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Palestina, até quando vamos permitir isso?

Reforma agrária no governo Lula Direitos sexuais e reprodutivos Entrevistas

Manoel da Conceição

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Dulce Chaves Pandolfi Diretora do Ibase e pesquisadora do CPDOC/FGV

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ais uma vez, o Ibase, por meio da sua revista Demo-

cracia Viva, traz para o debate temas e problemas atuais e polêmicos. Por exemplo: no que diz respeito ao contexto internacional, o artigo central é sobre o povo palestino, cuja luta árdua pelo reconhecimento da sua presença no Oriente Médio vem se arrastando, de forma dramática, por mais de seis décadas. Ainda sobre o contexto internacional, notas sobre uma revisita à Cuba e à Colômbia, 40 anos depois, apontam dificuldades vividas atualmente por aquelas sociedades. Um balanço sobre a nona edição do Fórum Social Mundial realizado em Belém, em janeiro último, não poderia deixar de estar presente aqui. O evento, que contou com uma significativa presença de indígenas, ribeirinhos, extrativistas e quilombolas, demonstrou enorme vitalidade política. Ao questionar o nosso modelo de civilização, os(as) participantes do Fórum se indagavam sobre o sentido do desenvolvimento. A pergunta recorrente era: para quê e para quem serve o progresso? Nesta edição, também está contemplado o antigo, mas ainda atual e fundamental, debate sobre a reforma agrária. São duas as visões trazidas pela revista: a de um líder do MST e a de um quadro governamental. Outra polêmica é sobre o aborto. O assunto é tratado por duas mulheres. Ambas são religiosas. Uma é metodista e a outra é católica, mas suas posições são radicalmente diferenciadas. José Padilha, diretor do filme Garapa, recém-lançado no circuito nacional, traz uma discussão instigante sobre a fome e sua representação na arte. Finalmente, nas duas entrevistas exemplares de histórias de vida, temos o campo e a cidade. De um lado Manoel da Conceição, uma histórica liderança do meio rural, que há mais de 40 anos ousou enfrentar as oligarquias do Nordeste brasileiro. Por isso, pagou um preço muito alto. Mas não se deixou abater e até hoje continua na mesma batalha. O outro entrevistado é um lutador da cidade. Nascido e criado no Morro Santa Marta, na zona sul do Rio de Janeiro,


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o Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas

3 ARTIGO

Obstáculos e possibilidades da reforma agrária Osvaldo Russo

8 NACIONAL

MST: 25 anos de teimosia João Pedro Stedile 14 ENTREVISTA

Manoel da Conceição entrevista

Manoel da Conceição

22 INTERNACIONAL

Palestina, democracia a serviço de quem? Jamal Juma 28 DEBATE

Direitos sexuais e reprodutivos Nancy Cardoso Pereira Eva Aparecida Rezende de Moraes 36 ENTREVISTA

Itamar Silva 52 ARTIGO

Cuba e Colômbia, países parados no tempo

entrevista

Mario Osava

Itamar Silva

56 RESENHAS 60 ARTIGO

Belém 2009: o Fórum mais importante José Correa Leite

Av. Rio Branco, 124 / 8º andar 20040-916 Rio de Janeiro/RJ Tel.: (21) 2178-9400 Fax: (21) 2178-9402 <ibase@ibase.br> <www.ibase.br>

Conselho Curador Sebastião Soares João Guerra Carlos Alberto Afonso Nádia Rebouças Sonia Carvalho

Direção Executiva Cândido Grzybowski Dulce Pandolfi Francisco Menezes

Coordenadores(as)

Ciro Torres Fernanda Carvalho Itamar Silva João Roberto Lopes Pinto Luzmere Demoner Moema Miranda Renata Lins

DEMO C RA C IA VIVA ISSN: 1415-1499 – Publicação trimestral

Diretora Responsável Dulce Pandolfi

Conselho Editorial

Alcione Araújo Cândido Grzybowski Charles Pessanha Cleonice Dias Jane Souto de Oliveira João Roberto Lopes Pinto Márcia Florêncio Mario Osava Moema Miranda Regina Novaes Rosana Heringer Sérgio Leite

Edição e revisão Ana Bittencourt

68 CRÔNICA Alcione Araújo 70 CULTURA

Sobre a representação da fome na arte Para apoiar os projetos desenvolvidos pelo Ibase, escreva para amigos@ibase.br ou telefone para (21) 2178-9400. Doações de pessoas jurídicas podem ser abatidas do Imposto de Renda.

Jamile Chequer

Assistente Editorial Flávia Mattar

Assessoria de imprensa

José Padilha

Rogério Jordão

“Garapa”, além dos retratos

Produção

Flávia Mattar 76 ARTIGO

Território mental, o nó górdio da democracia Evandro Vieira Ouriques 82 SUA OPINIÃO 84

Subedição e revisão

ÚLTIMA PÁGINA Nani

O Ibase adota a linguagem de gênero em suas publicações por acreditar que essa é uma estratégia para dar visibilidade à luta pela eqüidade entre mulheres e homens. Trata-se de uma política editorial, fruto de um aprendizado e de um acordo entre os(as) funcionários(as) do Ibase. No caso de artigos redigidos voluntariamente por convidados(as), sugerimos a adoção da mesma política. Os artigos assinados nesta publicação não traduzem, necessariamente, a posição do Ibase.

Geni Macedo

Estagiário

Diego Santos

Distribuição

Elaine Amaral de Mello

Projeto Gráfico e Diagramação Mais Programação Visual

Foto de capa

Montagem sobre foto – Arquivo StoptheWall (Palestinos(as) expulsos de suas casas pelo exército de Israel durante a catástrofe de Nakba, em 1948)

Impressão

Stamppa Gráfica e Editora

Tiragem

5 mil exemplares

democraciaviva@cidadania.org.br


artigo Osvaldo Russo*

Obstáculos e Alguns estudiosos – em nome de uma ciência supostamente desprovida de ideologia – consideram irracionais a condução da reforma agrária e a agenda pautada pelo movimento sindical e pelos movimentos sociais, quer por sua “desatualização” histórica, quer por sua radicalidade e amplitude. Entre estes, há os que chegam a falar em cooptação de pesquisadores que prestam consultoria ao governo federal nessa área. Essa argumentação não é justa nem verossímil. Esse tipo de ataque parece somar-se à nova ofensiva contra o governo Lula e os movimentos sociais que lutam pela reforma agrária, com a tentativa de sua criminalização pelos setores conservadores, que procuram impor e antecipar a sua agenda política para 2010. Há interesses, ideias e projetos em disputa e os consensos e dissensos se fazem a cada realidade e circunstância histórica, e não ao sabor de um pensamento único, ainda que sob inspiração científica. Ao se focar equivocadamente o debate, perde-se a oportunidade de discutir sobre qual reforma agrária nos entendemos ou divergimos. Ou, ainda, se é possível e necessário ser feita alguma reforma agrária e qual. A crise do capital muda

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artigo

Estes cartazes foram produzidos no âmbito da CNRA, da qual o Ibase foi um dos organizadores.

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alguma coisa? A persistência de mobilizações, acampamentos e conflitos no campo sinaliza o quê? O sistema predatório do agronegócio é sustentável? O desenvolvimento com desigualdade é aceitável? A agricultura camponesa está fadada à economia de subsistência ou isso está mais associado ao modelo de sociedade imposto por uma classe ou grupo social? As políticas públicas de educação e de acesso à pesquisa e à tecnologia podem alterar o modo e a escala da produção camponesa? As formas associativas podem cumprir uma função econômica diferenciada e competitiva? As políticas públicas são equitativas? Ao contrário das décadas de 1950 e 1960, quando a reforma agrária poderia ser uma opção para a industrialização, hoje se trata de posicioná-la frente às alternativas para o desenvolvimento sustentável. A modernização conservadora já ocorreu e não foi capaz de superar a crise alimentar e, diante da atual crise financeira e econômica mundial, a redistribuição da terra e das condições de produção e do conhecimento não é uma inevitabilidade, mas

uma alternativa de outro tipo de desenvolvimento e sociedade para o qual existe demanda social. Será que não podemos formar um novo setor agrícola?

Crise e novas perspectivas No Brasil, existem 4 milhões de pequenas unidades produtoras agrícolas, entre as quais 1 milhão nos assentamentos, que respondem pela maior parte da produção de alimentos que abastecem o mercado interno. Duas posições antagônicas defendem a existência de um único ministério para cuidar da agricultura (só que uma na ótica da agricultura familiar-camponesa e outra na lógica da agricultura patronal-empresarial). Entretanto, enquanto houver demanda social e realidade objetiva que sustente a coexistência conflitiva do agronegócio e da agricultura familiar-camponesa, haverá necessidade política e institucional de convivência de dois ministérios. Essa contradição só poderá ser superada pela política que altere a correlação de forças. A reforma agrária é a opção democrática e sustentável para um desenvolvimento com equidade social. A crise mundial do capital aponta para novas perspectivas de mobilização social e afirmação da agricultura camponesa e familiar como estratégica ao desenvolvimento sustentável, na qual a reforma agrária tenha centralidade, com geração de mais empregos, respeito ao meio ambiente e produção de alimentos saudáveis que garanta a soberania alimentar do país. Segundo dados oficiais, o governo Lula foi responsável por mais da metade dos assentamentos realizados em toda a história brasileira e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) saltou de pouco mais de R$ 2 bilhões, na safra 2002-2003, para R$ 13 bilhões, em 2008-2009. É preciso também registrar que os programas sociais, como o Bolsa Família e o Luz para Todos, entre outros, alteraram o panorama rural brasileiro, melhorando a qualidade de vida no campo. Em relação à reforma agrária, no entanto, há entraves que precisam ser superados, como a atualização dos índices de produtividade, o cumprimento integral dos requisitos constitucionais da função social da propriedade, a aceleração da imissão de posse, a abolição dos juros compensatórios das indenizações por interesse social e a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do trabalho escravo, além da fixação do limite de propriedade defendida pelo Fórum Nacional


Obstáculos e possibilidades da reforma agrária

pela Reforma Agrária e Justiça no Campo. No tocante à Amazônia Legal, a região representa cerca de 60% do território nacional e nela vivem mais de 20 milhões de pessoas, das quais um terço na área rural. Na Região Norte, mais de 70% da área total cadastrada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) referem-se aos grandes imóveis com área superior a 15 módulos fiscais, estimando-se que mais de 80% dessas áreas são improdutivas, portanto sujeitas à desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Ao lado do fortalecimento da agricultura familiar e do desenvolvimento sustentável dos assentamentos, a reforma agrária não é problema, pois favorece a produção de alimentos saudáveis e a proteção ao meio ambiente. Em relação ao programa de regularização fundiária na Amazônia Legal, que propõe a legalização de ocupantes de área pública até 15 módulos fiscais (1.500 hectares), os movimentos sociais agrários e ambientais manifestam-se contra essa medida, quer porque amplia o limite de áreas públicas a serem regularizadas, abrin-

do brechas para a apropriação do patrimônio público por especuladores, quer por estar na contramão do sistema agrário de base familiar consagrado no ordenamento agrário brasileiro. É preciso ter clareza de que a principal fonte de desmatamento e ocupação fundiária irregular na Amazônia se dá pela ação de madeireiros, grileiros e fazendeiros do chamado agronegócio, com a intensificação da pecuária extensiva e da plantação de soja. Há contradições e limitações que precisam ser superadas, mas não há incompatibilidade entre reforma agrária e desenvolvimento. Diante da crise mundial, a hora é de dialogar e unir forças políticas e sociais para avançar e consolidar o processo de desenvolvimento com distribuição da renda, da terra, do crédito e dos serviços, priorizando o emprego, a educação, a seguridade social, a reforma agrária e a preservação do meio ambiente. A pesquisa realizada em 2007 pelo Ibase – Repercussões do Programa Bolsa Família na Segurança Alimentar e Nutricional das Famílias Beneficiadas – aponta que houve avanços nos

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índices de segurança alimentar e nutricional da população beneficiada com a transferência de renda efetuada pelo Bolsa Família, ainda que permaneça um contingente de famílias que mantém elevados índices de insegurança alimentar. Este programa social e as políticas de aumento real do salário mínimo e de elevação do patamar de emprego pelo maior aporte de investimentos estatais (o Programa de Aceleração do Crescimento/PAC é exemplo disso) expressam a mão distributiva do Estado social em contraposição à mão concentradora e desigual do mercado. As exportações das commodities agrícolas transformaram a alimentação em mercadoria, gerando lucros fabulosos sem preocupação com a necessidade de alimentar as pessoas.

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Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), quase 1 bilhão de pessoas passam fome no mundo. Ou mudamos a matriz da produção de bens agrícolas, democratizando a terra e priorizando a produção de base familiar, ou estaremos inviabilizando a vida saudável no planeta. São os pobres em todo o mundo os que mais sofrem com as crises e as desigualdades do capitalismo.

Revolução sem armas O Brasil, hoje, está mais preparado para enfrentar novos desafios. É preciso, entretanto, dialogar mais intensamente com os movimentos sociais para que estes sejam efetivamente parceiros ativos nesse diálogo nacional. O Brasil não pode esperar, porque a fome e a pobreza têm pressa, como costumava dizer o saudoso Betinho. A crise do capital financeiro internacional é a crise do seu centro acumulativo que já está adotando medidas para reciclar o cassino em que transformou a economia mundial, concentrando ainda mais o poder, a renda e a riqueza, destruindo a natureza e excluindo os pobres. Se quisermos garantir a soberania alimentar do nosso povo, temos que potencializar as bases sociais e econômicas que construímos recentemente, ampliar a reforma agrária e fazer uma revolução sem armas no campo e na educação brasileira, com investimentos estatais em ciência, tecnologia, assistência técnica, qualificação profissional e preservação ambiental, criando e consolidando as bases sustentáveis do nosso desenvolvimento e da soberania do país. Apesar do volume de recursos aplicados no setor, os movimentos sociais reclamam da desaceleração da reforma agrária, com a redução da área desapropriada. É preciso revigorar o leme da democratização da terra, da qualificação dos assentamentos e do gerenciamento dos nossos recursos fundiários. O governo Lula tem propiciado avanço notável nas políticas sociais, reduzindo a pobreza e as desigualdades. O Programa Bolsa Família, a nova política de assistência social introduzida pelo Sistema Único de Assistência Social (Suas), o aumento real do salário mínimo, a geração de mais empregos com carteira assinada, o apoio à agricultura familiar por meio do Pronaf, o Luz para Todos, a construção de cisternas no semi-árido, a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) etc., têm merecido aceitação


Obstáculos e possibilidades da reforma agrária

da maioria da população brasileira e reconhecimento dos organismos internacionais, dos movimentos sociais e dos governos municipais e estaduais, que são tratados de forma republicana pelo governo federal. Os programas sociais, no entanto, não substituem os de geração de trabalho e renda, que se constituem em portas de saída daqueles programas. Na área rural, este objetivo é cumprido pela reforma agrária e pelo desenvolvimento da agricultura de base familiar. Nesse sentido, a prioridade ao agronegócio deveria ser revista, pelo menos como está posta atualmente, pois tem comprometido o meio ambiente e a soberania alimentar da população brasileira, além de não gerar os empregos necessários ao país. O modo de produção do chamado agronegócio mostra-se, sobretudo, insustentável, segundo estudos que revelam novos padrões mundiais de sustentabilidade econômica, social e ambiental.

Feijão e feijoada Em qualquer contexto, aqui e alhures, reforma agrária significa não só, mas antes de tudo, redistribuir a terra útil, sobretudo a privada, desconcentrando a sua propriedade, a sua posse e o seu uso, que atualmente mantêm 46,8% da área cadastrada nas mãos de 1,6% dos proprietários, tornando produtivos os 133 milhões de hectares de terras ociosas, ou então não se faz reforma agrária. Como dizia o saudoso José Gomes da Silva (fundador da Associação Brasileira de Reforma Agrária /Abra, ex-presidente do Incra e “ministro” do governo paralelo do Lula, em 1990): “A terra está para a reforma agrária, assim como o feijão está para a feijoada, depois vêm os temperos”. Na reforma agrária, igualmente, é preciso garantir terra de boa qualidade e políticas adequadas de apoio aos assentamentos. Democratizar a vida no campo, proteger o meio ambiente, gerar empregos, promover o ser humano e produzir alimentos saudáveis por si só justificam a importância da reforma agrária hoje. Nas regiões desenvolvidas do país, entretanto, a legislação atual inviabiliza a massividade da reforma agrária, mediante a aplicação de seu principal instrumento – a desapropriação por interesse social com pagamento da terra em títulos da dívida agrária. É preciso, pois, mobilizar as energias da sociedade e o acúmulo do Estado conseguido até aqui para impulsionar as mudanças normativas que se fazem necessárias, como fortalecer institucionalmente o programa

de reforma agrária. A reforma agrária precisa, sobretudo, dialogar com os movimentos sociais que organizam os demandantes prioritários – os trabalhadores rurais sem terra. A organização coletiva é necessária para alcançar escala econômica e empoderamento social que, ao lado de infraestrutura, tecnologias apropriadas de produção, crédito, assistência técnica, educação e formação profissional, possibilitam a viabilidade econômica dos projetos de assentamento e a promoção social das famílias assentadas. Hoje, sem isso, torna-se impossível garantir o desenvolvimento sustentável dos assentamentos da reforma agrária no Brasil. A partir do aprofundamento dessa discussão na sociedade, pode-se pactuar um programa comum – popular – atrativo a uma nova coalizão política de forças sociais no campo e nas cidades, para impulsionar a construção de um novo modelo econômico – democrático e sustentável – e, consequentemente, de um novo modelo agrícola e agrário para o país. O objetivo estratégico a alcançar, com ampla mobilização popular, é a viabilização desse novo tipo de desenvolvimento, que produza alimentos saudáveis, preserve a vida e reduza drasticamente as desigualdades e a pobreza no Brasil. Sem prejuízo do financiamento da produção individual, há necessidade, entretanto, para viabilizar uma nova agricultura familiar competitiva, de criação de um programa de incentivos para a organização de associações de agricultores familiares, garantindo o acesso dos camponeses e suas famílias a um sistema público, com a participação dos movimentos sociais. Para a viabilização desse novo modelo agrícola, é preciso acelerar e qualificar a reforma agrária e o apoio à agricultura familiar para além da obtenção da terra, do mero assentamento e do acesso ao crédito. É preciso, sobretudo, romper progressivamente com o modelo atual, hegemonizado pelo agronegócio, e priorizar a integração da agricultura camponesa a um novo tipo de desenvolvimento no Brasil.

* Osvaldo Russo Ex-presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), estatístico, diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e coordenador do Núcleo Agrário Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT)

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nacio nacional João Pedro Stedile*

MST: 25 anos de Na primeira metade da década de 1960, a economia brasileira já demonstrava sinais do esgotamento e da estagnação do modelo de desenvolvimento apoiado no capital industrial. Naquele momento, o governo João Goulart e seu ministro Celso Furtado elaboraram a que talvez tenha sido a mais avançada proposta de reforma agrária de nosso país. Para ampliar o mercado interno e o abastecimento dos centros urbanos, a proposta limitava o tamanho máximo da propriedade da terra e desapropriava as áreas em torno das rodovias para garantir tanto o escoamento da produção como o acesso à energia e infraestrutura para os camponeses. O Plano de Reforma Agrária foi anunciado por João Goulart no comício da Central do Brasil, que foi um dos fatos desencadeadores do golpe de 1964. O regime militar, instalado naquele ano, não apenas interrompeu a oportunidade mais efetiva que tivemos de democratizar o acesso à terra, como também estabeleceu uma saída para a crise do capital industrial brasileiro, ampliando a dependência ao capital internacional. Estabeleceu também um violento processo de mecanização, concentração de terras e êxodo rural. Era um período de expansão das empresas transnacionais para dominar mercado, controlar matérias-primas e explorar a mão-de-obra barata nos países periféricos. De 1979 a 1984, os camponeses viviam um clima de ofensiva, no espírito geral impregnado

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onal

Federal para o combate aos sem terra. Depois, com a vitória do neoliberalismo do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), foi o sinal verde para os latifundiários e suas polícias estaduais atacarem o movimento. Tivemos em pouco tempo dois massacres: Corumbiara e Carajás. Ao longo desses anos, centenas de trabalhadores rurais pagaram com sua própria vida o sonho da terra livre. Mas seguimos a luta. Brecamos o neoliberalismo elegendo o governo Lula. Tínhamos esperança que a vitória eleitoral pudesse desencadear um novo reascenso do movimento de massas, e com isso a reforma agrária tivesse mais força para ser implementada. No entanto, não houve reforma agrária durante o governo Lula. Ao contrário, as forças do capital internacional e financeiro, por meio de suas empresas transnacionais, ampliaram seu controle sobre a agricultura brasileira.

Fotos: Arquivo MST

na classe trabalhadora, e realizaram dezenas de ocupações de terra em todo o país. Os posseiros, os sem terra e os assalariados rurais perderam o medo – e foram à luta. Não queriam mais migrar para a cidade como bois marcham para o matadouro (na expressão de nosso saudoso poeta uruguaio Zitarroza). Em janeiro de 1984, havia um processo de reascenso do movimento de massas no Brasil. A classe trabalhadora se reorganizava e acumulava forças orgânicas. Os partidos clandestinos já estavam na rua, como o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), entre outros. Conquistamos uma anistia parcial, mas a maioria dos exilados já tinha voltado ao país. Já havia se formado o Partido dos Trabalhadores (PT), a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Coordenação Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat). Amplos setores das igrejas cristãs ampliavam seu trabalho de formiguinha, formando consciências e núcleos de base em defesa dos pobres, inspirados pela Teologia da Libertação. Havia um entusiasmo em todo lugar, porque a ditadura estava sendo derrotada e a classe trabalhadora brasileira, na ofensiva, lutava e se organizava.

Origens Fruto de tudo isso, nos reunimos em Cascavel, em janeiro de 1984, estimulados pelo trabalho da Comissão Pastoral da Terra (CPT), lideranças de lutas pela terra de 16 estados brasileiros. E lá, depois de cinco dias de debates, discussões, reflexões coletivas, fundamos o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Os nossos objetivos eram claros: organizar um movimento de massas nacional, que pudesse conscientizar os camponeses para lutarem por terra, por reforma agrária (mudanças mais amplas na agricultura) e por uma sociedade mais justa e igualitária. Queríamos, enfim, combater a pobreza e a desigualdade social. A causa principal dessa situação no campo era a concentração da propriedade da terra, apelidada de latifúndio. Não tínhamos a menor ideia se isso era possível. E nem quanto tempo levaríamos na busca de nossos objetivos. Passaram-se 25 anos, muito tempo. Foram anos de muitas mobilizações, lutas e de uma teimosia constante, de sempre lutarmos e nos mobilizarmos contra o latifúndio. Pagamos caro por essa teimosia. Durante o governo Collor, fomos duramente reprimidos, com a instalação até mesmo de um departamento especializado na Policia

Marcha Nacional do MST

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nacional

Primeiro congresso nacional do MST

Passeata pela reforma agrária em 1985

E a fome continua Hoje, a maior parte de nossas riquezas, produção e distribuição de mercadorias agrícolas está sob controle das empresas transnacionais, que se aliaram aos fazendeiros capitalistas e produziram o modelo de exploração do agronegócio, buscando consolidar uma matriz produtiva na agricultura baseada no uso intensivo de insumos industriais, como máquinas, fertilizantes químicos e agrotóxicos, tanto no Brasil como mundialmente. De fato, uma das promessas se concretizou: a produtividade por hectare se multiplicou, aumentando quatro vezes no mundo. Mas a fome não acabou! E os famintos passaram de 80 para 950 milhões de pessoas. Agora, cerca de 70 países dependem das importações para alimentar seu povo. Na verdade, esse modelo serviu apenas para concentrar o controle da produção e do comércio agrícola mundial em

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torno de não mais de 30 grandes empresas transnacionais, como a Bunge, Cargill, ADM, Dreyfuss, Monsanto, Syngenta, Bayer, Basf, Nestlé etc. Com o fortalecimento do agronegócio, muitos de seus porta-vozes se apressaram a prenunciar nas colunas de jornalões burgueses que o MST se acabaria. Lêdo engano. A hegemonia do capital financeiro e das transnacionais sobre a agricultura não conseguiu, felizmente, acabar com o MST. Por um único motivo: o agronegócio não representa solução para os problemas dos milhões de pobres que vivem no meio rural. E o MST é a expressão da vontade de libertação desses pobres. Mais recentemente, o grande capital internacional se articulou para solucionar a crise de sua matriz energética baseada no petróleo. Formou-se uma aliança diabólica entre as empresas petroleiras, automobilísticas e as transnacionais do agronegócio para atuarem nos países do Hemisfério Sul, com abundância de terra, sol e água, para propor a produção dos agrocombustíveis – que eles chamam enganadoramente de biocombustíveis, mesmo não tendo nada de vida. Assim, nos últimos cinco anos, milhões de hectares antes cultivados para alimentos ou controlados por camponeses passaram para as mãos de grandes fazendeiros e empresas para implantar a monocultura de cana, soja, milho, palma africana, girassol... Tudo para produzir etanol ou óleo vegetal. É a repetição da manipulação da Revolução Verde. As melhores terras, mais próximas das grandes cidades e dos portos, deixaram de dar alimentos para produzir energia para os automóveis da classe média dos Estados Unidos, da China e do Japão... Até a queda do preço do petróleo, a taxa média de lucro na agricultura tinha subido de patamar e puxou consigo o preço médio de todos os produtos alimentícios, uma vez que o preço do etanol tem como parâmetro os preços do combustível. O preço dos alimentos representa de 60% a 80% da renda dos trabalhadores em países em desenvolvimento (segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação/FAO). Em 2008, a cesta básica no Brasil aumentou, em média, mais de 20% (segundo o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos/Dieese). Ou seja, a população em geral consumidora de alimentos teve de ajudar a pagar a taxa média de lucro que os capitalistas e fazendeiros impuseram em função da produção do etanol. Em nosso país, o modelo agroexporta-


MST: 25 anos de teimosia

dor resultou também no bloqueio da reforma agrária, agora sob responsabilidade do governo Lula. A democratização do acesso à terra esbarra na transformação dos recursos naturais em reserva de expansão do agronegócio. O governo dá prioridade à produção de monocultoras destinadas à exportação, sob controle das empresas transnacionais e do capital financeiro, para sustentar a política econômica neoliberal herdada de FHC. A política de crédito agrícola do governo não deixa dúvidas. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) concedeu em empréstimos, apenas no ano passado, mais de R$17,2 bilhões para empresas do agronegócio. O Banco do Brasil concedeu mais de R$ 10 bilhões para apenas 20 empresas do agronegócio. Enquanto isso, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) tem previsão para a liberação de apenas R$ 7, 2 bilhões para a safra 2008/2009, alcançando 1,2 milhão de famílias de pequenos agricultores. Nesse contexto, não há espaço para os camponeses, para a reforma agrária e para um modelo agrícola baseado na produção em pequenas e médias propriedades, voltadas para a produção de alimentos para o povo brasileiro.

