 2021, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad, na sigla em inglês), fórum1 do mais legítimo órgão multilateral voltado para o comércio e o desenvolvimento, evidenciou as crescentes sinergias entre as indústrias criativas e a digitalização do comércio, enfatizando a necessidade de os países direcionarem esforços para otimizar o desenvolvimento econômico e social e os benefícios culturais da economia criativa com a construção de um ambiente propício mais equitativo para a sua promoção. Isso ocorreria por meio do desenvolvimento da economia digital, das tecnologias digitais, dos sistemas nacionais, regionais e globais de inovação, da infraestrutura digital e da conectividade (MACIEL; MELEIRO, 2022), que construíram a possibilidade do vídeo sob demanda (video on demand, VoD) e exigiram novos serviços e negócios. A relevância e a alta oferta dos conteúdos e das formas de acesso expuseram as insuficiências da oferta linear de audiovisual (ANCINE, 2019a, p. 9), levando aos tensionamentos que elencaremos a seguir.

que precisa pautar a segurança jurídica do desenvolvimento do setor com base em critérios democráticos

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De um lado, houve pressão das novas companhias internacionais de mídia sobre os mercados nacionais de fruição doméstica e pessoal de audiovisual; de outro, o tensionamento do modelo de partilha de receitas do setor entre a infraestrutura e o conteúdo. Esses dois fatores, potencializados pela ruptura de paradigma trazida pelos serviços over-the-top (plataformas de distribuição de conteúdos pela internet), ainda não completaram seus efeitos. Vários grandes grupos internacionais projetam seus negócios e seu posicionamento nesse mercado. Empresas de infraestrutura e detentoras de ativos em conteúdos audiovisuais especulam fusões e aquisições em integração vertical de grande alcance, enquanto os grandes grupos de serviços surgidos com a maré de negócios na internet aceleram investimentos na infraestrutura da rede que interliga os países. Todos esses movimentos geram situações novas para o ambiente regulatório da comunicação audiovisual e das telecomunicações, que precisa pautar a segurança jurídica do desenvolvimento do setor com base em critérios democráticos (ANCINE, 2019a, p. 10).

OS DESAFIOS DA REGULAÇÃO DO VOD: A ENTRADA DAS PLATAFORMAS COMPLEXIFICANDO O JOGO E OS DIREITOS

O crescimento da oferta e do consumo do VoD em todo o mundo implica necessariamente a reorganização das estruturas empresariais, dos modelos negociais e das relações de concorrência no mercado audiovisual nacional e internacional. Nesse contexto, vários países encontram-se em meio ao desafio de repensar seus modelos regulatórios, de forma a harmonizar os interesses públicos e privados. A iniciativa da Ancine (2019A) de realizar uma “Análise de impacto regulatório” (“AIR”) insere o Brasil formalmente nesse debate, sendo aqui revisitada.

Segundo a “AIR”, entende-se por VoD:

(a) um serviço de comunicação audiovisual, (b) prestado por provedores, diretamente ou com a mediação de plataformas de internet ou empacotadoras de televisão, (c) baseado na oferta e transmissão não linear (d) de conteúdos audiovisuais avulsos ou agregados em catálogo, (e) para fruição do público em geral, (f) por meio de redes de comunicação eletrônica, dedicadas ou não; serviço que (g) possui finalidade comercial, remunerado pelo usuário, por meio de compras avulsas ou assinaturas, e/ou por anúncios publicitários; e que (h) implica algum nível de responsabilidade editorial do provedor pela seleção, licenciamento, organização e exposição dos conteúdos (ANCINE, 2019a, p. 17).

Apesar de o VoD figurar atualmente como um dos cinco maiores mercados de consumo do mundo, além da ampla oferta de serviços, no Brasil ainda não há um marco regulatório que discipline essa oferta e garanta segurança jurídica aos agentes envolvidos. É importante ressaltar que os serviços de VoD caminham em paralelo com os negócios da rede, mas são autônomos em relação tanto às companhias de infraestrutura quanto às programadoras de televisão, dois setores com histórico de regulação nacional (ANCINE, 2019a, p. 10).

A importância da regulação é inquestionável para os mais diferentes ramos da economia. No setor audiovisual, seria impossível florescer a produção nacional inde-

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pendente nos últimos 30 anos não fossem os marcos legais construídos ao longo desse período. É fundamental relembrar esses marcos e seus impactos para que tenhamos a dimensão da importância de avançar na regulação do VoD no Brasil.

Após uma grande ruptura das políticas públicas com a extinção do Ministério da Cultura e da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme) em 1990, o que provocou um vazio sem precedentes na produção nacional, foram construídos paulatinamente marcos regulatórios que a impulsionaram. Elencamos, a seguir, os quatro principais marcos legais dos últimos 30 anos:

• Lei nº 8.685/1993. Aprovação da Lei do Audiovisual, que estabeleceu incentivos fiscais a empresas de lucro real (artigo 1º) e distribuidoras de obras estrangeiras (artigo 3º) para investimentos na produção nacional independente em modelo de coprodução;

Apesar de o VoD figurar atualmente como um dos cinco maiores mercados de consumo do mundo, além da ampla oferta de serviços, no Brasil ainda não há um marco regulatório que discipline essa oferta e garanta segurança jurídica aos agentes envolvidos.

• Medida Provisória nº 2.228/2001. Criação da Agência Nacional do Cinema (Ancine), instituição da Condecine-Título (contribuição a ser paga por cada obra exibida comercialmente) e estabelecimento de incentivos fiscais para TVs por assinatura (artigo 39º) aportarem recursos na produção nacional independente em regime de coprodução;

• Lei nº 11.437/2006. Criação do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) para a destinação dos recursos arrecadados com a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), e estabelecimento de incentivo fiscal para os canais de TV aberta (artigo 3ºA, inserido na Lei do Audiovisual) para realizarem coproduções com produtores independentes;

• Lei nº 12.485/2011. Conhecida como Lei da TV por Assinatura, determinou uma pequena cota de conteúdo nacional nos canais (2,8%), sendo a metade de conteúdo independente, e a criação da Condecine-Teles, a ser arrecadada pelas empresas de telecomunicações para o incremento do FSA. A lei ainda determinou a destinação de 30% desses recursos para a produção do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste.

Gráfico 1: Principais marcos legais (1990-2014)

Lei nº 8.685/1993 Incentivos fiscais

- art. 10

- art. 30

MP nº 2.228/2001

Ancine

Condecine-Título Incentivo fiscal - art. 39ºX

Lei nº 11.437/2006

FSA

Incentivos fiscais

- art. 1ºA

- art. 3ºA

Lei nº 12.485/2011

Condecine-Teles Cotas conteúdo Fiscal

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Fonte: elaboração própria, 2022.
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
Lei do Audiovisual Lei TV por assinatura Ancine FSA

O conjunto regulatório descrito anteriormente formou o arcabouço legal que estruturou as políticas públicas do setor nestas três últimas décadas, com grandes impactos positivos na produção nacional, como o aumento da produção de filmes brasileiros para as salas de cinema, que saltou de 3, em 1992, para 167, em 2019.

Gráfico 2: Número de filmes lançados comercialmente nas salas de cinema (1990-2019)

Fonte: Ancine; OCA, 2019b.

Outro impacto positivo visível foi o crescimento expressivo do volume de obras nacionais independentes nos canais de TV por assinatura, que saltou de 497, em 2011, para 2.422, em 2019.

Gráfico 3: Volume de obras brasileiras independentes para a TV por assinatura (2011-2019)

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1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 7 8 3 4 7 14 18 21 23 23 28 30 30 49 46 71 78 79 84 83 100 114 133 142 160 167 171 129 74 29 Lei TV por assinatura Ancine FSA Lei do Audiovisual
Fonte: Ancine; OCA, 2019b. 2011 497 532 1.525 1.808 2.179 2.246 2.448 2.422 2.271 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 Lei TV por assinatura Área de plotagem

Com a chegada das plataformas de VoD no mercado, já em 2011, as fronteiras de crescimento para a produção audiovisual se alargaram. Aos poucos, as plataformas passaram a investir diretamente na produção local em diversas localidades do mundo, como parte de sua estratégia para diversificar os catálogos de ofertas ao consumidor e para fidelizar assinantes em cada território. No Brasil, esses investimentos têm dinamizado sobremaneira a produção nacional e sua circulação globalmente, além de ampliarem os modelos de negócios com as plataformas, garantindo diretamente o investimento necessário para a realização dessas obras.

Esse cenário bastante promissor para os produtores traz consigo também uma contradição. Se por um lado as plataformas, ao garantirem o investimento necessário para as produções locais, proporcionam oportunidades de realizar com agilidade obras de maior porte e abrangência, por outro, o modelo de negócios de prestação de serviços não preserva qualquer direito à propriedade intelectual e patrimonial em mãos de empresas brasileiras nesse mercado tão promissor.

A complexidade desse cenário requer especial atenção do Estado para construir um ambiente regulatório que harmonize interesses estrangeiros e nacionais, garantindo que uma parcela do faturamento das plataformas em território brasileiro seja destinada à produção nacional e à produção nacional independente, garantindo direitos sobre essas obras aos seus produtores.

EXPERIÊNCIA

NA EUROPA

O exercício da política comparada evidencia como desafios enfrentados por um país podem auxiliar outros a vislumbrarem antecipadamente os impactos de uma política. Assim, é oportuno nos determos na pioneira e longeva iniciativa da União Europeia em relação aos desafios regulatórios e tributários do VoD, introduzida com a Audiovisual Media Services Directive (AVMSD),2 de 2010. Nesta primeira onda regulatória, nota-se o esforço de alinhamento dos aspectos econômicos e culturais, conforme apontado pela “AIR”:

A Diretiva tem como objetivos criar e assegurar o funcionamento adequado de um mercado europeu único para serviços audiovisuais, contribuir para a promoção da diversidade cultural, prover um nível adequado de proteção aos consumidores e salvaguardar o pluralismo dos meios de comunicação social. Dessa forma, procura harmonizar e orientar a regulação de mídia audiovisual dos diversos Estados-membros, tanto de TV linear quanto sob demanda, apresentando princípios e diretrizes gerais que estabelecem as finalidades que as políticas regulatórias de mídia audiovisual de cada país devem seguir, mas garantindo a liberdade para que cada legislação nacional adote os meios que julgar mais apropriados (ANCINE, 2019a, p. 60).

Acompanhando o dinamismo das realidades do mercado de VoD, em 2016,3 a Comissão Europeia convocou um novo debate para alterar alguns dispositivos legais relativos à AVMSD, o que culminou na aprovação de uma nova diretiva pelo Parlamento Europeu, em 2018. A União Europeia entrou, assim, em uma segunda onda regulatória, com seus Estados-membros estabelecendo legislações nacionais com base nesse novo documento.

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INTERNACIONAL: O AVANÇO DA REGULAÇÃO DE VOD

A revisão da diretiva que foi aprovada autoriza os Estados-membros a impor obrigações financeiras aos provedores – incluindo aqueles de serviços de mídia estrangeiros que visem consumidores em seu país, lineares e sob demanda –, como investimentos diretos ou contribuições para fundos nacionais. Outro aspecto relevante é que, mais do que a promoção de obras europeias, como previa a diretiva de 2010, a proposta revista prevê – de forma obrigatória – uma cota mínima de 30% de conteúdo europeu, calculada sobre o total de horas do catálogo, e a obrigação da proeminência de obras europeias nesse.

As legislações nacionais dos Estados-membros ainda podem – de forma voluntária – decidir estabelecer o investimento em obras europeias por parte dos provedores sob sua jurisdição, bem como dos provedores de serviços de mídia estabelecidos em outro Estado-membro que visem seus territórios (EUROPEAN AUDIOVISUAL OBSERVATORY, 2022; SILVA, 2018). Tais obrigações são proporcionais às receitas auferidas nos Estados-membros visados.

Apresentamos a seguir um balanço dos resultados obtidos por 19 países europeus que implementaram a diretiva até 1 de janeiro de 2022, compilado pelo European Audiovisual Observatory (2022, p. 24):

• dezessete países [europeus] estabeleceram a obrigação de cotas em 30%. Na Itália, essa obrigação diz respeito às obras produzidas nos últimos cinco anos. Em Portugal, metade dessa porcentagem deve ser dedicada às obras portuguesas produzidas há menos de cinco anos;

• a Comunidade Francófona da Bélgica prevê um aumento gradual da cota para 40%, após um período de transição de cinco anos;

• a França estabeleceu a obrigação da cota de 40% para obras originais em francês e 60% para obras europeias;

• Bélgica, Croácia, Dinamarca, França, Alemanha, Grécia, Itália, Polônia e Portugal decidiram incorporar obrigações financeiras para os provedores estabelecidos em seus territórios ou em outros Estados-membros. Eslovênia e Espanha, entre outros países, estão em fase de implementação da diretiva, e também pretendem incorporar obrigações de investimento.

DEBATE NO BRASIL: O FUTURO

No Brasil, os debates e estudos em torno dos modelos regulatório e tributário adequados às diferentes modalidades negociais e aos pontos de intersecção com outros serviços audiovisuais foram iniciados já na aprovação da Lei nº 12.485, em 2011, considerado o ano de implantação e expansão dos serviços de VoD no país.

Desde então, como aponta a “AIR”, há grande resistência dos agentes econômicos a disponibilizar dados sobre oferta e consumo nos seus serviços (transações, assinaturas, receitas e publicidade) – prática comum nos demais serviços de comunicação audiovisual –, o que poderia subsidiar a elaboração de políticas públicas que harmonizem as regulações tributária e do audiovisual já existentes, garantindo tratamento isonômico em relação aos outros serviços audiovisuais. Ainda se-

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gundo a “AIR”, esse posicionamento dos conglomerados de mídia traz riscos em relação a concentração e a práticas avessas à competição:

[Esta posição das plataformas] não reflete apenas uma posição aversiva à regulação pública – comum em mercados de alta concentração, como denota também estratégia concorrencial. Nesses termos, tanto as análises quanto o próprio desenvolvimento desse mercado enfrentam riscos e dúvidas importantes, respondidos parcialmente por informações fragmentadas e indicadores pouco precisos que devem ser lidos com cuidado e sugerem a necessidade de minimizar a intervenção imediata (ANCINE, 2019a, p. 1).

No Brasil, a autoridade pública a quem cabe zelar pela gestão do ambiente regulatório do VoD é a Ancine. E uma de suas competências mais importantes é a administração da já mencionada Condecine, parte das Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) que incide sobre atividades audiovisuais e direciona recursos para o FSA, destinado à produção audiovisual independente. Essa contribuição é formada por Condecine-Título, Condecine-Remessa e Condecine-Teles.

Esse tributo especial da atividade audiovisual não é cobrado dos prestadores de serviço de VoD no Brasil. Uma das principais contribuições da “AIR” é justamente ponderar sobre as alternativas em relação à forma de incidência do tributo, de modo a atender à realidade nacional.

Outra questão que vem sendo debatida pelos agentes do setor audiovisual, e que foi incorporada na “AIR”, diz respeito às condições de oferta dos conteúdos brasileiros independentes, ou seja, qual será o investimento dos provedores em conteúdos nacionais independentes, de que forma serão inseridos nos catálogos (cotas, proeminência ou promoção das obras), qual a cronologia das janelas de exploração e quais as regras de licenciamento desses conteúdos.

Esse tributo especial da atividade audiovisual não é cobrado dos prestadores de serviço de VoD no Brasil. Uma das principais contribuições da “AIR” é justamente ponderar sobre as alternativas em relação à forma de incidência do tributo, de modo a atender à realidade nacional.

No Congresso Nacional tramitam três Projetos de Lei (PL) – um deles contando com um substitutivo –,4 sendo dois deles apresentados na Câmara dos Deputados e um no Senado. De forma resumida, os projetos originalmente apresentaram as seguintes propostas:

• PL nº 8.889/2017, de autoria do deputado Paulo Teixeira. Propôs cotas e proeminência para o conteúdo nacional e a arrecadação da Condecine (BRASIL, 2017), da seguinte maneira:

• cota de conteúdo nacional – a ser estabelecida de forma progressiva, entre 2% e 20%, considerando a capacidade econômica de cada provedora, sendo 50% composta de obras independentes;

• proeminência de conteúdo nacional – destaque na divulgação, na visualização e nas buscas nos catálogos ofertados ao consumidor;

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• Condecine – a ser estabelecida entre 0% e 4% sobre o faturamento bruto de empresas estrangeiras prestadoras de serviço de VoD no país, sendo 30% destinados a produtoras brasileiras estabelecidas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. A proposta prevê desconto de 30% para aquisição de direitos ou coprodução de obras brasileiras independentes.

• PL nº 57/2018, de autoria do senador Humberto Costa. Propôs cotas e proeminência para o conteúdo nacional e arrecadação da Condecine, acrescentando o Investimento Direto (BRASIL, 2018), da seguinte maneira:

• cota de conteúdo nacional – porcentual a ser determinado pelo Poder Executivo considerando a capacidade econômica de cada agente, com no mínimo 20% de conteúdo nacional e ao menos 50% produzidos por produtora brasileira independente;

• proeminência de conteúdo nacional – destaque na divulgação, na visualização e nas buscas nos catálogos ofertados ao consumidor;

• Condecine – a ser estabelecida entre 0% e 4% sobre o faturamento bruto de empresas estrangeiras prestadoras de serviço de VoD no país, sendo que 30% devem ser destinados a produtoras brasileiras estabelecidas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. O projeto prevê desconto de 30% para adquirir direitos ou coproduzir obras independentes;

• Investimento Direto – investimento de 0% a 4% do faturamento bruto no território nacional na produção ou no licenciamento de conteúdos audiovisuais brasileiros, dos quais no mínimo 50% tenham sido produzidos por produtora brasileira independente.

• PL nº 483/2022, de autoria do deputado David Miranda. Propõe apenas a cobrança da Condecine (BRASIL, 2022), da seguinte maneira:

• Condecine – arrecadação de alíquota de 20% da receita sobre serviços de VoD prestados por empresas estrangeiras.

Em comum, os PL asseguram investimentos na produção local com uma parcela do faturamento das plataformas no território nacional, garantindo direitos de propriedade intelectual e patrimonial em mãos de produtores nacionais e produtores nacionais independentes, variando suas propostas sobre os porcentuais e os modelos de investimentos – Condecine e Investimentos Diretos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um novo marco legal faz-se urgentemente necessário frente aos novos modelos de fruição de conteúdos trazidos pelas plataformas de VoD, de modo a garantir investimentos, direitos patrimoniais e circulação para a produção nacional independente, dando continuidade ao ciclo virtuoso construído pelas políticas públicas nestes últimos 30 anos.

Com a renovação do Congresso Nacional em 2023, esperamos que o debate sobre a regulação do VoD seja retomado, buscando-se o equilíbrio necessário entre os interesses estrangeiros e nacionais nesse mercado tão promissor.

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COMO CITAR ESTE ARTIGO

MELEIRO, Alessandra; IVANOV, Debora. Os desafios da regulação do vídeo sob demanda no contexto da web 3.0. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 35, 2023.

ALESSANDRA MELEIRO

Possui pós-doutorado pela Universidade de Londres, na Inglaterra, e leciona no bacharelado em imagem e som da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e no mestrado profissional em mídias criativas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi presidenta do Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual (Forcine) entre 2016 e 2020, e já atuou como consultora de empresas como Netflix Brasil, Anima Mundi, JLeiva, Itaú Cultural e Spcine. É coordenadora do Centro de Análise do Cinema e do Audiovisual (Cena/UFSCar) e presidenta do Instituto das Indústrias Criativas (IC), além de membra da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad/ONU).

DEBORA IVANOV

Advogada e produtora audiovisual, foi diretora da Agência Nacional do Cinema (Ancine) entre 2015 e 2019. É sócia e presidenta do Conselho de Administração da Gullane Entretenimento S.A., além de diretora-secretária do Sindicato da Indústria do Audiovisual do Estado de São Paulo (Siaesp) – que representa empresas produtoras de cinema, TV, publicidade, animação, games e infraestrutura – e membra do conselho da Academia Brasileira de Cinema. Fundou e é presidenta do conselho do Instituto Querô, dedicado à formação cidadã e audiovisual de jovens de áreas periféricas na região

portuária de Santos. É diretorapresidente do +Mulheres Lideranças do Audiovisual Brasileiro, dedicado a ampliar a presença feminina na indústria audiovisual.

NOTAS

1. UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT, 15. Creative economy and trade digitalization forum. Barbados: Unctad, 2021.

2. UNIÃO EUROPEIA. Directiva 2010/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 10 de março de 2010. Bruxelas: Jornal Oficial da União Europeia, Bruxelas, 10 mar. 2010. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX: 32010L0013&from=EN. Acesso em: 28 set. 2022.

3. UNIÃO EUROPEIA. Directiva que altera a 2010/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 10 de março de 2010. Jornal Oficial da União Europeia, Bruxelas, 2016. Disponível em: https://eur-lex. europa.eu/legal-content/EN/TXT/ ?qid=1464618463840&uri=COM:20 16:287:FIN. Acesso em: 11 out. 2022.

4. Por substitutivo, entende-se: “Quando o relator de determinada proposta introduz mudanças a ponto de alterá-la integralmente, o novo texto ganha o nome de substitutivo. [...] É chamado também de emenda substitutiva” (SENADO NOTÍCIAS, 2022).

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA NACIONAL DO CINEMA

(ANCINE) Vídeo sob demanda: análise de impacto regulatório. Relatório de análise de impacto. Rio de Janeiro: 001/2019/ANCINE/ SAM/CAN, 2019a.

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AGÊNCIA NACIONAL DO CINEMA (ANCINE). Mercado audiovisual. Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA). Rio de Janeiro: Ancine, 2019b. Disponível em: https://www.gov.br/ancine/pt-br/oca/mercado-audiovisual-brasileiro-1/arquivos.pdf/mercadoaudiovisualbr_2019.pdf/view. Acesso em: 3 out. 2022.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 8.889, de 2017. Dispõe sobre a provisão de conteúdo audiovisual por demanda (CAvD) e dá outras providências. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2018.

BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 57, de 2018. Dispõe sobre a comunicação audiovisual sob demanda, a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional – CONDECINE e dá outras providências. Brasília, DF: Senado Federal, 2018. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 483, de 2022. Altera a Medida Provisória nº 2.2281/2001, para estabelecer cobrança de Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica (Condecine) sobre a receita de empresas estrangeiras prestadoras de serviço de vídeo sob demanda. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2022.

EUROPEAN AUDIOVISUAL OBSERVATORY. Yearbook 2021/2022 key trends: television, cinema, video and on-demand audiovisual services – the pan-european picture. Estrasburgo: Council of Europe, 2022.

GRECE, Christian. Trends in the VOD market in EU28. Estrasburgo: European Audiovisual Observatory; Council of Europe, 2021.

MACIEL, Inês; MELEIRO, Alessandra. Web 3.0, indústria criativa e o mapeamento do ecossistema XR no Brasil. Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural. São Paulo: Itaú Cultural, 2022.

SENADO NOTÍCIAS. Substitutivo. Brasília, DF: Agência Senado. Disponível em: https://www12.senado.leg. br/noticias/glossario-legislativo/ substitutivo#:~:text=Quando%20 o%20relator%20de%20determinada,chamado%20tamb%C3%A9m%20de%20emenda%20 substitutiva. Acesso em: 18 out. 2022.

SILVA, Luana M. R. A. S. Panorama do VoD no Brasil: perspectivas do VoD no Brasil e no mundo. São Carlos: Jornada Internacional GEMInIS (JIG), 2018.

UNIÃO EUROPEIA. Directiva 2010/13/ UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 10 de março de 2010. Bruxelas: Jornal Oficial da União Europeia, Bruxelas, 10 mar. 2010. Disponível em: https://eur-lex. europa.eu/legal-content/PT/TXT/ PDF/?uri=CELEX:32010L0013&from=EN. Acesso em: 28 set. 2022.

UNIÃO EUROPEIA. Directiva que altera a 2010/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 10 de março de 2010. Jornal Oficial da União Europeia, Bruxelas, 2016. Disponível em: https://eur-lex. europa.eu/legal-content/EN/ TXT/?qid=1464618463840&uri=COM:2016:287:FIN. Acesso em: 11 out. 2022.

UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT, 15. Creative economy and trade digitalization forum. Barbados: Unctad, 2021.

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Flora_#42 | Imagem de Rejane Cantoni

O impacto da digitalização nos modelos de negócio do setor editorial

RESUMO

A cadeia de valor editorial foi impactada em várias frentes na última década e meia. A entrada de players internacionais no mercado brasileiro, as constantes transformações tecnológicas, novos hábitos de consumo e fatores externos como a pandemia de covid-19 deram um choque nos pilares do setor. Como consequência, as empresas que o constituem vêm lutando para se adaptar à era do e-commerce e sobreviver à concorrência mais dinâmica das empresas nativas digitais, como as plataformas. Apesar do aumento na intensidade criativa e no conteúdo tecnológico, o baixo desempenho do setor, quando comparado à economia brasileira e ao bloco da economia criativa, mostra que fenômenos como o desaparecimento e o enfraquecimento de elos da cadeia de produção do livro podem se intensificar.

INTRODUÇÃO

Segundo dados do “Painel do varejo de livros no Brasil” (2022), entre 2020 e 2021, o volume de vendas de livros aumentou quase 5% (5.432.792 exemplares vendidos), e, em termos de valor, o setor alcançou uma alta de aproximadamente 14% no período. Apesar dos números, que mostram uma recuperação relativa do setor dentro de um contexto de amenização da pandemia de covid-19 e de superação da etapa de pânico setorial (GFK, 2020), os impactos sofridos durante esses últimos anos vão além dos efeitos de conjuntura.

Segundo dados do “Painel do varejo de livros no Brasil” (2022), entre 2020 e 2021, o volume de vendas de livros aumentou quase 5% (5.432.792 exemplares vendidos), e, em termos de valor, o setor alcançou uma alta de aproximadamente 14% no período.

Em razão do choque desproporcional da digitalização e do e-commerce na cadeia produtiva do livro nos últimos anos (POZZER; DA CUNHA, 2020), observou-se não só um fenômeno de desaparecimento de elos, mas também a incorporação de novas atividades e etapas nesse ciclo produtivo. Tradicionalmente, as cadeias do setor contavam com empresas dos setores autoral, editorial e gráfico, entre outras (MELLO, 2012). Atualmente, foram incorporadas empresas dos setores de gerenciamento de dados, sites de e-commerce, suporte técnico etc. Em outras palavras, observou-se uma mudança significativa na composição da cadeia e das empresas, assim como na mão de obra empregada no setor editorial. Além disso, a tentativa de adaptação do setor aos desafios e efeitos da digitalização, da pirataria, do comércio eletrônico e da pandemia fez com que seu conteúdo criativo, que já era alto, aumentasse.

No entanto, por mais que a digitalização e a agregação de serviços tenham ajudado na sobrevivência das editoras e de outras etapas da cadeia de produção do livro

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O surgimento de fenômenos mais específicos do setor editorial, como é o caso da desintermediação, do self-publishing, das editoras colaborativas e da democratização do acesso à produção e ao consumo de conteúdos, entre outros (POZZER; DA CUNHA, 2020), que o atingem de várias maneiras, vem impondo dificuldades para a sua resistência às pressões competitivas e conjunturais. Como prova, os dados do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural mostram que o setor vem obtendo um desempenho abaixo do da economia criativa e da economia brasileira como um todo.

nessa tendência de desintermediação (links diretos, ou saltos, entre etapas iniciais e finais da cadeia de produção), essas empresas ainda pensam mais em adaptar seus modelos de produção à nova demanda mais tecnológica – por exemplo, adotando o just in time – do que em uma reinvenção dos seus modelos de negócios (FERREIRA et al., 2018). Somado a isso, a pandemia de covid-19 impactou negativamente o setor ao acelerar a digitalização e gerar uma necessidade de mudança nos modelos de negócio repentina, ao mesmo tempo que limitou a disseminação dos livros físicos por meio dos veículos tradicionais que a indústria conhecia, como as feiras de livros (GFK, 2020).

O surgimento de fenômenos mais específicos do setor editorial, como é o caso da desintermediação, do self-publishing, das editoras colaborativas e da democratização do acesso à produção e ao consumo de conteúdos, entre outros (POZZER; DA CUNHA, 2020), que o atingem de várias maneiras, vem impondo dificuldades para a sua resistência às pressões competitivas e conjunturais. Como prova, os dados do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural mostram que o setor vem obtendo um desempenho abaixo do da economia criativa e da economia brasileira como um todo. O objetivo deste boletim é analisar esse desempenho, assim como os impactos sofridos pelo setor editorial à luz da digitalização, da pandemia e dos novos hábitos de consumo.

O IMPACTO AMBIVALENTE DA TECNOLOGIA NO SETOR EDITORIAL

Nos últimos anos, a cadeia produtiva do setor editorial mudou drasticamente. Essa transformação ocorreu, em grande medida, por fatores como maior concentração do mercado de livros, difusão do comércio eletrônico, digitalização e eliminação de gatekeepers.1 Não bastasse, o setor também sofreu um efeito desproporcional de um choque externo, a referida pandemia. Apesar de estarem elencados de forma simples, a dinâmica por trás desses fatores muitas vezes é exponencial, isto é, eles se amplificam. Contudo, ao contrário do que se esperava, contemplou-se um aumento na complexidade da cadeia produtiva do livro nesse período, fruto das inovações e do acúmulo de novas etapas e funções. Por outro lado – e esta é uma das contribuições deste boletim –, o setor ainda não foi capaz de se adaptar ao digital e vem enfrentando dificuldades para sobreviver nessa nova economia (MCILROY, 2015).

A partir de uma perspectiva cronológica, o mercado editorial brasileiro experimentou uma grande concentração na parte final da cadeia de produção do livro; as duas maiores livrarias do país, Saraiva e Cultura, chegaram a representar 40% do mercado e a ser responsáveis por 50% das vendas das editoras no país.2 Esse cenário deu origem às megalojas de rua e de shopping centers. Carvalho Souza (2017) chama esse processo de mudança nos modelos de negócio das livrarias de expansão e fortalecimento do capitalismo cultural contemporâneo. O autor atribui gran-

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de parte dessa expansão do mercado varejista ao surgimento da nova classe C e a certo boom nos gastos com bens e serviços culturais (privados e públicos).

Apesar do pequeno boom no consumo e no financiamento cultural na última década, também se observou um contraditório número de fechamentos de livrarias independentes ou pequenas em período similar, mais especificamente entre 2013 e 2017. Segundo estudo realizado pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), das 21.083 lojas fechadas, 20.912 eram empresas de pequeno porte, com não mais de nove empregados, sendo o estado de São Paulo o mais afetado em termos de fechamento de livrarias.3 A pesquisa “Retratos da leitura” de 2016 reportou uma redução de 21 pontos porcentuais, entre os anos de 2011 e 2015, na compra de livros em livrarias; já na edição de 2020, essa queda foi de 9 pontos porcentuais entre 2015 e 2019. Segundo Ferreira et al. (2018), pequenas livrarias teriam mais dificuldade em se adaptar ao digital e em sobreviver nesse novo mercado.4 Dessa forma, uma maior concentração do mercado de livros se deu em razão do grande número de fechamentos de livrarias pequenas e de motivos concorrenciais, sendo a digitalização e o novo modelo de negócio das livrarias (megalojas) apontados como os principais.

A pesquisa “Retratos da leitura” de 2016 reportou uma redução de 21 pontos porcentuais, entre os anos de 2011 e 2015, na compra de livros em livrarias; já na edição de 2020, essa queda foi de 9 pontos porcentuais entre 2015 e 2019 .

Entre 2017 e 2018, as vendas de livrarias caíram 20%, enquanto as vendas em marketplaces e livrarias exclusivamente digitais cresceram mais de 30%

Apesar disso, até então, a cadeia do livro não aparentava maiores disrupções. Inclusive, esse novo modelo de negócio não foi capaz de fazer frente à expansão do comércio eletrônico. Entre 2017 e 2018, as vendas de livrarias caíram 20%, enquanto as vendas em marketplaces e livrarias exclusivamente digitais cresceram mais de 30% (FIPE, 2018). Como consequência, as duas maiores livrarias do Brasil, Saraiva e Cultura, pediram recuperação judicial em 2018, arrastando grande parte do setor. Consignação e os contratos de exclusividade foram práticas comuns que agravaram o efeito cascata visto.5 Segundo dados da Associação Nacional de Livrarias (ANL), 6 a consignação representa mais de 80% das vendas de uma editora. 7

O IMPACTO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS

Nesse cenário de maior concorrência e de introdução de novos modelos de consumo, nem a modernização do setor, com editoras entrando na era dos e-books e criando seus próprios sites de comércio eletrônico, foi suficiente para reverter o quadro e para preparar para um segundo impacto: competir com as plataformas digitais em ascensão no mercado.

Plataformas digitais transacionais como Amazon e Mercado Livre entraram no mercado com estratégias de expansão rápida, e os modelos de negócio utilizados até então no setor editorial não foram capazes de fazer frente ao dinamismo das entrantes. Como justificativa para a falha, foram levantadas hipóteses de práticas anticompetitivas por parte de plataformas digitais, como o dumping (preço predatório), o que levou o setor a demandar uma política de preço mínimo no Brasil

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(ALMEIDA, 2014). Embora os preços praticados nas plataformas sejam baixos, salientamos que esse não é o único motivo de seu sucesso. Os sites de comércio eletrônico tradicionais não permitem às editoras e livrarias desfrutar de efeitos de rede – em que mais compradores atraem mais vendedores, vice-versa, e há oferta de inúmeros outros produtos no mesmo lugar –, 8 logo, suas iniciativas não geram os mesmos resultados em termos de vendas e de fidelidade de clientes (DA SILVA; NÚÑEZ REYES, 2021).

Outro impacto das plataformas digitais na cadeia de produção do livro foi a desintermediação (CAPUTO, 2012), ou a eliminação de gatekeepers. Esse processo começou a se desenrolar no setor editorial com o advento dos e-books, mas vem ganhando força na era das plataformas digitais. Parker et al. (2016) sinalizam as editoras como um exemplo perfeito desse tipo de atuação. Elas escolhem autores e livros no lugar dos consumidores finais, esperando que suas decisões sejam interessantes para os leitores. As plataformas digitais, por sua vez, permitem o self-publishing, o que dá aos autores a oportunidade de contornar as editoras (WALDFOGEL; REIMERS, 2015), possibilitando, assim, pontes entre os elos iniciais da cadeia de valor e os consumidores (BROOKS; FITZ, 2015 e MATULIONYTE et al., 2017) – processo que também é chamado de democratização autoral (POZZER; DA CUNHA, 2020). Adicionalmente, nesse contexto, o sucesso das vendas não é determinado por um editor, mas pelas opiniões dos leitores e pelas buscas potenciadas por algoritmos. 9 A desintermediação e o modelo de negócio das plataformas digitais também impactaram de maneira desproporcional a circulação física e digital de revistas, com quedas de vendas de até 80% no espaço de um ano (YAHYA, 2022).

CADEIA DE PRODUÇÃO

Conforme mencionado na seção anterior, a mudança tecnológica, entre outros fatores, trouxe novos desafios para o setor editorial, forçando-o a reconfigurar-se. De acordo com Mello (2012), fazem parte da cadeia produtiva tradicional do livro empresas dos setores autoral, editorial, de produção de máquinas, gráfico, produtor de papel, distribuidor, livreiro e bibliotecário e de comercialização.

AUTORES REVISORES E TRADUTORES INDÚSTRIA DE PAPEL

GRÁFICAS PEQUENAS E MÉDIAS LIVRARIAS

CANAIS PROMOCIONAIS CONSUMIDOR FINAL DISTRIBUIDORES

KEY ACCOUNTS

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Figura 1: Cadeia de produção editorial tradicional
Fonte: elaboração própria com base em Ramos, 2013. EDITORAS BANCAS, REVISTARIAS E CONVENIÊNCIAS

De acordo com a Figura 1, o primeiro elo da cadeia de produção do livro é o trabalho autoral – em alguns casos, uma tradução. A editora é responsável pela segunda etapa do processo de publicação e também está a cargo de coordenar a comunicação com os elos adjacentes, a saber, as indústrias papeleira, midiática e gráfica, para os processos de diagramação, divulgação e impressão do livro, respectivamente. Segundo Lazzari (2012), no modelo tradicional, a editora é o elo mais importante da cadeia de produção dos livros, pois, ao mesmo tempo que seleciona quais serão publicados, financia a maioria das outras etapas, inclusive a inicial. Ela também é responsável por adiantar direitos autorais e pagar os elos adjacentes já mencionados. Finalmente, as duas últimas etapas do ciclo de produção são a distribuição e a venda pelas livrarias, o que algumas vezes também é feito pela própria editora. É importante notar que mesmo a última etapa do processo é dependente da editora, já que as livrarias operam com um grande volume de livros consignados.