Criminalização e novas formas de luta O avanço das empresas transnacionais na agricultura está combinado com uma ofensiva articulada por parte do Poder Judiciário, da imprensa empresarial e do Estado para reprimir os movimentos sociais. Um exemplo são os ataques do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Gilmar Mendes, episódios do Rio Grande do Sul, quando o Ministério Público estadual e a governadora Yeda Crusius determinaram oficialmente a “eliminação” do MST e o fechamento das escolas itinerantes. O resultado desse quadro são os menores índices de desapropriação e assentamentos da história do Brasil. Em 2008, das 18.630 famílias oficialmente assentadas pelo governo federal, apenas 2.366 são novas famílias, enquanto o restante são ainda regularizações de projetos de assentamentos dos anos anteriores. É uma vergonha para aqueles que tinham um compromisso histórico com a reforma agrária. A humanidade precisa encarar os alimentos como um direito de todo ser humano e deixar de tratá-los como mercadorias, para dar lucro às empresas transnacionais. Precisamos de políticas para estimular, em todos os países, o fortalecimento da produção camponesa, única

Ocupação de terra em 1987

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nacional

* João Pedro Stedile Integrante da coordenação

lotes para os pobres camponeses. Agora, as mudanças no campo para combater a pobreza, a desigualdade e a concentração de riquezas dependem de mudança não só da propriedade da terra, mas também do modelo de produção. Se os inimigos são também as empresas internacionalizadas, que dominam os mercados mundiais, significa também que os camponeses dependerão cada vez mais das alianças com os trabalhadores da cidade para poder avançar nas suas conquistas. Felizmente, o MST adquiriu experiência nestes 25 anos: sabedoria necessária para desenvolver novos métodos e novas formas de luta de massa que possam resolver os problemas do povo.

Douglas Mansur / Arquivo MST

nacional do MST

forma de fixar as pessoas no interior e produzir alimentos sadios sem agrotóxicos. No nosso país, estamos diante da oportunidade de realizar uma reforma agrária de novo tipo, que tenha caráter popular em sua natureza e interesses. Temos que implementar um novo modelo agrícola, baseado em uma matriz produtiva agroecológica e destinada à soberania alimentar, capaz não apenas de democratizar o acesso à terra e à produção, mas de impedir o processo que marcha para o colapso ambiental e alimentar. Vamos dar seguimento a nossa luta pela reforma agrária e contra o atual modelo agrícola, que impede a consolidação da pequena e média agricultura, transforma em mercadoria nossos recursos naturais e trata a agricultura e os alimentos como jogos de cassino. Podemos pregar para governantes surdos, mas aprendemos que sem mudanças radicais, na atual conjuntura, as contradições e os problemas sociais só aumentarão e, algum dia, vão explodir. No entanto, a luta pela reforma agrária, que antes se baseava apenas na ocupação de terras do latifúndio, agora ficou mais complexa. Temos que lutar contra o capital, contra a dominação das empresas transnacionais. A reforma agrária deixou de ser aquela medida clássica: desapropriar grandes latifúndios e distribuir

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ENTRE VISTA Entrevista

Manoel da Conceição Ele é uma dessas figuras com quem desejamos passar a tarde toda proseando. Cheio de causos e bom humor, transmite a imagem de um homem tranquilo, daqueles que ficam sentados na frente da casa vendo a vida passar. Lêdo engano. Mané, como gosta de ser chamado, é cabra forte. Muito politizado, tem sua vida perpassada por lutas fundamentais, como pela reforma agrária e pelos direitos dos trabalhadores. Foi perseguido político durante a ditadura, fundou cooperativas, construiu escolas, participou da criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Sua maior convicção é a necessidade de capacitação dos trabalhadores, algo pelo qual arriscou sua vida mais de uma vez. “Sem o autoempoderamento coletivo dos trabalhadores do campo e da cidade não haverá grandes mudanças neste país. A mudança só vai acontecer quando a massa de trabalhadores e trabalhadoras entender que o enfrentamento deve ser coletivo e não individual.”

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Democracia Viva (DV) – Onde você nasceu e como foi sua infância e juventude? Manoel da Conceição – Eu nasci no Maranhão, no município de Coroatá, próximo ao rio Itapecuru. Meus pais eram uma mistura de gente. A descendência da minha mãe é portuguesa. O meu avô por parte de mãe é de origem indígena e meu pai era descendente de escravos, minha bisavó era escrava. Meu sangue está todo misturado: índios, negros e portugueses. Toda minha família era de lavradores. Eu tinha seis irmãos e o pedaço de terra onde eu morava foi herdado dos meus avós e ficava no meio da terra do Luís Soares, patrão do meu pai. Meus pais consideravam que ele era um bom homem, pois, todo ano, ele liberava a venda fiado para ser paga na colheita.

DV – É nesse lugar de origem que começa a sua luta pela terra? Mané – Sim, um dia, o Luís Soares chegou na minha casa perguntando se meu pai tinha os documentos da terra. Ele queria fazer um trato: registrar a terra como se fosse dele, prometendo a moradia da nossa família para sempre. Meu pai aceitou o trato. Isso foi em 1952. Só que, em 1955, o patrão morreu e a família dele quis a terra. Invadiram a terra e nos colocaram para fora. Eu estava na casa dos 20 anos e, nessa época, me rebelei, cheguei até a brigar, mas fomos expulsos. Fui parar em Mearim, município de Bacabal, em terra de posseiros. Nesse mesmo lugar, dois anos depois, apareceu um homem que disse que havia comprado as terras, o Manacé Castro, filho do delegado de polícia. Tinha mais de 20 famílias nesse lugar.

DV – Vocês aceitaram? Mané – Não concordamos, nos rebelamos, mas não houve briga. Falei com as autoridades e me disseram que tínhamos de estar organizados. Falaram que a gente tinha de criar uma associação. Na nossa primeira reunião para criar a associação rural de agricultores, o Manacé chegou em um caminhão com uns jagunços e disse: ‘Não corre ninguém, senão morre’. Eles entraram na casa e mataram três rapazes a facadas. Os rapazes eram todos casados e com filhos. Uma velhinha de 65 anos foi esfaqueada nas costas e ficou rodando no chão; uma criança, que gritava a morte de seu pai, foi jogada contra a parede, o crânio rachou e os miolos caíram na sala. Eu levei um tiro na perna, mas me livrei. Caí no mangueiral e eles não conseguiram me achar. Nessa época, eu era evangélico, da Assembleia de Deus, e me ajoelhei no meio do povo dizendo que, até aquele dia, eu tinha os

latifundiários como meus inimigos, mas, agora, eles é que tinham um inimigo para o resto da vida, e até hoje estou aqui.

DV – E aí, você começou a sua luta... Mané – Sim, aí começou a minha trajetória. Desde a época de Coroatá até 1962, eu era apenas um revoltado, quase um “Lampião”, ninguém podia falar de fazendeiro, dono de terras, que eu tinha ódio. Mas eu comecei a participar de um curso de formação do MEB [Movimento de Educação de Base ] sobre sindicalismo, cooperativismo e política. O curso era da igreja e durou 13 dias, em Santa Inês. Quando o curso acabou, saí com a missão de fazer um trabalho nas comunidades. Como 99% da população era analfabeta, a primeira coisa que fiz foi incentivar a criação de escolas nas comunidades. Criamos 28. Quem sabia ler, passou a ser professor e nós recolhíamos dinheiro na comunidade para gratificá-los. Pela manhã, eles davam aulas às crianças e, durante a noite, aos adultos. Depois, a escola ganhou o nome de Escola João-de-barro. E foi essa escola que nos ajudou a entender de sindicalismo porque até o significado de sindicato aprendemos fazendo. Em 18 de agosto de 1963, fundamos o primeiro sindicato de trabalhadores rurais do Maranhão, o Sindicato de Trabalhadores Autônomos, em Pindaré-Mirim.

DV – Como você se envolveu com o movimento de resistência à ditadura? Mané – Eu nunca me envolvi com eles, eles é que se envolveram comigo. Quando baixou a ditadura, nosso sindicato estava em uma briga danada por causa de terras e do gado que comia a nossa produção. Tentamos solucionar, procuramos até a Secretaria de Segurança Pública, mas nada foi resolvido. Fizemos uma assembleia, em janeiro de 1964, e decidimos que o gado que comesse nossa produção, comia bala. Se o dono viesse negociar o prejuízo, fazíamos acordo. Se o dono viesse com brabeza, pegava bala também. Após o golpe, em abril de 1964, o nosso sindicato foi ocupado militarmente e nos disseram que se fizéssemos reunião com mais de cinco pessoas, iríamos presos por subversão. Eu fiquei refugiado até julho daquele ano, com o apoio da Igreja Católica. O gado estava acabando e as pessoas estavam com raiva, revoltadas. As pessoas, também de outras comunidades, iam para a minha casa, na calada da noite, querendo saber o que era golpe, o que estava acontecendo. E eu começava a explicar o que

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acontecia no país. A existência dessas conversas correu como fumaça até chegar à delegacia de Pindaré-Mirim. Tentaram me prender, mas tive a sorte de, nesse dia, ter 300 pessoas sentadas na minha casa que impediram isso de acontecer. Diziam: ‘Mané, preso? Daqui não vai, não’. Foi uma confusão, mas a polícia acabou indo embora. Nessa reunião, tinha muitos comerciantes que começaram a ficar no meu pé. Diziam: ‘Rapaz, esses homens vieram aqui te prender, não deixaram isso acontecer, você não se entregou. Isso não vai dar certo daqui pra frente’. Eles queriam que eu fosse na polícia explicar os meus motivos. Fui conversar sobre isso com os meus companheiros que foram contra essa ideia. O pessoal do campo não queria que eu fosse, mas fui. Peguei um barquinho até Pindaré-Mirim, saí de madrugada e cheguei nove da manhã na delegacia de polícia, e disse: ‘Bom dia, sargento!’. Ele me perguntou quem eu era e eu disse que queria saber o motivo da minha prisão. Ao tentar me explicar, me deram voz de prisão. Fiquei 30 dias na cadeia. Toda semana, eles me liberavam um dia e, quando estava quase saindo daquela cidade, me prendiam novamente, me chicoteavam alegando que eu estava fugindo. A raiva, que já estava passando, voltou. A partir dessa ação da polícia, sabe o que eu imaginei? Não sou cangaceiro e nunca fui, mas vou passar pelo menos um dia sendo

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um. Fui para um lugar chamado Carú, que fica lá para as matas de Pindaré-Mirim. Lá, comecei a juntar uns companheiros que estavam revoltados. Durante um ano, tudo o que fiz foi juntar dinheiro para comprar arma de caça e fazer um barco gigante. Ao final disso, convoquei a comunidade para voltar a Pindaré-Mirim e pegar o delegado de surpresa, prender, amarrar, raspar a cabeça de todo mundo da delegacia e, no outro dia, soltá-los no meio da rua para pagar a humilhação que me fizeram passar.

DV – Foi aí que começou sua relação com a Ação Popular (AP)? Mané – Sim, antes dessa ação contra o delegado, chega em minha casa o companheiro de sindicato Antônio Lisboa Brito, dizendo que havia alguém do MEB – que também fazia parte da AP, da qual Betinho era integrante – querendo conversar e retomar a luta. Foi quando voltei para Pindaré-Mirim sozinho, sem família, sem nada. Lá encontrei Rui Frazão, que não era do MEB. Eu contei para ele o que estava pensando fazer. Ele disse: ‘Rapaz, não faz isso, é muito arriscado. O governo de São Luís [Maranhão] vai mandar prender você de qualquer jeito’. Conversa vai, conversa vem, eu, que sempre gostei de acatar a decisão do coletivo, optei por não fazer. Foi aí o começo da minha militância política. Até então, minha primeira militância foi nervosa, a segunda foi a do MEB e a terceira etapa foi essa do rolo de gado. Na AP, como militante, passamos a criar


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grupos de produção, organização política. Fui para São Paulo e trabalhei criando comissões de fábrica e, de algumas, surgiu a CUT. Criei tanto comissões de campo nas comunidades como essas comissões de fábrica nas cidades, que serviam de oposição sindical à ditadura. Fazia isso na clandestinidade. Cheguei a ser do comitê central e da executiva nacional da AP.

DV – Como foi a experiência de ir à China? Mané – Fui para a China em outubro de 1969 e voltei em julho de 1970. Eu aprendi muito. Fui em uma delegação de 12 pessoas e eu não era dirigente. Fomos para uma escola fazer curso político e de guerrilha. Lá, foi discussão que não tinha fim. A maioria dos companheiros entendia que a revolução chinesa era o nosso modelo de fazer revolução. Foi nisso que começou a minha divergência com a AP. Discordava que a revolução chinesa fosse um modelo para ser aplicado no Brasil. Essa divergência amigável, fraterna, chegou ao Mao Tse Tung. Quando fui receber uma perna mecânica no hospital chinês, recebi um recado pra eu ir a um lugar com uma pessoa. Era para encontrar com o Mao Tsé Tung! Na conversa, ele perguntou como estava o curso. Eu falei que estava uma beleza! Mas ele responde: ‘Não está ótimo, está acontecendo algum mal-entendido, não está? Principalmente com você’. A AP tinha uma crítica à China sobre o programa da Rádio Pequim feito para o Brasil, e isso foi colocado no papel. Só que, na hora de assinar a crítica, o pessoal colocou o Mané para assinar e não o dirigente da organização. Era uma crítica coletiva, mas ficou como se fosse minha. Também tinha essa divergência sobre a revolução que contei. Depois de duas horas de conversa, ele falou: ‘Rapaz, eu estive no Partido Comunista sozinho, quase isolado, durante 15 anos, por causa de uma divergência mais ou menos desse tipo. Os companheiros de partido achavam que a revolução chinesa devia seguir os mesmos caminhos da União Soviética e eu era o único que era contra, porque lá a revolução tinha acontecido da cidade para o campo, e aqui isso é impossível. A grande massa na China é de camponeses. Logo, a força principal dessa revolução deve ser do campo’.

DV – E isso foi algo que marcou a sua vida... Mané – Eu passei três meses pelas bases de apoio da revolução na China. Por causa disso, discordava de implantar o modelo deles no Brasil, tinha visto as diferenças. Depois de

uma longa conversa, Mao Tse Tung continuou: ‘Mané, só faltam três coisas que preciso falar. Se você achar por bem, leve para seu país’. Ele me disse que tudo que eu tivesse aprendido na China sobre a revolução chinesa deveria ser enterrado lá mesmo. ‘Cava um buraco e enterra tudo o que você aprendeu do que foi feito na China, você faz isso?’. Aí, eu respondi, ‘Mas eu vim aqui para aprender’. Ele disse que, para aprender melhor, era preciso deixar na caixola, não levar para o Brasil, essa seria a primeira lei do materialismo dialético. Segundo, chegando de volta ao Brasil, era preciso estudar a realidade do país e fazer um trabalho profundo. A terceira era que, baseado nessa realidade, eu precisaria definir quem eram mesmo os inimigos a serem enfrentados. A disputa era baseada em saber como tirar do inimigo e trazer aos aliados. Ele me ensinou também a nunca ser o primeiro a declarar ruptura política, econômica ou ideológica. E não é isso o que está sendo feito aqui no Brasil, precisamos aprender mais sobre isso. Esses são pontos que guardei até hoje da minha conversa com ele.

DV – Onde você mora hoje? Mané – Eu moro em João Lisboa [a 650 quilômetros da capital, São Luís], onde temos uma escola de formação e capacitação dos trabalhadores. Minha casa fica ao lado dessa escola. Eu vivo com minha segunda mulher, Denise. Tive três filhas e um filho. Mariana nasceu na Suíça, onde fiquei três anos e meio como exilado, mora comigo, e é agrônoma. O Manoelzinho é professor e a Raquel é sindicalista. A Rosinha morreu em um acidente com um caminhão na estrada, em 1º de novembro de 2002.

DV – Você já foi evangélico, e agora qual a sua religião? Mané – Eu tenho uma crítica muito forte aos evangélicos e aos católicos, porque falar da morte de Jesus e que ele queria só o céu depois de morto é deturpar a história, levando a morte de Jesus a quase nada. Nos meus estudos, ele não morreu só porque queria o céu para os pobres, mas porque queria uma vida digna para todos os seres da sociedade. Para mim, quem cria a vida é o universo. Na minha cabeça, não se usa este nome, Deus. O universo, que é material e ao mesmo tempo espiritual, que é capaz de criar as coisas. Quem não tem espírito, não cria. Só cria aquele que tem um espírito no seu corpo material, do contrário, não tem criatividade.

DV – O que você imagina para o Brasil em termos de modelo

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de desenvolvimento? Que papel as iniciativas de economia solidária devem ter? Mané – Eu trabalho no Maranhão, em uma região de agricultura familiar, onde tem grandes produtores de soja, eucalipto, carvão, e sei que essa produção não tem diversificação. Isso cria muitas dificuldades de sobrevivência porque toda produção, quando sai para o mercado, é deles, não nossa. Produzimos, mas não aprendemos a gerenciar o negócio, por isso, hoje, discutimos a necessidade de pensar no autoempoderamento coletivo dos trabalhadores. Não adianta falar de economia solidária se não existe um ser humano solidário. A primeira coisa a se pensar é como construímos essa organização coletiva e solidária que gera uma produção coletiva e solidária, porque, se cada um produz para si, ninguém vai a lugar algum. Nós precisamos ter a terra para produzir com quantidade e qualidade, ter o controle da nossa produção, a industrialização dessa produção. Precisamos, também, de uma produção diversificada, que contemple a especialidade de cada um. E isso uma família sozinha não consegue fazer. Tudo isso é importante, mas o mais importante nesse processo é: como nós conseguimos tomar posse do conhecimento científico e tecnológico para não ficarmos reféns daqueles que têm o conhecimento de transformar a produção em mercadoria cara. Precisamos conseguir assegurar esses princípios ou se torna muito difícil. É nesse campo que está a nossa grande guerra.

DV – Você acha que já se caminhou rumo a esse empoderamento ou ainda há muito o que fazer? Mané – Estamos indo muito devagar. A maioria dos trabalhadores se encarregou, antes de tudo, de odiar os ladrões, mas só ter raiva não adianta. É necessário ter coragem, sabedoria, conhecimento e, também, o que se chama de amor ao próximo. Essa relação amorosa é muito importante para a sociedade andar. É preciso ter muito amor com o que se faz.

DV – As iniciativas de economia solidária vêm se fortalecendo na sociedade brasileira. Como você avalia esse processo em relação, por exemplo, há dez anos? Mané – Está muito devagar, mas está acontecendo. Porém, acredito que, para andar mais rapidamente, a economia solidária necessita de um investimento muito grande na questão do conhecimento científico e tecnológico. Se isso não acontece, o processo acontece, mas não

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cresce. Precisamos substituir essa produção em grande escala que só serve para exportação. Há, também, a questão do veneno e dos agrotóxicos. É preciso uma produção orgânica, que respeite a natureza e, sobretudo, a vida de cada ser que gera aquela produção. Não adianta ter um pinto que, em cinco dias, vira um galo gigante e não presta. Um boi que antes não dava nem 500 quilos, hoje pesa mais de mil! Gera riquezas, mas não gera produtos de qualidade. Essa produção excessivamente comercial só tem gerado fome, desigualdade. Nossos rios não têm mais peixes, por conta da poluição, e nossas florestas já não estão, nem de longe, como eram antes. O Maranhão era um estado pobre, mas não de famintos. Uma coisa é ser pobre, e outra é ser faminto. Com isso, aumentou a violência. Qual é a alternativa? Ser um marginal para tomar de quem tem? O Bolsa Família, que devia ser uma coisa boa, pelo menos em nosso estado, não está sendo.

DV – Por quê? Mané – Porque o processo de capacitação, conscientização para que as pessoas gerem novos caminhos, criem autonomia, não acontece. Não existe um acompanhamento sistemático e o que acaba acontecendo é que quanto mais bolsas, mas famintos aparecem.

DV – O Bolsa Família deveria ter, então, uma segunda etapa que consistisse na implantação de escolas técnicas, cursos etc. É isso isso que está faltando? Mané – Não só isso, mas o entendimento de que é necessário haver uma formação mais consciente e mais solidária, tanto na educação básica quanto nas universidades. Se a escola não assume isso, uma nova cultura não surge. Para surgir uma nova cultura, é preciso que haja análise, estudos, a visualização do que acontece. Hoje não vemos nada disso na televisão. Como ela é um dos principais meios de comunicação, é preciso que também esteja na televisão. É preciso haver acompanhamento dos instrumentos, e não é isso que acontece. Sem isso, fica muito difícil. Enquanto eu falo com 20, eles falam com 1 milhão, 3 milhões, como eu vou vencer? Desde 1980, eu estou no Maranhão junto com o movimento, para conseguir terra para trabalhar. Nos mobilizamos e fizemos centenas de acampamentos gigantes, com até 15 mil famílias. Conseguimos até que Fernando Henrique Cardoso começou a governar... e como os trabalhadores não têm essa cultura coletiva de controle da produção,


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de industrializar e colocar no mercado, ficaram pobres, desgraçados! Nunca conseguimos colocar a importância do corporativismo, da vida coletiva. Mas centenas, milhares de trabalhadores acham melhor vender a terra e montar um boteco para vender besteira. Vendem a terra depois de tanta luta, terra que custou até vidas. Passa um tempo, vendem e querem de novo. Não melhorou a vida, inventam mentiras, acham que vão ganhar dinheiro com cachaça. Essa é a cultura que está na cabeça do pessoal. Quem não rouba e não herda, segundo meus avós diziam, fica na merda. Essa é a cultura que predomina na sociedade.

DV – Então a educação é o principal elemento que falta? Mané – Não vai haver mudanças significativas com qualidade e quantidade se nós, e o governo, não investirmos na escola. Temos os meios de comunicação de massa que o povo escuta e assiste a toda hora e nos quais só se fala besteira o tempo todo. Só se fala de roubo, sacanagens. Veja o exemplo das novelas, todo mundo quer ver novelas, mas existe algo de educativo nelas? Nós podemos vencer, desde que o governo federal e os governos estaduais e municipais se preocupem com essa questão muito mais do que estão preocupados hoje.

DV – Você acredita que nenhum governo teria destaque nesse sentido, focado essa questão

com um pouco mais de respeito? Mané – Dizer que não tem, não é verdade. Eu acredito que o governo federal que temos hoje, o governo Lula, dos que eu tenho conhecimento, é o governo mais próximo da sociedade. Porém, falta muita coisa para darmos um salto da quantidade para a qualidade.

DV – Você gostaria de ressaltar algum aspecto no qual o governo Lula deveria estar investindo, e não está? Mané – Aí temos umas questões graves. Quem determina a cultura, e até a política, de um modo geral, é quem tem o controle hegemônico da riqueza principal do país. Para trazer investimentos com mais força, com mais garra, teremos de enfrentar os ricões que estão por aí, no Brasil e no mundo. Esse é o credo de um povo. Aí, se esse povo não coloca isso como alvo de ataque, fica difícil de resolver. Isso pode acontecer desde que se trace um caminho prolongado e se busque sempre investir na organização dos trabalhadores coletivos e intensificar a questão cultural, acompanhando o plano de produção, industrialização e distribuição. O governo Lula investiu, mas foi pouco. No Maranhão, por exemplo, tem uma família chamada Sarney que, durante a ditadura, esteve dentro. Esse pessoal é muito rico. No Maranhão, o povo é pobre. Menos eles. É uma oligarquia poderosa. Nós [o PT, partido do qual Mané é um dos fundadores] disputamos três vezes o

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governo federal, ganhamos na quarta, e o José Sarney estava dentro, apoiando, lutando, defendendo. Ele é o nosso maior intermediário entre o governo federal e o estado da oligarquia Sarney. Eles têm apoio, poder. Nós, trabalhadores, de todas as cores, amarelo, branco, vermelho, negro, como queiram chamar, perdemos no Maranhão nosso alvo de ataque.

DV – Você já se candidatou alguma vez? Mané – Fui candidato três vezes no Brasil e nunca reivindiquei ser candidato a nada. Acho que foi por isso que não ganhei. Mas toda vez que tínhamos uma candidatura que não era para ganhar, o pessoal me indicava. Assim, fui candidato ao governo, a senador e a deputado federal. Eu entendo que o poder de alguém que chega lá sozinho não pode ser o mesmo de alguém que chega com o apoio de todo mundo, como o Lula. Mas parece que

ele chegou lá sozinho. Não há uma discussão coletiva para decidir quem tem capacidade para auxiliar, os companheiros não são educados a entender que o mandato é dele para o povo. Existe um coletivo por trás da pessoa eleita.

DV – Essa mudança passa por uma reforma política no Brasil? O que seria uma reforma eficaz? Mané – Não sei se precisa de uma reforma. Porque a reforma política imposta não vai levar a lugar nenhum. As pessoas têm de entender que, do jeito que está, é impossível continuar. Por isso, muitas revoluções feitas no mundo todo não deram certo. O que era visto como principal instrumento de construção de uma nação, a ditadura, não era nada construtiva. As pessoas precisam reagir. Se a consciência for transformada em cultura, em prática de trabalho e de vida, é possível melhorar. Mas para isso acontecer, tem de haver um grande investimento. Volto a falar, o governo precisa divulgar as coisas públicas, tornar o governo realmente público, aberto ao coletivo.

DV – Você aponta a necessidade de rede coletiva, atuação em conjunto. O governo Lula, desde que começou, busca uma aproximação com os movimentos sociais, pelo menos na teoria. Quais são os pontos negativos ou positivos dessa aproximação? Mané – Não vejo pontos negativos. Até hoje, o melhor governo que já vi no Brasil é o do Lula. Digo sem medo de errar. Mas há limites para dizer que vai ajudar na mudança. Todos eles têm esses limites, ninguém quer se deparar com esse enfrentamento mais forte.

DV – Dizem que, de alguma forma, a sociedade civil acabou cooptada e se enfraqueceu, não fez a pressão necessária. Você concorda com isso? Mané – Concordo, assino embaixo. Nós lutamos vários anos para criar uma central única dos trabalhadores neste país. Hoje, nós temos cinco ou seis. Cada uma criticando a outra. Eu pergunto o seguinte: nós temos um estado que está dividido em municípios, você já viu um município com dois prefeitos, um estado com dois governadores e um país com dois presidentes da República ao mesmo tempo? E nós temos três, quatro centrais de trabalhadores. Enfraquece-se o movimento. O inimigo número um das nossas centrais é justamente essa divisão. E isso se reproduz em todo o país. Se você observar o PT, verá que a guerra está lá

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dentro. Como vai dar certo se os movimentos brigam entre si?

DV – Então, você acha que parte dos problemas está dentro dos próprios movimentos? Mané – Nós mesmos, trabalhadores e trabalhadoras, não nos libertamos daquilo que havíamos adquirido ao longo da nossa história, influência ideológica e cultural. Nós estamos estruturados neste sistema capitalista. As pessoas podem até pensar que estou falando besteira, mas veja bem: houve um tempo em que só se falava de mensalão, não é? Mensalão era algo fora de moda? Não era. Companheiros nossos aderiram a isso. E não aconteceu nada! Ninguém falou nada! Precisamos de instrumentos, novas práticas, uma nova vida. Precisamos admitir que alguém faça o que o sistema faz. Qual a minha moral política, cultural e ideológica para enfrentar o que prejudica a sociedade? Essas coisas não são tratadas e, quando são, as pessoas querem mudança. Mas como? Se nós mesmos lidamos com elas, passamos a mão por cima? Não dá, e é isso que dificulta qualquer ação fraterna, solidária e democrática de qualquer governo que queira mudar alguma coisa, pois, na sua base, tem gente que diz que não faz, mas faz. Podemos chamar na teoria de economia solidária, mas a nossa prática é balela, papo furado. Quando temos uma coisa no sangue, nem que morramos, vamos até o fim. Como se muda isso sozinho? Você acha que Jesus Cristo foi morto porque ele queria o céu para todos após sua morte? Não. Ele queria aqui o céu para que vivêssemos bem na terra. Céu não é condição de quem não peca depois da morte. Aqui está o céu e o inferno. Falta generalizar muito mais esse sentimento de libertação e é necessário assumirmos. Mas não basta culparmos alguém. O problema está em como, coletivamente, nos organizamos, trabalhamos para colocar freio nessas coisas que são terríveis.