Plataformas digitais transacionais como Amazon e Mercado Livre entraram no mercado com estratégias de expansão rápida, e os modelos de negócio utilizados até então no setor editorial não foram capazes de fazer frente ao dinamismo das entrantes.

A Figura 2 procura demonstrar a transformação ocorrida no ciclo produtivo do livro com os impactos dos e-books, do e-commerce, da desintermediação e da pandemia de covid-19.

Figura 2: Nova cadeia de produção editorial

Os fenômenos da desintermediação e do self-publishing estão sendo responsáveis por causar um impacto nas primeiras etapas da cadeia de produção, uma vez que tornam o papel das editoras menos relevante ao criarem uma ligação direta entre autores e plataformas digitais – e, consequentemente, com o público. Esses mesmos fenômenos também deram origem aos distribuidores digitais. Nesse sentido, a partir da cadeia do livro tradicional, criou-se a cadeia do livro

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Fonte: adaptado de Mello et al., 2013. BIBLIOTECAS ESCOLAS UNIVERSIDADES FABRICANTES DE LEITORES DIGITAIS AUTORES EDITORAS GRÁFICAS DISTRIBUIDORES DISTRIBUIDORES DIGITAIS MÁQUINAS E EQUIPAMENTOS FABRICANTES DE PAPEL OUTROS (fundações, empresas etc.) INDIVÍDUOS COMPRADORES E LEITORES ATUAIS (tamanho real do mercado) Fornecedores de insumos 1 1 4 2 3 3 3 3 LIVRARIAS FÍSICAS E VIRTUAIS

Os fenômenos da desintermediação e do self-publishing estão sendo responsáveis por causar um impacto nas primeiras etapas da cadeia de produção, uma vez que tornam o papel das editoras menos relevante ao criarem uma ligação direta entre autores e plataformas digitais – e, consequentemente, com o público. Esses mesmos fenômenos também deram origem aos distribuidores digitais .

digital, com autores, distribuidores e plataformas digitais, e e-readers.

A evolução do e-commerce e o choque da pandemia, por outro lado, contribuíram para um enfraquecimento na parte final da cadeia, com o fechamento de livrarias de diversos tamanhos e o aumento das vendas on-line tanto por livrarias quanto por editoras, provocando uma adaptação na cadeia. As editoras, no entanto, sofreram um impacto difícil, já que, ao mesmo tempo que perderam participação, aumentaram a gama de serviços prestados, com vendas diretas e vendas de e-books.

Além dos impactos mencionados, destacam-se ainda: 1) o enfraquecimento dos distribuidores físicos; 2) o fortalecimento das etapas de marketing e distribuição digital para e-books (CLARKE, 2010); 3) a criação de uma etapa de pós-venda e suporte a clientes, principalmente relacionada a livros eletrônicos; e 4) a central de processamento e armazenamento de dados. Também é importante apontar a entrada das empresas especializadas em e-books e plataformas digitais para ocupar principalmente a função outrora desempenhada pelas editoras (DAVIS, 2020).

De acordo com Ho, Wang e Cheng (2011), apesar dos avanços tecnológicos trazidos pela introdução dos livros eletrônicos e dos e-readers no mercado de produção editorial dos Estados Unidos, isso não se refletiu no desaparecimento de elos na cadeia de produção. No cenário brasileiro, observa-se uma tendência similar, já que a venda de livros eletrônicos ainda é de nicho no país (FERNANDES, 2019) e esses não vêm se comportando como substitutos perfeitos do livro físico (FERREIRA et al., 2018; CARREIRO, 2010; MELLO et al., 2016). Nesse sentido, os outros elementos específicos do setor mencionados ao longo do texto se mostram como melhores candidatos a motivadores dessas mudanças. O Gráfico 1 demonstra o impacto sofrido pelo setor nos últimos anos em termos do número de empresas em operação.

Gráfico 1: Evolução do total de empresas do setor editorial

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Setor editorial Mudança porcentual -4% 10.000 4% 2% 0% -8% -10% 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 9.000 8.000 7.000 6.000 5.000 4.000 3.000 2.000 1.000 0 0% 1% 3% 2% 2% 1% 1% -1% -2% -6% -8% -8% -8% -7% -8% -6% -2%
Fonte: elaboração própria, com dados do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural.

Entre os anos 2012 e 2013, o setor começou a apresentar uma tendência de queda no número de empresas, particularmente acentuada após 2016. Desde o seu ponto mais alto, em 2012, até o ano de 2020, o setor perdeu aproximadamente 39% das suas empresas. As taxas de natalidade e mortalidade (Gráfico 2) mostram que, independentemente do tamanho das empresas, a taxa líquida entre os dois indicadores operou no negativo durante a maior parte do tempo observado, ou seja, mais empresas fecharam do que criaram operações.

Gráfico 2: Taxa de natalidade ou mortalidade das empresas do setor editorial

É interessante notar que, no início do período analisado (2007), as micro e pequenas empresas apresentavam um desempenho positivo, isto é, observava-se uma taxa de natalidade maior que a de mortalidade. Apesar da preponderância inicial, a partir de 2012, essas empresas começaram uma trajetória no sentido oposto, sendo as mais impactadas pelas falências.

Em termos de tendências geográficas, os gráficos 3 e 4 demonstram que os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais (Gráfico 3), assim como as demais regiões (Gráfico 4), seguiram a mesma tendência nacional de queda no número de empresas no setor editorial.

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Pequeno Micro Médio Grande 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Editorial 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 -0,8 -0,7 -0,6 -0,5 -0,4 -0,3 -0,2 -0,1 0 0,1 0,2
Fonte: elaboração própria, com dados do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural.

Gráfico 3: Tendência nacional e nas grandes metrópoles do número de empresas do setor editorial

A queda em nível nacional, em grande parte, foi puxada pelo estado de São Paulo, que é o de maior peso em termos de empresas operando no setor editorial (quase quatro vezes mais empresas que o segundo colocado em 2020, Minas Gerais). De outra perspectiva, todos os estados mais o Distrito Federal, sem exceções, apresentaram a mesma tendência no período. Em termos regionais, os estados do Sudeste apresentaram quedas mais acentuadas.

Nos últimos anos, a economia criativa vem sofrendo impactos consideráveis resultantes de crises e de choques externos. No entanto, o setor editorial vem demonstrando perdas ainda mais acentuadas que a média da economia criativa, como pode ser visto no Gráfico 5.

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2007 2006 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 0 500 1.000 1.500 2.000 2.500 3.000 3.500 4.000 4.500 Brasil SP RJ MG
2007 2006 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 0 1.000 2.000 3.000 4.000 5.000 6.000 Centro-Oeste Norte Nordeste Sudeste Sul
Fonte: elaboração própria, com dados do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural. Gráfico 4: Tendência regional do número de empresas do setor editorial Fonte: elaboração própria, com dados do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural.

Gráfico 5: Participação do setor editorial na economia criativa e desta na economia geral (2006-2020)

setor editorial

Fonte: elaboração própria, com dados do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural.

A participação do setor na economia criativa começou a diminuir a partir de 2013, sendo essa queda agravada a partir de 2015, como consequência da recessão enfrentada pelo país e de outros fatores não ligados à conjuntura já mencionados. Em termos de receitas e lucros, os resultados são mais preocupantes, já que se observam tendências opostas entre a economia criativa e o setor editorial. O Gráfico 6 apresenta um padrão “boca de jacaré” ao comparar o desempenho médio do setor editorial com as receitas e os lucros médios da economia criativa e com o produto interno bruto (PIB) per capita brasileiro.

Gráfico 6: Receitas e lucros médios do setor editorial (SE) e da economia criativa (EC)

MERCADO DE TRABALHO

Apesar do desempenho demonstrado na última seção, o setor editorial não perdeu conteúdo criativo. Os esforços de adaptação vêm sendo responsáveis por mudanças no padrão de emprego. Nesse sentido, a introdução de inovações, a automação e a incorporação de novas atividades – como a venda de e-books e novas etapas

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Editorial Economia criativa (menos o setor editorial) Economia criativa (com o setor editorial) 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 0,01 0,02 0,03 0,04 0,05 0,06 0,07 0,08 0,00% 0,05% 0,10% 0,15% 0,20% 0,25% 0,30% 0,35%
Receita média EC PIB per capita Lucros médios SE Lucros médios EC Receita média SE 0 500.000 1.000.000 1.500.000 2.000.000 2.500.000 14.000 12.000 10.000 8.000 6.000 4.000 2.000 0 2019 2018 2017 2016 2015 2014 2013 2012 2011 2010 2009 2008 2007
Fonte: elaboração própria, com dados do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural e do Banco Mundial.

na cadeia de produção do livro –, ao mesmo tempo que causam uma perda grande de trabalhadores (fechamento de livrarias, distribuidoras e editoras), geram novos empregos em razão dos efeitos compensatórios da inovação (novas tarefas, investimentos, novos produtos etc.) (AUTOR; SALOMONS, 2018).

De acordo com Ho, Wang e Cheng (2011), McIlroy (2015) e Ferreira et al. (2018), as dificuldades de adaptação do setor ao digital são a causa do desaparecimento e do enfraquecimento de elos da cadeia editorial. Nesse sentido, advogamos que a capacidade de adaptação do setor editorial brasileiro poderia estar refletida em sua intensidade criativa, mais especificamente nos empregos criativos ligados a tecnologia. Dessa forma, acredita-se que uma boa medida substituta para medir tal esforço seja a evolução da participação dos empregos de tecnologia da informação e da comunicação (TIC) no setor. Os gráficos 7 e 8 apresentam os resultados.

Gráfico 7: Intensidade criativa no setor editorial

Edição e edição integrada à impressão Linear (edição e edição integrada à impressão)

Fonte: elaboração própria, com dados do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural e do Banco Mundial.

Gráfico 8: Participação dos empregos de TI no setor editorial

de TI no setor editorial Linear (ocupações de TI no setor editorial)

Fonte: elaboração própria, com dados do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural e do Banco Mundial.

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0 0,1 0,2 0,3 0,4 0,5 0,6 0,7 0,8
2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 0 500 1.000 1.500 2.000 2.500 3.000 3.500 4.000 Ocupações

O Gráfico 7 mostra que a intensidade criativa do setor editorial vinha crescendo no período de 2012 a 2020. Apesar da evidência positiva, não se pode inferir que o setor tenha feito um esforço para se adaptar só a partir desses dados. Por outro lado, o Gráfico 8 pode ser considerado uma boa medida substituta, e nele observamos que o setor editorial vem aumentando a participação de trabalhadores de TI.

Ainda que o setor tenha demonstrado uma melhora em sua intensidade criativa, a dinâmica entre a presença de trabalhadores criativos, de apoio e incorporados pode esconder certas nuances. Um aumento na intensidade criativa pode ser originado de uma substituição entre as camadas mencionadas. Para elucidar, a análise laboral está estruturada de acordo com as seguintes categorias de emprego: 1) criativos ou especializados, ou trabalhadores criativos que trabalham no setor criativo; 2) incorporados, ou trabalhadores criativos que exercem atividades fora dos setores criativos; e 3) apoio, ou trabalhadores empregados nos setores criativos que não exercem atividade criativa. Como se trata de um setor criativo, as categorias 1 e 2 se fundem. Ao observar o eixo da direita no Gráfico 9, percebemos que o setor apresenta uma trajetória de demissões mais acentuada a partir de 2015, o que vai de encontro com o início da crise e das políticas de austeridade no país, que fragilizaram o setor.

Fonte: elaboração própria, com dados do Observatório Itaú Cultural.

Apesar da volatilidade, observa-se que a presença de trabalhadores criativos no setor editorial é mais estável que a participação das outras duas categorias, o que pode ser traduzido como um esforço para manter a intensidade criativa mesmo em épocas de crise e de despedidas de funcionários. Entre os trabalhadores incorporados e os empregados dos setores criativos, no entanto, é mais difícil identificar qual apresenta maior volatilidade. Por outro lado, nota-se que os trabalhadores incorporados em geral têm participação maior que os demais.

CONCLUSÃO

Apesar do crescimento no período atual pós-pandemia e dos esforços de adaptação aos desafios impostos pela digitalização e pelo comércio eletrônico, o acúmulo de impactos sofridos pelo setor editorial nos últimos anos o coloca numa posição de fragilidade. Como agravante, o hábito da leitura não vem crescendo proporcio-

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% empregados dos setores criativos % trabalhadores criativos % trabalhadores incorporados Empregados dos setores criativos Trabalhadores criativos Trabalhadores incorporados 0 5.000 10.000 15.000 20.000 25.000 2019 2018 2017 2016 2015 2014 2013 2012 2020 2021 -150% -100% -50% 0% 50% 100% 150% 200% 250%
Gráfico 9: Evolução do emprego criativo no setor editorial

nalmente ao nível de escolarização, conforme apontado pela pesquisa “Retratos da leitura” de 2016, o que, entre outras causas, é fruto de o tempo livre dos brasileiros estar cada vez mais ocupado por uma variedade de atividades. Uma atualização dessa pesquisa publicada em 2020 mostrou que, inclusive, o número de leitores no país diminuiu entre os anos de 2015 e 2019, respectivamente de 56% para 52% da população com mais de 5 anos de idade.

No curto prazo, por outro lado, a volta às aulas deve aumentar a venda de livros didáticos, tão importantes para o setor. Já no longo prazo, a venda de livros didáticos digitais – 46% das vendas do setor são de livros didáticos (FIPE, 2018) – e a maior penetração da cibercultura podem gerar uma nova fonte de receitas para o setor e dinamizar o processo de leitura (GOMES et al., 2014). Ainda no longo prazo, também se acentuarão as dificuldades enfrentadas pelo setor, tornando ainda mais necessária uma adaptação do modelo de negócios das empresas que o constituem hoje para lidar com a digitalização e seus efeitos positivos e negativos, como é o caso da pirataria. Nesse contexto, a reinvenção dos modelos de negócio é crucial para uma adequação aos novos hábitos de consumo e uma concorrência mais dinâmica.

COMO CITAR ESTE ARTIGO

DA SILVA, Filipe; MÖLLER, Gustavo. O impacto da digitalização nos modelos de negócio do setor editorial. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 35, 2023.

FILIPE DA SILVA

Graduado em economia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e mestre em economia da indústria e da inovação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é pesquisador da Catavento Pesquisas.

GUSTAVO MÖLLER

Graduado em relações internacionais e mestre em estudos estratégicos internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é sócio-fundador da Catavento Pesquisas.

NOTAS

1. Gatekeeper é um intermediário capaz de impor um limite ao acesso a determinado mercado, informação ou serviço. Plataformas digitais, editoras e jornais, por exemplo, podem ser considerados gatekeepers.

2. Ver: MELO, Alexandre. Saraiva e Cultura para de pagar editoras e outras redes renegociam. Valor Econômico, São Paulo, 30 mar. 2020. Disponível em: https:// valor.globo.com/empresas/ noticia/2020/03/30/saraiva-ecultura-param-de-pagar-editorase-outras-redes-renegociam.ghtml Acesso em: 13 maio 2023.

3. Ver: PUBLISHNEWS. Pesquisa mostra que o Brasil perdeu 21 mil livrarias nos últimos 10 anos. Publishnews, São Paulo, 10 dez. 2018. Disponível em: https:// www.publishnews.com.br/ materias/2018/12/10/pesquisamostra-que-o-brasil-perdeu-21mil-livrarias-nos-ultimos-10-anos Acesso em: 13 maio 2023.

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4. Não neutralidade (plataformas que operam como intermediárias entre oferta e demanda e, ao mesmo tempo, concorrem ofertando os mesmos produtos) e self-preferencing (empresas que favorecem seus produtos, por exemplo, nos resultados de buscas em suas lojas virtuais) são práticas anticompetitivas realizadas por plataformas digitais que afetam principalmente as pequenas empresas que buscam digitalizar seus negócios (DA SILVA; NÚÑEZ REYES, 2021).

5. Ver: VALERY, Gabriel. Livrarias quebram e arrastam setor editorial. Brasil de Fato, São Paulo, 25 nov. 2018. Disponível em: https://www.brasildefato.com. br/2018/11/25/livrarias-quebram-earrastam-setor-editorial/. Acesso em: 13 maio 2023.

6. Ver: ARAUJO, Pedro Zambarda de. Mercado de livrarias encolhe 40%; Fnac e Saraiva fecham lojas e a Justiça intervém na Cultura. Diário do Centro do Mundo, 12 nov. 2018. Disponível em: https://www. diariodocentrodomundo.com.br/ essencial/mercado-de-livrariasencolhe-40-fnac-e-saraivafecham-lojas-e-a-justica-intervemna-cultura/. Acesso em: 13 maio 2023.

7. O modelo de finanças alavancado das editoras sofreu um duplo impacto, já que não foram pagas e não recuperaram seus estoques em posse das livrarias, o que causou um efeito cascata (CUNHA; GENTILE, 2018).

8. A Amazon, além de comercializar livros e oferecer uma variedade de produtos em seu marketplace, incluindo o site de avaliações de livros Goodreads, também incorporou ao seu ecossistema digital mais de 43 empresas

(TALIN, 2021), e estabeleceu uma editora que compensa os escritores com o dobro do pagamento do mercado americano.

9. Pozzer e Da Cunha (2020) argumentam que os algoritmos utilizados por motores de busca e sites em geral podem ser considerados gatekeepers. Para Parker et al. (2016) e Ferreira et al. (2018), os algoritmos, na realidade, são responsáveis por fazer as correspondências entre livros, autores e consumidores, o que, nesse sentido, se configura como o oposto da definição de um gatekeeper.

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O NFT como verbo

RESUMO

Desde que ouvimos falar dos non-fungible tokens (NFT), é sempre em relação a um “produto” ou elemento que serve para certificar um objeto único e preservar o seu valor. Permanentemente, a discussão gira em torno do valor individual, e poucas vezes da sua função, que ultrapassa o substantivo, um objeto de com e vira um verbo. Sem sombra de dúvidas, os NFT são a segunda onda de revolução associada ao blockchain.

INTRODUÇÃO

Os non-fungible tokens (NFT) são uma tecnologia que permite dar vida virtual aos bens físicos. Com isso, sua comercialização e seu registro cobram um novo sentido. Além dos benefícios que a tecnologia trouxe para as produções digitais de arte – como arte digital e criptoarte –, pela primeira vez na história, todo o universo das obras físicas tem a possibilidade de reunir sua documentação e sua identidade digital, permitindo que imagens, detalhes, estudos realizados, registros de exposições e textos curatoriais se encontrem dentro de um único ecossistema digital, descentralizado, universal e imutável. Estamos vendo a ponta do iceberg, sete anos após a criação do Ethereum.1 Os NFT estão se multiplicando muito além das especulações e aplicações fúteis. Apresentaremos, neste artigo, algumas novidades que farão parte do nosso cotidiano em um curto prazo de tempo.

NFT

O NFT é “um ativo digital, baseado em blockchain, que representa objetos reais” (COSSETTI, 2021). Blockchain é “uma rede que funciona com blocos que carregam sempre uma impressão digital. O bloco seguinte também vai conter a impressão digital do anterior, mais o seu próprio conteúdo e, com essas duas informações, gerar sua própria impressão digital; conferível por todos” (COSSETTI, 2021). Dito de outra maneira, pode-se associar a ideia de blockchain à de um cartório digital, descentralizado e universal. A propriedade de um NFT é registrada e pode ser transferida pelo proprietário, permitindo que o ativo seja vendido, alugado e negociado. 2

A criação de um NFT se realiza quando uma empresa registra as regras básicas num contrato inteligente (smart contract). Essas regras incluem a definição da quantidade de tokens, do valor do token e das condições especiais nas quais o contrato será executado, entre outros aspectos. Uma vez criado o NFT, a plataforma servirá como um cartório inteligente para todas as transações futuras, garantindo que as condições estabelecidas sejam cumpridas. Para comprar um token, o processo é simples: a partir do momento em que se decide fazer a compra, a plataforma confere a sua disponibilidade e a sua qualificação. Você então recebe seu token e o sistema atualiza as informações de propriedade e disponibilidade. Para transferir, alugar ou emprestar seu token, deve-se acessar a mesma plataforma. O

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Isso evidencia como as obras de arte sempre são um refúgio de valor em épocas de crise ou incertezas.

blockchain registrará a atividade, impactando todo o sistema – que pode ser auditado, embora isso não mude a transação registrada.

MERCADO DE ARTE AQUECIDO EM ÉPOCAS DE CRISE

O ano de 2022 nos trouxe mais um cenário de incertezas. Segundo um informe do Fundo Monetário Internacional (FMI), as perspectivas globais da saída da pandemia de covid-19 foram afetadas seriamente pela invasão da Ucrânia pela Rússia (GOURINCHAS, 2022). Diante desse cenário, o mundo das artes opera na contramão. De acordo com “The contemporary art market report in 2021”, 3 da Artprice, o mercado esteve em alta de 16% no decorrer de 2022 até hoje, comparado com o S&P 500 – índice formado pelas 500 maiores empresas do mercado de ações dos Estados Unidos –, que caiu quase 14% durante o mesmo período. Isso evidencia como as obras de arte sempre são um refúgio de valor em épocas de crise ou incertezas. Muito do crescimento do mercado de arte pode ser atribuído ao maior acesso aos grandes leilões realizados on-line (VANDENBOSS, 2022). Trata-se de uma mudança de paradigma que veio com a pandemia e que provocou mudanças globais nas maneiras de consumir, comprar, estudar e se relacionar utilizando a virtualidade.

Esses novos paradigmas vêm com a incorporação das obras de arte ao mercado on-line, nascido há mais de 20 anos. Pouco se pode vislumbrar sobre o impacto dos NFT no mercado de arte global na próxima década. Segundo o informe do site especializado Statista Digital Economy Compass 2022, o Brasil é o terceiro país do mundo com maior adoção de NFT (AMARO, 2022). Segundo um estudo da comunidade DappRadar, a liderança é da China, seguida dos Estados Unidos; e no mesmo terceiro lugar, que soma mais de 168 mil usuários ativos (AMARO, 2022), estão Reino Unido, Rússia e Filipinas ao lado do Brasil. Diante desse cenário, é possível projetar um enorme crescimento do setor nos próximos anos.

Segundo o informe do site especializado Statista Digital Economy Compass 2022, o Brasil é o terceiro país do mundo com maior adoção de NFT

FALSIFICAÇÃO DE ARTE, FALSIFICAÇÃO DOS NFT

No mundo das artes, o problema da falsificação é tão antigo quanto os registros da nossa história. Foi no século XIX que as práticas de falsificação se consolidaram. E, em apenas dois séculos, metade das obras de arte que circulavam no mercado era falsa ou tinha problemas de identificação (GIVOA, 2016).

Os estudos de Theóphile Thoré, Paul Lacroix e Giovanni Morelli formaram a base metodológica usada atualmente para o enfrentamento da falsificação. Com o apoio da tecnologia, a perícia de arte é um campo em permanente evolução, e que se torna cada vez mais relevante para a determinação técnica e científica da autenticidade e da datação das obras de arte (PERINO, 2020).

O sistema da arte é uma cadeia correlativa de agentes que vai muito além do artista criador da obra de arte. É uma complexa relação que envolve curadores, críticos de arte, produtores culturais, museus e instituições, pesquisadores, peritos, art dealers, galerias de arte, leiloeiros, art appraisal e art advisors, entre outros. Era de se esperar que toda essa complexidade fosse levada ao mundo digital. O NFT como

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metade das obras de arte que circulavam no mercado era falsa ou tinha problemas de identificação.

certificado de uma obra de arte, que apareceu como uma promessa de eliminar de vez a problemática dos registros das obras, a falta de proveniência e a legitimidade delas, se encontrou rapidamente com uma realidade que nenhum sistema ou inteligência artificial poderá isoladamente mudar: a intervenção necessária dos especialistas que trabalham e atuam no sistema da arte. Pouco tempo depois da explosão dos NFT na mídia e do seu impacto nesse mundo, começamos a perceber que os mesmos problemas do mercado tradicional podem ser vistos no virtual, e que também nos acompanharão no metaverso.

Os NFT falsificados têm criado grandes problemas para as plataformas digitais (BATYCKA, 2022). Em meio ao crescimento extraordinário dos NFT, as falsificações tornam-se cada vez mais comuns, configurando-se em uma dor de cabeça para quem opera nesse mercado emergente. “O cenário NFT constitui uma nova fronteira – está operando um pouco como o Wild West”, afirma Mark Lee, especialista em falsificação de marcas e em roubo de propriedade intelectual, ao The Art Newspaper. “As marcas estão lutando para equilibrar como fazer uso de seus ativos digitais para fins de marketing e vendas com a proteção de sua propriedade intelectual, além de evitar que seus clientes comprem NFTs falsificados sem saber” (BATYCKA, 2022).

As marcas Protect de DeviantArt, SnifflesNFT e MarqVision, a partir da inteligência artificial, são softwares criados para tentar lutar contra a falsificação dos NFT. A OpenSea e a Rarible tomaram medidas para resolver o problema implementando um sistema adicional de verificação moderado por humanos, maneira antiga e eficiente para tratar de descobrir as sutis e imperceptíveis manobras dos falsários. A questão até motivou a criação de uma conta no Twitter, @NFTtheft, que tem documentado alguns dos casos mais flagrantes. Um dos tweets denuncia: “@ValhallaDegens encontrou on-line uma foto de uma pintura a óleo e agora está usando-a para sua coleção NFT . Não há fim para este constante roubo de arte, não é mesmo? A pintura original, Burning sadness, é de Ana Gratess e pode ser encontrada aqui” (GRATESS, 2017; NFT THEFTS, 2022).

Existe ainda outro problema nos registros dos NFT : se os dados de uma carteira são roubados pelo denominado phishing scam (roubo de dados digitais), o “proprietário” é considerado o real – isso no caso de o NFT ser verdadeiramente único, já que um mesmo artista pode criá-lo ( mintear ) em diferentes plataformas e ter em cada uma delas um ativo da mesma peça. É por isso que se faz necessário pensar em uma estrutura de segurança que envolva os atores do mercado e na qual os validadores da arte estejam presentes, como no mercado de arte tradicional.

Conforme “análise da OpenSea, mais de 80% dos NFT’s listados no mercado eram arte plagiada, coleções falsas, ou spam” (RAVENSCRAFT, 2022). Uma pesquisa do Alan Turing Institute que se concentrou principalmente nos dados da OpenSea constatou que 75% dos NFT foram vendidos por menos de 15 dólares, e apenas 1% foi negociado acima dos 1,5 mil dólares (MATTHIEU et al., 2021). “É muito claro que muito poucas pessoas podem realmente vender acima de US$ 1.500”, diz

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Mauro Martino, do Laboratório Visual AI da IBM. “Não é um lugar mágico onde todos se tornam ricos. É realmente a mesma realidade em qualquer outro tipo de negócio” (RAVENSCRAFT, 2022).

MERCADO DA MODA, LUXO E EXCLUSIVIDADE

A Gucci adotou o uso de moedas criptográficas como forma de pagamento, o que valida a marca como “símbolo de luxo disruptivo”. Foi também a primeira marca de luxo a vender uma ficha NFT, em maio de 2021, quando lançou um filme inspirado em sua coleção Aria, criada pelo designer italiano Alessandro Michele (MALDONADO, 2022). “A marca de moda se aventurou em vários mundos metaversivos, como a plataforma Roblox e The Sandbox, onde adquiriu terrenos para recriar seu espaço da Gucci Vault. Com essa iniciativa, a Gucci procura aproximar-se das novas gerações” (MALDONADO, 2022).

Outras grandes marcas de moda, como Prada, Balenciaga, Nike, Adidas e Louis Vuitton, acolheram o mundo blockchain adotando criptomoedas e NFT. Empresas de outros ramos, como McDonald’s, Coca-Cola e Ticketmaster, também entraram nesse mundo. A banda de rock Muse anunciou o lançamento de seu novo álbum como um NFT, levando a outro patamar a experiência dos fãs (MALDONADO, 2022). Até as grandes marcas de carros estão adotando as vantagens dos NFT, além da estrutura blockchain, já existente na indústria automotiva. Em 2022, uma “nova divisão de carros elétricos da Volvo passou a aceitar obras de arte como meio de pagamento” (BERTOLUCCI, 2021). Comparando o Volvo Polestar 3 com uma obra de arte, a empresa sueca permite comprar o carro em troca de “outras” obras de arte do mundo tradicional tokenizadas (BERTOLUCCI, 2021).

É por isso que se faz necessário pensar em uma estrutura de segurança que envolva os atores do mercado e na qual os validadores da arte estejam presentes, como no mercado de arte tradicional.

ON-CHAIN E OFF-CHAIN, COISAS DE QUE PRECISAMOS SABER

O site YourNFTs.org, no início de 2022, publicou que tinham sido descarregados todos os NFT armazenados no Ethereum (HLADEK, 2022). Isso foi algo incomum, que chamou a atenção para a segurança da informação. Que o NFT seja único e imutável não significa que não possam existir cópias – aliás, no mundo da arte, as cópias estão por todo lugar há séculos. O site revelou que mais de 5 gigabits de informação foram “descarregados”, o que chamou de uma espécie de “The Pirate Bay dos NFT” (HLADEK, 2022; WIKIPEDIA, 2022).

De acordo com a análise, 10% dos NFT estão no blockchain, on-chain, 40% estão off-chain – ou seja, em servidores privados, como as nuvens de armazenamento que usamos no cotidiano (iCloud, OneDrive, Google Drive etc.) – e os 50% restantes estão em InterPlanetary File System (IPFS) (HLADEK, 2022). O IPFS é um protocolo de armazenamento de arquivos descentralizado, com governança similar ao blockchain. O conteúdo armazenado em nuvem privada corre o maior risco de desaparecer, porque está sujeito a um único ponto de falha e, uma vez off-line, dificilmente pode ser restaurado.

O IPFS é uma das mais populares soluções de armazenamento de NFT: mesmo que o conteúdo fique eventualmente indisponível, com um backup apropriado, os

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arquivos IPFS podem ser restaurados e qualquer um pode pagar para garantir que eles permaneçam on-line (HLADEK, 2022). Como indica o especialista Nick Hladek, “um NFT típico pode ser pensado como uma estrutura em forma de árvore brotando do blockchain, em que a propriedade é assegurada na raiz (on-chain) e o conteúdo é armazenado nos galhos (off-chain)” (HLADEK, 2022).

Por causa do custo, a maioria das informações não é armazenada na rede blockchain. São registrados nela principalmente os protocolos que regem os contratos inteligentes. É por isso que um GIF de um macaco completamente armazenado on-chain atinge valores altíssimos, por ser um NFT totalmente “puro”.

NFT COMO PODEROSA FERRAMENTA QUE UNE OS UNIVERSOS FÍSICO E DIGITAL

Empresas como a Artory e a Verisart têm realizado o registro e o controle de obras de arte, oferecendo identificação, registro e garantias de imutabilidade das informações mediante a tokenização de obras. Nesse ecossistema, o próprio artista pode emitir seus certificados e interagir com os agentes de validação. Toda a cadeia de informações fica registrada no NFT, que passa a ser o expediente vivo da obra, mudando com cada acontecimento e estando atrelado à obra física por meio do chamado chip NFC smart tag, uma “etiqueta inteligente”.

A Artory (2022) vai inclusive além, já que entende a obra como um ativo financeiro que pela primeira vez conta com um registro confiável, descentralizado e perpétuo. A DApp4 conta com uma rede de parcerias com empresas comerciais e de verificação de obras de arte, como a Christie´s, Wiston Art Group, Tagsmart, Art Discovery, Tefaf e Instituto Wildestein.

Na América do Sul existe um projeto similar em desenvolvimento, a Tokenizart (2022), que vai além do registro como ativo financeiro, pois oferece, dentro da mesma plataforma, a possibilidade de comercialização, o depósito em garantia de obras de arte para outras operações financeiras e o serviço de Escrow para a segurança nas operações, principalmente nas de arte física, que devem ser trasladadas de um ponto ao outro numa transferência de propriedade. Como sua parceira estadunidense, a Artory, a Tokenizart prevê um ecossistema de validadores parceiros que poderão verificar e certificar as obras de arte registradas, todas armazenadas em IPFS. “Em Tokenizart, procuramos desenvolver um ecossistema saudável, puro e abrangente, tentando simplificar os processos, ligando todos os participantes do mundo da arte que geram valor”, menciona Gabriel Mucchiut,5 cofundador da empresa.

Gabriel explica que o chip é codificado num link único e seguro para um arquivo hospedado no IPFS e atrelado ao NFT mediante o smart contract blockchain (certify chip). O sistema está ligado à obra física e interage com as descrições e as fotos incorporadas no IPFS. “Existe o mito que com os NFT se garante o pagamento do direito de sequência e direitos autorais, porém isso depende de processos e trabalho humano dentro da rede que se opere. Potencialmente a ferramenta permite tudo isso, mas não é a realidade de muitas plataformas”.

O ideal é que, mediante a integração de diferentes infraestruturas digitais, participem artistas, seus representantes, colecionadores e diferentes atores do sistema.

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Cada um deles agregando valor e participando dentro da mesma plataforma de maneira independente e devidamente registrados.

Ao mintear um NFT na Tokenizart.com SmartContract, cria-se um título digital para o ativo físico ou digital subjacente associado. E, ao fazer isso, se dá valor de proprietário ou de detentor legítimo do bem associado e vinculado.

No Brasil, existem empresas do mercado de arte que estão implementando o NFT como política de segurança para as obras de arte física. É o caso da legendária galeria de arte paulistana Galeria Raquel Arnaud, que celebra seu 50º aniversário em 2023. Com consultoria da Givoa Art Consulting, a galeria tem implementado o sistema de chip NFC e NFT em algumas das obras que fizeram parte da exposição ArteRio 2022.

É possível vislumbrar que os NFT, assim como outras ferramentas digitais, serão incorporados ao nosso cotidiano, revolucionando a maneira como registramos bens. Sobre o mercado de arte, a sua incorporação promete outorgar mais transparência, além de permitir a diligência devida na comercialização das obras de arte.

COMO CITAR ESTE ARTIGO

PERINO, Gustavo. O NFT como verbo. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 35, 2023.

GUSTAVO PERINO

Bacharel em perícia e avaliação de obras de arte pela Universidad del Museo Social Argentino, na Argentina, e especialista em gestão cultural e comunicação pela Faculdade LatinoAmericana de Ciências Sociais (Flacso). Atua como professor universitário e cocoordenador do curso de pós-graduação em perícia de arte da Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro. É membro do Instituto de Avaliação e Autenticação de obras de arte – i3a; do comitê científico das jornadas de peritagem de arte na Universidad Nebrija, na Espanha; e da Associação Nacional de Pesquisa em Tecnologia e Ciência do Patrimônio (Antecipa), em Belo Horizonte. Fundador e diretor da Givoa Art Consulting, empresa atuante no mercado desde 2012, é também criador e organizador da International conference artwork expertise (Icae).

NOTAS

1. O Ethereum é uma rede blockchain protagonista no desenvolvimento de soluções financeiras e dos mais diversos aplicativos no meio do cripto. Por causa de sua relevância, passou a ser considerado por muitos um dos pilares do setor cripto, ao lado do bitcoin.

2. Sobre blockchain e NFT, ver: CALLEJO, Javier. Criptoagosto: los NFT como identidad y su vínculo con la RSC empresarial. Observatorio Blockchain, 4 ago. 2022. Disponível em: https:// observatorioblockchain.com/ criptoagosto/los-nft-comoidentidad-y-su-vinculo-con-larsc-empresarial/#.YuuLpCyPs3s. linkedin. Acesso em: 17 maio 2023.

3. ARTPRICE The contemporary art market report in 2021. Lyon: Artprice, 2021. Disponível em: https://imgpublic.artprice.com/ pdf/the-contemporary-art-marketreport-2021.pdf. Acesso em: 28 maio 2023.

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4. DApp (web 3.0) é o equivalente a app (web 2.0).

5. Em entrevista cedida ao autor em São Paulo, em 10 de agosto de 2022.

REFERÊNCIAS

@VALHALLADEGENS found a photo of an oil painting online [...], 19 jul. 2022. Twitter: @ NFTtheft. Disponível em: https://twitter.com/NFTtheft/status/1549502810919616513?s=20&t=p3fDVXn7nCij0sO8o6kt_Q

Acesso em: jul. 2022.

AMARO, Lorena. Brasil é o terceiro país do mundo com maior adoção de NFTs. Criptofacil, 17 jan. 2022.

Disponível em: https://www.criptofacil.com/brasil-e-o-3o-pais-do-mundo-com-maior-adocao-de-nfts/. Acesso em: jul. 2022.