DV – Você acha que a produção do etanol vai prejudicar ou beneficiar o trabalhador rural? Mané – Como já disse, é necessário todo um trabalho de capacitação, reeducação e implantação da economia solidária. Temos visto a crise do capitalismo no mundo inteiro e, com certeza, os primeiros investimentos a serem cortados são os destinados ao social, eles são, então, colocados no etanol, no petróleo etc. Faríamos uma feira em Imperatriz, uma feira de economia solidária, e com a crise, sem nenhuma conversa, o apoio financeiro

foi cortado. Foi nos dada a desculpa de que a conjuntura estava exigindo essa posição. Se não conseguirmos andar com os nossos pés, não teremos sustentabilidade. Ela passa pela união consciente. Afinal de contas, qual sociedade queremos construir? Uma sociedade capitalista, socialista, misturada? Como é isso? Podem construir o que quiserem e, com o passar do tempo, volta tudo.

DV – Você estava falando da crise. O que significa para você a eleição de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos?

Participaram desta entrevista Ana Bittencourt Diego Santos Flávia Mattar Jamile Chequer

Realização Decupagem e fotos Diego Santos Edição Jamile Chequer Produção Geni Macedo

Mané – Eu vejo a situação do Barack Obama muito parecida com a que vivemos aqui com o Lula. Ele pode melhorar muitas coisas, mas uma transformação, como a que eu sonho há mais de 50 anos, não vai acontecer a curto prazo. O grande problema é ter a paciência de construir e andar junto. É fundamental ter esse amor solidário em que o saber não é monopólio, mas coletivo. Isso custa para acontecer.

DV – Você acredita que a reforma agrária vai acontecer? Mané – Eu acredito que saia. E tenho certeza que é importante. Mas o que a reforma agrária traz de benefícios à sociedade presente nos centros urbanos? A terra sempre foi vista como coisa de pobres. Até quem está no campo quer sair de lá. Precisamos mudar essa cultura. A questão da reforma agrária não é só terra e pobreza. As pessoas precisam entender que terra nunca foi mercadoria. O sol não é, o ar não é. Se bem que, até hoje, o sol só não virou mercadoria ainda porque não conseguiram prendê-lo. Tudo vira mercadoria nessa sociedade do dinheiro. Essa mudança de cultura é necessária. O debate da reforma agrária começou no governo João Goulart, quando nós começamos a criar coragem para ocupar as terras. Foi em uma ocupação em 1968, quando eu perdi minha perna, 13 de julho de 1968, ano em que completei 33 anos. Foi quando conheci o primeiro assentamento do Maranhão. A revolta foi surgindo em todas as esferas e foram surgindo novas ocupações que só foram reconhecidas depois da ditadura. No dia em que tivermos uma força invencível para tomar posse desses instrumentos, que não estão nas nossas mãos, conseguiremos ver a reforma agrária acontecendo.

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intern internacional Jamal Juma*

A Palestina, suas terras, lares, hospitais, escolas e vidas humanas foram testemunha de mais de seis décadas de destruição. Da completa destruição de 418 comunidades palestinas, em 1948, ao último ataque violento contra Gaza, que deixou quase 25 mil estruturas em ruínas, a infraestrutura vital palestina tem estado sob constante ataque. O custo humano em pessoas mortas, mutiladas, traumatizadas e aprisionadas é incalculável. A destruição e o morticínio causados pelas ondas de ataques israelenses ocorrem desde 1947, quando Israel foi criado pela Resolução 181 da Organização das Nações Unidas (ONU). Os poderes imperiais, que naquela época eram maioria na ONU, decidiram ignorar a autodeterminação do povo palestino e – contra a vontade dos representantes palestinos e árabes (e até mesmo da comunidade judaica que vivia na Palestina) – alocaram terras palestinas ao Estado judaico. Desde então, Israel se comporta como um “baluarte da civilização contra a barbárie”, como foi definido por Theodor Herzl, um dos [Traduzido do inglês por Jones de Freitas]

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fundadores do sionismo. Por mais de 60 anos, Israel desaloja o povo palestino de suas terras, destrói seus meios


acional de subsistência, mantendo-o sob ocupação e um regime institucional de discriminação racial. Ironicamente, Israel tem violado todas as resoluções da ONU em relação à Palestina e a pergunta é a seguinte: o que a comunidade internacional está fazendo diante da continuação dos crimes de guerra e das violações dos direitos humanos cometidos pelo Estado que ela criou?

Chantagens À comunidade internacional foi atribuído um papel e dada uma direção quando, em 1949, foi criada a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA, na sigla em inglês), para contar e apoiar financeiramente a maior parte dos mais de 6 milhões de refugiados palestinos espalhados no mundo árabe e mais além. Hoje em dia, como em uma reação reflexa, toda vez que Israel comete um crime grave contra os palestinos ou árabes, a comunidade internacional convoca uma conferência de doadores, avalia os danos e promete recursos para a reconstrução. A última conferência, realizada no Egito, após a carnificina em Gaza, pareceu especialmente generosa, com promessas de recursos para a minúscula Faixa de Gaza que ultrapassaram US$ 4 bilhões. No entanto, um exame mais detido revela, na Palestina, um exemplo em miniatura da hipocrisia da política internacional. O Hamas, que efetivamente governa a Faixa de Gaza, não foi convidado, as promessas de recursos foram feitas a Mahmoud Abbas e Salam Fayyad. Nenhum dos dois tem sequer controle nominal sobre a Faixa de Gaza. Do compromisso de US$ 900 milhões assumido pelos Estados Unidos, a maior parte não está nem alocado a Gaza: US$ 200 milhões serão destinados para cobrir déficits da administração de Mahmoud Abbas na Cisjordânia e US$ 400 milhões para projetos do Banco Mundial (muitos deles beneficiam Israel). Embora US$ 300 milhões estejam destinados a Gaza, seu principal objetivo é solapar o Hamas e estimular as lutas internas na Faixa de Gaza. Essa ajuda pode nunca chegar ao seu destino, pois Israel exigiu listas detalhadas de quaisquer materiais ou alimentos a serem importados para ajuda humanitária e reconstrução, e está determinado a manter um estrito controle dessa ajuda, garantindo que sirva a seus próprios interesses. Em uma de suas últimas declarações, a ex-secretária de Estado do governo estadunidesnse, Condoleezza Rice,

apoiou a posição israelense, condicionando a ajuda a uma declaração de princípios do próximo governo palestino que satisfizesse as exigências dos Estados Unidos. A secretária de Estado atual, Hillary Clinton, prontamente assumiu as mesmas posições na conferência do Egito. Para aqueles no Sul global que tiveram experiência com a “ajuda” do Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) e doadores internacionais, não é nenhuma surpresa essa chantagem financeira e institucional. O que torna singular o caso palestino é que, pela primeira vez, um movimento de libertação, sem controle efetivo sobre nenhuma parte de seu território, caiu nas garras das instituições financeiras internacionais, sob o disfarce da retórica da “paz”. O processo de “paz” de Oslo teve início em 1993, com a criação da Autoridade Nacional Palestina (ANP), que recebeu imediatamente recursos generosos do Banco Mundial. Embora o reconhecimento internacional da ANP e o retorno de muitos líderes da Organização para Libertação da Palestina (OLP) à terra natal parecessem um grande sucesso e um passo na direção da criação do Estado palestino, foi também uma medida necessária para um controle eficaz das finanças e decisões do movimento de libertação palestino. Serviu para transferir para os próprios palestinos muitos custos da ocupação. Assim, com a criação da ANP, a responsabilidade de prover a infraestrutura, atenção à saúde, educação e emprego foi transferida do poder ocupante para os palestinos. Porém, os palestinos ainda não tinham nenhum controle sobre suas fronteiras (e, portanto, sobre o comércio mais básico), água, terras e energia. Após 1993, aumentaram os confiscos de terras e a construção de assentamentos israelenses. Jerusalém – a capital da Palestina e seu principal centro cultural e econômico – ficou cada vez mais isolada. A Faixa de Gaza foi cercada e o movimento de palestinos entre a Cisjordânia e Gaza ficou mais difícil. O muro do apartheid, concebido pela primeira vez em 1996, começou a ser erigido em 2002, e agora isola completamente áreas residenciais da Cisjordânia, terras agrícolas e recursos hídricos, além de separar cada área das outras. O muro, os assentamentos e as zonas militares impedem de forma eficaz o acesso de quase 50% dos palestinos à Cisjordânia, reduzindo os distritos a minúsculos guetos. Muitas pessoas são forçadas a abandonar suas terras. Com o cerco, as condições em Gaza

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são terríveis, com grandes áreas sem eletricidade, saneamento e grande parte de sua infraestrutura vital – mesmo se comparadas com a situação nos bantustões1 da Cisjordânia. Nessas condições, a atividade econômica, sem falar no desenvolvimento, é quase impossível, e os palestinos mergulham cada vez mais na pobreza. Em Gaza, mais de 80% da população vive abaixo da linha de pobreza. Até o momento, as instituições financeiras internacionais e a miríade de agências de ajuda internacionais juntaram-se para ajudar a ANP a cuidar das necessidades do povo nas áreas ocupadas, como agente da ocupação israelense. No entanto, nem as agências doadoras consideram isso uma situação permanente e seus esforços são cada vez mais focados em encontrar uma forma de tornar os guetos economicamente sustentáveis.

Plano para quem?

1 Cada um dos pseudoestados de base tribal criados pelo regime do apartheid da antiga União Sul-Africana (atual África do Sul) para manter os negros fora dos bairros e terras dos brancos, mas suficientemente perto delas para servirem de mão-de-obra barata.

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A última rodada de iniciativas de “paz”, iniciada com a conferência de Annapolis, Estados Unidos, em novembro de 2007, ocorreu depois de meses de um completo congelamento de todos os fundos, após os palestinos terem eleito o governo do Hamas – um partido que não se encaixava no marco que a comunidade internacional havia criado para a ANP. Depois que o Hamas foi substituído, ao menos na Cisjordânia, por Salam Fayyad, um velho amigo dos estadunidenses, que tinha feito carreira no Banco Mundial e no FMI, a situação parecia normalizada. A conferência de Annapolis foi seguida pela de Paris, muito menos discutida, porém, bem mais importante, realizada em dezembro daquele mesmo ano, na qual foram assumidos compromissos de ajuda em quantias recordes ao governo de Salam Fayyad. A conferência de Paris aprovou e financiou o Plano de Reforma e Desenvolvimento da Palestina (PRDP, na sigla em inglês). Exceto pelo nome, o plano praticamente não tem nada de palestino. Foi escrito pelo Departamento do Reino Unido para o Desenvolvimento Internacional (DFID, na sigla em inglês) e só muito recentemente foi disponibilizada uma versão do plano em árabe. Os partidos políticos palestinos, o Conselho Legislativo Palestino e a sociedade civil não estiveram envolvidos em nenhuma discussão sobre esse plano estratégico de “reforma” econômica e institucional para o período 2008-2010. O PRDP impõe um marco à ação da ANP em todos os aspectos. O plano está dividido em quatro setores estratégicos: segurança e

governança, desenvolvimento econômico, desenvolvimento social e assistência humanitária e infraestrutura. Cada um dos setores estratégicos tem seu próprio grupo de trabalho, copresidido por um ministério palestino e uma instituição internacional. De acordo com a ANP, os ministérios “estão aprendendo fazendo o trabalho” com seus copresidentes: o Banco Mundial, a Comissão Europeia, o Escritório do Coordenador Especial da ONU para o Processo de Paz no Oriente Médio e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid, na sigla em inglês). Esses grupos são responsáveis pela implementação e pelo monitoramento, assim como pelas despesas orçamentárias, criando um verdadeiro governo paralelo. Ao mesmo tempo, os cargos ministeriais da ANP na Cisjordânia foram em grande parte ocupados por “tecnocratas” não eleitos, os quais não prestam conta sequer a um partido. O Fatah foi, em grande medida, alijado do processo decisório e o próprio movimento está se desintegrando em várias facções. Somente Mahmoud Abbas ainda representa o movimento, dando uma enganosa legitimidade palestina à atual ANP. No entanto, desde o início de janeiro, até mesmo seu mandato como presidente da ANP expirou. Assim, ao governo paralelo anteriormente mencionado corresponde um governo não eleito e sem representatividade, eliminando qualquer possibilidade de democracia, prestação de contas e processo decisório independente. A ANP da Cisjordânia não representa nenhuma expressão política palestina que possa questionar o PRDP. O primeiro item da agenda do PRDP é a “reforma da segurança”. Este é, de longe, o maior item do orçamento e tem como objetivo a criação de quatro forças de segurança bem treinadas. O general estadunidense, Keith Dayton, está encarregado da supervisão desse processo. Ele fez parte do Grupo de Pesquisa Iraquiano que, depois da guerra, recebeu a missão de preparar um relatório provando a existência das armas de destruição em massa no Iraque. A meta da reforma da segurança é evitar a participação da liderança militar palestina, ainda imbuida de valores nacionais, e gradualmente eliminá-la. Assim, os novos recrutas são treinados pela Agência Central de Inteligência estadunidense (CIA, na sigla em inglês), na Jordânia, onde recebem uma orientação bem diferente. Como disse o ministro do Interior palestino, ao se dirigir aos novos recrutas: “Vocês não estão aqui para confrontar Israel, o conflito com Israel até agora não levou a nada. Vocês


Arquivo StoptheWall

Palestina, Democracia a serviço de quem?

A Escola Internacional Americana em Gaza é um exemplo da ampla destruição da infraestrutura local. Até hoje, dificilmente é permitido entrar em Gaza materiais para reconstrução

precisam mostrar a Israel que podem fazer o trabalho!” Este trabalho, como vimos durante o ataque à Gaza, é reprimir a população palestina no caso de qualquer levante. Os palestinos que saíram às ruas de Ramalá para protestar contra a carnificina em Gaza foram impedidos pela polícia palestina de chegar perto das forças de ocupação estacionadas em torno da cidade. O setor de proteção social, que não ultrapassa dois décimos do total das despesas anuais com segurança, está claramente carente de mais recursos, comprometendo até mesmo o que já existia em termos de rede de proteção social. No cenário mais otimista, o PRDP prestará uma eficaz assistência social a 60 mil famílias na Cisjordânia e Faixa de Gaza. Esse número soa ridículo, pois, mais de 80% dos 1,8 milhão de palestinos em Gaza vivem abaixo da linha de pobreza, assim como cerca de 20% dos palestinos da Cisjordânia. Apesar disso, uma das primeiras medidas de Salam Fayyad foi forçar os campos de refugiados a voltarem a pagar contas de serviços públicos (como luz e água), o que havia sido suspenso no início dessa intifada,2 com o acordo tácito do governo da ANP, para que as pessoas pudessem ter condições dignas de subsistência. Para diminuir os empréstimos líquidos conce-

didos pela empresa de eletricidade, que não consegue pagar a conta dos fornecedores de energia israelenses, os campos de refugiados são cada vez mais equipados com medidores pré-pagos, resultando em uma rotina de cortes de luz para muitos deles. No entanto, o efeito dos projetos econômicos e de infraestrutura será o mais duradouro, pois eles vão, efetivamente, “cimentar” a ocupação, o muro e os assentamentos. A espinha dorsal dos planos econômicos é a construção de três distritos industriais, além de uma zona de agronegócios e indústria turística, na área de Belém.

Cerco, exploração e dependência O projeto turístico na área de Belém simplesmente ignora o fato de que o obstáculo real ao turismo naquela cidade é Israel manter o controle total de todas as fronteiras, do muro e dos postos de controle que circundam completamente a cidade. No lugar de exigir o fim da ocupação de Jerusalém e Belém, a equipe do enviado especial para o Oriente Médio do Quarteto,3 Tony Blair, propõe candidamente postos de controle “amigáveis para o turismo”, com faixas separadas para os turistas, evitando que

2 Insurreição popular palestina contra a ocupação da Faixa de Gaza e da Cisjordânia pelos israelenses.

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sofram, ou mesmo vejam, as condições humilhantes desses postos, onde aqueles palestinos que tiveram a sorte de conseguir permissões especiais para ir a Jerusalém são conduzidos como gado através de portões metálicos e revistas abusivas. Também ignora totalmente o fato de que é impossível reativar a base fundamental do turismo – o setor doméstico –, enquanto cada centro urbano importante estiver cercado no seu próprio gueto. Ao contrário, o projeto recomenda a promoção do turismo para “israelenses, jordanianos e árabes”, que terão melhor acesso àqueles locais do que os próprios palestinos. Ironicamente, no projeto afirma-se que o desenvolvimento da infraestrutura turística em Belém “ajudará a romper o isolamento dos palestinos que não podem viajar para o exterior e a expô-los a novas influências”. Assim, o fato de que a ocupação torna quase impossível viajar para fora da Palestina (como o faz com viagens no seu interior) seria aparentemente compensado por se dar aos estrangeiros um controle israelense mais suave do acesso a Belém. Porém, o mais importante é que o projeto vai aumentar a receita de turismo do poder ocupante, que ficará com a parte do leão dos lucros com os peregrinos e turistas que passarem por seus aeroportos, hotéis e restaurantes. A mesma dinâmica de maiores lucros para os israelenses, exploração dos palestinos e solidificação da ocupação das terras palestinas é a força motriz dos distritos industriais que estão surgindo ao longo do muro. Por exemplo, o Distrito Industrial de Jenin (JIE, na sigla em inglês) será construído nas terras da vila de Jalame, perto de Jenin, no norte da Cisjordânia. O projeto está em desenvolvimento desde 1998 e é parte integrante do PRDP. O governo alemão se comprometeu com US$ 10 milhões para o projeto. A ideia básica é atrair investidores com base no salário de subsistência dos palestinos que vão trabalhar no distrito. Mesmo no cenário mais otimista, com o máximo de empregos sendo criados no distrito de Jenin, os dados fornecidos pelos planejadores indicam que a

Provavelmente, os trabalhadores terão de passar pela aprovação das forças de segurança, isto é, terão de provar que ninguém de sua família esteve envolvido na resistência à

3 Estados Unidos, União Europeia, Rússia, ONU.

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renda per capita dos dependentes dos empregados do JIE será cerca de US$ 3,5 por dia, para trabalhadores qualificados, e US$ 2,9 por dia, para trabalhadores sem qualificação – um pouco acima da linha internacional de pobreza absoluta. Os proprietários palestinos das terras onde a zona industrial será construída eram anteriormente agricultores, que trabalhavam por conta própria. Agora, suas terras foram confiscadas duas vezes: primeiro, pela ANP para a construção do distrito industrial (1998) e, depois, pelas forças de ocupação para a construção do muro (2003). Esses e muitos outros agricultores cujas terras foram confiscadas formam uma reserva perfeita de trabalhadores empobrecidos e desempregados que podem ser persuadidos a aceitar condições de trabalho que, em outra situação, seriam inaceitáveis. Como o JIE está localizado diretamente em um posto de controle do muro, isolado por outros postos de controle de outros mercados da Cisjordânia, os empregos criados dependerão inteiramente do mercado israelense. Portanto, as indústrias desse distrito industrial vão depender da vontade da administração israelense para ter acesso aos mercados e o distrito pode ser isolado a qualquer momento, como aconteceu com a zona industrial no norte da Faixa de Gaza. Além disso, os termos do estabelecimento desse distrito comprometem a soberania palestina sobre essas terras. A parte norte do distrito industrial coincide com uma zona de segurança para o muro e as forças de ocupação não vão deixar de controlar essa área. Provavelmente, os trabalhadores terão de passar pela aprovação das forças de segurança, isto é, terão de provar que ninguém de sua família esteve envolvido na resistência à ocupação. O estudo de viabilidade do JIE aceita isso de forma implícita e, de fato, estimula a ANP a formalizar esse arranjo, ou seja, abrir mão da soberania sobre aquelas terras. Isso não tem só consequências políticas, como também econômicas. Nessa área, as leis trabalhistas não serão aplicáveis e essa proteção vai depender dos acordos especiais para o distrito industrial. Finalmente, um parque agroindustrial, que seria financiado principalmente pela Agência de Cooperação Internacional do Japão (Jica, na sigla em inglês), é o último dos projetos com o objetivo de transformar o povo palestino da Cisjordânia em trabalhadores empobrecidos e dependentes a serviço de Israel, do capital internacional e de uma pequena elite palestina.


Palestina, Democracia a serviço de quem?

A maioria dos agricultores do Vale do Jordão é de pequenos proprietários. Eles não conseguem desenvolver suas propriedades por falta de infraestrutura – uma consequência de 40 anos de ocupação. No lugar de deixar que esses agricultores desenvolvam seus próprios negócios, na visão da Jica, eles irão trabalhar em grandes complexos agroindustriais. Isso acarreta uma série de benefícios: garante que os agricultores serão forçados a abandonar suas terras e torna mais fácil a colonização israelense; gera lucros para Israel e empresas internacionais; e, finalmente, a inclusão planejada dos negócios nos assentamentos assegura que a colonização israelense se tornará um recurso permanente e essencial do Vale do Jordão e de sua economia.

Para além do óbvio Além de inúmeros pequenos ajustes, esses projetos econômicos visam assegurar a sustentabilidade e lucratividade dos guetos. Um estudo do Centro Peres mostra que uma receita de US$ 300 milhões originada por esse “desenvolvimento” será embolsada diretamente pelos israelenses, enquanto a comunidade internacional espera reduzir os gastos com a ajuda humanitária e buscar uma suposta solução da questão palestina. Além disso, será criada uma pequena elite de empresários e funcionários, ligados entre si e vinculados a Israel, que de fato vão lucrar com a ocupação. Eles assumirão a tarefa de controlar a maioria empobrecida da população palestina. Naturalmente, todos esses planos e essas políticas contradizem frontalmente a legislação internacional, que estipula a obrigação de o poder ocupante prover serviços sociais e emprego para a população das áreas ocupadas. A exploração, colonização e inclusão de assentamentos em projetos econômicos são atos ilegais, assim como o confisco de terras e os deslocamentos forçados da população. Porém, isso é quase óbvio demais para ser mencionado. A distância entre os conceitos de “paz” e “prosperidade” e as reivindicações palestinas por justiça, reparações e libertação fica bem clara na última mudança no discurso diplomático de Israel. O atual governo israelense demanda uma “paz econômica”, no lugar do Mapa do Caminho. Em outras palavras, a meta é deixar de lado as negociações vazias e se concentrar em completar o sistema econômico e institucional de coerção e exploração. O único obstáculo é Gaza e a persis-

tência do regime do Hamas na Faixa de Gaza. Nem a continuação do cerco nem os massacres criminosos durante o ataque militar à Gaza no início deste ano destruíram o Hamas ou enquadraram a Faixa de Gaza no marco da “paz econômica” que tentam impor Israel e a comunidade internacional. Grande parte da atual diplomacia e das controvérsias têm o objetivo de tirar vantagem dos recursos da reconstrução para realizar aquilo que os militares israelenses não conseguiram fazer. Até o momento, os palestinos estão firmes em suas posições, tanto em Gaza como na Cisjordânia. No entanto, eles lutam não somente contra Israel, como também contra seus criadores e apoiadores que queriam ver o “baluarte da civilização contra a barbárie” cravado no coração do mundo árabe. É vital perguntar o que a comunidade internacional e as pessoas de todo o mundo podem fazer para apoiar a luta palestina. A oferta de apoio financeiro e moral é claramente insuficiente e corre o risco de ser até contraproducente. No lugar disso, o que a sociedade civil e os partidos políticos palestinos defendem é o corte do financiamento vital que permite a ocupação. Os planos internacionais e israelenses vão funcionar enquanto os doadores internacionais pagarem a conta. Israel pode continuar matando, expulsando os palestinos e colonizando suas terras enquanto tiver o capital necessário para isso. Os movimentos e governos da América do Sul têm mostrado força suficiente para se opor às pressões imperiais e aos ditames do livre comércio e das instituições financeiras internacionais. Em toda a América do Sul, das lutas indígenas no México à campanha continental contra a Alca (Área de Livre Comércio das Américas), o povo lutou contra as zonas de livre comércio que resultavam na sua exploração. Muitos desses movimentos assumiram também a causa palestina e os governos sul-americanos têm a obrigação moral de não apoiar Israel e recusar a assinatura do Acordo de Livre Comércio entre o Mercosul e Israel, manchado de sangue palestino. Nenhuma promessa de apoio à Palestina seria capaz de encobrir essa traição fundamental à nossa luta.

* Jamal Juma Coordenador da Campanha Popular Palestina contra o Muro do Apartheid <www. stopthewall.org>

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d e b a t e A discussão sobre o aborto é uma das mais acaloradas em nossa sociedade. Nela, estão imbricadas questões científicas, religiosas e de direitos. A lei brasileira permite o aborto apenas em duas situações: em caso de risco de morte da mãe ou em caso de estupro. Mesmo assim, o caso divulgado

Direitos sexuais e da menina pernambucana de 9 anos – que se enquadrava nos dois aspectos previstos em lei – foi alvo de muita polêmica que envolveu o pedido de excomunhão pública da equipe médica pelo arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho. Toda sociedade democrática ganha com debates aprofundados, principalmente sobre questões que lhe são fundamentais. É por isso que a Democracia Viva promove o diálogo de dois pontos de vistas distintos.