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html#:~:text=A%20Tesla%20foi%20 a%20maior,arte%20como%20 forma%20de%20pagamento.

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CALLEJO, Javier. Criptoagosto: los NFT como identidad y su vínculo con la RSC empresarial. Observatorio Blockchain, 4 ago. 2022. Disponível em: https:// observatorioblockchain.com/ criptoagosto/los-nft-comoidentidad-y-su-vinculo-con-larsc-empresarial/#.YuuLpCyPs3s. linkedin. Acesso em: 17 maio 2023.

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NFT e o direito

NFT, a abreviação de non-fungible token, o identificador digital exclusivo que registra a propriedade de um ativo digital que entrou no senso comum e viu milhões gastos nas imagens e vídeos mais procurados, foi nomeado Palavra do Ano 2021 do Dicionário Collins. É uma das três palavras baseadas em tecnologia que fazem parte da extensa lista de dez palavras do ano, sete delas incluídas no site do Dicionário Collins.

(Collins Dictionary)

O futuro já está aqui – só não está distribuído uniformemente.

(William Gibson, tradução nossa)

RESUMO

O presente artigo visa apresentar um panorama dos non-fungible tokens ( NFT) no estado da arte. Começarei abordando a evolução da tecnologia e os reflexos das inovações na sociedade. Em seguida, trato da arte corporificada em objetos físicos e do surgimento da arte representada por meios incorpóreos, como hologramas e arquivos de computador. A produção de arte em suportes digitais e a sua aceitação pela sociedade representam a legitimação dessa arte em suporte intangível, porém com a característica da reprodutibilidade ilimitada. Surge, então, o NFT como mecanismo decorrente do chamado blockchain, que permite individualizar a obra de arte imaterial, tornando-a única. Essa evolução da tecnologia é o objeto do presente artigo, sendo certo que o seu conceito jurídico ainda não está definido.

Palavras-chave: criptoativos; NFT; evolução; tecnologia; direito autoral.

INTRODUÇÃO

A evolução tecnológica permite uma visão tridimensional que, a cada instante, contempla o passado, o presente e, mais do que nunca, as perspectivas do futuro (WHITEHEAD, 2012). Uma visão panorâmica desse processo permite imaginar os passos seguintes dessa cadeia evolutiva, muito embora determinados saltos rompam com a estrutura precedente, alterando substancialmente as características de hábitos sociais. O fim do século XX e o início do XXI marcam a transição da sociedade de consumo (e de conhecimento) apoiada em bens materiais para aquela com a crescente presença de bens imateriais.

Desmaterialização é a palavra que caracteriza o início do século XXI, e que se relaciona com o tema deste artigo. Situando o momento atual na história, após anos de produção e utilização de bens materiais e corpóreos, os bens imateriais e intangíveis predominam na sociedade, salvo em poucas exceções, como a habitação, a alimentação e o transporte. O Código Civil Brasileiro de 2002, em seu artigo 83º, definiu que, para os efeitos legais, se consideram bens móveis, entre outros, as energias que tenham valor econômico – por exemplo, a energia elétrica. A proprie-

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dade material está hoje relativamente bem equacionada pelo Direito, com regras para a aquisição de bens imóveis e móveis pautadas pelos registros e pela tradição, respectivamente.

Eric Caprioli (2000) discorreu sobre o novo conceito de patrimônio, com ênfase no imaterial – por exemplo, jogos, imagens, textos, patentes e obras literárias –, no seguinte trecho:

[...] como escreveu um eminente autor, ao longo do século XX, a noção de patrimônio sofreu profundas alterações sob a influência da evolução econômica e social. Na sociedade da informação, não há dúvida de que a aceleração do tempo e a redução do espaço, inerentes às novas redes de comunicação (internet), terão impacto no patrimônio. Riquezas intangíveis (trabalhos originais digitalizados, informações) circulam on-line quase instantaneamente, enquanto o fluxo de riquezas materiais trocadas fisicamente está se acelerando (CAPRIOLI, 2000, tradução nossa).

Nos anos 1960, o cidadão era um simples receptor de conteúdo, principalmente com o advento dos satélites de comunicação. Com o computador e a internet, o indivíduo passou a ser, também, emissor e produtor de conteúdo. Hoje, os digital influencers e os youtubers atingem rapidamente milhões de seguidores.

Com o computador e a internet, o indivíduo passou a ser, também, emissor e produtor de conteúdo. Hoje, os digital influencers e os youtubers atingem rapidamente milhões de seguidores.

Compartilhar informações é uma característica da sociedade atual, na chamada sharing economy (RODRIGUES, 2020). Esse compartilhamento é facilitado pela desmaterialização, pela fragmentação de poder na sociedade, pelo que mais e mais pessoas tem acesso a infinitos conteúdos, simultaneamente. O dinheiro eletrônico substitui as cédulas e as moedas; cresce exponencialmente o número de obras literárias publicadas em e-books; as fotografias e os filmes são digitais, sem papel nem celuloide; as cautelas de ações de companhias são virtuais; e as esculturas podem ser feitas em hologramas. Enfim, há uma onda de conversão do acervo cultural em papeis e filmes guardado em arquivos físicos para o mundo imaterial e o armazenamento em nuvem. A imagem em arquivo .jpeg não envelhece, não amarela, não esfarela, como o papel, nem fica quebradiça, como o verniz das pinturas; pode ser reproduzida infinitamente sem perda de qualidade visual e ampliada aos extremos, como nas reproduções de obras de arte armazenadas no Google Arts & Culture.

BLOCKCHAIN E BITCOIN

Nesta terra quase sem lei, de reprodução e circulação desmedidas dos objetos imateriais (textos e imagens) sem perda de qualidade, começaram a surgir meios de identificação e controle desse conteúdo. O pêndulo da história oscilou e a centralização da internet em poucos megaconglomerados da informação quase sem controle (Google, Facebook, WhatsApp, YouTube) começou a ser regularizada pelos Estados. Em 2008, surgiu o blockchain, rede descentralizada de informações na qual os dados inseridos seguem uma linha cronológica sequencial, que contribui para a imutabilidade dos registros. Blockchain, portanto,

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É, ainda, uma plataforma para que todos saibam o que é verdadeiro, pelo menos no que diz respeito à informação estruturada gravada. No seu aspecto mais básico, é um código-fonte aberto: qualquer um pode, gratuitamente, baixá-lo, executá-lo e usá-lo para desenvolver novas ferramentas para o gerenciamento de transações on-line. Como tal, ele tem potencial para desencadear inúmeras novas aplicações, além da capacidade iminente de transformar muitas coisas (TAPSCOTT, 2016, p. 36).

O fator tempo é determinante e as informações vão sendo armazenadas nessa rede em ordem cronológica de inserção, com praticamente nenhuma possibilidade de alteração de data, nem de conteúdo

Em vez de se concentrarem num provedor, as informações sobre todos os computadores que integram o blockchain são compartilhadas por todos os aderentes, em uma rede compartilhada de informações (sharing information network), um protocolo de confiança.

Neste ponto, cito o famoso artigo de 2008 atribuído a Satoshi Nakamoto (cuja identidade é ignorada, pois não se sabe se é uma pessoa, um grupo ou um pseudônimo), que marca o surgimento do bitcoin como o conhecemos hoje: A peer-to-peer electronic cash system, ou seja, um sistema de dinheiro eletrônico de ponta a ponta. A especialista Dayana Uhdre (2021) diz se tratar de um programa que cria, sobre a camada da internet, uma rede global e distribuída (distributed ledger technology) de registros de transações relativas à transferência de valores diretamente entre partes distintas (peer-to-peer, ou P2P), isto é, sem intermediários centralizadores de operações (bancos, corretoras). Tal circunstância atribui um caráter de sigilo às informações circulantes, daí o termo do momento, “criptoativos”, do latim crypta, que significa caverna, cofre, cova ou galeria subterrânea. O fator tempo é determinante e as informações vão sendo armazenadas nessa rede em ordem cronológica de inserção, com praticamente nenhuma possibilidade de alteração de data, nem de conteúdo.

Outro significado atribuído ao bitcoin é bem explicado por Uhdre (2021):

Tomando o protocolo Bitcoin como modelo inicial de aproximação, é importante desde já diferenciar as “duas realidades” a que nos referimos com o termo. Podemos estar diante de uma “moeda” digital e virtual – bitcoin, grafado com letra minúscula –, e/ou diante de um protocolo tecnológico desenvolvido sobre a camada da internet – Bitcoin, grafado em letra maiúscula. Ao nos referirmos ao primeiro aspecto, bitcoin, estamos falando de uma moeda virtual (porque só existente no mundo virtual) criptografada (utiliza-se de criptografia assimétrica) e conversível (para moeda fiduciária), baseada em um sistema descentralizado (UHDRE, 2021, p. 32).

As moedas bitcoins passaram a circular, a representar valores e, como a tecnologia geralmente evolui antes de o Direito alcançá-la, surgiu uma defasagem entre o regulamento jurídico e os novos fatos. Diante da realidade inegável do crescimento dos criptoativos, a Receita Federal do Brasil (RFB) baixou a Instrução Normativa (IN) nº 1.888, de 7 de maio de 2019, com uma ementa que institui e disciplina a obrigatoriedade da prestação de informações rela-

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tivas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da RFB. Por ora, destaco o chamado aspecto camaleão dos criptoativos referido na IN, que se justifica, segundo Vainzof e Cunha Filho (2017), por poderem assumir funções diversas:

[...] o fato de a pluralidade de formas assumidas pelas criptomoedas poderem resultar em diversas classificações jurídicas para um mesmo fenômeno, assusta profissionais ainda pouco sensíveis, em sua maioria, aos novos produtos da tecnologia... das manifestações formais ou informais de 29 países acerca da natureza jurídica das criptomoedas, pelo menos 13 classificações jurídicas distintas puderam ser encontradas. Entre elas a de serviço, instrumento financeiro, e-money, sistema de pagamento, substituto monetário etc.

NFT

Antes de falar de non-fungible token (NFT) propriamente, uma palavra sobre o mercado de arte. A economia, a sociedade, as famílias, os hábitos e os imóveis mudaram. O cidadão procura equilibrar o trabalho com a satisfação pessoal, muitas vezes expressa na aquisição de obras de arte, que, além de trazerem prazer, conferem status. Hoje, a média de filhos por família diminuiu, e esses geralmente nascem de pais mais velhos, que utilizaram sua capacidade máxima de trabalho na juventude. O tamanho dos imóveis reduziu, e o colecionismo – que requer o armazenamento de obras de arte físicas, com restrições de umidade, conservação e necessidade de espaço – ficou mais trabalhoso, ao mesmo tempo que o gosto contemplativo clássico destoa do frenético ritmo da sociedade.

Ao reunirmos esses aspectos, percebemos que as obras de arte virtuais são uma resultante direta dos seguintes fatores: artistas novos, mais baratos, com estética contemporânea, falta de necessidade de ocupação de espaço físico, armazenamento do acervo na nuvem e exibição numa fina película digital pendurada na parede. Podemos acrescentar a isso, ainda, a individualidade atribuída pelo NFT a obras de arte imateriais, surgindo assim um novo mercado.

Por sua concepção encriptados e multifuncionais, os chamados tokens são criptoativos que podem assumir várias roupagens jurídico-econômicas, servindo para transações financeiras, identificação de obras de arte (físicas ou digitais), serviços e contratos. Uhdre (2021) traz o seguinte conceito:

Michèle Finck aponta que, além das criptomoedas, outros criptoativos emergiram ao longo do tempo na forma de tokens ou moedas (coins, na acepção adotada pela autora). Segundo a autora, um token ou “coins” seria em sua essência um bem digital que é artificialmente tornado escasso e rastreado – ou rastreável – em uma blockchain ou em um protocolo escasso baseado em blockchain. Prossegue, salientando que os tokens podem ter diferentes propósitos e representar qualquer coisa – de bens e serviços a direitos, incluindo direitos de voto (p. 65).

Rodrigues (2021), por sua vez, conceitua o token como uma representação digital de ativos virtuais relacionados ao blockchain que garante ao seu detentor um direi-

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to, que varia conforme o modelo de negócio e o projeto da empresa emissora, sem qualquer intervenção de terceiros. O token é um símbolo, podendo ser de obra física ou de obra imaterial. Podia-se supor que a facilidade de reprodução ilimitada dos arquivos imateriais sem perda de qualidade das imagens esvaziaria o seu valor, na medida em que inexistiria escassez.

O NFT é um criptoativo que não pode ser substituído por outro igual, é único. Assim, uma obra de arte imaterial – capaz de ser reproduzida ilimitadamente – pode ser vinculada a um código, o que a torna única e cria artificialmente a escassez ou a individualização do produto no mercado, transformando um bem imaterial, que pode ser compartilhado por todos, num único exemplar.

Nesse sentido, o NFT se assemelha, por exemplo, a uma camisa da seleção brasileira de futebol autografada pelo jogador Pelé. Todas as camisetas vindas de fábrica são iguais, mas, a partir do momento em que uma é autografada, ela ganha um diferencial que a identifica, que a faz única e aumenta exponencialmente seu valor em relação às outras camisetas vendidas. Transpondo para o mundo imaterial, o quadro Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, vinculado a um token do Museu do Louvre, se tornaria a Mona Lisa imaterial, a única.

O fenômeno da tokenização, tão alardeado neste momento, equivale à vinculação de uma obra, um serviço ou um produto a um código no blockchain, o que permite a sua utilização econômica e a sua transferência pelo titular.

Tão logo surgiu a onda de NFT no mundo, com a venda do trabalho do artista Beeple em março de 2021, criei um NFT com um desenho da artista Giovanna Sgarbi. Nele, ficaram destacados o tempo do registro – com data, hora, minutos e segundos – e a obrigação de pagar à artista 10% do preço de venda, a título de royalties, em caso de alienação desse NFT. Então, o bem físico, o desenho, pode ser transferido pela artista, mas a representação digital está registrada em meu nome, é única (Figura 1).

O fenômeno da tokenização, tão alardeado neste momento, equivale à vinculação de uma obra, um serviço ou um produto a um código no blockchain, o que permite a sua utilização econômica e a sua transferência pelo titular. Basicamente, temos dois tipos de NFT: aquele vinculado a uma obra originariamente digital (chamada nato digital); e aquele atrelado a um bem físico, ou serviço, como um quadro, um imóvel ou uma visita a uma vinícola. No caso da obra digital,

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Figura 1: Print do registro de NFT em nome do autor, representando trabalho de Giovanna Sgarbi (lockchain, 2021.)

embora possa ser replicada indefinidamente, aquela que foi objeto do NFT tem como que uma tatuagem na alma, é sua e é única (WACHOWICZ, 2021).

Faço uma comparação com a invenção da fotografia, que enfrentou várias resistências até ser considerada arte e protegida pelo Direito. Uma simples máquina retratava a imagem que, até então, era objeto de quadros trabalhosos com plano, tela, tintas, tons, texturas, estética e toda uma ambiência.

Desde 1839, ano oficial da invenção da fotografia, os fotógrafos lutam para que suas imagens sejam reconhecidas como criações originais, a fim de que possam se beneficiar da proteção conferida pelos direitos autorais. Esse reconhecimento foi gradualmente consagrado na jurisprudência da Europa e dos Estados Unidos após um amplo debate público sobre o estatuto da fotografia. Esse processo, porém, não foi fácil, já que a fotografia ainda era uma nova plataforma e tinha o potencial de romper com toda a tradição de criação e difusão de imagens. Por seu princípio de realidade e por sua qualidade serial, a fotografia gerava problemas até então desconhecidos (GIRARDIN, 2008, tradução nossa).

Mutatis mutandis, a arte imaterial vai ganhando adeptos, justamente na geração digital, caracterizada por essa mudança de suporte, tantas vezes referida neste artigo, em substituição aos hoje convencionais. Na linha do fenômeno Beeple, mais artistas aderiram à produção de obras digitais, e o público, principalmente das gerações mais jovens, passou a demonstrar interesse por elas, de modo que as galerias começaram a receber ofertas de trabalhos e pedidos de colecionadores.

Toda uma economia em torno desse tipo de arquivo digital vai sendo construída e legitimada, popularizando os NFT seja entre artistas produtores, seja na nova geração de colecionadores.

E como é possível adquirir um NFT?

Para obter uma obra pronta, ou seja, um arquivo digital já atrelado a um código no blockchain, o comprador deve possuir bitcoins disponíveis. Caso não tenha, pode adquirir via Exchange, uma corretora de criptomoedas. Depois disso, ele se dirige a uma plataforma de comercialização de obras – como Rarible, Open Sea, Mintable e Enjin, entre outras – e paga pelo preço anunciado, ou participa de um leilão. Concluída a transação, o processo é finalizado e a obra passa a possuir um dono registrado no blockchain.

Mutatis mutandis, a arte imaterial vai ganhando adeptos, justamente na geração digital, caracterizada por essa mudança de suporte, tantas vezes referida neste artigo, em substituição aos hoje convencionais.

E se uma pessoa deseja criar um NFT? Nesse caso, é necessário escolher uma plataforma de blockchain, criar uma carteira digital, transferir dinheiro oficial para essa carteira, fazer o upload da imagem a ser agregada ao NFT, pagar o preço exigido e deixar a imagem em exibição, ou colocar o NFT à venda, estipulando um preço fixo ou informando que será feito um leilão.

SMART CONTRACTS

Um conceito interessante no mundo dos criptoativos é o dos smart contracts. Na prática, trata-se da possibilidade de alteração automática de contratos re-

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gistrados on-line, de acordo com condições preestabelecidas (SANTOS, 2020). Equivaleria a um código autoexecutável que, por exemplo, no caso de venda de uma obra como a que registrei, automaticamente remeteria 10% do valor para a autora sem que fosse necessário qualquer comando. Num mundo ágil como o dos negócios com criptoativos, certas condições ficam previstas nos contratos e, uma vez implementadas, as máquinas praticam os atos estabelecidos sem a necessidade de novos comandos ou ações por parte dos contratantes.

CASAS DE LEILÃO E GALERIAS DE ARTE

A expansão dos NFT chegou às casas de leilão e às galerias de arte. As mais tradicionais casas de leilão do mundo têm seus departamentos de criptoativos, como a Christie’s, fundada em 1766, e a Sotheby’s, criada em 1744. Ambas já se adaptaram ao mercado dos NFT e promovem vendas regulares on-line com pagamentos em criptomoedas. A Feira de arte do Rio de Janeiro (ArtRio), realizada desde 2017, teve em 2021 a estreia dos NFT, com duas galerias entre as dezenas de expositoras; e a edição de 2023 tem previsão de aumento significativo desse tipo de suporte.