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Este é o meu corpo e eu não estou

1 Em memória de MarcellaAlthaus-Reid: teóloga, amiga e indecente.

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Venha comigo! Este é o meu corpo e eu posso ser uma adolescente de 16 anos, uma senhora de 34 ou uma menina de 9 anos. Corpo de mulher. Veja meu rosto, meus braços e pernas. Esta é minha mão, meus pés. Meu umbigo, meus olhos. Meu cotovelo, minha boca... meu sexo. Meu fêmeo corpo, de fêmea aprendizagem, tem entradas e saídas. Poros. Brechas. Reintrâncias. Cavidades. Buracos. Vazios. Eu toda um mapa, de sinais e de acessos. Recebo o mundo por meus poros. Meus buracos mais queridos: os que me mantêm viva. Respiro e troco com o mundo o ar que me dá vida. Quase nunca eu escolho o que respiro. Aceito os ares e suas fumaças pelas narinas. Escolho, se posso, um cheiro, um sabonete, um perfume. Recuso os cheiros ruins tapando minhas narinas. Meu nariz é meu. Como: coloco o mundo em pequenos pedaços na boca e mastigo. Bebo, sorvo, engulo: líquidos de água, remédio ou sopa. Nem sempre escolho, mas minha língua antecipa gostos prazerosos e evita o gosto ruim. Respeito dietas, aprendo receitas e como bobagem. A minha boca e sua fome. Se eu tenho 9 anos, aprendo cheiros e sabores à duras penas. Crescer menina é difícil. Me dizem o que cheirar e o que comer e disciplinam meus poros. Aceito a disciplina porque vem misturada com amor e obrigação. E sangro: tão cedo meu corpo devolve pro mundo minha sangração. Eu nem aprendi a cartografia d´eu menina e já sou mulher. Se eu tenho 16, queria muito ser dona do meu nariz, minha boca. Ainda não e agora sim me acompanham pelo espelho e eu como e

cheiro o que outras como eu comem e cheiram. Não quero ficar sozinha na frente do mundo. Se eu for amada, amanso meus poros e buracos e avanço sem medo pelo mundo. Mas dói. Se eu tenho 34 anos, o mundo já começa a escavar em mim seus rigores do tempo. Ainda sou tão jovem. Já sei o que quero na minha boca, no meu nariz. Conheço meus buracos, suas mazelas e prazeres. Nem tudo que eu ponho na boca é saudável: entre a escolha e o hábito, muitas vezes é o mundo que me engole. Ser adulta então é assim! Mas se eu tenho 9, 16 ou 34 e sou mulher, o mundo me verá as partes mais que todas as outras, as pudendas pudicas partes. O meu nariz... pouco disciplinado será! À minha boca... pouca atenção será dada não adiantando que se saiba que “não é o que sai... mas o que entra!”. Mas esta boca debaixo com seu pequenos-grandes lábios será o marco zero de minha existência. Me ensinarão nomes não usados, ocultarei nomes que aprendi na boca dos moleques e nas portas dos banheiros para dizer do meu vão das pernas, meu sexo, genitália, periquita, xoxota (e até mesmo quando eu tiver 50 e escrever assim serei censurada por mim mesma, por meus esparsos leitores e alguma hierarquia sisuda). Me ensinaram a sentar de pernas fechadas. Os joelhos interiores. As dobradiças da moral, da vergonha na cara. Sentada: as pernas fechadas. O aprendizado repetido por gerações de mulheres: o vão das pernas evitado. O vão das pernas e sua cartografia. No espaço público, não. Em casa, sim. Na praia, sim. Na festa, não.


d e b a t e No carnaval, sim. No jantar, não. Na escola, não. No passeio, sim. Coloquialidades e formalidades de ter o vão das pernas e ser mulher. O esforço todo colocado nos joelhos com o aprendizado dos sim! e dos não! O joelho como inteligência coletiva depositada na rótula e sua capacidade de flexão. Transitar pelas posições permitidas e pelos vórtices do movimento abusivo acolhendo o que séculos de cultura e biologia desenvolveram para os joelhos femininos: obediência, reclusão, graciosidade. Me ensinaram a esperar que as promessas dos vídeos e das canções se cumpram e um homem me destranque as pernas. Abridor de latas a começar pelos joelhos. Trava civilizatória. Bambolê imprestável. Dobrada de desejo e confusão, o macho destrava meus joelhos como se abrisse uma porta, uma lata de cerveja, como se meus joelhos não estivessem ali e fossem somente um empecilho a ser vencido. Meu nariz não é santo, nem minha boca. Buracos ordinários sem teologia e sem rituais. Mas o vão das minhas pernas: valei-me! quantos cuidados e ordenações! interditos e danações! Tão pagãos meus pelos, tão perverso o meu sexo que ao longo dos séculos recebeu dos senhores teólogos tanta atenção. Nunca nas sistemáticas teologias. Minhas faltas anatômicas – eles dizem – me desautorizam à plena participação no sacerdócio. Minhas profundidades e vazios uterinos me prenderão à natureza e à maternidade. Minhas antepassadas serão culpadas de originais pecados e todas reunidas na ancestralidade de Eva seremos minorizadas e encurraladas entre a virtude e o vício... e a mãe-virgem do Salvador sobrevoará sobre nossas cabeças como modelo irrepetível, elogio da castidade e da funcionalidade maternal. Sobre nós – de 9, 16 ou 34 anos... e mesmo nos avançados 50 – falarão os padres e pastores, dirão os bispos e arcebispos as entradas e saídas do meu vão das pernas. Tanto sexo, sexo ruim... nenhum sexo: para os senhores teólogos tanto faz! Já sabem no meu lugar e melhor que eu o certo e o errado, o bem e o mal. Imobilizam minha capacidade de conhecer meu corpo e percorrê-lo. Querem impedir que eu mesma analise e interprete as mazelas sociais que subordinam minha femeza, desconhecem a miséria erótica e efetiva dos meus dias. Não entram na minha casa, não conhecem as vulneráveis e violentas relações familiares com que convivo. Fingem que não sabem que não tenho acesso à saúde reprodutiva ou ao planejamento familiar consciente e responsável. Ignoram o

massacre do amor romântico, do mito da beleza, da febre de consumo e do mito do amor materno que me espreitam no mercado, nas relações pessoais, nas experiências sexuais e afetivas. Não identificam minhas matrizes de classe, gênero e etnia: qualquer mulher é toda mulher. Reduzem a concreticidade plural do feminino na cidadania de segunda classe que mantém os privilégios de patriarcais poderes. Não sabem meu cheiro quando desejo, não conhecem meus arrepios e nem imaginam o que eu sussurro quando faço sexo e é bom, o que eu xingo quando sou estuprada e o que imploro quando não quero sexo algum. Desfilam suas teologias como exame rápido de farmácia que declara minha gravidez: absoluta! imutável! inquestionável! Não me deixam em paz. Olham pro mundo e cravam seus argumentos morais no vão das minhas pernas. Fazem lobby, obstruem políticas, aterrorizam serviços de saúde e de planejamento familiar. Enfiam suas teologias como membro viril na carne da democracia e estupram processos de discussão, acordos internacionais e projetos comunitários que mulheres de 9, 16, 34 e 50 precisam e exigem como expressão de direitos humanos e dignidade. Se tenho 9, 16 ou 34 e sou parte da minoria social com privilégios, as excomunhões e os lobbies não me alcançam. Protegida pelo dinheiro, tenho acesso a técnicas seguras e higiênicas de interrupção de gravidezes indesejadas. Mas se eu sou da maioria despossuída, as severidades de castas/castos clericais me empurram para clandestinas alternativas que me punem e me fazem mal. Assim...assim os senhores da religião continuam vendendo indulgências que mantêm as desigualdades sociais e a opressão das mulheres. Mas... venha comigo! Este é o meu corpo e eu não estou sozinha! Somos muitas irmanadas na análise de conjuntura do sexismo. Somos tantas tanto e quanto organizadas, corajosas e responsáveis. Movimentos

Minhas antepassadas serão culpadas de originais pecados e todas reunidas na ancestralidade de Eva seremos minorizadas e encurraladas entre a virtude e o vício...

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de mulheres, profissionais de saúde, agentes de saúde pública, gestores de políticas de assistência, juristas e até teólogas(os). Queremos garantir as conquistas já feitas e fazer valer os direitos da menina de 9 anos. Queremos espaços de discussão e de participação política que consolidem novos consensos sobre direitos sexuais e direitos reprodutivos. Queremos eróticas relações de amor para mulheres de 16, 34 ou 50 anos. “Nossos corpos nos pertencem” – continuaremos a repetir, não como elogio do individualismo, mas como construção coletiva do corpo social baseado em pactos legítimos que garantam os direitos das mulheres em todos os aspectos econômicos, sociais e culturais... religiosos também na expressão da liberdade de religião e Estado Laico. Orgasmizadas e organizadas, nós já não temos medo da ira e da severidade dos senhores donos da religião. Nas contradições, nas contrações e nas decisões oramos assim:

Salmo da Mulher que Aborta

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Deus, tu me sondas e me conheces mas, vê bem! sou uma mulher. Sabes quando desejo e quando choro? Sabes quando menstruo e tenho cólicas? Penetras de perto minhas carnes? Sabes quando finjo ou vou gozar? Examinas minhas tabelas e minhas contas? Sabes quando engravido e quero ser mãe? Sabes quando engravido e decido abortar? Deus, não é soberbo o meu coração nem altivo o meu olhar. Não ando atrás de grandes coisas, coisas grandes demais para mim. Só quero que me conheças, me penetres sem me esmagar, me examines sem me espreitar. Não vou calar meus desejos nem desistir de afirmar: colo e repouso encontrar em Ti como a mulher que aborta descansa nos braços de uma amiga.


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Aborto Eva Aparecida Rezende de Moraes

Doutora em Teologia pela PUC-Rio; pós-graduada em Matemática pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Além Paraíba (MG). Professora: de Matemática na Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro; de Ética Cristã na PUC-Rio; de Teologia no Centro Loyola de Fé e Cultura (RJ), no Instituto Diocesano de Teologia de Volta Redonda (RJ) e na Universidade Severino Sombra de Vassouras (RJ). <rem.eva@gmail.com>

Esse pequeno artigo trata do aborto induzido. Nos posicionamos contrariamente ao aborto; porém, tentamos abordar o assunto de forma a mais ampla possível, embora o espaço seja pouco. É um tema delicado, porque tangencia os limites da existência (nascimento e morte) e deve ser analisado sob diversas óticas. Vamos analisá-las.

Aspecto antropológico-social No Brasil, o aborto é um problema social, relacionado a diversos fatores conjunturais, como o nível econômico, a escolaridade, o acesso às informações e aos métodos contraceptivos, dentre outros. O que as estatísticas nem sempre revelam é o motivo que, geralmente, leva as mulheres a abortarem. Em alguns casos, o aborto é induzido para salvar a vida da mãe ou em caso de estupro; mas, geralmente, encontramos gravidezes que acontecem por falta de orientação. São vários os fatores que geram este despreparo; um deles é o próprio sistema econômico-social, que tem se revelado irresponsável na veiculação de produtos mercadológicos por meio de apelos à sexualidade, voltados ao mercado infanto-juvenil. Além disso, a ausência crescente dos pais e das mães na formação dos filhos e das filhas é visível em todos os estratos de nossa sociedade: a realidade econômica tem imposto um ritmo acelerado de trabalho, que dificulta a relação familiar e a formação das crianças e jovens. Muitas de nossas atuais famílias não se encaixam mais no modelo tradicional.1 As

transformações por que passou nossa sociedade (de agrícola a industrial, de industrial a tecnológica, de tecnológica a virtual) afetaram as famílias e a cultura. Muitos valores se transformaram em contravalores e vice-versa. A mudança social e cultural veio acrescida de uma outra no campo sexual; encontramos, por exemplo, uma precocidade nas relações sexuais de nossos jovens, nem sempre acompanhada de respectivas maturidade e responsabilidade. Além desses fatores, a mídia tem nos informado, frequentemente, inúmeras patologias no âmbito da sexualidade, como abusos sexuais (provocados, inclusive, por pessoas próximas ou familiares da vítima), estupro e pedofilia. Acresça-se a esses fatos a deficiência em muitos setores da educação formal, que até tem oferecido informação sexual, mas, geralmente, restrita à genitalidade, nem sempre acompanhada de educação para a sexualidade, a maternidade e a paternidade. Falando-se em paternidade, o homem, geralmente, não é envolvido no processo do abortamento: ao valorizar-se a vontade da mulher na decisão sobre o aborto, ignora-se ou remete-se para segundo plano sua vontade2 e, desse modo, desvaloriza-se a sua participação no processo procriativo, reforçando uma cultura que penaliza apenas a mulher pelas consequências do ato sexual.

Aspecto legal A Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma, em seu artigo terceiro, que “todo o indivíduo tem direito à vida”. Esse direito é

1 Cf., por exemplo, HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. O breve século XX. São Paulo, 1997. 2 Cf. http://www.o-caminho. org/artigos/10racoes_contra. doc

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prioritário, do qual emanam os demais. Na legislação brasileira, encontramos: art. 124: provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque: detenção de um a três anos; art. 125: provocar aborto sem o consentimento da gestante: reclusão de três a dez anos; art. 126: provocar aborto com o consentimento da gestante: reclusão de um a quatro anos. No art. 127, se a gestante sofre lesão corporal de natureza grave em conseqüência do aborto, as penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, e, se lhe sobrevém a morte, as penas são duplicadas. No art. 128, não se pune o médico que pratica o aborto se não há outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resulta de estupro. Portanto, no Brasil, fora esses três casos legalizados, o aborto é visto como ato voluntário de atentado à vida.

Algumas mulheres, quando se decidem pelo aborto, procuram clínicas clandestinas ou realizam métodos inseguros, causando, em alguns casos, a própria morte

3 Cf. http://www.o-caminho. org/artigos/10racoes_contra. doc

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Aspecto político da saúde pública

Algumas mulheres, quando se decidem pelo aborto, procuram clínicas clandestinas ou realizam métodos inseguros, causando, em alguns casos, a própria morte. Muitos argumentam que a discussão não é sobre o direito de a gestante abortar, mas sobre o direito de a gestante ter auxílio médico para abortar. O que devemos, porém, indagar é o aspecto político da legalização do aborto no Brasil: o que o Estado ou seus representantes buscam, ao propor a legalização total do aborto? Pode ser para responder a uma situação de saúde pública; mas pode ser, igualmente, uma forma objetiva de se eliminar o problema e, não, resolvê-lo; pode, inclusive, ser uma forma sutil de se implantar um controle de natalidade no país. Conhecemos a realidade caótica da saúde pública no Brasil: casos relativamente

simples como os endêmicos ou preventivos não conseguem sempre ser tratados de forma organizada e com qualidade. Em vários lugares, por exemplo, a mortalidade das gestantes ainda é alta por assistência precária ou incorreta. Os abortos induzidos não são simples e requerem preparo dos agentes de saúde e da própria gestante; além disso, a simples legalização do aborto não elimina as causas que levam a mulher a abortar. É dever do Estado executar políticas eficazes de educação e segurança pública, reprimindo a violência à criança e à mulher; executando políticas sociais que eduquem e informem adolescentes; desenvolvendo uma ampla assistência às gestantes e punindo os infratores. Estas medidas seriam de maior eficiência, pois estariam cuidando do germe do problema.

Aspecto religioso A maioria das religiões (como a cristã) é contrária ao aborto. O que elas prezam é a vida do feto, argumentando que ela, antes de ser uma escolha da mãe, é um dom de Deus. Assim, enquanto os que defendem a legalização do aborto defendem a vida da mãe, as religiões defendem a vida do feto. A tradição moral judaico-cristã sempre se preocupou com a defesa dos mais fracos e vulneráveis, como as crianças, os órfãos, os idosos e as viúvas.3 Concordamos com vários Documentos Pontifícios da Igreja Católica e com o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (1996), que afirmam que a vida humana possui dignidade essencial e merece respeito, qualquer que seja o seu estágio ou fase. Os cristãos defendem que Deus está envolvido no processo da concepção: “Pois tu formaste o meu interior, tu me teceste no seio de minha mãe. Graças te dou, visto que, por modo assombrosamente maravilhoso, me formaste...” (Salmo 139,13-16). É também muito forte a fundamentação emanada do quinto mandamento da Lei de Deus: “Não matarás” (Êxodo 20,13). Portanto, a religião cristã considera que a vida humana tem início com a fecundação (o que, aliás, é partilhado com muitas opiniões médicas) e, portanto, abortar, é matar: “Nas suas múltiplas formas e manifestações, a vida é um bem impagável e indisponível; cada ser


vivo manifesta, à sua maneira, a sabedoria e a insondável providência de Deus Criador...”.4

Aspecto biopsicológico Existem várias formas de aborto induzido, como o químico, com a utilização de prostaglandinas5, da pílula RU-4866 ou de drogas e plantas; ou, ainda, o cirúrgico, a partir dos métodos de dilatação ou corte7, sucção ou aspiração8, dilatação e curetagem9, envenenamento por sal10, sufocamento11 e esquartejamento. O aborto pode causar insuficiência ou incapacidade do colo uterino; danos às trompas; infertilidade; complicações em gravidez posterior; hemorragias; complicações placentárias; maior necessidade de cesariana; síndrome de Asherman12; isoimunização em pacientes com Rh negativo; gravidez de alto risco; abortos espontâneos; partos complicados. A interrupção da gravidez é uma agressão para a saúde física, mental e emocional da gestante, pois a mulher interrompe uma gravidez, mas não elimina, de dentro de si, a experiência da maternidade. Já foram registrados vários sintomas psicológicos em mulheres que abortaram, como atesta, por exemplo, o Colégio da Especialidade de Psiquiatria do Reino Unido (Royal College of Psychiatrists)13: depressão, sentimento de culpa e de perda, abuso de substâncias tóxicas e, até mesmo, suicídio. Esses sintomas também podem acontecer devido às cobranças para com a mulher que aborta, por parte de familiares, do pai da criança ou das pessoas próximas; ou, ao contrário, devido às pressões externas sobre ela para que aborte. Apesar de, na maioria das vezes, a mulher sofrer as consequências psicológicas, alguns homens já apresentaram depressão pós-aborto, especialmente quando esse foi realizado sem o seu conhecimento e autorização.

Aspecto ético O campo da ética é aquele dos valores e comportamentos, direitos e deveres, como nos sugere a própria etimologia.14 É comum, nos discursos pró-aborto, a defesa dos direi-

tos da mulher sobre seu corpo; entretanto, nenhum direito é ilimitado, mas cerceado pela existência do direito de um outro. O direito da mulher de decidir sobre seu corpo é limitado pelo direito do feto à vida. Muitas pessoas que defendem o aborto defendem uma ética utilitarista: seu ponto de partida é o princípio da utilidade, segundo o qual uma ação é útil e, portanto, ética quando traz mais felicidade do que sofrimento aos atingidos; deste modo, o prejuízo de alguns poderia ser justificado pelo benefício de outros, desde que estes estivessem em maior número (cálculo de maximização do bem) e, como o feto não é considerado, não possui nenhum interesse envolvido. Evidentemente, não concordamos com esse argumento: eticamente falando, todos sabemos que, a um direito, corresponde um dever.

Conclusões A primeira é religiosa: o feto é uma vida e a vida é dom de Deus; se nos arrogamos o direito de decidir sobre a vida de um feto ou embrião, abrimos precedentes para decidir, também, sobre a vida de qualquer outro ser humano. A segunda é legal: o aborto provocado acarreta a destruição de uma vida humana e qualquer referendo ou decreto-lei que legitime a morte de um ser humano indefeso é um atentado contra a vida e viola os direitos fundamentais do ser humano:15 o primeiro direito humano é o direito à vida e, se esse direito é burlado, abrimos precedentes para que outros direitos também o sejam. A terceira é política. Independentemente da legalização ou não do aborto, uma tarefa é indiscutível: a necessidade de informação e formação da população sobre as consequências do aborto, um trabalho desde o âmbito da educação formal até à informal. E, finalmente, a questão ética. Muitas meninas e mulheres optam pelo aborto sem nenhuma consciência de seu ato; entretanto, um erro não pode justificar o outro: se muitas dessas mulheres são vítimas, a maior vítima é o feto que, inclusive, não pode se defender.

4 D. Odilo Scherer, SecretárioGeral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil por época da apresentação do tema da Campanha da Fraternidade de 2008: “Escolhe, pois, a vida”. 5 Droga que provoca parto prematuro. 6 Pílula abortiva, conhecida como a “pílula do dia seguinte”. Age matando de fome o bebê, privando-o do hormônio progesterona. 7 Esquarteja-se o feto dentro do ventre da mãe. 8 Insere-se no útero um tubo oco que tem uma forte sucção. 9 Dilatação do colo do útero e raspagem do revestimento uterino do embrião, da placenta e das membranas que envolvem o embrião. 10 Com uma seringa, aspira-se o líquido amniótico e aplica-se uma solução salina, que causará a morte do bebê em 12 horas, por envenenamento, desidratação e hemorragia do cérebro e outros órgãos. 11 Puxa-se o bebê para fora, deixando a cabeça dentro; introduz-se um tubo em sua nuca, que sugará a sua massa cerebral; só então o bebê consegue ser totalmente retirado. 12 Amenorréia traumática: destruição do endométrio, seguida do acolamento com formação de aderências fibrosas nas paredes da cavidade uterina. Cf. http://www.medcenter.com/ Medscape/content.aspx? LangType=1046&menu_id= 49&id=529. 13 Cf. http://www.o-caminho. org/artigos/10racoes_contra. doc 14 “Ética é uma palavra de origem grega, com duas origens possíveis: a primeira, é a palavra grega éthos, com e curto, que pode ser traduzida por costume; a segunda, também se escreve éthos, porém com e longo, que significa propriedade do caráter...”. MOORE, G. E. Princípios Éticos. São Paulo. Abril Cultural. 1975. P. 4. 15 Cf. http://www.o-caminho. org/artigos/10racoes_contra. doc

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ENTRE VISTA Entrevista

Itamar Silva

Ele é da ala dos atrevidos. Mas é de um atrevimento diferenciado, capaz de aliar tranquilidade, confiança e coerência em cada passo que dá. Esses passos, geralmente, seguem em direção ao bem-estar e à melhoria da qualidade de vida no Santa Marta, favela dona de seu coração, localizada no bairro de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro – atualmente ocupada pela Polícia Militar como parte de ação do Estado para transformá-la em exemplo de “legalidade”. Ali, ele nasceu, cresceu, casou, criou seus dois filhos. E de lá não pretende sair. Pelo menos, não tão cedo. Nesta entrevista à DV, o jornalista e líder comunitário, que há cinco anos é um dos coordenadores do Ibase, revela traços de sua trajetória pessoal e profissional, marcada pela atuação como ativista social e defensor dos direitos humanos da população de favelas da cidade. Não é uma atuação simples de abraçar, ainda mais considerando todas as campanhas do Estado, intensificadas pela mídia, de pró-remoção e segregação das favelas cariocas. “Não está sendo fácil participar desta entrevista. De modo geral, tento me expor pouco. Acho que temos de ser vistos pelo que fazemos, pelo que ocorre a partir do trabalho e da militância. Mas fico lisonjeado com essa atitude do Ibase de me convidar e da Cleonice [Dias, conselheira da revista] por ter

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Democracia Viva (DV) – Poderia começar falando sobre suas origens? Itamar Silva – Nasci no Santa Marta. Meu pai vem de Itaperuna, norte do estado, minha mãe, de Campos. Meu pai vai morar no morro de São Carlos e minha mãe, muito nova, vai ser empregada doméstica em Copacabana. Eles se encontram no Rio de Janeiro, frequentavam as mesmas festas. Depois de casados, moraram primeiro em Padre Miguel, na Vila Vintém, e, depois, foram para o Santa Marta porque já havia uma tia que morava lá. Isso foi em 1955, pouco antes de eu nascer. Toda a minha gestação foi passada no Santa Marta. Eu seria o terceiro filho, mas os dois primeiros morreram.

DV – Seu pai é uma pessoa voltada para a cultura, certo? Itamar – Sim, meu pai foi muito boêmio, desde a juventude. Sempre cantou, gostou de música, da noite. Ele trabalhava no almoxarifado da Exposição Carioca, uma grande loja de departamentos que funcionava no Largo da Carioca, e que depois acabou. E cantava na noite. Muito rapidamente, ele construiu uma relação de amigos no Santa Marta que deu o desenho de como seria a nossa casa.

DV – Ele era folião e um dos organizadores da Folia de Reis no Santa Marta? Itamar – Sim, ele sempre foi uma figura interessante. Em geral, as pessoas pensam, pai pobre não liga para os filhos ou vive bêbado. Não é verdade. Meu pai sempre foi boêmio, mas manteve uma relação muito boa com os filhos. Nunca apanhei dele. Lembro uma vez de ele ter dado uma bronca mais forte, e só aquilo foi um trauma. Minha mãe é quem batia. Ela chegava do trabalho cansada, ouvia reclamações dos vizinhos e fazia esse papel de dar bronca, de bater. Meu pai, não. Por outro lado, ele tinha essa vida para fora, com a música, o samba, a Folia de Reis. Meu pai é folião desde muito tempo, antes de ser mestre de Folia de Reis, ele foi folião na Ilha do Governador. Depois, trouxe a Folia para o Santa Marta e assumiu esse papel de mestre de Folia. Mas agora, penso que meu pai deixava tudo para a minha mãe, o pesado de educar, ficava pra ela. Tínhamos uma figura de pai muito legal, amiga, ele é assim até hoje.

DV – E sua mãe? Itamar – Minha mãe foi empregada doméstica a vida toda. Quando estava com 1 mês de nascido, ela voltou a trabalhar. Na verdade, eu ficava uma parte do dia com

minha avó e o restante do tempo com minha mãe. Depois, vieram outros irmãos. Dos vivos, sou o mais velho, vieram mais quatro irmãos, dois homens e duas mulheres. Lá pelas tantas, meus pais acharam que tinha pouca gente na casa e adotaram uma menina, então somos três mulheres e três homens vivos. Minha mãe trabalhou como empregada doméstica até o ano passado (2008), quando se aposentou. E triste da vida, porque a patroa morreu.

DV – Essa avó que morava com vocês era paterna? Itamar – Sim. Tem uma história interessante em torno do nome dela. A vida toda, conheci minha avó como Maria Alves Diniz, a gente a chamava de Quinha. Quando ela precisou entrar com um processo para conseguir a aposentadoria, tivemos de voltar à sua cidade natal para tirar um novo registro. E aí, descobrimos que não existia Maria Alves Diniz. Seu nome correto é Maria Aurora da Silva. Não sei porque a família dela ficou conhecida na cidade como Família Diniz. O mesmo ocorre com meu pai, todos os conhecem como José Diniz, mas seu nome de fato é José Silva. Isso nos causou um problema mais tarde: minha avó tinha uma poupança, pequenininha, e, quando morreu, ninguém pôde mexer porque a documentação não batia, seria um processo tão trabalhoso que preferimos deixar pra lá.

DV – Ela era uma referência no Santa Marta, não é? Itamar – Sim, como rezadeira, cumpriu um papel importante. Minha casa tinha duas entradas, uma da parte do meu pai, que eram os amigos músicos, boêmios, do futebol, e as pessoas que vinham buscar minha avó para rezar. Um fato interessante era a reação dela diante de certas situações. Às vezes, chegavam lá com uma criança passando mal e ela rezava, mas dizia, ‘Isso é coisa de médico’. Era uma sabedoria que só pude avaliar muito tempo depois, ela não deixava que essa posição, esse saber, fosse maior que a realidade com a qual ela estava lidando e as vidas daquelas crianças. Tinha um amigo médico, que morou três anos no Santa Marta, o Zé Luís, que tinha uma relação engraçada com minha avó. Tanto ele respeitava o ofício dela como ela reconhecia aquele profissional.

DV – Qual era a religião da família? Itamar – Lá em casa, religião nunca foi algo muito forte, acho que somos uma típica família católica brasileira. Minha avó era médium, meu pai também é. Minha mãe adora ir a uma macumba, bater palmas, mas não tem nada de

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médium, o maior sonho dela seria pegar um santo, mas nada acontece. Mas todo mundo é batizado, minha avó não perdia uma Missa do Galo, participava dos rituais da Igreja Católica. E como minha avó era rezadeira, na minha casa, sempre se puxou ladainha. Eu acompanho ladainha desde pequeno, adoro rituais, acho que minha religiosidade tem a ver com isso. Mas depois que fiz Primeira Comunhão, não quis mais saber de nada de igreja ou de religião. E fiquei assim, com uma relação distanciada da religião, até a chegada do padre Agostinho no Santa Marta. Aí, é uma outra igreja que se apresenta, mais progressista, falando de outras questões. Eu retomo essa questão das celebrações, dos rituais, a partir de uma outra discussão.

DV – Como lidou com o episódio da morte dela? Itamar – Isso foi em 1988, houve uma chuva no Santa Marta, com vários desabamentos, e a casa dos meus pais veio abaixo. Minha avó estava em casa, era véspera de carnaval, lá pelas 5 horas da tarde. Eu já não morava mais lá, mas sim do outro lado do morro. Chovia muito e ouvi o barulho das casas vindo abaixo. Fiquei descontrolado, procurando minha família. Se o desabamento fosse duas horas mais tarde, minha família toda teria morrido porque, como era véspera de carnaval, todo mundo se reunia para assistir ao desfile na casa dos meus pais.

Costumo dizer que minha avó, como mais velha, cumpriu o papel de morrer pela família. Porque, intuitivamente, ela pediu para meus sobrinhos comprarem pão um pouco antes daquele momento. Minha cunhada, que estava em casa, com a filha menor, ficou presa entre os escombros e teve um problema sério na perna, e minha sobrinha se machucou um pouco, mas se salvou. Só fomos encontrar minha avó oito horas depois. Foi uma perda muito grande para a família, com certeza, mas para o Santa Marta, para a favela, onde ela era uma referência forte. Esse foi um momento muito difícil para mim. Na época, estava na direção da associação de moradores e, muito rapidamente, tinha que cuidar de outras tantas pessoas, conversar com a prefeitura para resolver os problemas, tive que transformar aquele momento em outra coisa. Morreram nove pessoas, 43 casas foram abaixo, muitos ficaram desabrigados. Foi um momento de muita dureza, mas a gente aprende muito. Fico impressionado como a gente pensa que não tem resistência, que não tem condição de enfrentar, mas acaba enfrentando.

DV – De onde tira serenidade em momentos difíceis? Itamar – Esta é uma resposta que não tenho. Posso responder com a minha vida, com os meus atos. Não sou sempre sereno, mas tento buscar uma certa tranquilidade, principalmente nos momentos mais difíceis. Onde eu busco força para isso? Meus pais são uma referência legal. O exemplo da minha mãe, criou tantos filhos, na dificuldade, e nunca a vi se lamentando, isso é uma marca, não lembro de lamentos dela, nem do meu pai, nem da minha avó. Essa marca, da lamentação do sofrimento, não há. Não que o sofrimento não estivesse presente, vivemos várias passagens difíceis.