Em se tratando de suporte, destaco a proteção dos NFT pelo direito autoral. No Brasil, a Lei nº 9.610/98, em seu artigo 7º, diz que “são obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro [...]”. Então, o NFT que corresponda a uma obra imaterial originária é protegido pela lei, não podendo ser reproduzido sem prévia autorização do autor, salvo em exceções legais. Da mesma forma, os NFT que correspondam a uma obra física, ou a uma transposição da obra física para o mundo imaterial, dependem de autorização do autor da obra originária, como estipula o artigo 31º da mesma lei.

A Feira de arte do Rio de Janeiro (ArtRio), realizada desde 2017, teve em 2021 a estreia dos NFT, com duas galerias entre as dezenas de expositoras; e a edição de 2023 tem previsão de aumento significativo desse tipo de suporte.

Assim, apesar de serem novidades, essas expressões artísticas estão protegidas pela lei, embora necessitem de certo raciocínio jurídico e interpretativo. Imagino que essa onda desmesurada de conversões poderá ser sucedida por algumas demandas judiciais destinadas a coibir abusos ou ilícitos mais explícitos.

Ainda no âmbito da legislação, no momento, existem tramitando no Congresso cinco projetos de lei sobre o tema dos criptoativos, todos visando regular essa forma de direito.1 As consequências para todo o mercado financeiro são enormes, bem como para os bens imateriais, os serviços e os bens materiais, móveis e imóveis.

A maleabilidade dos criptoativos permite que sejam vinculados a todos os setores da sociedade, potencializando as relações jurídicas e econômicas. Há necessidade de regulação, sim, mas também é preciso que haja uma constante revisão da rapidez com que se propagam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O crescimento dos ativos imateriais na sociedade é um fato notório e irreversível. A tecnologia que os inventou foi legitimada pelas criações artísticas, pelos usos

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comerciais e pelo mercado. O Brasil, segundo a revista Exame, de setembro de 2022, é o país com maior potencial de crescimento do mercado de criptoativos.

Os criptoativos absorveram o mundo jurídico e econômico e isso está gerando uma notória evolução em ativos, e também em questões de fraude. Não é o Direito nem a economia que vão regulamentá-los; há uma situação de aceleração atípica dos fatos. Trata-se de uma nova relação normativa, quase que uma smart law, com gatilhos e mutações darwinianas, em que temos alterações sucessivas por força da evolução das novas tecnologias.

No campo das artes, o Direito terá de se moldar aos mimetismos dos NFT e às características e necessidades do mercado. Este artigo trouxe conceitos básicos, servindo de pano de fundo sempre presente a evolução tecnológica, os hábitos sociais e o fator tempo.

COMO CITAR ESTE ARTIGO

ALMEIDA, Gustavo Martins. NFT e o Direito. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 35, 2023.

GUSTAVO MARTINS DE ALMEIDA

Advogado graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), com mestrado e doutorado em Direito respectivamente pela Universidade Gama Filho (UGF) e pela Universidade Veiga de Almeida. É professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), conselheiro e advogado do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio) e presidente da Associação dos Amigos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Atua nas áreas de direito autoral, direito do entretenimento, responsabilidade civil e direito do consumidor.

NOTA

1. Ver: https://cointelegraph.com. br/news/discover-the-6-bills-inprogress-for-the-regulation-ofcryptocurrencies-in-brazil. Acesso em: 6 maio 2023.

REFERÊNCIAS

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CAPRIOLI, Eric A. Consentement et systèmes informatiques. In: BOURCIER Danièle; HASSETT Patricia; ROQUILLY, Christophe. Droit et intelligence artificielle: une révolution de la connaissance juridique. Paris: Romillat, 2000.

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GIRARDIN, D. Controverses. Une histoire juridique et éthique de la photographie. Lausana: Actes Sud, 2008.

RODRIGUES, C. Blockchain e criptomoedas. 2. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2021.

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O Direito Civil na era da inteligência artificial. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

SANTOS, D. P. P. Do pacta sunt servanda ao code is law: breves notas sobre a codificação de comportamentos e os controles de legalidade nos smart contracts In: SILVA, R.; TEPEDINO. G. (coord.).

O Direito Civil na era da inteligência artificial. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

TAPSCOTT, D. Blockchain revolution. Como a tecnologia por trás do Bitcoin está mudando o dinheiro, os negócios e o mundo. São Paulo: Senai-SP Editora, 2016.

UHDRE, D. C. Blockchain, token e criptomoedas. São Paulo: Ed. Almedina, 2021.

VAINZOF, R.; CUNHA FILHO, Marcelo de Castro. Natureza jurídica “camaleão” das criptomoedas. Jota, São Paulo, 2017. Disponível em: https://www.jota.info/ opiniao-e-analise/artigos/anatureza-juridica-camaleao-dascriptomoedas-21092017. Acesso em: 7 set. 2022.

WACHOWICZ, Marcos; CIDRI, Oscar. Direitos autorais e a tecnologia NFT: esculturas imaginárias e destruição criativa. Boletim julho de 2021, Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial, Universidade Federal do Paraná, 2021. Disponível em: https://www. gedai.com.br/direitos-autoraise-a-tecnologia-nft-esculturasimaginarias-e-destruicao-criativa/ Acesso em: set. 2022.

WHITEHEAD, A. N. Adventures of ideas Lexington: The Free Press, 2012.

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Flora_Bloom#3 | Imagem de Rejane Cantoni

Desafios de privacidade e proteção de dados no metaverso

POR FELIPE PALHARES

RESUMO

O metaverso está em construção e ainda tem muito a se desenvolver. Embora não seja possível antecipar com precisão qual será a sua relevância no futuro, existem desafios jurídicos latentes a ser enfrentados, especialmente em aspectos de privacidade e proteção de dados. Este artigo aborda quatro desafios relevantes nessa área: vigilância, transparência, tratamento de dados pessoais sensíveis e segurança da informação, que merecem ser considerados cuidadosamente por organizações que queiram participar do metaverso.

INTRODUÇÃO

Ninguém sabe ao certo o que realmente é o metaverso – ou o que ele representará no futuro das interações sociais –, e talvez nem sequer seja possível definir com exatidão esse termo no atual estágio da tecnologia, considerando que ele provavelmente sofrerá constantes evoluções ao longo dos próximos anos. Ainda assim, hoje já se vislumbram diversos tipos de metaversos existentes e corriqueiramente utilizados, especialmente relacionados a jogos, bem como modelos imaginados do que o metaverso pode ser, muito pautados em filmes de grande bilheteria, que retratam uma realidade alternativa que mistura o mundo real e o mundo virtual sem a existência de uma barreira complexa para essa transição.

Independentemente de como será o metaverso no futuro, há duas características centrais que se mostram quase certas: será um ambiente digital e (hiper) imersivo, no qual os usuários poderão socializar, trabalhar e estudar, entre tantas outras possibilidades. Nesse contexto, e observadas tais características, alguns desafios jurídicos, do ponto de vista da privacidade e da proteção de dados, tornam-se visíveis, os quais serão brevemente abordados neste artigo.

Independentemente de como será o metaverso no futuro, alguns desafios jurídicos, do ponto de vista da privacidade e da proteção de dados, tornam-se visíveis.

O DESAFIO DA VIGILÂNCIA

O primeiro grande desafio a ser enfrentado no metaverso diz respeito ao potencial de vigilância que ele inegavelmente trará, considerando que a sua mera existência implica um elevado número de tratamentos de dados pessoais, que serão realizados por todos os participantes centrais desse novo ambiente, tais como as plataformas de metaverso e as empresas que decidam dele participar, ofertando seus produtos ou serviços.

No metaverso, as plataformas que disponibilizam respectivos ambientes podem ter capacidades técnicas para observar e guardar tudo que é feito pelos usuários, desde os atos mais simples e públicos às ações mais íntimas e privadas, a exemplo

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de interações realizadas dentro de espaços supostamente privados, como a casa desses usuários no metaverso.

Assim como já acontece em diversos jogos eletrônicos, os provedores de metaverso poderão conhecer seus usuários em detalhes, coletando informações não só sobre suas ações no ambiente digital, mas também a respeito de seu perfil de consumo e de suas preferências pessoais. Será possível saber, por exemplo, as marcas de roupa que seu avatar utiliza, os produtos que foram adquiridos para mobiliar o seu espaço, com quais pessoas você mais interage, e como você se veste nas mais distintas ocasiões, entre tantas outras informações que potencialmente revelam algo sobre a sua personalidade.

os provedores de metaverso poderão conhecer seus usuários em detalhes, coletando informações não só sobre suas ações no ambiente digital, mas também a respeito de seu perfil de consumo e de suas preferências pessoais.

A vigilância será uma parte intrínseca do metaverso, considerando a própria natureza do ambiente e a necessidade de serem armazenadas determinadas informações, inclusive para fins de garantir que os termos de uso da plataforma estão sendo obedecidos pelos usuários. Vigiar o que acontece no metaverso também pode ser especialmente relevante em situações complexas, como em possíveis atos de assédio sexual cometidos por um usuário.

O potencial de vigilância que existe nesse contexto torna necessário que organizações que queiram investir no metaverso – seja no desenvolvimento de plataformas, na utilização desse novo espaço ou na realização de negócios com usuários e outras organizações – adotem uma postura preventiva, de cautela, para avaliar detidamente os riscos jurídicos que podem ser ocasionados nesse novo meio.

Realizar uma verificação prévia da plataforma provedora, por exemplo, é uma prática fundamental para permitir que a organização conheça a fundo quais dados pessoais serão tratados e para quais finalidades, bem como qual o nível de maturidade da plataforma em temas de privacidade e proteção de dados. Com efeito, contratar um terceiro que não esteja adequado à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) representa um risco adicional, a falta de diligência na hora da escolha de seus parceiros comerciais.

Outro aspecto central antes de se jogar nos mares do metaverso é entender se os princípios instituídos na LGPD estão sendo observados, uma vez que todas as atividades de tratamento de dados pessoais devem estar alinhadas com os respectivos ditames legais. Além disso, garantir que exista uma base legal adequada para cada tratamento que for feito também se mostra indispensável, sob pena de eventual violação da legislação.

Outro debate importante é por quanto tempo os dados pessoais podem ser guardados, já que será coletado um número massivo de informações dos usuários. A manutenção desses dados por um período maior do que o necessário não só poderia representar violação da LGPD como também aumentaria significativamente o risco de prejuízos relevantes aos titulares em caso de eventual incidente de segurança, como vazamentos.

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Vigilância é um tema tão delicado nos tempos atuais que provavelmente também será utilizado pelas próprias plataformas como possível diferencial competitivo. Na medida em que a tecnologia permita, é de se esperar que determinadas plataformas de metaverso façam a oferta de seus serviços com base em argumentos de maior privacidade aos seus usuários – com o estabelecimento de zonas não vigiadas ou de políticas mais restritivas em relação a quais dados serão coletados, com quem serão compartilhados e por quanto tempo serão armazenados.

Outro aspecto central antes de se jogar nos mares do metaverso é entender se os princípios instituídos na LGPD estão sendo observados

O DESAFIO DA TRANSPARÊNCIA

Transparência é um dos princípios da LGPD, sendo abordado em diversos momentos de forma expressa pela legislação. Essa atenção especial do legislador ao princípio da transparência é justificada, na medida em que sem ela não há condições práticas para que o titular exerça seus direitos.

A obrigação de transparência imposta pela legislação às empresas que atuem como controladoras de dados é o que permite que tanto titulares de dados quanto órgãos reguladores possam aferir se a lei está de fato sendo cumprida, ou realizar questionamentos específicos acerca do seu cumprimento, na medida em que passam a ter amplo acesso aos detalhes das atividades de tratamento de dados realizadas por tais empresas.

Garantir transparência, no entanto, é um desafio hercúleo mesmo em meios mais conhecidos atualmente, de modo que, no metaverso, esse imbróglio será ainda mais complexo, tanto para as plataformas provedoras de metaverso quanto para outras organizações que resolvam participar desse ambiente.

Para plataformas, há condições mais propícias para apresentar informações acessíveis, claras e relevantes aos usuários. As informações podem ser disponibilizadas no momento do cadastro, em que é possível ter acesso a avisos de privacidade mais efetivos.

Para garantir transparência, será importante ter criatividade para traduzir as diversas atividades de tratamento de dados pessoais 1 que serão realizadas em formatos que não sejam cansativos ou que impossibilitem que o usuário obtenha informações de modo facilitado. Modelos mais visuais, em camadas, com representações gráficas e destaque para aspectos centrais das atividades de tratamento ajudam a garantir que as informações transmitidas sejam digeridas adequadamente.

Considerando que o metaverso deve contar com a participação de crianças e adolescentes, formatos lúdicos também possuem um papel relevante, já que esse público merece proteção integral e atenção diferenciada, como disposto pela legislação nacional.

Para as organizações que começarem a realizar negócios no metaverso, o desafio de garantir transparência tende a ser ainda mais acentuado, haja vista que elas podem não ter tanta facilidade em firmar uma comunicação direta com os usuários.

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Garantir transparência, no entanto, é um desafio hercúleo mesmo em meios mais conhecidos atualmente, de modo que, no metaverso, esse imbróglio será ainda mais complexo, tanto para as plataformas provedoras de metaverso quanto para outras organizações que resolvam participar desse ambiente.

Imagine o seguinte cenário: você está andando pela Rua Oscar Freire de determinado metaverso, repleta de lojas comerciais em ambos os lados da via. Como lidar com o dilema da transparência em situações como essa, na qual todas as lojas possivelmente estarão coletando informações sobre os usuários?

Disparar diversos avisos de privacidade, nesse caso, certamente não seria o mais adequado. Eles poderiam fazer com que os usuários rejeitassem conhecer as práticas de proteção de dados, em vez de que se interessassem pelo tema.

Nesse cenário, a transparência é um desafio monumental, que deve ser encarado com prudência por plataformas de metaverso ou agentes econômicos que desejam interagir nesse novo mundo.

O DESAFIO DO TRATAMENTO DE DADOS PESSOAIS SENSÍVEIS

Embora o metaverso não demande a utilização de dispositivos específicos (como óculos de realidade virtual ou devices de realidade aumentada), não há como negar que esses permitem uma experiência ainda mais imersiva e realista, algo que muito se espera desse ambiente. A utilização desses gadgets, contudo, pode possibilitar que dados sensíveis sejam coletados.

Essas informações possuem uma proteção maior no âmbito da LGPD, já que seu uso pode ocasionar prejuízos relevantes aos seus titulares. A depender do dispositivo, é possível que dados de saúde (como batimentos cardíacos e pressão arterial) ou dados biométricos (como o padrão de movimentos das suas mãos, o padrão do seu caminhar, o seu timbre de voz e o formato de sua íris) sejam recolhidos e posteriormente utilizados tanto pelas empresas que produzem esses dispositivos quanto por plataformas de metaverso.

Quando dados pessoais sensíveis são tratados, é de rigor que os respectivos controladores de dados tenham atenção redobrada aos princípios previstos na LGPD. Uma possível violação relacionada a esse tipo de dado é tratada como de maior gravidade quando comparada a violações de dados não sensíveis.

Entre as bases legais que seriam potencialmente aplicáveis ao tratamento de dados sensíveis por dispositivos de realidade virtual ou de realidade aumentada, as mais factíveis, do ponto de vista legal, são o consentimento específico do titular e, eventualmente, o exercício regular de direitos em contratos. Ainda há dúvidas acerca da extensão desta segunda base legal. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados não se pronuncia sobre a sua aplicação, de modo que há quem defenda que é mais abrangente do que a base de cumprimento de execução de contrato prevista no artigo 7º, inciso V, da LGPD, abrindo espaço para a sua adoção em determinadas situações envolvendo o metaverso.

Nos casos em que crianças forem as usuárias do metaverso (público que deve representar uma grande parcela dos usuários), o consentimento para o tratamento de dados pessoais sensíveis ainda precisaria ser de um dos pais ou do

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responsável legal, recaindo sobre a plataforma o dever de adotar medidas razoáveis para verificar que foi efetivamente um daqueles que outorgou a coleta das informações. Na prática, essa tarefa também não é trivial, na medida em que muitos métodos de confirmação de idade ou de verificação da identidade são pouco efetivos, podendo ser facilmente burlados pelas próprias crianças caso elas tenham acesso aos dados cadastrais e financeiros completos de seus responsáveis.

Nesse aspecto, controladores de dados pessoais também precisarão pensar em ideias criativas de medidas de segurança a serem implementadas para evitar que as próprias crianças consintam com o tratamento de seus dados pessoais sensíveis, sem que seus pais sequer fiquem sabendo.

O DESAFIO DA SEGURANÇA DA INFORMAÇÃO

A segurança da informação é central para qualquer organização nos tempos atuais. O desafio de garantir a segurança dos dados que serão coletados no metaverso ganha proporções extremamente relevantes em razão do enorme volume de informações que serão trafegadas.

Não só o volume de dados será relevante, mas as características das informações em si representarão um atrativo contundente para criminosos perpetrarem ataques constantes contra plataformas de metaverso. À medida que esse ambiente for ganhando mais tração, é esperado que boa parte das nossas interações aconteçam dentro dele: conversas íntimas, estudos, confraternizações, relações amorosas, trabalhos e compras, entre tantas outras atividades sociais.

Nesse cenário, plataformas de metaverso terão um desafio gigantesco: montar estruturas de segurança da informação robustas, que precisarão ser frequentemente avaliadas mediante testes de penetração e varreduras por vulnerabilidades, acompanhando as melhores práticas do mercado e sendo constantemente atualizadas e reforçadas tão logo quaisquer problemas sejam evidenciados.

Num mercado competitivo como será o de metaversos, ser o primeiro player dominante é central para o sucesso do negócio e para a sua manutenção, e demonstrar práticas robustas de segurança da informação inegavelmente será um diferencial competitivo, tanto para a aquisição de novos usuários quanto para a expansão de parcerias comerciais com outras organizações.

Vale lembrar que a LGPD estabelece que os controladores de dados devem implementar medidas técnicas, administrativas e organizacionais para proteger os dados que tratam, embora ainda não haja definição de quais serão consideradas medidas mínimas a serem adotadas pelas organizações para fins de conformidade com a norma. A ocorrência de um incidente de segurança, inclusive, pode obrigar o controlador de dados a comunicar o evento à Autoridade Nacional de Proteção de Dados e aos titulares afetados caso exista risco ou dano relevante advindo do ocorrido.