DV – Seus pais eram exigentes com seus estudos? Itamar – Esta era uma marca não só da minha mãe, mas de muitas mulheres pobres. Imagina que, nos anos 60, entrei no Jardim de Infância, com três anos e meio. Isso não era normal nessa época, era muito cedo. Entrei para uma escola experimental, pública, mas de excelência, em Botafogo. Para entrar, tinha que ser por sorteio. Assim, consegui ser alfabetizado muito cedo. Quando saio de lá, entro para a escola pública já alfabetizado. Sou da época em que se estudava até a admissão, eram seis anos e eu saltei um ano por conta de ter uma base boa, isso foi na quarta série. Naquele momento, fazer o ginásio em

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colégio público era sinal de ser bom aluno ou gente importante. Porque haviam os colégios públicos de qualidade ou as escolas religiosas, que eram as melhores, ou os colégios estrangeiros. O resto era PP, pagou, passou. Para a minha mãe, tudo isso era uma alegria muito grande. Ela estudou até a terceira série primária. Meu pai terminou o primário, e fez, depois de adulto, até a segunda série do ginasial, mas não completou. Nessa história da mãe fazer força pra gente estudar, quando olho pra trás, percebo que ela nunca fez isso com sofrimento.

DV – E quanto a seus irmãos e suas irmãs? Itamar – Sim, lá em casa todo mundo estudou. Dos seis, eu, Fatinha e Cleide temos nível superior; Riquinho e Ronaldo fizeram cursos técnicos, e a outra irmã só fez até a primeira série do segundo grau, mas todo mundo teve oportunidade de estudar.

DV – Sofreu preconceito na escola? Itamar – Comecei a perceber isso quando estudei na Escola México, em frente ao Santa Marta. Quando entrei, tinha muitos amigos de lá. Já na terceira série, lembro de uma amiga, uma menina negra, a Jandira, que estudava na minha sala. Eu era pobre, mas ela era muito mais. Foi uma época dramática. Meu sonho de consumo era ter uma caixa de lápis de cor com 36 cores, que tinha cores que nunca nem havia imaginado, mas eu tinha uma caixa pequena, de 12, ela não tinha nenhuma. Ela sofria muita discriminação da turma, eu me relacionava bem com todo mundo. Tanto assim que, no fim do ano, ela saiu da escola, só retomou os estudos dez anos depois. Já na quarta série, sou o único da favela naquela escola. Meus colegas de colégio eram da classe média. Mas nunca consegui desenvolver uma relação muito profunda com essas pessoas porque eu continuava com minha crença nas favelas. Isso vai me acompanhar para sempre.

DV – Estudava na casa de colegas e os levava para estudar na sua casa? Itamar – Nunca, essa possibilidade jamais foi sequer colocada, eu também não ia na casa deles. Só lembro de um amigo, o Orlando, fui fazer dois trabalhos na casa dele, isso no primário. E no ginásio, lembro de outro amigo, o Alfredo, um cara branco que morava em Botafogo.

DV – E as namoradas, eram da escola ou da favela? Itamar – Sempre da favela. Eu vou falar uma coisa forte: nunca me permiti namorar alguém de fora da favela. Nesse período, 1977,

1978, a classe média começa a subir o morro, é um momento de muitos casamentos interclasses. Mas sempre fiz questão de marcar o lugar das relações políticas e o lugar das relações pessoais. Essa consciência aparece muito cedo e aí eu comecei a fazer também as minhas separações.

DV – Poderia aprofundar um pouco essa questão a partir do recorte racial? Itamar – A consciência da questão racial vai acontecer no ginásio, a partir de uma experiência marcante na casa do Antonio Trajano, que morava em um prédio em Laranjeiras. Estudávamos no Largo do Machado. Ele me convida para ir a casa dele, estou sentado na sala quando chega a sua mãe. Ele me apresenta a ela, que chama a empregada: ‘Fulana, vem aqui ver que garoto bonito, olha o nariz dele como é afiladinho, as feições tão finas...’. Ali, naquele momento, eu sabia que alguma coisa estava acontecendo, mas não tinha repertório para reagir, para falar qualquer coisa, fiquei muito incomodado. Saí dali com raiva dele e comentei: ‘Nunca mais volto na sua casa’. Mas ele não deu muita atenção, não sabia o que estava acontecendo, tínhamos 12, 13 anos. Mas para mim, a minha consciência da questão racial ficou clara, primeiro, de que era uma discriminação comigo e com a empregada dela, que era negra também. A partir daí, comecei a buscar mais informações, a pesquisar essas questões. Mas não havia muito espaço para discutir isso nem no morro, nem na minha família.

DV – Contou a sua família esse fato? E seus irmãos, passaram por situações semelhantes? Itamar – Só fui contar esse episódio em casa muitos anos depois. Guardei isso pra mim, serviu para marcar um pouco a minha vida. Meus irmãos estudaram nas mesmas escolas que eu: primeiro, na Escola México ou na Abílio Borges, perto do Santa Marta; depois, o ginásio, cada um estudou em um lugar. Mas minha irmã Cleide contava casos de discriminação na escola. Ela sofria muito. Tinha o cabelo curtinho e tinha que esticar, mas ela não queria fazer aquilo. Minha mãe chegou a ir na escola porque tinha um grupo mexendo com ela.

DV – Era bom aluno? Itamar – Nunca fui um aluno brilhante, mas sempre estive acima da média. Nunca tive dificuldade de estudar, alguma coisa que me atropelasse. Entrei no ginásio com 11 anos, e minha primeira participação em passeata foi no colégio Amaro Cavalcanti. O colégio estava

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caindo aos pedaços e o pessoal do científico fez uma manifestação até o Palácio Laranjeiras, onde funcionava o governo. No primeiro dia de aula, estava cheio de ovo na porta, o pessoal do científico nos impedindo de entrar. Em vez de voltar pra casa, pensei, ‘Já estou aqui mesmo’, e fui junto com a passeata até o Palácio. No segundo ano, encontrei um grupo de amigos, a gente fazia muita farra e eu acabei repetindo de ano. Foi lamentável, fui muito severo comigo mesmo, cortei a relação com todos esses amigos.

DV – Mas era 1968, todo mundo ficou com a cabeça meio bagunçada, não é? Itamar – As informações que tenho de 68 vieram do meu tio Gilson, irmão do meu pai, que estava servindo o Exército. Um dia, ele teve que ir pra rua para reprimir estudantes e chegou muito revoltado em casa, comentando essa história. Ele sentia uma certa revolta com esse papel que estava exercendo. Na minha casa, minha avó era getulista na alma, e meu pai também. Por isso, a questão política sempre esteve muito presente, eles ouviam os noticiários políticos pelo rádio. Quando houve o golpe, lembro do meu pai chorando em casa ao ouvir a notícia.

DV – Com quantos anos começou

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a trabalhar? Itamar – Aos 17 anos, comecei como office-boy em uma financeira que fazia liquidação extrajudicial chamada Price. Àquela altura, como pobre, já estava velho para começar a trabalhar porque qualquer menino do Santa Marta, incluindo meus irmãos, começa aos 14 anos. Mas como minha família sempre me estimulou a estudar, e eu não tinha problemas com o estudo, meus pais foram tentando segurar o máximo que podiam. Só que, é claro, havia uma pressão por mais dinheiro. Minha mãe trabalhava numa casa cujo patrão trabalhava no Banco Central, que era liquidante dessa financeira. Esse triângulo era muito comum e esse lugar do mensageiro era o lugar do filho da empregada, do filho dos pobres. Isso hoje acabou, o mensageiro não tem mais esse perfil. Trabalhei lá por quase três anos.

DV – Depois que saiu desse emprego, foi trabalhar onde? Itamar – Com 19 anos, fiz um concurso público para a Embratel e passei. Saí de 1 salário mínimo para 10 salários. Nesse período, também entrei na faculdade. Na verdade, só pude cursar uma faculdade particular por causa do trabalho na Embratel. Trabalhava na parte administrativa, no setor de benefícios.

DV – Não tentou uma vaga


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em universidade pública? Itamar – Na época, fiz o vestibular unificado, a mesma prova para todas as universidades. Com os pontos que fiz, cheguei bem perto de entrar para o jornalismo vespertino da UFF [Universidade Federal Fluminense], mas acabei ficando na Faculdade Hélio Alonso (Facha), em Botafogo. Ter entrado na Embratel e na faculdade ao mesmo tempo foi muito bom.

DV – Por que escolheu fazer jornalismo? Itamar – Eu queria ser correspondente de guerra. As grandes revistas naquele momento, as quais eu tinha acesso, eram Manchete e Fatos & Fotos. Era a cobertura da Guerra do Vietnã, as grandes reportagens eram sobre isso, eu fiquei interessado nesse outro mundo. Quando fiz o segundo grau, cursei técnico em contabilidade porque meu pai achava que eu devia ser contador. Mas quando escolhi o jornalismo, queria tentar outras praias. O que me motivou primeiramente foi isso, mas foi uma motivação que passou rapidamente também.

DV – O que o motivou a sair da Embratel para o Banco do Brasil? Itamar – Não queria fazer essa prova, já tinha tentado há muitos anos, quando estava com 18 anos, e não passei. Dessa vez, minha irmã foi fazer a prova, fui fazer companhia, acabei passando, e ela não. Quando o banco me chamou, fui ganhar menos do que ganhava na Embratel, mas trabalhava só seis horas, foi a glória. Nunca quis trabalhar em agência, sempre trabalhei na parte de apoio, saía dali, esquecia completamente o banco, ia para o Santa Marta, para a associação. O problema disso é que fiquei 18 anos lá sem conseguir promoção. As promoções dependiam de fazer hora extra, cursos, eu nunca fazia nada. Isso tudo foi criando um desgaste. Por exemplo, por conta da organização da colônia de férias do Grupo ECO, em janeiro, tinha que me ausentar por 15 dias. Quando começa o ano, no Banco do Brasil, o funcionário tem direito a cinco dias de licença, que pode ser tirado quando quiser. A outra semana eu faltava e pronto. Mas nunca fui um funcionário relapso, esse era um ponto de contradição na minha relação com o banco.

DV – Nem fez movimento político no banco? Itamar – Fui delegado sindical, mas num momento de mudança, quando o Ciro Garcia foi presidente do Sindicato dos Bancários, foi um momento difícil. Como delegado sindical, tinha que estar em todas as greves e piquetes, nunca ficávamos na própria agência de traba-

lho, mas a minha agência era de concentração de piquete, então às vezes, tinha que ir pra lá. Isso teve um ônus, a pessoa fica visada, mas passou. Entrei no banco em 1982 e, em 1998, pedi uma licença sem vencimentos. Em 2000, não voltei mais e pedi demissão.

DV – Foi quando entrou para a Fundação Bento Rubião? Itamar – A fundação foi criada em 1986. No final de 1988, eu ia lá como voluntário. Em 1991, eles pediram para eu coordenar uma pesquisa, apoiada pela Fundação Ford, sobre mudanças ocorridas nas favelas nos anos 1980. Isso me prendeu um pouco mais e comecei a ganhar um pró-labore. Até então, nunca havia ganho um tostão a partir do meu trabalho em movimentos sociais, isso me dava muita liberdade de ação. Foi muito duro para mim quando, no final da licença-prêmio, em 2000, tive que escolher e só receber da Fundação Bento Rubião. Para mim, era um problema gravíssimo ficar na dependência de uma relação política de um projeto que ajudei a construir. E tinha também a questão do salário, não tinha mais alternativa, tinha que pensar na sobrevivência. Mas não queria mais voltar para o banco, não tinha como suportar mais essa dualidade. O trabalho na fundação foi muito importante, conheci ali vários militantes e lideranças de outras favelas. Isso abriu muito meu leque de atuação em favelas, pude ir para zona oeste, zona norte.

DV – O Grupo ECO é o projeto da sua vida. Como funciona? Itamar – Eu falo que o Grupo ECO é o projeto da minha vida porque é mesmo. Tenho dificuldade de trazê-lo para as instituições onde trabalho porque é um projeto autônomo, reflete muito a minha trajetória. Ele foi criado em 1976, com o Jornal ECO, foi o pontapé da minha militância. Em 1977, não se falava de ONGs, havia instituições de assessoria dos movimentos populares e os movimentos de base. A partir de 1980, com a volta de muitos exilados, começam a aparecer novas instituições, como o Ibase, que é de 1981. Dentro das favelas, há uma relação de consultoria e assessoria com essas instituições. Já no início dos anos 1990, essa relação muda. A cooperação internacional passa a financiar diretamente ações no próprio território e os movimentos passam a se institucionalizar. O Grupo ECO é um movimento, a gente nasceu como um movimento para ampliar a divulgação sobre a favela, mobilizar. Particularmente, tenho muita dificuldade quando as

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pessoas chamam o ECO de ONG, pois ONG tem uma estrutura, uma institucionalidade. É necessário que tenha, senão, não sobrevive. Por outro lado, acho superimportante ter flexibilidade, estar mais próximo de movimentos que de instituições. Dentro do Grupo ECO, a gente vive uma tensão forte entre ser uma instituição, uma entidade estruturada e essa possibilidade de continuar a falar como movimento, não sei como a gente resolve essa tensão.

DV – A colônia de férias é sua iniciativa preferida no grupo? Itamar – A colônia de férias é o projeto que mobiliza mais gente, são 300 crianças de 6 a 12 anos, 50 monitores, todos foram crianças da colônia, e são 15 dias consecutivos, de domingo a domingo. É uma atividade que tem uma repercussão grande, que exige muitos recursos. Imagina ter que deslocar diariamente quase 400 pessoas para algum ponto da cidade. São necessários, no mínimo, seis a sete ônibus, é preciso criar uma dinâmica, uma metodologia de lazer, brincadeiras, disputas de conhecimento. E a gente faz isso tudo a cada ano sem ter certeza de que, no ano seguinte, vamos ter recursos para fazer novamente. Todos os meus amigos sabem dessa minha angústia, sempre em dezembro. A motivação para criar a colônia veio de um vazio. Na volta das férias escolares, tinha aquela história de ter que fazer redação sobre as férias, quem viajou, quem fez o quê. Eu nunca tinha viajado, não fazia nada diferente. Ficar soltando pipa no morro, correr morro acima, morro abaixo, isso eu fazia todo dia, não era programa de férias. Uma colônia de férias preencheria isso, de forma que as crianças tivessem o que contar em seu retorno à escola. Essa é a perversidade: há a mistura de classes na escola, e a forma de condução reproduz as diferenças, os professores não percebem o que está acontecendo e o que aquilo pode produzir em cada aluno.

DV – Além da colônia, a informática é um ponto forte do ECO, certo? Itamar – Sim, o Grupo ECO inaugurou o ensino de informática no Santa Marta. Em 1995, criamos a escola de informática, depois, criamos o primeiro curso de manutenção de computadores, depois o FOL (Favela Online), uma rede intranet criada por jovens do nosso morro pra conectar os jovens do Santa Marta e jogar Counter Stricke. Fomos muito criticados na época por isso. Em um debate, perguntaram para mim: ‘Mas como vocês colocam o jovem

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dentro da favela pra jogar Counter Stricke?’. Falei: ‘Hoje, qualquer jovem de classe média joga Counter Stricke, por que esses jovens não podem jogar? Por que é violento? Então, vocês estão querendo dizer que eles vão se tornar marginais porque jogam Counter Stricke? E os outros, não?’. Foi uma luta grande.

DV- Atuando em movimentos sociais e ONGs, quais diferenças identifica nessas formas de articulação? Itamar – As ONGs têm um lugar muito incômodo, sofrem a crítica dos movimentos sociais porque esses não veem legitimidade na atuação de uma ONG nessas relações, acham que o lugar da ONG é sempre o de assessoria. Houve um momento, principalmente durante as décadas de 1970 e 1980, que as ONGs tinham esse papel de assessorar os movimentos. O trabalho direto, a intervenção, a mediação política estava dada para os movimentos. Hoje, há um deslocamento desse lugar do papel das ONGS, pela ampliação do seu trabalho e da sua atuação e mesmo pelas possibilidades de novos contextos políticos, que vêm chamando as ONGs para outro tipo de atuação. Mas há uma tensão entre os movimentos e as ONGs. Em especial, no movimento de favelas, essa tensão é complicada porque como o movimento, ao menos no Rio, está fragilizado, as associações não redefiniram o seu papel, às vezes, essa crítica fica muito despolitizada, passa a ser uma crítica oportunista, carece de qualificação.

DV – E qual seria o papel da associação de moradores hoje? Itamar – O lugar da associação mudou e a maioria dos moradores e das lideranças não percebe. No início dos anos 1980, período de redemocratização do país, havia novos ares sendo soprados para as associações e uma certa crença de que a transformação viria a partir desse local e que essas instituições tinham um papel determinante na relação com o Estado, novos formatos políticos, nova cultura política, junto com a discussão partidária, com a chegada de novos partidos. Na minha interpretação e na minha experiência também, a associação ficou refém da burocracia e do fisiologismo, da relação com o Estado. Poucas foram as entidades que conseguiram manter uma certa autonomia nessa relação. A maioria ficou prisioneira não só do Estado, mas das relações políticas e partidárias. Isso é uma contradição porque nós, do movimento de favelas, sempre dissemos que o Estado tinha que assumir a luz, a água nas


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favelas, essa sempre foi a nossa luta, a nossa bandeira. Quando esse Estado chega, com essa possibilidade, a gente reclama: ‘E aí, o que sobra para a associação fazer, qual o meu papel nessa história?’ Aí, vem um nó porque não se conseguiu coletivamente construir uma alternativa. Hoje, certamente, o papel da associação mudou, mas a gente não conseguiu redefinir esse papel. Há uma reprodução do que há de pior, de tudo o que a gente não gostaria que fosse, que é a cristalização de lideranças sem a necessidade do respaldo da maioria, da base, é um drama que estamos vivendo.

DV – Voltando a sua trajetória, pelo que descreveu, com apenas 20 anos, você estava no meio de um turbilhão, certo? Itamar – Sim, digo que 1976 foi um ano fundante na minha vida. Nessa época, descubro uma outra igreja, conheço a família Boff, tanto o Clodovis como o Leonardo; o Agostinho, no Santa Marta, um grupo de jesuítas bem interessante. Em 1980, estávamos começando a discutir as teses do PT e tinha um grupo de conhecidos de um amigo meu do Santa Marta que estava em Goiás, na área de Juçara e Itaguaru, na passagem por Goiás Velho. Fiquei 20 dias por lá, durante as minhas férias, para conhecer essa experiência. Foi quando conheci Dom Tomás Balduíno, Dom Pedro Casaldáliga, isso tudo foi um marco para mim. E fiquei encantado ao chegar no sul do Pará e encontrar uma comunidade sem padres, mas com irmãs fazendo as celebrações. Foi um choque e uma provocação muito grande.

DV – Como foi essa viagem ao Pará? Itamar – Essa viagem foi em 1981. No grupo da igreja do Santa Marta, tinha uma menina chamada Denise Pena, que é sobrinha do Dom Alano, bispo do Pará, e foi trabalhar na área de saúde de lá e nos convidou para visitar. Aí entra muito a questão política que estava quente na época nessa região, toda a história do Araguaia, é uma região que concentra muitos militantes. Primeiro, fui para Marabá. De lá vou para Palestina, região onde fiquei por mais tempo, onde há um dos entrucamentos da Transamazônica. Nessa época, trabalhava na Embratel, já estava há 31 dias no Pará e não queria voltar. Tive uma febre muito alta e estava justamente lidando com o pessoal que tinha malária, por isso achei que fosse malária. Mas era só uma infecção porque lá eu comia de tudo. Acabei voltando para casa, pensando em resolver minha vida e um dia voltar. Mas nunca

voltei. Aí, vi que havia coisas mais importantes para fazer na favela, mas fiquei tentado.

DV – Quando entrou de fato para a Pastoral de Favelas? Itamar – Na Pastoral mesmo, só vou passar a atuar no início de 1977. A Pastoral começa a se fortalecer no Rio de Janeiro. Ela compra a briga contra a remoção do Vidigal. O advogado Bento Rubião assume essa causa e entra com uma ação contra a remoção. A partir desse evento, a Pastoral passa a se reunir cada mês em uma favela. Antes de cada reunião, havia uma reunião preparatória, realizada uma semana antes. Eu nunca fui agente de pastoral, nunca tive uma militância de grupo jovem de igreja, nunca fui contratado pela arquidiocese, mas sempre estive militando nessa área. Minha grande frustração, e posso dizer isso hoje, é que existiam os cursos do Ibrades, curtos e longos, de formação de agentes para jovens aqui no Rio, que eram muito bons, formavam gente do Brasil inteiro. Meu maior desejo era fazer um curso desses. Mas eles nunca me convidaram. Nunca tive nenhum vínculo formal com a Arquidiocese ou com a igreja, mas nesse período circulei nessa praia.

DV – Qual foi a importância dessa

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experiência para a sua formação? Itamar – Foi fundamental porque a Pastoral foi o grande guarda-chuva da esquerda, ao menos na área urbana. Depois, quando veio a redemocratização, os partidos, a gente foi percebendo quem era quem, quem estava no partido a, b ou c, quem era comunista, quem não era. A Pastoral abrigava todo mundo, era um grupo de militantes, voluntários que se camuflavam ali como católicos militantes e essa convivência foi muito interessante. Depois, cada um foi encontrando seu nicho.

DV – Nessa atuação, sentia alguma tensão ou possibilidade de repressão? Itamar – Esse período foi de final de 1976 a 1981. O movimento de favelas e a Pastoral já estavam entrando na pauta do direito, da questão do uso capião. Naquele momento, existia o uso capião rural, de 20 anos, e já havia uma briga jurídica para se conquistar o uso capião urbano, que dava o direito àquela terra após cinco anos de moradia. Fizemos parte dessa luta por esse instrumento que poderia permitir que as favelas não fossem removidas. O que vamos sentir é que as disputas já estão acontecendo dentro do próprio movimento de favelas. A Pastoral representa apenas uma parte desse movimento, havia outra parte que estava fora e chega por outras conotações, como o chaguismo. O movimento de favelas está marcado pelos autênticos, muitos no guarda-chuva do MDB, e os chaguistas, que parte são do MDB, mas, na luta política, já se distinguiam entre progressistas e reacionários. A grande disputa que vamos acompanhar nesse período foi entre Irineu Guimarães, que escolhemos para ser nosso ponta de lança, e Jonas Rodrigues, que representava o chaguismo. Essa disputa vai permear todo esse período e vai permitir que novas lideranças apareçam nas associações de moradores de favelas. Vai permitir também que se explicitem algumas diferenças. Por exemplo, o Irineu Guimarães passa de nosso representante a inimigo. Quando vem a reformulação partidária, ele assume a sua porção MR-8, a gente descobre quais são as correntes políticas nas quais cada um estava ancorado.

DV – Na década de 1980, várias lideranças comunitárias foram chamadas para ser agentes administrativos. Você viveu essa experiência? Itamar – Vivi, foi em 1985, durante o governo de Saturnino Braga na prefeitura do

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Rio. Na época, trabalhava no Banco do Brasil e tinha um conhecido que era secretário de Desenvolvimento Social, e me convidou para coordenar o setor de Ação Social. Era um setor pequeno, então resolvi aceitar. Para isso, utilizei três meses de licença-prêmio. Foi muito difícil. Cheguei no setor cujo coordenador anterior era do PDT, um “brizolista”, um jornalista querido pela equipe, que também era partidarizada. Claro, eles tinham certa tolerância comigo porque eu era do movimento, era reconhecido, então não havia agressão direta, mas, também, era de uma inércia, de uma letargia absoluta, ninguém fazia nada naquele setor. Fiquei 15 dias tentando resolver coisas, mas não tinha nenhuma informação. Depois, tive um problema burocrático. A secretaria não conseguiu que o Banco do Brasil me liberasse para fazer esse trabalho. Trabalhei três meses, de graça, voltei para o banco e deixei a secretaria. Confesso que não tenho saudade e dificilmente repetiria essa experiência. A dinâmica do poder público é complicada.

DV – E quanto a uma candidatura mesmo? Itamar – Candidatura ja-mais! Entrei no PT no final de 1981, a quarta zona foi minha base de militância, fui do diretório nacional. Mas nunca pensei na possibilidade de me candidatar. Quando Gilson, meu tio, foi candidato, em 1982, havia uma discussão de nomes e o meu era uma das possibilidades, eu era presidente da associação de moradores. Mas acho que não tenho perfil para parlamentar. Defendo a participação popular no parlamento, mas eu não sou a pessoa adequada para isso. Politicamente, é importante, mas não é a minha praia, não me vejo como parlamentar. Acho que sou meio ingênuo no que se refere à política. O que busco na minha vida é ser coerente com o que penso, mas a partir do exercício da vida, nunca planejo muito, não tenho uma meta que queira alcançar, deixo as coisas acontecerem. E tenho muito cuidado de não ser incoerente, não pregar uma coisa e fazer outra. Se me perguntarem se eu tenho um medo na vida, eu tenho! De me pegar numa incoerência, de falar uma coisa e fazer outra, eu não gosto, acho feio. Todo mundo pode mudar, mas mudar de forma consciente, assumindo as consequências. Mas deixar que a incoerência trace os caminhos é complicado.

DV – Como foi a experiência à frente da Faferj? Itamar – Foi muito interessante. Vou participar dessa luta contra o Jonas Rodrigues ao


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lado do Irineu. A gente assume a Faferj em 1981 e aí sai o primeiro jornal dessa nova direção. Estava-se discutindo a reformulação partidária, aí já estou formado, terminei Jornalismo em 1980. Então, quis escrever uma matéria e, atrevido que sou, quis escrever sobre reformulação partidária. Na reunião de pauta, todo mundo concordou. Fui pra casa, pesquisei em várias publicações, tentando ser jornalista ao extremo. Fiz uma matéria de cinco, seis laudas, e mandei, porque nessa reunião eu não pude ir. Alguns dias depois, quando o jornal saiu, fui ávido procurar minha primeira matéria publicada. Não achei. Até que encontrei na segunda página um boxizinho sobre reformulação partidária. Fiquei louco da vida. Aí é que me dei conta do que estava acontecendo, a Faferj já estava aparelhada. Era um aparelho do MR-8 e não tinha a menor chance de uma matéria que buscava uma certa isenção sair no jornal. Foi quando me afastei, comecei a batalhar outras coisas, aí já era oposição à Faferj, oposição à oposição. Às vezes, a ficha cai na marra, não discuti isso com ninguém, vivi esse momento e aí foi o rompimento com o Irineu e com o grupo. E vamos tentar construir um novo caminho até voltar à Faferj depois, em 1984.

solvido que eu iria representar a Faferj. Só que, na reunião seguinte, o pessoal falou: ‘Não é o Itamar, quem tem que ir é o outro rapaz, que é comunista. Você não é comunista, Itamar’. Aí, me articulei bem. Fui para a Pastoral, discuti isso lá, convocamos outra assembleia e articulamos todos os diretores e suplentes. Aí, ficou certo que eu seria o representante do movimento de favelas nesse encontro.