À medida que esse ambiente for ganhando mais tração, é esperado que boa parte das nossas interações aconteçam dentro dele: conversas íntimas, estudos, confraternizações, relações amorosas, trabalhos e compras, entre tantas outras atividades sociais.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Independentemente do que o futuro guarda para o metaverso, existe um fato incontestável: por se tratar de um ambiente virtual, diversos serão os desafios do ponto de vista de privacidade e de proteção de dados que precisarão ser enfrentados pela plataforma e pelos atores envolvidos na sua construção e utilização.

Os desafios abordados neste artigo estão longe de ser os únicos, mas já demonstram que existem diversas considerações relevantes a serem avaliadas com profundidade por organizações que quiserem fazer parte dessa nova realidade sem correr riscos desnecessários.

COMO CITAR ESTE ARTIGO

PALHARES, Felipe. Desafios de privacidade e proteção de dados no metaverso. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 35, 2023.

FELIPE PALHARES

Bacharel em Direito pela Faculdade Cesusc, em Santa Catarina, é pósgraduado em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) e em Direito Societário pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper/SP), além de mestre em corporate law pela Universidade de Nova York (NYU), nos Estados Unidos. É professor convidado de matérias sobre proteção de dados pessoais no Insper, na FGV/RJ, no Damásio/Ibmec, em São Paulo, no Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio), no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, na Nextlaw Academy, em São Paulo, e no Instituto New Law, no Rio de Janeiro. É cofundador da Brazilian Legal Society da Faculdade de Direito da NYU.

NOTA

1. O tratamento de dados pessoais é um conceito previsto na LGPD que inclui qualquer atividade que possa ser realizada com um dado pessoal, incluindo coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão e extração.

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POR FILIPE SANTOS

Quando pesquisamos sobre web 3.0, a nova internet em ascensão, encontramos diversos temas correlacionados, como metaverso, blockchain, NFT, criptoativos, avatares, DEX, DApps, skins, mineração e wallets, mas pouco se fala sobre as organizações autônomas descentralizadas (DAO, na sigla em inglês). Elas tratam de governança, mas não apenas isso; são grupos ou comunidades digitais cujas regras são predefinidas por meio de códigos de programação conhecidos como contratos inteligentes, executados e validados por um blockchain, ou seja, um livro-razão imutável e compartilhado que facilita os registros de transações e o controle de ativos numa rede de negócios. À medida que a economia criativa e a era digital se expandem exponencialmente, há novas possibilidades de financiamento, de comunidade e de influência por meio das DAO

A web 3.0 tem ao menos dez tecnologias e/ou tendências ativadoras em seu ecossistema que fazem parte da transição da Quarta Revolução Industrial rumo à Quinta Revolução Industrial

Tendo em vista a evolução da tecnologia, o acesso a conteúdos na web 1.0 era realizado a partir de um login que demandava e-mail e senha do usuário. Na web 2.0, o processo foi facilitado pela integração de contas como Google, Facebook ou Twitter. Já na web 3.0, o acesso é feito por meio das carteiras de criptoativos integradas ao navegador, as wallets , o que reflete nos conceitos de identificação, de privacidade e de pagamento, por exemplo.

A web 3.0 tem ao menos dez tecnologias e/ou tendências ativadoras em seu ecossistema que fazem parte da transição da Quarta Revolução Industrial rumo à Quinta Revolução Industrial, sendo elas: blockchain, IoT, non-fungible token (NFT), inteligência artificial, 5G/6G, vídeo em 4K e 8K, computação quântica, realidade mista (a soma de realidade aumentada e realidade virtual), vestes hápticas (recurso para experiências sensoriais remotamente) e DAO, que implicam governança e participação.

NFT E SUAS INFINITAS POSSIBILIDADES

Em relação ao empreendimento no universo dos NFT, a história de Gary Vee surpreende. O empreendedor e investidor criou, em NFT, 200 desenhos autorais feitos à mão que integraram uma coleção para a sua comunidade digital, a VeeFriends. Ele agregou valor à comunidade incluindo benefícios, como o acesso à sua

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Do on-line ao on-chain: como as DAO expressam novidade em governança, monetização e comunidades colaborativas na web 3.0 e na era pós-digital

conferência anual e a sessões de mentoria e um presente da curadoria, atrelando utilidades exclusivas aos ativos. Resultado: vendeu todos os desenhos, e alcançou ainda vendas de 91 milhões de dólares em 90 dias ao expandir seu portfólio para obras de artistas que ainda não tinham visibilidade. Cada um deles recebia a devida participação em royalties preestabelecidos na criação do contrato inicial. Por meio do contrato inteligente (smart contract), é possível remunerar os criadores ad infinitum, já que a transação pode ser automatizada.

Outra possibilidade oferecida pelos NFT é conceder aos usuários o acesso a áreas específicas e a transações exclusivas, o chamado token-gating. Por exemplo, um comprador de uma obra de arte em uma vernissagem ganha um tíquete com acesso a um evento, senha para integrar uma comunidade ou algum outro tipo de benefício extra definido pelo artista. Um NFT permite a existência desse “pacote” integrado digitalmente.

Infelizmente, o modelo de gestão e governança para web 3.0 é o assunto menos comentado diante de tantas bolhas, como foi um dia a chamada bolha das pontocom, em 2000. Há, com isso, o risco de chegarmos apenas até as interpretações superficiais, menosprezando seus reais fundamentos, impactos, oportunidades e aplicações práticas.

ORGANIZAÇÕES FEITAS PARA A NOVA ECONOMIA

Jim Collins falou sobre “organizações feitas para vencer”, e Salim Ismail sobre “organizações exponenciais”; nós também precisamos falar sobre organizações autônomas. As já mencionadas DAO podem ser mais do que um modismo ou um pretexto para golpes anônimos, pois, sobre assuntos emergentes assim, normalmente acabamos nos defendendo mais do que estudando, assimilando e protagonizando, como fez Gary Vee.

As primeiras DAO, feitas para captar investimentos coletivos voltados para projetos digitais, surgiram em 2016, com a The DAO, que acabou resultando num grande prejuízo ao sofrer um ataque hacker. Em 2020, foram registradas mais de 200 DAO, e em 2022 esse número passou para 4 mil. Entre as razões para esse crescimento, além do aumento da adesão de criptoativos e do avanço da tecnologia blockchain, está a revolução do low-code e no-code, que fez com que as ferramentas digitais sejam menos complexas, no sentido de usarem pouco ou nenhum código para funcionar. Podemos citar aqui a neutralização da complexidade para o design gráfico, como fez a plataforma Canva, por exemplo.

Jim Collins falou sobre “organizações feitas para vencer”, e Salim Ismail sobre “organizações exponenciais”; nós também precisamos falar sobre organizações autônomas.

Para criar uma DAO, o ideal é ter, sim, uma equipe desenvolvedora de blockchain e uma auditoria técnica para garantir a segurança e a sustentabilidade do projeto, porém, ferramentas digitais de criação simplificada, como Aragon, têm aberto o mercado para novas DAO serem criadas em minutos, sem um especialista. Isso pode ser feito, inclusive, de forma gratuita, numa rede de protótipos TestNet, que permite a compreensão de todo o funcionamento da DAO antes de realmente criar uma versão funcional.

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As chamadas DAO clássicas não têm dependência nenhuma do time de fundadores para sua sustentabilidade, ou seja, eles podem deixar a organização a qualquer momento sem gerar qualquer tipo de impacto. Na prática, sua principal característica é a descentralização e a governança autônoma da comunidade. Já as DAO flexíveis ou semiautônomas dependem dos fundadores e de sua tomada de decisões para posteriormente descentralizar de forma gradual. Na prática, entre as suas principais operações estão a captação coletiva de investimentos, a contratação de freelancers e os repasses de pagamentos.

No mercado blockchain, ficou famosa a atuação da consultora norte-americana Tribute Labs, que multiplicou milhões de dólares em bilhões de resultados e nos permitiu compreender as possibilidades de aplicação de alguns tipos de DAO voltadas para o financiamento coletivo, como a Flamingo DAO, de crowdfunding e compra coletiva de NFT com alto potencial de crescimento; a Neon DAO, de projetos de metaverso; a Red DAO, de projetos de moda; e a Noise DAO, voltada para projetos de música. E a lista de tipos dessas organizações só aumenta.

O influenciador de web 3.0 conhecido como Coopahtroopa construiu um mapa do ecossistema de DAO que destaca os maiores players do segmento em sistemas operacionais: DAO de investimentos, de colecionáveis, de protocolos, de serviços, sociais, de mídia e de subsídios.

A Bored Ape Yacht Club (BAYC), por exemplo, é uma DAO, uma coleção de NFT de desenhos de macacos entediados que se tornou famosa. É possível perceber o papel da DAO na construção de comunidades com seus participantes transacionando ativos e direitos de propriedade? Se no mundo industrial tínhamos a lógica convencional de preparar, apontar e fogo, no mundo digital temos a lógica do fogo, apontar e preparar. Em outras palavras, vemos primeiramente os investimentos em narrativas, em comunidades e em criações desmaterializadas amparadas por tecnologia, e posteriormente a chance de se tornarem prática, sucesso e disrupção (termo tão empregado recentemente na nova economia).

REGRAS E REGULAÇÕES

De acordo com o levantamento da empresa de segurança da informação Kaspersky realizado em 2022, o Brasil é o país com maior número de vítimas de fraudes eletrônicas na internet – 20% de todas as transações on-line. Em segundo lugar vem Portugal (19,7%), seguido da França (17,9%), da Tunísia (17,6%), de Camarões (17,3%) e da Venezuela (16,8%). O cenário em que estão inseridas as DAO envolve o risco de golpes, além de elas terem que lidar com o contexto regulatório de cada país.

De certa forma, até mesmo a mineração de bitcoin, que acontece desde 2009, é uma expressão primitiva das DAO.

As Ilhas Marshall, em 2022, modificaram sua legislação e reconheceram essas organizações como entidades legais em seu território, conferindo a elas os mesmos privilégios que as sociedades de responsabilidade limitada. Como em qualquer segmento, há boas e más iniciativas, e até mesmo as criminosas. Pesquisa, educação, informação e principalmente fundamentos permitem garimpar o que é bom, o que tem impacto positivo e gera soluções para a sociedade.

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No Brasil, vemos projetos como Bankless, Alma DAO, Echoaland e eAgro. É interessante destacar também a Kairos DAO, que tem uma abordagem diferenciada de DAO como organizações autônomas distribuídas.

De certa forma, até mesmo a mineração de bitcoin, que acontece desde 2009, é uma expressão primitiva das DAO. A mineração de bitcoin refere-se ao processo em que uma rede global descentralizada de computadores, executando o código bitcoin, trabalha para garantir que as transações sejam legítimas e adicionadas corretamente ao blockchain da criptomoeda (uma espécie de livro-razão público e inviolável). A mineração também é a maneira como uma nova fração de unidade de bitcoin entra em circulação.

As transações concluídas corretamente geram frações de bitcoin como recompensa para os mineradores. E isso também se dá com diversos tokens e/ou criptoativos, como é o caso do segundo maior ativo digital em blockchain, o Ethereum, criado pelo jovem programador russo-canadense Vitalik Buterin. Assim, os mineradores são participantes dessa espécie de DAO que é o data center descentralizado do bitcoin. Eles colocam à disposição das transações da rede seus computadores com boa capacidade de processamento lógico via placa de vídeo, internet banda larga e obviamente energia elétrica. Quanto mais potente o processamento computacional e mais barato o serviço de energia e internet, mais lucrativa será a mineração. Daí surgem debates pertinentes à pauta da governança ambiental, social e corporativa (ESG, na sigla em inglês), pois há mineradores que utilizam fontes de energia limpa – solar, eólica ou geotérmica –, ao passo que outros utilizam as usinas fósseis de carvão.

CONCLUSÃO

Uma síntese das três ondas da internet pode ser esta: na web 1.0, os usuários leem/ acessam, mas apenas os portais criam conteúdo e monetizam. Na web 2.0, os usuários criam/promovem conteúdo, os portais supervisionam e ganham dinheiro diretamente, e há baixa privacidade e transparência. Na web 3.0, os usuários criam/ promovem conteúdo, têm controle e monetização, e graças ao blockchain há alta privacidade e transparência.

A tendência das DAO na web 3.0 é de um ambiente com cada vez menos intermediadores e atritos e mais “power to the people”. Com critério, aprendizado e antecipação, precisaremos ter boas perguntas num mundo em que o Google tem muitas respostas.

Assim, vemos elementos fundamentais para o potencial da era da descentralização: a web 3.0, as criptomoedas, os blockchains e as DAO

FILIPE SANTOS

Empreendedor de inovação aberta e de transformação digital, com jornada acadêmica em administração, design thinking, antropologia, marketing, publicidade, blockchain e educação

executiva. É consultor das maiores empresas do mercado, arquiteto de ecossistemas de ventures e startups, mentor de hackathons da Nasa e idealizador de hubs de inovação e aprendizagem.

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Inteligência artificial: fundamentos e relação com a arte

RESUMO

Os algoritmos de inteligência artificial (IA) estão em toda parte. Numa sociedade hiperconectada, vivemos em ambientes tecnossociais em que a sociabilidade e a comunicação são mediadas por algoritmos de IA. Como uma tecnologia de propósito geral, a tendência é que a lógica desse tipo de inteligência torne-se hegemônica na geração de riqueza, assumindo protagonismo nas relações socioeconômicas. Os impactos vão além da esfera econômica, estendendo-se igualmente ao domínio artístico, basta ver o número crescente de artistas que estão experimentando a IA, com inéditas oportunidades.

Para falar sobre a ideia de máquinas inteligentes, antes, precisamos falar sobre o significado de inteligência. Existem dezenas de definições do termo, dependendo do campo de conhecimento; por exemplo, as inteligências da psicologia, da filosofia, das ciências exatas e da ética. Há, igualmente, as inteligências social, musical e artística. Nos últimos tempos, o termo smart passou a qualificar o celular (smartphone), os equipamentos domésticos e os carros, distinguindo os objetos com tecnologia embarcada. O atributo comum dos dispositivos smart é a capacidade de lidar com tarefas que, em diferentes graus e formatos, tradicionalmente estiveram associadas aos seres humanos.

As iniciativas mundo afora de estabelecer arcabouços regulatórios para esse campo têm se deparado com o desafio inicial de definir o que é ou não IA, condição básica para gerar leis que fundamentem decisões de juízes em processos de arbitragem entre o usuário afetado e a instituição usuária da tecnologia. Definir a IA é sensível, igualmente, para o campo das ciências humanas, dedicado a analisar os seus impactos éticos e sociais.

Para Stuart Russell,1 pesquisador que é referência no campo da IA, uma entidade é inteligente na medida em que o que faz é capaz de alcançar seus objetivos. Russell lembra que o conceito de inteligência, desde os primórdios da filosofia grega antiga, está associado às capacidades humanas de perceber, raciocinar e agir, o que não seria o caso dos sistemas de IA, nem mesmo dos mais sofisticados, como o ChatGPT, todos modelos de otimização com objetivos definidos pelos humanos. Como argumenta o filósofo Luciano Floridi,2 “podemos usar a palavra inteligência de um milhão de maneiras, mas trata-se de um mero vocabulário, na verdade com esse uso excessivo desvalorizamos seu significado. O que temos são máquinas com agenciamento, capacidade de execução, e inteligência zero”.

Não existe tampouco um consenso sobre a definição de inteligência artificial. O britânico Alan Turing, em seu célebre artigo de 1950,3 respondendo à pergunta “As máquinas podem pensar?”, delineou uma visão progressiva para as “máqui-

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nas inteligentes”: a capacidade de aprender, como um cérebro humano, a partir da própria experiência, como uma criança. Essa perspectiva foi uma importante contribuição para o campo da IA, particularmente para as técnicas de aprendizado de máquina.

Stuart Russell e Peter Norvig, autores do livro didático de referência nas universidades americanas, exploram a vasta dimensão do conceito de IA incluindo lógica, probabilidade, percepção, raciocínio, aprendizado e ação. Reconhecendo a dificuldade de unificar as definições de IA pela diversidade de aplicações, eles a apontam como “o estudo de agentes que recebem percepções do ambiente e executam ações, implementando funções específicas”.4

Parece ser mais apropriado definir a IA pela natureza da tarefa a ser executada, ou seja, pelo seu uso, e não pela técnica empregada.

Conceituar a IA com precisão não é essencial para os desenvolvedores da tecnologia, no entanto, é mandatório para os legisladores. As iniciativas mundo afora de estabelecer arcabouços regulatórios para esse campo têm se deparado com o desafio inicial de definir o que é ou não IA, condição básica para gerar leis que fundamentem decisões de juízes em processos de arbitragem entre o usuário afetado e a instituição usuária da tecnologia. Definir a IA é sensível, igualmente, para o campo das ciências humanas, dedicado a analisar os seus impactos éticos e sociais.

Atualmente, a proposta mais robusta de regulamentação da IA é a da Comissão Europeia (AI Act),5 que a conceitua como: a) abordagens de aprendizado de máquina, incluindo aprendizado supervisionado, não supervisionado e por reforço, usando uma ampla variedade de métodos, incluindo aprendizado profundo; b) abordagens baseadas em lógica e conhecimento, incluindo representação de conhecimento, programação indutiva (lógica), bases de conhecimento, mecanismos de inferência e dedução, raciocínio (simbólico) e sistemas especializados; e c) abordagens estatísticas, estimação bayesiana, métodos de busca e otimização. As definições são controversas, inclusive porque, por exemplo, os termos “abordagens estatísticas” e “métodos de busca e otimização”, incluídos na última definição, remetem igualmente a sistemas não associados à IA. Frente às limitações dessas definições, a Comissão Europeia agregou uma lista de possibilidades de aplicação – solução que não abrange todas as possibilidades de implementação da tecnologia, nem acompanha a velocidade com que emergem novos modelos.

Os elementos comuns às definições de IA são: a) o caráter generalista; b) a tênue linha de diferenciação entre modelos estatísticos com ou sem o uso de técnicas de IA; c) a lista de possibilidades de aplicação em diversos domínios e/ou categorias de risco; e d) a sua concepção com base no termo “inteligência”, conceito não universal, como mencionado anteriormente. Parece ser mais apropriado definir a IA pela natureza da tarefa a ser executada, ou seja, pelo seu uso, e não pela técnica empregada.