DV – Foi a primeira vez que saiu do país? Itamar – Foi mais do que isso, foi a minha primeira viagem de avião. Nunca tinha ido ali do lado de avião e minha primeira viagem foi para Moscou! Naquele momento, a empresa estatal soviética, Aeroflot, não fazia pouso no Brasil. Tivemos que sair daqui de ônibus para Buenos Aires para pegar o voo para Moscou. Foi uma viagem que reuniu um grupo de artistas brasileiros, Martinho da Vila, Fagner, a Blitz, e vários grupos culturais chilenos que cantavam músicas revolucionárias. Daqui do Rio, tinha gente do movimento negro, de todos os partidos. Quando entramos na cidade de Moscou,

DV – E essa gestão foi mais tranquila? Itamar – Aí vai acontecer um outro problema. Estávamos durante o governo de Brizola, a gente escolhe como presidente o Naílton, de Vigário Geral, e são percepções diferentes também. O grupo se agrega ao Brizola, passa a ter uma relação muito direta com ele, que investe na reforma da sede da Faferj. E o grupo racha novamente, cada um vai para um canto. Nesse período, um fato que ajudou nesse meu afastamento foi que, naquele ano, acontecia em Moscou o Décimo Segundo Encontro da Juventude. Era um encontro internacional que acontecia sempre nos países comunistas. Em 1985, esse encontro foi aberto para todas as forças progressistas, de todos os partidos, movimentos sociais. Aqui no Rio, teve a participação do movimento negro, da Faferj. O James Lewis coordenou a delegação brasileira, mas o Ivanir [Santos] era o organizador. Um dia, ele chegou pra mim e disse: ‘Da Faferj, a gente queria que fosse você, como fazemos isso?’. Eu disse: ‘Não tem jeito, coloca em discussão na assembleia. Entre os diretores que têm menos de 29 anos, só tem eu e outro rapaz, vamos discutir’. Na reunião, a proposta foi apresentada e ficou re-

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as estátuas de Lênin estavam por toda a parte, porque era aniversário da grande guerra pátria. Havia cartazes, retratos. Foi uma euforia. Para mim, a imagem de Lenin era algo absolutamente clandestino, toda a referência que tinha do leninismo, de publicação a broches, estava ligada à clandestinidade, ao que era perseguido. E quando chego ali, é o oposto, a ostentação. Aécio Neves e Sérgio Cabral Filho estavam nessa delegação, mas participaram de outras atividades. Cultural e politicamente falando, a viagem foi muito importante.

DV – O que representou conhecer a África muitos anos depois? Itamar – A África é sempre um tema interessante. A vida toda alimentei, como muitos negros brasileiros, e não negros também, essa questão de um olhar para a África. Mas há todo um desconhecimento, ignorância e preconceito de pensar em uma determinada África. Quando fui a Moscou, parei no aeroporto de Senegal, fiquei louco, pobre de mim. Volto a África quando vou a Tunísia, e encontro um país árabe, isso foi em 2006. Lá, não havia nada do que eu esperava, nem negros, ai meu Deus. Aí, fui aprender mais, entender que aquilo ali também é África, que a África fisicamente é isso, que tem essas diferenças.

A gente não aprende África no colégio, ou melhor, aprende sim, mas de uma forma estranha. Boa parte da história que aprendemos é sobre o Egito, Mesopotâmia, mas isso não leva o nome de África. Passamos anos na escola falando de uma determinada cultura, um determinado território, mas descolado da África. O que aprendemos sobre a África Subsaariana é aquela pobreza, aquela coisa folclorizada, escravos, quando, na verdade, é tudo diferente. Já estava muito impressionado com toda a história de Ruanda e como o mundo olhou para esse enfrentamento, para essa chacina coletiva. Parece que não nos damos conta de que são seres humanos que estão sendo dizimados, sem a participação do mundo em torno disso. Quando fomos ao Quênia, em 2007, por ocasião do Fórum Social Mundial, pudemos perceber também as diferenças culturais dentro de um mesmo país, perceber o que o Fórum produziu no cotidiano daqueles países que participaram.

DV – E a visita a Kibera? Itamar – Temos essa mania de onde chegar, procurarmos favela. Lá no Quênia, encontramos uma superfavela, com 1 milhão de pessoas. Foi muito estranho, porque todo esse processo que vivi, e vivo, de pessoas que vêm visitar a favela, como uma invasão desse território, eu ali estava procedendo da mesma forma. Era um invasor, um turista, queria ser igual, mas ali eu era o outro, era diferente, não tinha jeito. Isso foi muito duro e difícil de lidar, essa contradição nos acompanhou o tempo todo nessa visita e foi muito importante. O aprendizado é ter mais tolerância com as relações que vivemos no cotidiano. Não tem uma receita, mas com qual respeito, como se permitir relacionar, qual o limite da aproximação dessas realidades.

DV – A visita a Angola, sendo um país lusófono, foi diferente? Itamar – Sim, Angola de fato é um país muito mais próximo, irmão. Foi muito interessante estar lá. Primeiro, pela questão política. Sou da geração que lia os Cadernos do Terceiro Mundo, acompanhei os movimentos de libertação dos países africanos pelos Cadernos. De alguma forma, tínhamos alguma informação e uma certa idealização de que um continente socialista, uma nova forma de organização política estava acontecendo a partir dali. E Angola tinha essa referência. Mas chegando lá, vou conhecer um pouco mais da história recente de Angola e perceber como a guerra, embora a gente pense que é algo já distante, não é. A guerra civil foi até 2002, estive lá em 2007, uma guerra que separou gente, matou gente, as marcas estão

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fisicamente lá, nos prédios, nas pessoas, na cidade. E a gente aqui, amigos Brasil e Angola, quase irmãos, assistiu ou nem percebeu que, durante dez anos, essa população passou por isso e ficou com essas marcas. Quando chegam angolanos aqui e a gente discrimina, é impressionante para mim essa relação. O Brasil é o país de maior população negra fora da África, mas, e vou dizer uma coisa forte: o Brasil não tem tolerância para os negros que chegam desta mesma África. O medo que as favelas provocam nesta sociedade também os africanos que chegam recebem. E quando a gente chega em Angola, se depara com um país que tem uma verdadeira idolatria pelo Brasil. Lá, se reproduz e se consome tudo do Brasil, até aquilo que a gente não quer, que consideramos lixo cultural, eles estão consumindo com a noção de que ‘isso é Brasil’. E no entanto, isso não é de mão dupla. Estou desafiado a pensar nisso, a mudar essa história.

DV – Essa experiência de viajar, conhecer outros lugares, mas voltar para a favela, sempre, é uma marca? Itamar – Gosto de viajar, gosto de conhecer novos lugares, mas essas experiências me encantam enquanto estou lá, eu aproveito, mas isso não muda o que penso, não faz eu querer deixar de estar aqui. A experiência mais forte que já vivi nesse sentido, me fez rir muito de mim mesmo. Em 2001, em fui a Nice, França, e fiquei três dias hospedado em um iate, era um encontro sobre energia. Não podia imaginar que era possível tanto luxo dentro de um iate, foram três dias comendo do bom e do melhor, tomando vinhos. No último dia, não pudemos ficar no iate e tivemos de mudar para um hotel, mas não nos mudaram para qualquer hotel, era o Meridien. Quando eu entrei no quarto, não acreditei no que via, o tamanho do quarto, a decoração, o banheiro era uma vitrine de perfumaria. Curti bastante, no dia seguinte, tomei o avião de volta para casa. Cheguei no Galeão chovendo. Peguei um táxi para o Santa Marta. Quando cheguei lá, estava um temporal, o carro não tinha condições de subir. Da escadaria do Santa Marta, desce lama, em uma chuva forte, se transforma em uma cascata de lama. E eu tinha que sair do carro. Saí, o carro foi embora, estava eu com uma mala na mão, olhando aquela cascata de lama descendo. Eu comecei a rir, ri demais. Arregacei as pernas da calça, botei a mala na cabeça e subi o morro às gargalhadas. Sempre fiz isso, mas, desta vez, estava voltando

de Nice, de uma noite no Meridien. Depois disso, digo o seguinte: quero todas as mordomias possíveis quando elas forem possíveis, mas não posso perder a dimensão dessa realidade. E a volta ao Santa Marta é sempre interessante, não só por encontrar a família, encontrar os amigos, encontrar o meu lugar. É também a questão de não me deixar levar pela vaidade.

DV – Hoje, com a sua situação, poderia sair do Santa Marta, morar em outro lugar. Não tem vontade de fazer isso? Itamar – Nada na minha vida é uma decisão pronta, é uma construção. Toda a história que contei aqui com relação à família, a descoberta de cada situação de desigualdade, vai reforçando em mim o quanto é importante estar no Santa Marta. Pode ser arrogância da minha parte, mas acho que contribuo de alguma forma estando lá. Hoje, posso sair do Santa Marta, talvez não da forma como eu gostaria. Porque, parece paradoxal, mas eu também tenho sonhos burgueses. Quero uma casa grande, com varanda, voltada para o mar, isso é legal para todo mundo, não abro mão dessas possibilidades. Mas não tenho condição para isso. Embora seja mais fácil, tento sempre resistir às saídas individuais. É mais fácil pensar no meu caso, mas eu tenho família, irmãos, amigos, é um conjunto de pessoas das quais gosto muito e que não têm essa mesma possibilidade. Já que, para sair, eu não posso levar todo mundo, prefiro transformar esse lugar. Se a favela é digna para eu morar, ela tem de ser digna para eu criar meus filhos, para que outros criem seus filhos, para que outros cheguem. É nisso que eu acredito.

DV – Acredita que outros moradores do Santa Marta pensem dessa forma ou se considera diferente? Itamar – Não sei, isso é muito pessoal. Acredito que esse não seja um sentimento majoritário, acho que muita gente que está no morro, quer sair. Trabalho com adolescentes e faço com eles a seguinte dinâmica: daqui a dez anos, pensa onde você vai estar, como estará a sua vida. O que me impressiona é que toda possibilidade de felicidade desses jovens está fora da favela. É raríssimo aquele que está bem e que continua na favela, a maioria absoluta está fora. O drama disso é que a maioria vai estar na favela daqui a dez anos, senão nessa, em outra. Isso porque a nossa mobilidade social é muito baixa. Ao mesmo tempo, eles não veem ali a possibilidade de construir um futuro

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Santa Marta. As pessoas reconhecem minha trajetória, elogiam, mas, certamente, reconhecem o envolvimento da família nas várias dimensões da favela. Considero isso uma conquista. Isso não foi uma receita, foi uma construção. Por exemplo, o Bloco Carnavalesco Império de Botafogo, primeiro bloco do Santa Marta, foi fundado em 1976, na casa do meu pai, ele era presidente e eu fui diretor durante três anos. Eu tinha que lidar com dinheiro, me meti a fazer samba, o primeiro samba que ganhou foi da minha autoria, tinha que organizar ala, o nome da minha ala era Ala dos Atrevidos. É uma mistura grande de estações, não dá para separar, estamos misturados nessa dinâmica.

DV – Seus filhos estudaram no Santo Inácio, um colégio particular, e você chegou a levá-los para a Disney. Como lidou com isso na favela?

melhor, isso é o mais dramático. E é um ponto que insisto muito com meus filhos, sempre digo: ‘O Santa Marta já foi pior, pode ser melhor. Mas não adianta acharmos que vai ter uma solução mágica, é preciso que hoje e aqui estejamos construindo para que o amanhã seja melhor’.

DV – Recebe de seus filhos alguma pressão para sair de lá? Itamar – Dos meus filhos, não, da minha mulher, sim. Hoje, um está com 25 e o outro com 21. Acho que, quando forem mais velhos e tiverem grana, vão escolher morar em outro lugar porque eles querem, um dia, morar sozinhos. Certamente, se tiverem dinheiro, não vão querer comprar outro barraco.

DV – Os moradores veem sua família como elite? Itamar – Não sinto isso com a minha família, talvez por misturar essa questão cultural muito fortemente desde cedo, a Folia de Reis, o samba. Esse lugar que a família ocupa marca as nossas relações com a favela e a construção dela. A porta da minha casa está sempre aberta. O fato de eu ter estudado poderia fazer com que as pessoas me olhassem com certa distinção, mas se chover, estou com os pés dentro da vala, limpando como todo mundo. Se cair um barraco, uma caixa d’água, estou junto. Acho que isso também vai dando uma outra conotação sobre o lugar que nossa família ocupa no

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Itamar – Isso tem a ver com a minha característica de ir e voltar para a favela, sempre achei que eles também tinham que exercitar isso. Mas ter dois filhos estudando em um colégio que concentra a burguesia carioca me trouxe vários problemas. Por exemplo, nos aniversários dos meninos, todos os colegas eram convidados e apenas dois iam a nossa casa para comemorar com eles. Mas eu também não abri mão de fazer em casa, fazer em casa de festa não tem porque, nossa casa é grande, sempre conversei isso tudo com eles. Eles sentiam um pouco, mas têm tantos amigos, tantos primos, isso é também uma dimensão legal da vida deles na favela. Meus filhos nunca foram criados separados dos meninos do Santa Marta, por isso não sentiam esse vazio, e as festas deles sempre foram muito animadas.

DV – Comparando o Santa Marta da sua infância e o de hoje, o que mudou? Itamar – Agora, fica difícil fazer essa análise porque o Santa Marta está muito em evidência. A gente não pode olhar para essas mudanças a partir dos últimos seis meses, porque há uma exposição muito grande na mídia, um investimento desmensurado do Estado nessa favela para ela ser exemplo. Mas digo que o Santa Marta vem mudando muito, ao longo dos anos, fisicamente e na sua composição, e nas dinâmicas internas também. Se pensarmos que no Santa Marta, até 1983, tínhamos que encher barril para pegar água, isso significava que ter um banheiro com descarga não era possível. Quem podia tomar banho de chuveiro em casa, com água enca-


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nada, aí sim era elite, isso só havia em meia dúzia de casas. Isso tem rebatimento direto na saúde, no tratamento, na vida das pessoas. Até 1982, a rede de energia elétrica era muito ruim, chegava nove horas da noite, a luz caía. Quem tinha dinheiro para investir em um transformador, tinha. O final dos anos 1980 são anos de mudanças e conquistas no Santa Marta. Entra a Light em 1982, e aí há uma melhoria fenomenal na questão da energia elétrica. Isso permite mudanças também no acesso à água, pois se tem um novo reservatório, uma nova bomba, que joga água diretamente para dentro do morro. Assim, a maioria pode canalizar água para dentro de casa, pode ter um banheiro decente, com descarga, chuveiro, não precisa mais colher água da chuva pela calha no telhado. Isso também faz com que as pessoas invistam mais nas suas casas. Se olharmos o Santa Marta a partir dos anos 1990, há uma mudança física mais por dentro das casas do que por fora, é uma diferença abissal. Desde a questão dos insetos, ratos, é um impacto direto na vida dos moradores que quem está de fora nem consegue dimensionar. Isso também impõe mudanças culturais, mudanças fortes de relacionamento entre os vizinhos, mudanças de organização, de circulação interna. Hoje, também há muito mais jovens estudando e há uma dinâmica, uma sociabilidade a partir da escola bem mais interessante, eles trocam mais, se apoiam mais, são mudanças perceptíveis. Em relação ao acesso à universidade, ainda é uma mudança pequena, mas já infinitamente maior do que quando eu terminei a universidade.

DV – Qual é a população do Santa Marta hoje? Itamar – Não há dados fechados sobre isso, há uma discussão. O Grupo ECO, que eu coordeno, afirma que são 1.500 domicílios e 7.500 moradores. Documento recente da Secretaria de Obras do governo do estado aponta que são 1.300 habitações, o número de moradores bate com o apontado pelo Grupo ECO. Se nos basearmos na pesquisa feita em 2006 pela Semadur, aponta que o Santa Marta tem 5 mil moradores e 1.200 habitações, se você perguntar para a associação de moradores, vai escutar que são 10 mil moradores. Mas não tem, ficamos entre os 5.800 a 7.500, sei que é uma margem grande, mas é por aí. Posso praticamente afirmar que o Santa Marta está com 7 mil moradores, uma média disso tudo aí.

DV – Existe uma polêmica em torno do nome Santa Marta e o que a

mídia divulga, Dona Marta. Como isso começou? Itamar – O grupo do qual eu participo vem numa militância forte defendendo o nome de batismo, Favela de Santa Marta. Dona Marta entra na história porque o mirante chama-se assim, o acidente geográfico chama-se assim. Mas o nome de Santa Marta veio com o nascimento da favela, veio de toda a sua trajetória com a Igreja Católica. O padre Veloso chegou no pico do morro, a pedra fundamental foi uma capela, e disse; ‘Como Maria e Marta receberam Cristo para descansar, aqui vai ser um local de repouso desta comunidade’. Esse é o mito de origem do nome da favela, é um lugar de repouso desses moradores. Isso é muito significativo, é um lugar de repouso, mas também de resistência, lugar onde essa população construiu vida e vem até hoje. Por isso, é fundamental garantir essa identidade. Quando a imprensa trata de Dona Marta, está desconhecendo essa ocupação, essa trajetória, essa história, e está impondo outra história, outra dinâmica.

DV – Como avalia a situação da comunidade desde a ocupação realizada pelo Estado, em novembro do ano passado? Itamar – Todas essas mudanças e a escolha do Santa Marta como referência de legalidade pelo governo do estado me preocupam bastante, porque as mudanças estão acontecendo com muita velocidade e os moradores não estão tendo tempo de absorvê-las, digeri-las. E de novembro para cá, tudo tem acontecido muito rapidamente, sem a participação da população, sem a reflexão dessa população, são mudanças impostas, e o saldo disso me preocupa bastante. Não importa se vai por um caminho ou por outro, é um caminho do qual a população não tem as rédeas, não tem o controle desse amanhã. Essas mudanças físicas estão impondo, por exemplo, uma valorização absurda das casas, um chamamento de entidades, pessoas, turistas, e os moradores não sabem lidar com tudo isso. A minha preocupação é que quando a gente acordar, a cultura, a realidade local já vai estar completamente desenraizada.

DV – Como vocês estão lidando com a presença constante da polícia? Itamar – Essa ocupação no Santa Marta traz a polícia como elemento central. A justificativa para ocupar é a presença do tráfico, todo mundo sabe que embora o tráfico no Santa Marta seja grande, o centro não está ali. O maior enfrentamento da PM não se deu no

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Santa Marta, que é um lugar controlável. Há 25 anos, o Santa Marta tem um DPO, um posto de polícia na entrada do morro, desde a guerra do “Zaca” e do “Cabeludo”. Há cinco anos, tem um outro DPO no alto do morro, na casa que foi do Marcinho [Marcinho VP]. Uma favela do tamanho do Santa Marta tem dois DPOs, com policiamento dia e noite, e continuam falando que o tráfico ali é a pior coisa do Rio de Janeiro, tem alguma coisa errada. Ou esse tráfico não é tão ameaçador como se diz, ou os acordos são muito fortes que permitam essa convivência durante muito tempo. É essa pergunta que a sociedade não se faz. E ela aceita esse discurso. Os moradores sofreram outros problemas de opressão, de falta de liberdade, com a polícia do seu lado e sem poder contar com essa polícia. São 120 homens, todos novos, se você olhar para os policiais que estão no Santa Marta, são uns garotos, todos no processo de capacitação, recebendo um plus para fazer um curso e poder atuar nessa frente. Existe toda uma roupagem que sinaliza para a sociedade que existe uma nova polícia, uma nova forma de lidar com isso. Por outro lado, essa inovação tem pouca consistência. Por enquanto, há muita desconfiança, até que ponto isso se sustenta? Acredito que o Santa Marta seja controlável, por isso o Estado o escolheu. Agora, é replicável essa experiência? Isso a gente vai ter de ver no processo. Se, seguindo a proporção do que está sendo feito lá, a polícia tiver de colocar 120 homens em cada favela, vai ter de aumentar muito o seu efetivo, abrir mais concursos públicos para a polícia. Se pegarmos como exemplo Rocinha, Alemão, Manguinhos, Jacarezinho e pensarmos nessa proporção para manter o controle, vai ser complicado. O problema também tem a ver com o jeito como é feito. A princípio, a ocupação do Estado é policial e se deseja partir para uma ocupação social. Só que o protagonismo estava sendo da Secretaria de Segurança. Tanto é que a comandante Priscila, que foi escolhida para comandar esses homens, foi escolhida a dedo. É uma mulher, jovem, negra, muito tranquila, bem preparada, aguenta o tranco, e está lá. Essa mistura de mãe responsável, para onde todos os problemas convergem, essa imagem que foi criada pela imprensa a partir dessa figura, é muito complicada. E isso eu falei para a comandante Priscila, porque para o morador de favela só existem duas possibilidades: ou ele está sob a batuta do tráfico ou da polícia, ainda que seja de uma polícia legalzinha, boazinha,

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mansa. Não há espaço para o exercício da sua cidadania, da sua liberdade, da sua crítica.

DV – Como isso tem funcionado? Itamar – Da mesma forma que não se podia criticar o tráfico, também não há espaço para criticar a atuação da polícia. Ao primeiro momento de crítica que houve, a polícia reagiu de forma violenta. Eles tinha proibido bailes depois das duas horas da manhã, quando jovens, voltando de uma noitada, foram para rua e começaram a zoar, a fazer barulho perto do DPO. A polícia reagiu com cassetetes, com bombas. Então, esses mesmos jovens que sofrem quando o tráfico está presente, são os mesmos que sofrem o controle, a ação violenta da polícia. Nessa conversa com a comandante Priscila, que ocorreu em uma reunião aberta, comecei dizendo que não ia falar para ela, que eu respeitava o lugar dela, eu ia falar para os moradores. Já naquele momento, estava preocupado com o muro. Eu digo, a polícia é a polícia, por mais que a comandante Priscila tenha a voz mansa, um olhar plácido, ela é a PM e tem que responder à lógica da PM. Se a coisa apertar, ela vai agir como PM, não como amiga. Falei para os moradores: ‘Ou a gente se organiza e discute os nossos problemas entre a gente, com liberdade, e cria uma estratégia de enfrentar esse momento, ou vamos ficar cada vez mais subordinados à dinâmica do Estado’. É o que está acontecendo. Por que cabe à polícia e à comandante Priscila decidir se uma festa vai até duas, três ou quatro da manhã? Sobre isso, ela disse para mim: ‘O que vale para Ipanema, vale para o Santa Marta, lei é lei’. Eu disse: ‘Não, lei não é lei, as leis respondem a determinadas conjunturas, a determinados arranjos sociais. Por que algumas leis pegam lá embaixo e não servem aqui? Você aciona lá embaixo, mas quando aciona aqui, elas não têm resultado? E aproveitando, se lei é lei, por que a comandante pode definir o horário? O que diz a lei? O que vai definir é um acordo entre esses moradores, essa convivência é que tem que definir quais são as normas possíveis aqui nesse lugar’. Então, essa mediação não é a polícia que deve fazer, tem de ser outro elemento. Isso é complicado, é duro porque, na relação com a polícia, os moradores ficam nervosos, começam a falar coisas, alguns não sustentam a denúncia até o final, ficam com medo e a polícia vai neste ponto, ‘Prova!, Faz a denúncia!’, e a gente sente a população recuando, isso não é diálogo. A polícia já tem um lugar de poder reconhecido e na relação com os moradores, já exerce essa


Itamar Silva

opressão, essa subordinação.

DV – E a questão dos muros nas favelas? Itamar – Vejo com indignação a decisão do governo do Estado de murar as favelas do Rio. Pensei que havíamos superado essa alternativa quando conseguimos dissuadir o então vice-governador Luis Paulo Conde de construir muro na Linha Vermelha, ao longo do Complexo de Favelas da Maré. No entanto, a proposta reaparece com força, travestida de proteção ambiental e com o apoio da mídia, em especial do jornal O Globo. Desta vez, o governador apelou para o argumento ambiental, procurando atenuar o caráter discriminatório presente nessa política que reafirma e cristaliza a segregação espaço-social em nossa cidade. A opção de murar favelas e começar pela zona sul é a evidência de que a iniciativa tem um caráter político eleitoral: visibilidade das favelas nas áreas de maior poder aquisitivo da cidade. O Estado quer mostrar que está contendo o crescimento das favelas. No entanto, a favela onde vivo, ao longo dos seus mais de 70 anos de existência, não expandiu sua área de ocupação. Pelo contrário, o Santa Marta encolheu seu território. Os moradores que vivem mais próximos à mata que ladeia a favela, entram na mata para apanhar frutos, brincam em suas

pequenas clareiras, plantam verduras próximos as suas casas e se beneficiam da convivência com a mata. Esse é um exemplo claro de um bom relacionamento entre esses dois espaços. Agora, nesse projeto de urbanização, a nossa perspectiva era de que ou o Estado voltaria a perseguir a proposta inicial, que previa a construção de plano inclinado nos dois lados do morro, ou, aproveitando o hábito dos moradores, estimulariam atividades de educação ambiental, valorizando essa convivência. No entanto, o muro vem na contramão de tudo isso e é um entrave na perspectiva daqueles que querem e lutam por uma cidade democrática e inclusiva.

Participaram desta entrevista Entrevistadores(as) Do Ibase: Ana Bittencourt Cristina Lopes Diego Santos Dulce Pandolfi Fernanda Carvalho Francisco Menezes Gabriel Gonçalves Jamile Chequer Laura Burocco Marina Ribeiro Mariana Dias Nahyda Franca Patricia Lânes Renata Lins Rogério Jordão Convidados(as): Cleonice Dias e Mario Osava, do Conselho Editorial da DV; e Paulo Magalhães, da CEF Decupagem Ana Bittencourt Diego Santos Edição Ana Bittencourt Fotos Marcus Vini Produção Geni Macedo

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artigo Mario Osava *

Cuba e Colômbia,

países parados Cuba e Colômbia ainda mantêm internamente, cada qual a seu modo, muito do clima de quatro décadas atrás. É claro que muitos aspectos mudaram desde que lá estive entre 1970 e 1972. Há mais restaurantes e cafeterias espalhados pela cidade, principalmente em Cuba, Havana Velha, que recebe muitos turistas europeus. Também brasileiros e chilenos a visitam em boa quantidade, me explicou o comissário da Copa Airlines. Já não é aquela austeridade absoluta e forçada das décadas de 1960 e 70 nem do “período especial” da década de 1990, de forte escassez após o fim do bloco soviético. Já há um certo patamar de consumo, digamos de classe média, para quem tem CUC. Hoje, os cubanos estão divididos entre quem dispõe dessa moeda conversível, equivalente ao dólar, e os que sobrevivem com o velho peso. O CUC circula em Cuba desde 2004, valendo 26 vezes o peso. Na verdade, substituiu o dólar, cuja circulação era permitida desde 1993, gerando dois mercados paralelos. Bens e serviços que se compram com a moeda conversível não são acessíveis à outra. Criou-se uma desigualdade qualitativa. Mas muito ainda parece congelado no tempo. O bloqueio econômico imposto pelos Estados

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Unidos, desde 1962, continua o mesmo, determinando muito da vida, dos dramas e dos sonhos cubanos. O Partido Comunista segue monopolizando o poder de forma inflexível, passando pelo seu crivo quase tudo que ocorre na Ilha. Os expurgos ainda são a parte visível das reviravoltas na política e o anti-imperialismo permanece dominante nas palavras de ordem e nas ações concretas. Na outra ponta do leque ideológico latino-americano, a Colômbia também nos remete a 40 anos atrás, ao clima do “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Boa parte da sociedade colombiana, especialmente os movimentos sociais, tem seus passos truncados pela armadilha do maniqueísmo armado. Quem não é governista, é guerrilheiro, terrorista. Além dos assassinatos por razões políticas, ou interesses particulares mascarados de políticos, têm proporções terríveis os “desplazamientos”. São multidões expulsas das suas terras ou moradias pelo Exército, pelos paramilitares, a guerrilha, o narcotráfico e outros agentes de força que incluem bancos e Justiça (na Colômbia, há um movimento “viviendista” que resiste ao desalojamento judicial de mais de 800 mil famílias inadimplentes do financiamento habitacional a juros de 37% ao ano). Qualquer resistência ou atitude crítica pode significar risco de morte. Muitos, como os índios, camponeses, professores e sindicalistas, vivem sob permanente fogo cruzado. Em fevereiro, 17 índios Awá foram assassinados, 13 deles pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), segundo a Organização Nacional Indígena da Colômbia (Onic). A guerrilha justificou o massacre acusando os índios de terem sido informantes do Exército. Por outro lado, muitos mais foram os índios mortos pelos militares por suposta colaboração com a guerrilha. Nos últimos sete anos, foram 1.303 assassinatos cometidos por todas as forças em conflito, Exército, guerrilha, polícia e paramilitares, e esses crimes se intensificaram no inicio de 2009, denunciou a Onic. Parece haver um acordo mesmo entre tropas inimigas para massacrar e expulsar os índios dos seus territórios, acusa Aida Quilcué, líder indígena do Cauca, departamento do sudoeste que concentra o maior número de índios na Colômbia (ler a respeito entrevista na IPS, disponível em <http://www.ipsnoticias.net/nota. asp? idnews=91817>). A debilidade do movimento camponês e sindical na Colômbia é atribuída principalmente à alta mortalidade dos seus líderes e ativistas, além do desterro a que foram obri-

gados milhões de trabalhadores pela guerra, pelas ameaças e atentados de todo tipo. São deslocamentos forçados dentro do país e para o exílio, na tentativa de salvar a pele. Os deslocados internos somaram 4,63 milhões de pessoas entre 1985 e 2008, segundo a Consultoría para os Direitos Humanos e Deslocamentos (Cohdes), de Bogotá. É pouco mais de 10% da população total. O governo admite uma cifra menor, 2,93 milhões, para um período menor, de 1997 a fevereiro de 2009. Um estudo da Comissão Colombiana de Juristas, conduzida pela advogada Lina Paola Malagón, listou 2.694 sindicalistas assassinados nos últimos 23 anos, 685 dos quais dirigentes e com total impunidade em 96% dos crimes. É preciso uma reposição acelerada de líderes, e nisso a Colômbia deve ser campeã, para manter minimamente ativos os movimentos. Grande parte das lideranças morre na tentativa de abrir terceiras vias, rejeitando a adesão a um ou outro lado da confrontação armada, a dicotomia entre governo e guerrilha que sufoca alternativas e justifica o massacre.