O campo de conhecimento da IA foi inaugurado em 1956, em uma conferência na Faculdade de Dartmouth, nos Estados Unidos. A justificativa para a separação desse campo das demais ciências foi que não constava nessas a sua premissa básica: reproduzir faculdades humanas como a criatividade, o autoaperfei -

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çoamento e o uso da linguagem, e construir máquinas autônomas funcionando em ambientes complexos e mutáveis (RUSSELL; NORVIG, 2020). Várias tentativas que envolviam linguagens formais apoiadas em regras de inferência lógica tiveram êxito limitado, sugerindo a necessidade de os sistemas gerarem seu próprio conhecimento pela extração de padrões dos dados, ou seja, de “aprenderem” com os dados sem receber instruções explícitas. Esse processo é denominado aprendizado de máquina ( machine learning ), subcampo da IA hoje certamente hegemônico.

A técnica de aprendizado de máquina que apresentou os melhores resultados é a denominada redes neurais de aprendizado profundo [deep learning neural networks (DLNN)], inspirada no funcionamento do cérebro biológico. Na última década, a disponibilidade de grandes conjuntos de dados (big data) produzidos por uma sociedade hiperconectada, e a maior capacidade computacional, particularmente com o advento das unidades de processamento gráfico [graphics processing units (GPU)], geraram resultados positivos principalmente em visão computacional (reconhecimento de voz e imagem). Essa técnica tornou-se fator estratégico de processos decisórios pela capacidade de gerar insights preditivos com taxas relativamente altas de acurácia, em comparação com as técnicas estatísticas tradicionais.

Se, por um lado, o Brasil está atrasado na pesquisa e no desenvolvimento da IA em relação a outros países, por outro, os brasileiros já convivem de forma cotidiana e intensa com os seus algoritmos. São esses algoritmos que viabilizam os modelos de negócios de plataformas como Netflix, Waze, Spotify, Uber, 99, Airbnb e iFood, assim como dos jogos on-line, dos aplicativos de relacionamento e dos assistentes virtuais. Além disso, a IA otimiza processos no sistema financeiro e bancário, na indústria, na agricultura, no varejo, no setor imobiliário, na segurança e vigilância, no Poder Judiciário, na educação e na saúde.

Caracterizadas pela ambiguidade, em geral, as aplicações produzem externalidades positivas e negativas. O reconhecimento facial, por exemplo, pode ser usado para a vigilância nefasta dos cidadãos ou como mero acesso ao celular (mais seguro do que as senhas). Os algoritmos de IA são bons em identificar padrões nos dados, mas não têm como saber o que esses padrões significam, porque estão confinados à MathWorld (enciclopédia matemática de referência), não compreendem o mundo real. Diante dos extraordinários benefícios, não podemos nos dar ao luxo de rejeitar a tecnologia pelo desconforto de lidar com algo que não entendemos, ou aceitar como neutras e soberanas as suas previsões, sem questionamentos.

Diante dos extraordinários benefícios, não podemos nos dar ao luxo de rejeitar a tecnologia pelo desconforto de lidar com algo que não entendemos, ou aceitar como neutras e soberanas as suas previsões, sem questionamentos .

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NA CULTURA

Em fevereiro de 2022 aconteceu o AI film festival, 6 em Nova York, voltado para curtas-metragens gerados por IA. O texto da convocação enunciava: “Estamos procurando filmes entre 1 e 10 minutos que demonstrem várias técnicas de IA. Um componente central do filme deve incluir conteúdo generativo”. Em setembro

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do mesmo ano, o júri da Feira estadual do Colorado, nos Estados Unidos, entre as 18 obras de arte inscritas na divisão de artistas emergentes, concedeu o grande prêmio da competição de belas-artes à obra Théâtre d’Opéra Spatial, de Jason Allen, criada utilizando o sistema Midjourney, que transforma textos em imagens hiper-realistas.7 Em comum, os dois eventos tiveram o destaque para sistemas de IA generativa,8 a mesma categoria do ChatGPT.

O Alan Turing Institute, em Londres, considera que um número crescente de artistas está experimentando a IA no aprimoramento, na simulação ou na réplica de suas criatividades

A relação entre arte e IA não é nova. Em julho de 2012, por exemplo, a Orquestra Sinfônica de Londres executou uma composição intitulada “Transits – into an abyss”; elogiada pela crítica, foi a primeira vez que uma orquestra de elite tocou uma música composta inteiramente por um sistema de IA, o Iamus. Projetado por pesquisadores da Universidade de Málaga, na Espanha, o sistema teve o nome inspirado no personagem da mitologia grega que entendia a linguagem das aves. O concerto foi gravado, originando o álbum Iamus, considerado pela revista New Scientist como o primeiro composto exclusivamente por uma máquina e gravado por músicos humanos.

Ainda na música, a IA permitiu um feito histórico: em 2019, como parte das comemorações dos 250 anos do nascimento de Beethoven, uma equipe de especialistas liderada por Ahmed Elgammal – diretor do Art and Artificial Intelligence Laboratory da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos – e Matthias Röder –diretor do Instituto Karajan de Salisburgo, na Áustria –, apoiada em modelos de IA, dedicou-se a completar a décima sinfonia de Beethoven, que morreu sem terminá-la, deixando apenas notas e rascunhos. A empreitada já havia sido tentada por Barry Cooper, em 1988, mas o musicólogo só conseguiu completar o primeiro movimento a partir de 250 compassos – 9 a comprovação disso veio com a execução da obra final por uma orquestra. 10 Esses feitos contrariam o senso comum de que a arte é o que nos faz humanos, tal como crê também o consagrado violoncelista clássico alemão residente em Nova York Jan Vogler, para quem produzi-la requer atributos humanos, como criatividade e emoção.

O avanço da IA, particularmente com a IA generativa, suscita várias novas reflexões que vão desde o direito autoral da obra até a ressignificação do conceito de criativida de, atributo tradicionalmente associado aos seres humanos.

O Alan Turing Institute, em Londres, considera que um número crescente de artistas está experimentando a IA no aprimoramento, na simulação ou na réplica de suas criatividades: “Alguns artistas trabalham com dados e tecnologia como material, gerando resultados formais e estéticos ao modificar um conjunto de dados de treinamento ou parâmetros de um modelo de aprendizado de máquina, ou para explorar novas configurações de humanos e algoritmos”.11 O instituto alerta, contudo, que a complexidade dos sistemas de IA requer intensa colaboração, nem sempre trivial, entre artistas e especialistas.

A plataforma AIArtists.org, com curadoria de sua cofundadora Marnie Benney, aparentemente é a maior comunidade global de artistas envolvidos com IA. Para essa comunidade, a IA não está apenas transformando a capacidade de criar,

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mas igualmente propondo questões críticas sobre a relação humano-tecnologia, tais como: se a IA expande a criatividade humana ou é criativa por si; se contribui para aprendermos sobre nós mesmos; se os artistas podem construir parcerias criativas e improvisadas com a IA; e se a arte “artificial” pode ser tão comovente quanto obras feitas por humanos. Em paralelo, questiona-se também a dependência da arte produzida com IA das grandes plataformas de tecnologia, uma vez que, em geral, os modelos são de propriedade dessas plataformas. Outra discussão relevante é se a arte produzida com IA tem o potencial de ensejar, ou ampliar, desigualdades na produção artística, considerando que o acesso à tecnologia é privilégio de artistas com maior poder aquisitivo ou com acesso a recursos financeiros. Essas questões críticas implicam dilemas éticos.

Coeckelbergh propõe considerar outras formas não humanas de criatividade, em princípio rejeitando a suposição de que as máquinas devem imitar a criatividade humana, tomando-a como modelo padrão. O filósofo admite, inclusive, a hipótese de que as máquinas possam nos surpreender com a originalidade de sua criatividade. E pontua também que o algoritmo é desenvolvido por humanos, mas o produto final, a obra de arte, não é fruto direto dos humanos, ou seja, esses são os criadores do algoritmo, e não da obra de arte. Nessa linha de raciocínio, a criatividade não estaria inteiramente concentrada no desenvolvedor do sistema maquínico, mas teria migrado para a própria tecnologia (“criatividade artificial”).

O avanço da IA, particularmente com a IA generativa, suscita várias novas reflexões que vão desde o direito autoral da obra até a ressignificação do conceito de criatividade, atributo tradicionalmente associado aos seres humanos. No âmbito do direito autoral, temos dois grandes conjuntos de desafios. Primeiramente, faz sentido atribuir o direito autoral a uma obra de arte gerada por IA? Se sim, a quem caberia esse suposto direito, ao usuário do sistema de IA, ao desenvolvedor desse sistema ou à empresa que detém sua propriedade?

Em 2022, o Escritório de Direitos Autorais dos Estados Unidos [U.S. Copyright Office (Usco)] rejeitou o pedido de Stephen Thaler para reconsiderar sua decisão de 2019, segundo a qual uma imagem criada pelo algoritmo de IA Creativity Machine, desenvolvido por Thaler, carecia do elemento de “autoria humana” indispensável para se obter um copyright. A lei atual de direitos autorais americana protege apenas os “frutos do trabalho intelectual que são fundados nos poderes criativos da mente humana”. Essa visão não é consensual entre os países. Em 2022, um juiz australiano, por exemplo, decidiu que invenções criadas por IA podem se qualificar para proteção de patente; e a África do Sul permitiu que Thaler patenteasse um de seus produtos, observando que “a invenção foi gerada de forma autônoma por uma inteligência artificial” – ele possui a patente, e a IA está listada como o inventor.12

O segundo conjunto de desafios refere-se à natureza da IA generativa: a contestação, por parte de artistas, da originalidade das imagens sintetizadas, na medida em que são extraídas de imagens artísticas disponibilizadas na internet – inclusive, sem o conhecimento e o consentimento dos autores, ou seja, são obras de arte transformadas em dados para treinar os algoritmos de IA. A prática de extrair imagens ou outro conteúdo da internet para treinar os algoritmos se enquadra no que é conhecido como “uso justo” – o princípio legal da lei de direitos autorais dos Estados Unidos que permite o uso de trabalhos protegidos por direitos autorais

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em algumas situações.13 Independentemente do argumento legal, a natureza da técnica não permite identificar a origem dos dados usados nesse treinamento, ou seja, quais obras de arte estão contidas nos bancos de dados utilizados.

O filósofo Mark Coeckelbergh, em artigo de 2017, 14 contribuiu para o debate oferecendo uma estrutura filosófica a partir de três indagações: o que é criação de arte? O que entendemos por arte? E o que queremos dizer com “máquinas criam arte”? Na busca por respostas, Coeckelbergh propõe considerar outras formas não humanas de criatividade, em princípio rejeitando a suposição de que as máquinas devem imitar a criatividade humana, tomando-a como modelo padrão. O filósofo admite, inclusive, a hipótese de que as máquinas possam nos surpreender com a originalidade de sua criatividade. E pontua também que o algoritmo é desenvolvido por humanos, mas o produto final, a obra de arte, não é fruto direto dos humanos, ou seja, esses são os criadores do algoritmo, e não da obra de arte. Nessa linha de raciocínio, a criatividade não estaria inteiramente concentrada no desenvolvedor do sistema maquínico, mas teria migrado para a própria tecnologia (“criatividade artificial”). “Essas questões não são apenas interessantes do ponto de vista de determinar o status da arte da máquina e da criatividade da máquina, mas também nos fazem refletir sobre a natureza da arte e da criatividade humana”, completa Coeckelbergh.

DORA KAUFMAN

Doutora em mídias digitais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/ USP), com estágio sanduíche na Universidade de Paris-Sorbonne (Paris 4), na França, é professora do Programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital da Faculdade de Ciências Exatas e Tecnologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (TIDD/PUCSP). Com uma visão multidisciplinar, dedica-se aos efeitos éticos e sociais da inteligência artificial na economia, na comunicação e sociabilidade, no trabalho, na educação e nos desafios regulatórios.

1. RUSSELL, Stuart. Inteligência artificial a nosso favor: como manter o controle sobre a tecnologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

2. Em entrevista cedida à autora para a edição impressa, de abril de 2023, da revista Época Negócios.

3. TURING, Alan Mathison. Computing machinery and intelligence. In: Mind, v. 59, n. 236, p. 433-60. Edimburgo: Thomas Nelson & Sons, 1950. Disponível em: https://philpapers.org/rec/ TURCMA. Acesso em: 3 dez. 2022.

4. RUSSELL, Stuart; Norvig, Peter. Inteligência artificial. Tradução: Regina Célia Simille de Macedo. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2020. p. 24-25.

5. DJEFFAL, Christian. The regulation of artificial intelligence in the EU. The Heinrich-Boell-Stiftung, Tel Aviv, 30 dez. 2021. Disponível em: https://il.boell.org/en/2021/12/24/ regulation- artificial-intelligenceeu. Acesso em: 22 nov. 2022.

6. Ver: https://aiff.runwayml.com/ Acesso em: 10 abr. 2023.

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7. Ver: ROOSE, Kevin. An A.I.generated picture won an art prize. Artists aren’t happy. The New York Times, Nova York, 2 set. 2022. Disponível em: https:// www.nytimes.com/2022/09/02/ technology/ai-artificialintelligence-artists.html. Acesso em: 10 abr. 2023.

8. Os sistemas baseados na técnica de aprendizado de máquina chamada redes neurais de aprendizado profundo têm várias arquiteturas, isto é, diferentes maneiras de agrupar seus componentes (neurônios artificiais, conexões, camadas). Parte dessas arquiteturas caracteriza a categoria da IA preditiva, e duas delas – GAN e Transformer – caracterizam a categoria da IA generativa, que sintetiza textos, imagens, vídeos e códigos.

9. Ver: MARSHALL, Colin. Beethoven’s unfinished tenth symphony gets completed by artificial intelligence: hear how it sounds. Open Culture, 27 set. 2021. Disponível em: https:// www.openculture.com/2021/09/ beethovens-unfinished-tenthsymphony-gets-completed-byartificial-intelligence.html. Acesso em: 10 abr. 2023.

10. Disponível em: https:// www.youtube.com/ watch?v=kS6h1TKuOrw. Acesso em: 10 abr. 2023.

11. Ver: https://www.turing.ac.uk/ research/interest-groups/ai-arts

Acesso em: 10 abr. 2023.

12. Ver: RECKER, Jane. U.S. Copyright Office rules A.I. art can’t be copyrighted. Smithsonian Magazine, Washington, DC, 24 mar. 2022. Disponível em: https://www. smithsonianmag.com/smart-news/ us-copyright-office-rules-ai-artcant-be-copyrighted-180979808/ Acesso em: 10 abr. 2023.

13. Ver: METZ, Rachel. These artists found out their work was used to train AI. Now they’re furious. CNN Business, 21 out. 2022. Disponível em: https://edition.cnn. com/2022/10/21/tech/artists-aiimages/index.html. Acesso em: 10 abr. 2023.

14. COECKELBERGH, Mark. Can machines create art? Philosophy & Technology, v. 30, p. 285-303, 2017. Disponível em: https://link. springer.com/article/10.1007/ s13347-016-0231-5. Acesso em: 10 abr. 2023.

REFERÊNCIAS

COECKELBERGH, Mark. Can machines create art? Philosophy & Technology, v. 30, p. 285-303, 2017. Disponível em: https://link. springer.com/article/10.1007/ s13347-016-0231-5. Acesso em: 10 abr. 2023.

DJEFFAL, Christian. The regulation of artificial intelligence in the EU. The Heinrich-Boell-Stiftung, Tel Aviv, 30 dez. 2021. Disponível em: https://il.boell.org/en/2021/12/24/ regulation-artificial-intelligence-eu Acesso em: 22 nov. 2022.

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MARSHALL, Colin. Beethoven’s unfinished tenth symphony gets completed by artificial intelligence: hear how it sounds. Open Culture, 27 set. 2021. Disponível em: https://www.openculture. com/2021/09/beethovensunfinished-tenth-symphonygets-completed-by-artificialintelligence.html. Acesso em: 10 abr. 2023.

METZ, Rachel. These artists found out their work was used to train AI. Now they’re furious. CNN Business, 21 out. 2022. Disponível em: https://edition.cnn. com/2022/10/21/tech/artists-aiimages/index.html. Acesso em: 10 abr. 2023.

RECKER, Jane. U.S. Copyright Office rules A.I. art can’t be copyrighted. Smithsonian Magazine, Washington, DC, 24 mar. 2022. Disponível em: https://www. smithsonianmag.com/smart-news/ us-copyright-office-rules-ai-artcant-be-copyrighted-180979808/ Acesso em: 10 abr. 2023.

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RUSSELL, Stuart. Inteligência artificial a nosso favor: como manter o controle sobre a tecnologia São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

RUSSELL, Stuart; Norvig, Peter. Inteligência artificial. Tradução: Regina Célia Simille de Macedo. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2020. p. 24-25.

TURING, Alan Mathison. Computing machinery and intelligence. In: Mind, v. 59, n. 236, p. 433-60. Edimburgo: Thomas Nelson & Sons, 1950. Disponível em: https://philpapers.org/rec/ TURCMA. Acesso em: 3 dez. 2022.

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Flora_#27 | Imagem de Rejane Cantoni

Ensaio artístico

REJANE CANTONI

Floras é uma série de obras em non-fungible token (NFT).

Jardins sensoriais desenvolvidos por software generativo e adaptações dinâmicas de luz; animações não repetitivas que parecem obedecer à geometria do tempo biológico.

Muitos artistas se concentram na natureza e na engenharia da percepção humana. Outros justapõem formas naturais e tecnologias. Em Floras, Rejane Cantoni propõe uma mistura de natureza, engenharia humana e tecnologia.

A série convida os observadores a experimentar e refletir sobre criptoarte, tecnologia blockchain, natureza e percepção humana, remetendo às atuais mutações na natureza, na cultura e na economia.

Acesse o perfil do projeto para mais informações: instagram.com/nft_floras.

REJANE CANTONI

é artista, nascida em São Paulo. Trabalha com instalações interativas, site specific, em grande escala. Convidada por instituições para criar obras em várias cidades em todo

Acesse o conteúdo pelo QR Code ou pelo link: https://www. itaucultural.org.br/ secoes/observatorioitau-cultural/revistaobservatorio-35--ensaio-artistico

o mundo, desenvolve instalações inovadoras que oferecem mediações viscerais para uma reflexão sobre as percepções e a comunicação dos indivíduos nos espaços que habitam.

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Floras_bloom_#4| Imagem de Rejane Cantoni
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