Comparações Visitei Cuba em março de 2009, 37 anos após ter vivido lá por dois anos e meio. Agora, com outros olhos, sem as ilusões revolucionárias da década de 1960, me encantei com Havana Velha e sua restauração, um trabalho que talvez demande séculos. São milhares de edifícios, igrejas e solares monumentais que merecem reviver, após muitas décadas de deterioração. Esse imenso patrimônio histórico, cultural e arquitetônico, construído nos séculos 16 e 17, mais o centro de Havana, bairros como Vedado e Miramar e as longas “calzadas” rumo à periferia, com seus casarões e colunas separando as calçadas internas e descobertas, só sofreram alterações pela ação do tempo nesses 50 anos da revolução cubana. A degradação pela falta de manutenção teve como contrapartida a conservação arquitetônica e urbanística da cidade, tal qual a encontraram os guerrilheiros vitoriosos em 1959. Tivesse Cuba seguido a lógica capitalista, boa parte dos bairros históricos teria sido substituída pelos arranha-céus, shopping centers e edifícios modernos, como ocorreu em São Paulo e no Rio de Janeiro. Fica claro por essa herança que Cuba tinha, em 1959, uma elite e classe média urbana de uma pujança econômica praticamente sem similar na América Latina, em proporção à sua população. Algo diferente da imagem de país

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artigo

* Mario Osava Jornalista da agência de notícias InterPress Service (IPS) e membro do Conselho Editorial da revista Democracia Viva

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pobre e prostituído, “campesino”, que correu o mundo nas interpretações da revolução. A restauração de Havana Velha, uma façanha do historiador Eusebio Leal, é provavelmente emblemática das lentas transformações que vive Cuba. Sua administração pela Oficina do Historiador tem autonomia, com um orçamento próprio alimentado pela renda gerada internamente, principalmente pelo turismo e a exploração dos espaços e edifícios. Quase toda a arrecadação é investida em restauração e projetos sociais do próprio “casco viejo” da cidade. A atividade libertou-se assim, em certa medida, do sufocante controle que exercem a burocracia e as rígidas regras sobre a economia, a política e todos os setores da sociedade. Um restaurante, por exemplo, ainda que privado, não pode adquirir produtos hortícolas diretamente dos produtores, nem mesmo autoabastecer-se contando com uma chácara própria. É um país ainda amarrado pela vigilância que aparentemente se exacerbou pela pressão das “ameaças imperialistas”, do bloqueio econômico, em um ambiente de Guerra Fria, e não parece perto de nenhum abrandamento – a julgar pelo recente expurgo do ex-vice-presidente Carlos Lage, mentor dos ajustes econômicos da década de 1990, e do ex-chanceler Felipe Perez Roque. Mas o aspecto que mais impressiona um observador estrangeiro é a quantidade de graduados universitários ocupados em atividades muito abaixo e discrepantes da sua formação. Engenheiros trabalhando como taxistas, economistas na recepção de um hotel, biólogos trabalhando em bares. Cuba virou uma grande exportadora de médicos. Os diplomados excedentes se encontram por toda parte, em uma inflação educacional que desmoraliza qualquer planejamento. Uma faculdade de informática forma cerca de 2 mil engenheiros ao ano, quase todos condenados a subutilizar seus conhecimentos em um país onde a banda larga de Internet ainda é um sonho distante, mesmo para profissionais de comunicação, como correspondentes internacionais. Uma linha dedicada de baixa velocidade custa cerca de mil dólares mensais. Resultado: o sonho de muitos desses jovens é emigrar, tentar a sorte e realizar-se profissionalmente no exterior. São raros os autorizados a fazê-lo por ter parentes fora ou algum dos limitados esquemas para sair da Ilha. A situação favorece a transformação de Cuba em uma grande fornecedora de serviços de offshore outsourcing, a exemplo da índia.

Há uma farta mão-de-obra qualificada e ociosa, de custo baixíssimo. Algumas centenas de dólares (ou CUC) representam uma fortuna para o cubano comum de hoje. Estão disponíveis centenas de milhares, senão milhões, de jovens com formação universitária, cuja ocupação remunerada em divisas pode ter um grande impacto na economia cubana, com provável repercussão na vida política. Para o regime, tem a vantagem de dinamizar a economia e trazer divisas sem os “inconvenientes” do turismo que estabelece o contato entre estrangeiros e nacionais. Mas só será possível com uma internet rápida, menos controlada, e a disposição governamental de abrir o país a essa atividade econômica. Os jovens com quem conversei sobre isso são meio céticos. O regime terá outras prioridades quando o cabo de fibra ótica que se está implantando entre Venezuela e Cuba permitir uma banda larga de fato, acreditam. Não se vislumbra nenhum movimento social ou político interno que possa romper as amarras econômicas e políticas. O processo vivido por Cuba nestes 50 anos não fortaleceu a sociedade civil, sua participação, sua mobilização, pelo contrário. Os Conselhos de Defesa da Revolução, organizados nos bairros, hoje em nada lembram o ativismo do inicio da revolução. Isso faz concentrar as esperanças em um fim ou relaxamento do bloqueio americano. São incertos os rumos econômicos. Uma informação que me surpreendeu foi a de que Cuba hoje importa açúcar, depois de desativar a maioria das usinas. Algumas mudanças setoriais são sensíveis em Cuba. Já não se reprimem os homossexuais, tidos como contrarrevolucionarios nas décadas passadas. Mas isso se deve à atuação de Mariela Castro, filha do agora presidente Raul Castro, uma psicóloga que defende a diversidade sexual. As boas relações atuais de Cuba com Colômbia indicam que tudo mudou nas questões que interessam aos dois lados e acabam por contaminar todas as lutas políticas e sociais da Colômbia, sobrando violência principalmente para aqueles que, como os índios, têm seu território disputado. O presidente Álvaro Uribe trata de identificar a guerrilha como única inimiga, identificando com ela toda oposição incômoda.


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Viva Favela Editora Olhares 120 págs.

Lançado no dia 31 de março, na Livraria Folha Seca, no Centro do Rio de Janeiro, o livro Viva Favela é composto por cerca de 50 fotografias retiradas do acervo de quase 50 mil imagens de favelas cariocas, produzidas desde 2001 por correspondentes comunitários do portal Viva Favela. As imagens revelam uma favela desmistificada, na qual não predomina o lado espetacular, normalmente explorado pela imprensa, nem a visão estereotipada, comum àqueles que não conhecem a realidade das favelas e propagam o preconceito e o distanciamento. Nas palavras de Zuenir Ventura, que escreveu o prefácio, as fotografias do Viva Favela “substituem a velha atitude generosa, mas paternalista e distante, por um olhar natural, de dentro, sem estranhamento etnocêntrico”. A edição do material foi realizada pelo Viva Rio, em parceria com a Editora Olhares, para a ocasião das comemorações dos 15

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anos da ONG. As imagens presentes no livro foram feitas por sete correspondentes comunitários do Viva Favela, isto é, jovens moradores de favelas cariocas que foram treinados como fotógrafos para registrar o cotidiano das suas comunidades. A princípio, cada correspondente era responsável por registrar a sua comunidade, mas logo decidiram que registrariam também outras favelas, resultando nesse variado panorama das favelas cariocas presente no livro. Deise Lane, do Complexo da Maré; Nando Dias, da Rocinha; Rodrigues Moura, do Complexo do Alemão; Tony Barros, da Cidade de Deus; Walter Mesquita, ex-correspondente de Queimados e atual editor de fotografia do portal; além das ex-editoras Kita Pedroza e Sandra Delgado são os fotógrafos que registraram o dia a dia em favelas como Rocinha, Mangueira, Morro do Cavalão (Niterói), Cidade de Deus, Queimados, Cantagalo, Complexo da Maré, Complexo do Alemão, Carangueijo, Pavão/Pavãozinho, Morro da Providência, Salgueiro, Morro da Formiga, Morro Santa Marta, entre outros. As lentes dos fotógrafos buscam a beleza e a poesia na simplicidade do cotidiano das comunidades e mostram que favela é muito mais que miséria, violência e narcotráfico, sem, no entanto, deixar de lado os problemas das comunidades, servindo também como ferramenta de denúncia. Em outras palavras, valoriza-se o aspecto humano das favelas: as alegrias, as dificuldades, as tristezas e as manifestações culturais do cotidiano dos moradores de favelas, uma realidade muitas vezes desconhecida pelos moradores do asfalto. Crianças brincando, mulheres trabalhando, jovens dançando no baile funk, a tristeza daqueles que perderam filhos na chacina da Baixada, um muro repleto de buracos de balas, resultado de


Walter Mesquita

Tony Barros

Nando Dias

conflitos entre traficantes e policiais, e o sincretismo religioso brasileiro são alguns dos temas retratados. Grande parte das fotografias que compõem o livro integrou a exposição itinerante Moro na Favela, que foi fruto do Open Society Institute Documentary Photography Distribution Grant, prêmio internacional de estímulo à fotografia documental acerca dos direitos humanos, conquistado pelo Viva Favela em 2005, em Nova Iorque. Durante um ano, a exposição percorreu as comunidades

cariocas, levando de volta para os lugares onde foram feitas as imagens premiadas em âmbito internacional. Além das fotografias, integram o livro Viva Favela artigos (em versão bilíngüe – português e inglês) do diretor executivo do Viva Rio, Rubem César Fernandes, dos responsáveis pelo projeto editorial, Otávio Nazareth e Mayra Jucá, que também é coordenadora do Viva Favela, e do professor da New York University e da The New School University, Peter Lucas. A coordenadora do portal Viva Favela relembra a sua inauguração, o primeiro portal da internet totalmente dedicado ao cotidiano dos moradores das favelas do Rio de Janeiro, em 2001. A iniciativa, segundo Mayra, partiu do estímulo de moradores de favelas que buscaram o apoio do Viva Rio para tentar mudar a forma como eram retratados pela imprensa. “Através do projeto, surgiram, pela primeira vez na internet, reportagens fartamente ilustradas e ensaios fotográficos que contribuíam para aproximar, desmistificar, instigar a curiosidade dos ‘de fora’ e restaurar a autoestima dos ‘de dentro’ da favela”, explica. Em seu artigo, Peter Lucas reforça a posição da coordenadora do Viva Favela, ao defender que o portal não é apenas uma revista online sobre as comunidades cariocas, mas sim uma espécie de ponte virtual que busca encurtar as distâncias entre as realidades da favela e do asfalto, sem depender da mídia: “É parte de um movimento internacional de inclusão visual para transformar a mídia dominante. Um de seus objetivos é influenciar a maneira como a grande imprensa retrata as favelas”, escreve. Graciela Bittencourt

Jornalista, assessora de imprensa do Viva Rio Pedidos: <www.editoraolhares.com.br>

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Quilombos – Geografia africana, cartografia étnica e territórios tradicionais Rafael Sanzio Araújo dos Anjos Editora Mapas & Consultoria 190 págs.

A criatividade e a perfeição talvez sejam as paixões do autor Rafael do Anjos. Estas ele as utiliza na riqueza dos resultados da pesquisa que deu origem ao livro e na qualidade da exposição que nos põe diante de um catálogo de arte sobre a ancestralidade africana e sua espacialidade no Brasil na qual o livro se transformou. O autor é geógrafo por formação e por paixão, ver e ler esse trabalho nos faz refletir sobre dois fatos importantes. O primeiro é sobre a pluralidade da formação do autor, que transita

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do planejamento regional e urbano às utilizações das novas tecnologias da cartografia, passando pela história e antropologia como subsídios do trabalho de pesquisa. Vendo e lendo livro algum, catálogo de arte com expressões da geografia cultural, o trabalho nos remete a um segundo pensamento, que a geografia no Brasil tem uma feliz ancestralidade que Rafael dos Anjos bem preserva. Olhando o trabalho, me lembra as ricas ilustrações e destreza da cartografia e geografia de gênio intelectual de Theodoro Sampaio do século retratado nesse livro. Vendo os refinamentos de detalhes etnográficos me lembra o piauiense Julio Romão da Silva. Andando pela densidade teórica do texto, mas pela simplicidade e clareza da exposição, temos o pensamento em Milton Santos. É livro bonito, bem escrito, com uma composição gráfica impecável, onde o texto baila como uma explosão de fotografias e mapas que nos permite uma viagem pela história e pelos ambientes geográficos de origem da população africana que transplantam para o Brasil e suas expansões. Atesta que o africano, apesar de submetido ao escravismo criminoso, colonizou o Brasil com as suas bagagens culturais e econômicas, dando origens a ciclos das economias agrícolas, mineradoras e pecuárias brasileiros. A introdução ao texto, feita em cinco línguas, das quais se destaca o Kikongo, da região de Angola, Congo, bem explica o projeto da obra, nos abres para o Brasil como território constituído pelas matrizes africanas, noções não muito usuais nas ciências humanas brasileiras, mas de preciosa referência para quem queira compreender a


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complexidade da nossa formação social e econômica. A geografia como ciência dos territórios, nas suas dimensões múltiplas inter-relacionadas, processando a cultura, a política, a economia, e produzindo povos expressivos pelas suas identidades. Todas essas dimensões postuladas numa amálgama da fotografia, da cartografia e do texto como suportes de expressão e reflexão. São os desenhos da nação impostos pela expansão econômica escravista. Mas as reações impostas pelos signos da liberdade na constituição de um enorme legado quilombola, de uma diversidade de formas de morar, construir e se inscrever nos espaços geográficos. Em suma, retomando a tese do antropólogo Frances Roger Bastides, o Brasil é um território de contrates e complexidades. O texto é uma memória histórica e geográfica da saga das matrizes africanas no território brasileiro. Um texto que serve de referência para diversos públicos e que comporta diversos olhares. Temos nesse livro uma contribuição muitíssimo bem-vinda para introdução da história e cultura africana e afrodescendente nos vários graus educacionais, desde o fundamental ao ensino universitário. Dadas as apresentações das imagens textuais de África e Brasil, vendo, lendo e relendo esse livro de Rafael, as minhas inspirações viajaram pelos textos literários da Casa D’água, do escritor Antonio Olinto, que faz a mesma viagem de Rafael no sentido inverso, indo do interior do Brasil, na saga de mulheres negras, para o interior da África, explorando os conteúdos das falas e dos cheiros. Aqui, Rafael dos

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Anjos na literatura da imagem cartográfica-fotográfica nos traz a poesia do concreto da África para o Brasil, em sequências temporais territoriais. Do texto, por fim, aprendemos as tipologias das construções e das diferenciações de vilas quilombolas, produzindo uma rica possibilidade de reflexão para os cursos de arquitetura e urbanismo brasileiro que têm uma dificuldade em expor o fator humano da moradia e da racionalidade do espaço construído numa perspectiva de Brasil. Rafael nos remete muito mais além, via uma perspectiva da espacialidade afro-brasileira. O trabalho encontrado neste livro-catálogo de referência encanta os leitores e pode ser tido como referência obrigatória para compreensão da história e cultura brasileira.

Henrique Cunha Junior

Professor titular do Programa de Pósgraduação em Educação Brasileirar da Universidade Federal do Ceará Pedidos: <quilombo@unb.br>

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artigo José Correa Leite *

Belém 2009:

o Fórum O Fórum Social Mundial (FSM) 2009, que se realizou em Belém do Pará, porta de entrada para a Amazônia brasileira, representou uma grande experiência socioambiental para o altermundialismo. O encontro com movimentos de povos indígenas da Amazônia, dos Andes e de todo o continente, de ribeirinhos, quilombolas e extrativistas, foi, nesta escala e como diálogo político entre semelhantes, inédito para a esquerda brasileira e internacional e para seus atores “clássicos”. Os movimentos indígenas apresentaram para o debate elementos articulados de uma proposta alternativa para a sociedade, oposta ao insaciável mundo capitalista em crise – produtivista, industrialista, predatório e consumista, baseado no desperdício e na descartabilidade – e também de seu marco político, o Estado nacional. Sustentaram a proposta de um mundo descolonizado, baseado em justiça ambiental, bens comuns e no bem viver, articulado a partir de direitos coletivos em Estados plurinacionais. E começaram a construir uma aliança estratégica com o movimento global por

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justiça climática e com a nascente coalizão de povos sem Estado. O diálogo aberto pelos movimentos da Panamazônia e da região andina com um vasto leque de atores sociais e políticos no plano continental e mundial pode ser crucial para reconstruir um marco estratégico de luta por uma integração regional alternativa e pela transformação social frente a um capitalismo em crise e um planeta que caminha para o colapso ambiental. Mas nada disso foi destacado pela imprensa ou valorizado por alguns dos que compareceram ao FSM 2009. Terminado o evento, abriu-se uma disputa pela sua “interpretação”, que está se dando sob a forma de “avaliações” do Fórum. A crítica mais contundente não veio, desta vez, da direita, já que os porta-vozes de Davos estão desmoralizados pela crise global. O discurso buscando a desconstrução do FSM está partindo, agora, de diferenciadas forças da esquerda institucionalizada ligadas a alguns governos do continente. Aí se somam posições incomodadas, seja com o tom geral das atividades deste Fórum, fortemente crítico à administração Lula – por seu compromisso com o capitalismo globalizado e uma economia voltada para fora, que emergiu claramente nos debates sobre a Amazônia e o “modelo de desenvolvimento” –, seja com as críticas de movimentos sociais indígenas aos limites de outros governos da região com posições mais à esquerda – como a dos indígenas equatorianos que combatem a lei mineira proposta pelo governo Correa. O desconforto resulta em discursos que dizem ser o Fórum um desperdício de energia, pelo que consideram uma rejeição da política pelo social (como se eles pudessem ser contrapostos nos projetos de transformação da sociedade), a negação do que veem como radicalidade política (que seria privilégio dos governos ou partidos de esquerda) ou o protagonismo das ONGs oposto ao dos movimentos sociais (fazendo vistas grossas às clivagens políticas que perpassam as duas formas de organização). Como caricaturas, estes “balanços” já estavam previamente escritos e são agora publicados em uma operação de “copia e cola”, sem qualquer exame detido do que se passou em cerca de 2 mil atividades realizadas no FSM. Na mesma direção e ecoando essas posições, como era de se esperar, a grande mídia cobriu o Fórum essencialmente como o encontro entre chefes de Estado latino-americanos de esquerda.

Mas esse é um aspecto acessório ao evento. Constituíram-se, na última década, vários “fóruns” para encontros e confrontações entre movimentos, partidos e governos, em reuniões de cúpulas e contracúpulas (a última das quais foi em dezembro de 2008, em Salvador). Mas só o FSM se destina a compartilhar experiências, construir alianças, organizar campanhas e estimular a reflexão estratégica de entidades e movimentos da sociedade civil. Sem o reforço e a defesa da autonomia dessas organizações (e do próprio Fórum), parece evidente que qualquer força política progressista que alcance um governo permanecerá refém dos que detêm o poder econômico e não será capaz de fazer jus a seus compromissos de mudança social. Mas nenhuma dessas críticas parece relevante quando examinamos as atividades estruturantes do FSM 2009. Encontramos nelas um cenário em tudo oposto a isto: uma importante rearticulação de iniciativas de mobilizações e lutas globais (estagnadas depois de 2003) e, antes de tudo, uma reflexão inovadora na mais grave conjuntura desde a Segunda Guerra Mundial. Para aqueles com abertura para o novo na história e capacidade de escuta, encontramos em Belém, principalmente nas atividades que convergiram em assembleias no dia 1º de fevereiro ou em sínteses políticas, uma profunda renovação da elaboração política radical. O FSM 2009 em Belém poderá, para os que buscam novos caminhos para a esquerda, passar para a história como o mais importante evento na trajetória do processo.

Ciclos de luta e mobilizações Belém consolidou, a partir de uma nova metodologia (assembleias de convergências temáticas e a Assembleia das Assembleias – ao final, sistematizada pela reunião do Conselho Internacional do dia 2 de fevereiro), um calendário bastante integrado e consensual de mobilizações globais para 2009-2010 – onde tem destaque a solidariedade com a Palestina e as mobilizações contra o G-20 (28 de março a 4 de abril), em defesa da Terra (12 de outubro) e por justiça climática contra o que se desenha nos acordos de Copenhagen (12 de dezembro). Esse calendário será agora testado pelos movimentos, organizações e entidades do “mundo FSM” no seu diálogo com o conjunto dos movimentos e a sociedade civil global, em um processo que pode permitir retomarmos uma iniciativa análoga à vaga de mobilizações globais de 1999 (Seattle) a 2003 (protesto

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Fotos: Samuel Tosta / FSM 2009, Belém/PA

artigo

contra a invasão do Iraque). Em suas primeiras edições, o FSM foi o espaço de articulação do calendário de mobilizações contra a globalização neoliberal e a guerra. Mas foi capaz de fazer isso porque conseguiu consolidar a agenda política da esquerda da virada para o século 21, inspirando grande número de entidades e movimentos. Ele soube captar as experiências e aspirações da pluralidade de atores que, depois de Seattle, confrontavam abertamente o G-8 e as instituições multilaterais, buscando alternativas de sociedade em escala global. O processo desenvolvido em Porto Alegre de 2001 a 2003 foi bastante enriquecido em Mumbai, em 2004. Nesses eventos, os atores fundamentais da esquerda que ainda mantinham uma perspectiva antissistêmica se recompuseram e voltaram a criar uma autoidentificação em escala global, segundo novos parâmetros, distantes daqueles da esquerda do século 20, embora ainda reconhecíveis por ela (o que não deixou de provocar uma forte reação negativa dos que não conseguiram dar esse passo – em Mumbai, tivemos até mesmo um Fórum paralelo promovido pelos partidos maoistas). Tratava-se, em geral, de uma esquerda plural e diversa, fortemente internacionalista, estruturada horizontalmente em redes e coalizões e critica, não só ao mercado, mas também ao estatismo. Mas esse movimento, do qual o FSM é uma expressão, não foi capaz de enfrentar a mudança na correlação de forças estabelecida pela militarização das relações internacionais

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imposta por Bush, depois da invasão do Iraque, em 2003, mudança alavancada pelo ciclo de forte expansão econômica mundial de 2002 a 2008. O FSM 2005, em Porto Alegre, já se realizou em uma conjuntura mundial muito mais adversa, sem que o movimento global tivesse novas propostas ou capacidade de sustentar o patamar prévio de mobilização. Fragmentação e recuo dos movimentos específicos para os marcos nacionais ou regionais deram a tônica global nesse período, com a dinâmica de busca de alternativas na América Latina diferenciando-a dos demais continentes (o recuo político na Europa não foi tão grande como nos Estados Unidos sob Bush, mas ainda assim foi significativo). Desenvolveram-se, na nossa região, grandes diferenças entre as dinâmicas nacionais, seus movimentos sociais e os governos ditos “progressistas” – já presentes em Porto Alegre, em 2005, no contraponto entre um ato de Lula, organizado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), e um de Chávez, organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). As iniciativas do processo Fórum buscaram, nestes anos, preservar as conquistas dos quatro primeiros eventos centralizados – sustentando uma ilusão de expansão em 2005 (em Porto Alegre), tendo mais sucesso no evento descentralizado de 2006 (Caracas, Bamako e Karachi), conhecendo uma desacumulação importante em 2007 (Nairóbi) ou mantendo uma posição simbólica em 2008 (Dia de Ação Global). Mas embora nossos fóruns tivessem sido mais ou menos bem sucedidos, eles não substituíam os atores que neles se articulavam. As determinações fundamentais do que se expressa no FSM sempre estiveram nas lutas e nos movimentos da sociedade civil, na vitalidade de seu tecido associativo, nas relações de forças globais, nas determinações sociais, geopolíticas e ideológicas, e não em sua dinâmica interna. E é bom que assim seja – algo que nunca é aceito pelos críticos do FSM. Agora, essa dinâmica parece ter se alterado de forma significativa em Belém, tanto pela crise econômica como pela ação dos seus sujeitos sociais. A crise é exemplar da aceleração do tempo histórico: propostas por décadas consideradas utópicas e irrealistas (como a estatização do sistema financeiro dos Estados Unidos), em questão de semanas, não apenas entraram na agenda política do mainstream como estão sendo efetivadas por ele. Ela mostra também que se mudanças e reformas não ocorreram, não foi por falta de recursos, mas


Belém 2009: o Fórum mais importante

por falta de vontade política (e correlação de forças). Contudo, a grande novidade de Belém foi a presença de novos atores políticos e de novas demandas de velhos atores, que tem condições de oxigenar todo o movimento global, oferecendo-lhe agora um norte e um impulso igualmente inovador e radical.

Nova agenda para a esquerda antissistêmica A vitalidade política que se expressou em Belém renova, de forma significativa, o processo FSM. Ela pode, se consolidada, relançá-lo para um protagonismo análogo ao de seus anos iniciais, ainda que com uma arquitetura e com atores muito diferentes. O FSM 2009 foi muito diferente dos fóruns anteriores – talvez o de Mumbai tenha sido o que mais dele se aproximou. Foi um fórum no qual, ao lado de todas as atividades auto-organizadas pelos atores tradicionais, tivemos a atuação central de uma série de atores sociais amazônidas, até então pouco presentes no processo: populações indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas. E também uma presença importante dos movimentos indígenas da região andina, que vêm sustentando, nos últimos anos, forte mobilização e atividade política – que explica o sucesso e a conflitividade de governos progressistas como os de Evo Morales e Rafael Correa. Isso introduziu no foco da discussão a

crítica ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo Lula no Brasil e sua projeção continental, a Iniciativa para Integração da Infra-estrutura Regional da América do Sul (Iirsa), formulada por Fernando Henrique Cardoso (FHC) e alavancada por Lula – expressões de um modelo de “desenvolvimento” destrutivo, extrativista exportador, onde comunidades são expropriadas de seus territórios e represas, rodovias e portos são construídas para impulsionar a mineração, a siderurgia, a geração de energia e o agronegócio, cujos produtos são destinados ao mercado mundial. Construímos represas para produzir alumínio para a China ou destruímos a floresta para exportar carne e soja para os norte-americanos e europeus! Externamente, há um claro imperialismo (ou subimperialismo) do Brasil, com Brasília respaldando todo tipo de atitudes questionáveis das corporações brasileiras na região. A pergunta feita pelos movimentos de justiça ambiental no Brasil e na região é: “progresso” para quê e para quem? A tonalidade marcadamente antidesenvolvimentista (isto é, antimercado global) dos atores populares sul-americanos que compareceram a Belém foi reforçada pelo diálogo com o movimento por justiça climática lá presente, que há muito vem apontando o caráter predatório do crescimento capitalista e de seu modelo de sociedade – e rejeita as propostas paliativas que estão sendo construídas pelos governos

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nas negociações para a Cúpula de Copenhagen sobre o clima (em dezembro de 2009). Isso cria um forte conflito com o governo Lula no Brasil, em especial nos projetos para a Amazônia e no seu vínculo umbilical com o agronegócio (a começar pelos agrocombustíveis) e a mineração exportadora; mas também gera contradições com o “socialismo petroleiro” de Chávez – embora, nesse caso, haja uma simpatia à luta bolivariana tanto pela soberania face às ameaças norte-americanas como pelo controle dos recursos naturais pelos próprios países da região (ainda que nem sempre pelas comunidades concernidas). O que temos é, portanto, uma posição que rejeita não só a globalização neoliberal, mas também as propostas neokeynesianas e neodesenvolvimentistas que ignoram a crise socioambiental e têm sido o horizonte da maioria dos governos de esquerda da América Latina. Frente à crise no terreno industrial, Lula e Cris-

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tina Kirchner, como Obama e Sarkosy, apostam no subsídio à venda de automóveis, reforçando as emissões de carbono, o caos urbano e a desigualdade social. E com o apoio entusiástico dos sindicatos de seus países, que, na maioria dos casos, são incapazes de disputar qualquer tema que não seja estritamente corporativo, ignorando a mudança da estrutura da classe trabalhadora e neutralizando o debate sobre a indispensável re-estruturação produtiva da indústria hoje existente (que terá de ter suas atividades reorganizadas em qualquer saída popular da crise). A adaptação ao mercado chega a pontos caricatos, como no estande da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que tinha até mesmo uma maquete da Usina de Belo Monte, combatida pelos movimentos populares e destinada a produzir energia para produção de eletrointensivos voltados para a exportação. A paralisia imaginativa é forte: mesmo um movimento social de esquerda importante, como o MST, tenta reviver, em torno do tema do “pré-sal”, a campanha nacionalista do “petróleo é nosso” da década de 1950, ignorando que a Petrobras tem de ser, antes de tudo, re-estatizada, e que o debate ecologista aponta a necessidade de uma rápida e radical mudança da matriz energética (os indígenas equatorianos sustentam que, hoje, é melhor que o petróleo fique enterrado para as gerações futuras, quando talvez tenham mais sabedoria em lidar com esse recurso, e não seja queimado e lançado na atmosfera). Corporações de mineração, energia e agronegócios, empreiteiras, grandes bancos são, no Brasil e em toda a América do Sul, combatidas por importantes movimentos populares. E isso se combina não só com a luta anti-imperialista tradicional focada em Washington, mas, crescentemente, com a luta contra o imperialismo (ou subimperialismo) brasileiro na região, em que grandes capitais controlados por executivos brasileiros se expandem no espaço econômico integrado que está se formando no continente sob a batuta do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES). Empresas como Vale do Rio Doce, Petrobras, Odebrecht, Camargo Correa, Votorantin, Itaipu, Friboi, Itau/Unibanco e outras têm de ser enfrentadas em um movimento integrado no Brasil e nos demais países da região – como apontaram várias atividades deste Fórum. E a dívida, como instrumento de dominação externa, deve ser anulada em todas as suas dimensões, mesmo aquela contraída pelos países da região junto no Brasil.


Belém 2009: o Fórum mais importante

Na reconfiguração das relações internacionais em curso, que amplia o espaço regional do capitalismo brasileiro na globalização neoliberal, o movimento contra as corporações nacionais torna-se parte essencial de qualquer proposta real de integração regional dos povos do continente. Mas as aparências não devem nos enganar: sob a superfície do reforço geral da crítica ao capitalismo, em função da profundidade da crise, este Fórum evidenciou uma diferenciação política muito importante, inexistente em qualquer FSM até agora. A “resposta à crise” por parte da esquerda que tem um horizonte neokeynesiano e desenvolvimentista tem poucos pontos de contato com aquela da esquerda que busca um programa de transição para um novo “modelo de civilização” para além do capitalismo. Isso significa não apenas a ruptura com o neoliberalismo, mas com o industrialismo, o produtivismo e o consumismo, com facetas do capitalismo que têm sido reproduzidas ou permanecem como meta em várias experiências do socialismo real. Na crítica a essas propostas postas em xeque pela história do século 20, os movimentos indígenas da Bolívia, Peru e Equador têm um papel importante, propondo um diálogo amplo com a esquerda global em torno do tema “crise de civilização”. A ruptura não é só com o economicismo dominante na esquerda, é também com o horizonte político tradicional do Estado nacional. O debate sobre a organização política em Belém foi marcado não só pela resposta necessária à criminalização dos movimentos sociais e da pobreza, mas também por questões como direitos coletivos e Estados plurinacionais (para arrepio dos nacionalistas), impulsionando uma nova relação das comunidades com o território. Isso projeta uma reapropriação muito maior da política pelas populações envolvidas e um questionamento mais amplo das estruturas políticas dominantes, permitindo o diálogo e a ação política conjunta com uma vasta coalizão, que se expressou com peso, também pela primeira vez neste Fórum, de “povos sem Estado”, de curdos a catalões, de indígenas sul-americanos a palestinos, e lançou uma rede mundial. Uma esquerda não ossificada, que nos países centrais assume a centralidade da luta dos trabalhadores imigrantes contra o racismo, a xenofobia, a exclusão e pela cidadania, pode, na periferia do sistema, tomar essas reivindicações políticas como um importante estímulo para repensar também o protagonismo dos

movimentos populares urbanos no “planeta favela”. E, além do direito à cidade, à moradia e aos serviços urbanos, a reapropriação do território urbano pelos seus habitantes exige uma re-estruturação radical do espaço (para a qual um manifesto dos cicloativistas apresentou questões instigantes), uma reforma urbana que adquire um lugar cada vez mais central na reorganização da sociedade do ponto de vista ambiental. Como lembrou David Harvey na palestra de abertura da Tenda da Reforma Urbana, direito à cidade significa direito de todos nós criarmos cidades que respondam às necessidades humanas. A aceitação de que vivemos uma convergência de crises e que a busca de um novo modelo de sociedade baseado na justiça social e ambiental é estruturante de qualquer resposta à ela, posição expressa na assembleia “Trabalho na crise global”, é significativa das mudanças que emergem para os grandes movimentos sociais herdados do século 20 – o sindical e o camponês. Mesmo se eliminássemos todo desperdício, inevitável em uma economia de mercado, e substituíssemos a atual economia aberta (baseada em um ciclo de produção, distribuição, consumo e descarte) por um circuito fechado (produção, distribuição, consumo e reciclagem), parte importante da atividade econômica atual é irracional, ambiental e socialmente, tendo um impacto muito destrutivo sobre o planeta e as pessoas. Não se trata apenas da produção de armas, automóveis e da publicidade, mas também de parcelas da mineração, da siderurgia, do comércio e da atividade agrícola e pecuária, de quase todas as atividades ligadas ao petróleo e ao carvão... A atividade econômica organizada segundo uma racionalidade capitalista se mostra crescentemente irracional, não sendo capaz de levar em conta os impactos ambientais das atividades produtivas (os mercados de créditos de carbono, se generalizados, seriam apenas uma caricatura disso...). A humanidade viveria muito melhor sem boa parte daquilo que é hoje produzido, sob outra lógica econômica, ambiental e social, consumindo muito menos energia e insumos, transitando de uma economia do stress para uma economia da qualidade de vida. Isso implica a necessidade não só de uma profunda re-estruturação econômica (energia, transporte, indústria, agricultura, estrutura urbana), com o desmonte de certos ramos e a criação/desenvolvimento de outros,

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* José Correia Leite Filósofo, professor da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e representante do Attac/Brasil no Conselho Internacional do FSM

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mas também uma reversão das tendências ao livre comércio, uma desglobalização em favor de processos de integração regionais mais fechados em âmbito continental, de modo a permitir que as comunidades possam decidir sobre sua própria atividade produtiva sem as pressões destrutivas do mercado mundial – que hoje têm como parâmetros os custos da força de trabalho asiática e a ausência de considerações ambientais (considerados externalidades pela lógica capitalista). A adoção de cláusulas ambientais e sociais pode ser um componente importante no trabalho necessário de desconstrução do liberalismo alucinante das últimas décadas, impulsionado pelas finanças globais. O movimento sindical só tem futuro liberto de qualquer corporativismo, como articulação das lutas do conjunto do mundo do trabalho em escala global, sob suas formas cada vez mais heterogêneas, e como organização de sua participação no processo de reorganização de que a sociedade necessita (mesmo com a redução radical da jornada de trabalho e a generalização da garantia de formas de renda básica para todos). A defesa incondicional dos postos de trabalho na crise pode, sem isso, levar o movimento sindical a se chocar contra as demandas de caráter socioambiental, como

insistiram várias atividades em Belém. O fato do FSM se realizar na Amazônia iluminou também o caráter predador da grande agricultura capitalista. O agronegócio, componente importante do comércio global de recursos naturais, é estruturante do modelo neoliberal, fornecendo milho e soja para a produção de proteína animal, matéria-prima para etanol e biodieseis, comercializando carne e madeira; as iniciativas de soberania alimentar devem significar o desmonte das corporações da grande indústria no campo, cada vez mais baseada no petróleo – objeto de grande número de seminários e oficinas neste fórum. A reforma agrária já não pode ser justificada por seu papel de “desenvolvimento” das “forças produtivas”; é uma necessidade de toda a sociedade para a construção de padrões sustentáveis de relação com a natureza, justiça social, preservação da biodiversidade e fornecimento de alimentos saudáveis e de qualidade.


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O futuro não chega Tinha por ele a afeição que se devota aos pais, mas não éramos sequer amigos – como um adolescente, ou menos que isso, poderia dizer-se amigo do pai de seus amigos? Tomado por turbulências interiores e fricções com o mundo, talvez ele sequer prestasse atenção em mim – ainda que queiram, meninos não mudam o voo de pássaros selvagens – mas ficou inscrito nos meus afetos e sua imagem resta indelével na minha memória. Tenho-na agora, ele diante do fogão, virando a garrafa de café na pequena panela sobre a trempe acesa – preferia café denso, preto e amargo, esquentado a cada vez, várias vezes ao dia. Cabelos revoltos, brancos de neve, olhar intenso num rosto de vincos profundos, que fora expressivo, era agora frágil na palidez, e a boca oculta pelo hábito de sobrepor o lábio inferior ao superior. O tempo pesava e o cansaço tomava seu corpo. Após o café, sugava a fumaça de seguidos cigarros, que amarelaram dedos e escureceram dentes. Camisa surrada e calças de pijama deixavam à vista as magras

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pernas: a decadência física roía um espírito poderoso. Doei-lhe a admiração fervorosa e a compaixão silenciosa da minha adolescência. A falta de formação acadêmica era compensada pela curiosidade intelectual e determinação obstinada. Dedicava dias à dedução das equações de um instrumento de medidas obsoleto, a desmontar um velho rádio, trocar componentes e inventar um teletermostato. Estudou a Teoria da Relatividade e sugeriu a inclusão de uma constante “k” em determinada equação – proeza que o levou às páginas de jornal. Mencionava provas de vida em outros planetas. Cansado das regras da ortografia, cujas exceções e casos particulares atrasavam a educação, escreveu e publicou uma Gramática Racional da Língua Portuguesa, com normas criadas a partir da sonoridade das sílabas. Dizia: deve-se escrever viajar e “viajem”, pois se viajar é com “j”, por que viagem é com “g”? Se a pronúncia de casa é “caza”, por que escrever com “s”? Pela racionalidade de suas regras, achava que sua


gramática simplificaria a escrita e extirparia o analfabetismo. Como ocorreu a Policarpo Quaresma, ninguém o ouviu e alguns gramáticos quase o comeram vivo. Para aumentar a renda de funcionário público, instalou uma oficina de consertos de TV – a televisão mal chegara ao país. E disse: se os fabricantes se interessassem em nitidez da imagem, bastaria aumentar o número de linhas luminosas na tela – esta é a TV de alta definição de que hoje se fala. A cabeça aventureira, incendiária e nômade daquele homem fascinava o garoto pacato e delirante que eu era. Num dia que conversávamos – que o ouvia é o correto –, após um café, acendeu o cigarro e soprou frondosa baforada. Talvez tenha descoberto ali que habitou o mundo sem entender sua lógica e pressentiu que passara pela vida sem propriamente vivê-la. Sem ilusões e com a esperança embaçada, disse: “Sempre trabalhei pensando no futuro, me casei pensando no futuro, criei filhos pensando no futuro, e tudo o que fiz até hoje foi pensando que um dia o futuro chegaria, e eu então diria: ufa!, tudo está resolvido, a vida está ganha e estou feliz. E veja: estou velho, perto do fim, e o futuro não chegou.” Morreu, sem que voltasse a vê-lo e dizer-lhe que o futuro não chega nunca. Aturdido, sem alcançar a extensão do que dissera, intuí o privilégio da confidência, e nunca esqueci a lição. Vivia tão desprovido de certezas na adolescência que acolhia as mais duras confissões como mantos que protegem com as suas verdades. Crescer é

acumular proteções para o frio, a chuva e a tempestade. A vida não está no futuro nem no passado, mas neste fugaz instante que passa. Aquele amigo que passou, não morreu – o fim é o esquecimento, não a morte –, resta para sempre comigo. Mas que amizade seria para ele a minha, se nunca fui capaz de lhe dizer algo útil, afetuoso, estimulante, ou que aplacasse a sua inquietação? Era tal a sua volúpia com a palavra, que me consola pensar que me preferia silencioso. Como um cacto, era áspero, intratável, apenas para conservar pura a água que alivia a sede. Ser inquieto e espírito turbulento, vivia extremos: cólera e amor, compaixão e dor, ternura e violência. Almas intempestivas criam abismos aos que lhe batem à porta com água fresca. Fecham com pedras a toca do coração. No escuro fundo da caverna, a solidão rói o elã vital. A serenidade veio tarde, por apatia alcoólica. Nunca teve paz para sentir a alegria de viver, além do secreto orgulho do talento dos filhos: engenheiro, médico, economista. Guardo no peito um amigo de quem não consegui me fazer amigo – o que nos afastava já não nos afasta, vivendo em dois mundos – porque éramos duas pessoas, duas épocas, duas cabeças, dois corações. A cabeça dele falava, eu aprendia; o coração dele gritava, eu não ouvia.

Alcione Araújo alcionaraujo@uol.com.

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cul c u lt u r a José Padilha*

Sobre a

Cerca de 920 milhões de pessoas vivem em situação de insegurança alimentar grave e, para alimentá-las minimamente, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estimou a necessidade de um investimento anual de U$ 30 bilhões. Note que esse cálculo não está baseado na premissa de uma solução ótima para cada situação de insegurança alimentar. É uma estimativa global, que leva em conta, pura e simplesmente, o custo de compra, transporte e entrega de alimentos. Ou seja, esse montante seria o valor mínimo comerem regularmente. Os países ricos têm recursos suficientes para fazer

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Fotos: Alexandre Lima

necessário para as pessoas cronicamente desnutridas


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c u lt u r a

esse investimento? Uma vez que gastam mais de U$ 1 trilhão em armamentos, é óbvio que sim. Recentemente, os países ricos mostraram que são capazes de se mobilizar rapidamente para reagir aos problemas que percebem como críticos. A alocação de recursos feita para salvar o sistema financeiro internacional, realizada em menos de um ano, envolve valores que resolveriam o problema da insegurança alimentar grave por mais de 50 anos. Logo, pode-se concluir que convivemos com a insegurança alimentar grave porque não a percebemos como um problema crítico. Todavia, os dados da fome estão disponíveis e são bem divulgados. Basta escrever a palavra “fome” em um serviço de busca da Internet para descobrir que, todos os dias, mais de 16 mil crianças morrem por causas relacionadas à fome; uma em cada três pessoas morre prematuramente ou desenvolve deficiências físicas e intelectuais por má nutrição; nos países em desenvolvimento, 26% das crianças com menos de 5 anos estão moderada ou severamente desnutridas; 10% destas crianças estão muito abaixo do seu peso; e que 32% delas estão abaixo da altura padrão para a

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sua idade. Não é por falta de informação que deixamos de combater a fome. Geralmente, quando encontramos uma criança que não conhecemos mendigando na rua, não paramos para cuidar dela. Simplesmente, não nos sentimos compelidos a fazê-lo. Mas se a criança for conhecida, se for o filho de um amigo ou de um parente, isso muda de figura. O que diferencia o sofrimento de uma criança conhecida do sofrimento de uma criança qualquer? A resposta para essa pergunta, e muitas outras de natureza semelhante, parece ser a seguinte: os seres humanos tendem a reagir com indiferença ao drama das pessoas que desconhecem. As relações pessoais tendem a produzir solidariedade, as impessoais, não. Muitas explicações já foram propostas para esse fato conhecido da psicologia experimental, algumas de ordem biológica, outras de ordem sociológica. Seja qual for a explicação correta, ela tem fortes implicações para a questão da fome. Afinal, a fome crônica não atinge os amigos e parentes das pessoas que estão integradas na economia mundial, das pessoas que vivem nos países que têm recursos para combatê-la. A fome sequer é testemunhada pela maioria dessas pessoas. As crianças que morrem de desnutrição são anônimas, desconhecidas. Essas considerações parecem indicar que o problema da insegurança alimentar grave envolve uma questão de representação. Existe alguma maneira de se apresentar o problema da desnutrição crônica de forma que a população dos países ricos o perceba como crítico? Um filme, um documentário, uma peça de teatro ou um livro sobre a fome são qualitativamente diferentes da veiculação de dados sobre o assunto. Dados informam; as obras de dramaturgia, quando bem feitas, aproximam o público dos seus protagonistas. Assim, uma representação dramatúrgica tem, pelo menos em princípio, mais chance de romper a barreira da indiferença. Afinal, a dramaturgia é um conjunto de técnicas desenvolvidas para este fim. Claro que a representação da fome na dramaturgia não vai, por si só, inserir o problema da insegurança alimentar grave na lista de prioridades dos países ricos. Mas pode contribuir para isso. Todavia, muitos artistas e críticos reagem quanto se deparam com a dramaturgia que tem a miséria como tema. A ideia que a fome e a miséria são assuntos que não deveriam ser abordados por questões éticas referentes à relação entre o representador e o representado tem


Sobre a representação da fome na arte

bastante aceitação. Não sei quantas matérias já foram publicadas em grandes jornais e revistas brasileiros criticando os artistas de classe média ou alta que representam a miséria em suas obras. Ora, quem faz esse tipo de crítica sabe que as pessoas que lutam contra a insegurança alimentar grave não têm condições de fazer dramaturgias de si próprias. Assim, pode-se concluir que esse tipo de crítica, supostamente baseada em questões éticas, no fundo, defende a ideia que filmes sobre a miséria e a fome não devem ser feitos. É certo que existem questões éticas importantes envolvendo quem constrói a representação e o indivíduo que vive o drama. Sobretudo, quando esse indivíduo está em uma situação de fragilidade em relação a quem o representa. Todavia, essas questões éticas não são insolúveis a priori, como a crítica faz pensar. Afinal, são várias as relações possíveis entre o representador e o representado. Além de explicar o que pretende fazer, o representador pode tornar as pessoas que representa beneficiárias da obra que constrói, pode doar ou ceder essa obra para organizações que combatem a miséria, pode usá-la para criar pressão política a favor de quem representa, e assim por diante. Em suma, é possível, pelo menos em princípio, que o representador construa uma relação com seus representados de modo a satisfazer os padrões éticos da sociedade na qual vive. É bastante comum, também, a ideia que as representações dramatúrgicas da pobreza são estetizações da miséria e que, por isso, não devem ser feitas. De fato, qualquer representação artística da miséria vai, necessariamente, estetizá-la. Afinal, toda obra de arte se sustenta sobre opções estéticas. Logo, as críticas à estetização da miséria são, na realidade, a imposição de um determinado padrão estético, e não uma crítica à estetização em si. Usualmente, essa imposição parte da ideia que a arte pode construir representações totalmente fidedignas da realidade que pretende representar e que, quanto mais uma representação artística se afasta dessa representação ideal, mais estetizante ela é. O preto e branco trabalhado das fotografias de Sebastião Salgado, por exemplo, seriam estetizantes porque a realidade é colorida e não têm os contrastes trabalhados nas suas fotografias. O mesmo valeria para o uso da música no documentário ou da alteração das cores no cinema. Evidentemente, o princípio estético que está implícito nessa posição crítica trata a arte como se ela fosse ciência. Os cientistas, de fato,

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comparam as suas representações com um padrão e tentam construi-las de maneira a representar esse padrão da forma mais fidedigna possível. Quanto mais uma teoria se “aproxima” das leis da natureza, melhor ela é. Todavia, no caso da arte, que lida com percepções e não com representações matemáticas de leis universais, a utilização de um padrão regulador desse tipo é, no mínimo, problemática. Afinal, não está dado que todas as pessoas têm percepções iguais. Qual seria, então, a percepção ideal, que serviria como ideia reguladora? Qual o tipo de negativo que aproxima mais a percepção de uma dada realidade? Qual a montagem que aproxima mais o enredo de um documentário da realidade que ele retrata? Qual a saturação

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correta das cores? Qual o volume e a distribuição ideal dos sons em uma sala de cinema? Qual o melhor estilo literário? Nenhuma dessas perguntas tem resposta satisfatória, dado que o padrão idealizado que deveria balizá-las sequer pode ser coerentemente definido. Segundo, porque o processo de representação na arte requer a transposição do real para a mídia do representador, que é sempre mais “pobre” do que a realidade que retrata. Foi, em parte, por isso que a arte engajada desenvolveu uma série de técnicas de expressão que permitem enriquecer as suas representações. Guernica não é um quadro realista, mas nem por isso deixa de representar a tragédia da guerra. Exigir o realismo em arte equivale a ter uma concepção bastante limitada da mesma. É claro que as representações dramatúrgicas da fome e da miséria podem, e devem, ser passíveis de crítica. Todavia, é estranho que as duas posições críticas enunciadas sejam tão repetidas a despeito da sua fragilidade intelectual. Por quê? Uma resposta possível seria: porque os seus critérios não podem ser satisfeitos a priori. Ver os outros passando fome incomoda, sobretudo quando quem passa fome deixa de ser anônimo. A dramaturgia da miséria nos força a reconhecer o terrível papel que a nossa própria indiferença tem na perpetuação de problemas como o da insegurança alimentar. Uma das maneiras de lidar com essa indiferença é tentar não confrontá-la.


Sobre a representação da fome na arte

“Garapa”: além dos relatos

* José Padilha

Flávia Mattar

Cineasta, diretor de Ônibus 174 (2002),

Jornalista, pós-graduada em Arte e Filosofia

Estamira (2004), Tropa de Elite (2007)

Três famílias cearenses em situação de insegurança alimentar grave foram acompanhadas durante um mês por José Padilha. O filme Garapa destaca especialmente o relato de mulheres: Robertina (11 filhos), que vive nas proximidades da cidade de Choró; Rosa (três filhos), moradora da zona rural em torno da Vila Olho d’Água, e Lúcia (três filhas), que mora na periferia de Fortaleza. Elas têm o papel de relatar a situação de fome e a busca por soluções para driblar o problema. Lúcia possui uma verborragia corrida, difícil de ser entendida, como se quisesse calar com as palavras, de forma angustiada, uma realidade sufocante. Ela precisa agir e sua fala subentende que precisa ser rápida. Poderíamos dizer que a proximidade com a suspensão da ação ocorre apenas quando é informada pela funcionária do posto de saúde – detentora da verdade sobre a melhor saída para a sua vida – que sua filha precisa ficar em observação por desnutrição moderada. Então, Lúcia parece alcançar, por alguns instantes, um não-saber como agir, o que dizer. Robertina, aparentemente com uma postura menos acelerada, também é uma mulher de ação. Tenta levar na brincadeira a má qualidade dos alimentos que sua família ingere ou até mesmo a inexistência deles. O indizível parece ser mostrado apenas quando ela volta ao passado e se permite ver/viver a cena de um de seus filhos pedindo merenda, sem que ela tenha algo para dar. Então, ela explica que, às vezes, responde que não tem merenda, mas, às vezes, ela chora. Neste mo-

mento, ela se cala e revive a dor da falta, que se torna indizível. Rosa, apesar de mais calada, também é uma mulher de ação. A dor de um cotidiano à deriva parece mais visível por meio dos homens. O marido de Robertina, com o olhar distante, o andar sonâmbulo, o entorpecimento pelo álcool como forma de suportar algo que é forte demais, o capinar de um terreno que se planta para, provavelmente, nada brotar. É como o semear dos corpos, que geram vidas no limiar entre o viver e morrer. Esse homem parece se permitir ver mais que Robertina, até mesmo porque não está entregue à manutenção da vida prática. Sua postura é mais inquietante, torna mais presente esse tempo que passa arrastado, sem muitas perspectivas de mudança. Gritante é a imobilidade do chefe de família da zona rural em torno da Vila Olho d’Água, o aprisionamento de seu corpo a um mundo muito restrito, o território de sua casa. Ele não transita e raramente fala. Quando fala, é para ressaltar a repetição: assim como ele nunca conseguiu fazer três refeições ao dia, seus filhos não conseguem e, provavelmente, seus netos não conseguirão. A imobilidade de seu corpo – muitas vezes, estirado ao chão, esperando o tempo passar – expressa a crueldade de uma vivência que passa de geração em geração. O terceiro homem, que vive na periferia de Fortaleza, é mais falante. Mas sua fala acaba sendo um relato às avessas, ou um relato que não tem nenhum comprometimento com a verdade. Entregue à bebida, ele constrói sua irrealidade, e sua imobilidade não é menor que a dos outros dois homens. Ele está preso ao bar onde bebe. Quando a mulher o manda trabalhar, ele diz que não pode, porque teve seu carro roubado. É como se a mobilidade de suas pernas já estivesse comprometida. Poderíamos dizer que os homens, mais que as mulheres de Gapara, expressam, com mais intensidade, a crueldade da existência, a agressão de uma vida sem perspectivas. Por não estarem entregues à ação – em uma situação em que qualquer ação parece desnecessária ou apenas capaz de adiar o inevitável –, eles são mais capazes de fazer saltar o silêncio, o indizível, lá onde as palavras não alcançam. É preciso ficar atento para que a profusão de relatos e ações das mulheres não apague ou ofusque o que esses coadjuvantes têm a dizer (ou silenciar).

entre outros.

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artigo

Evandro Vieira Ouriques* Coordenador do Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NETCCON.ECO.UFRJ), consultor organizacional, coordenador do curso Jornalismo de Políticas Públicas Sociais (NETCCON.ECO.UFRJ e ANDI – http://territoriojpps.ning.com), é criador da metodologia Gestão da Mente Sustentável, o Quarto Bottom Line, pós-doutor em Estudos Culturais pelo PACC.FCC.UFRJ e diretor de Comunicação e Cultura do Núcleo de Estudos do Futuro da PUC-SP (http://evouriques. wordpress.com e evouriques@terra.com.br).

“As entidades do candomblé, para permanecerem ativas, devem ser cultuadas e, para isso, têm de comer. Disso depende o axé, a força que as mantêm vivas. Caso não seja nutrido, ele declina, desfalece. Os fiéis são, portanto, obrigados a “dar de comer à cabeça” (o que nos rituais de iniciação é obedecido ao pé da letra).

1 ORTIZ, Renato. Octávio Ianni: a ironia apaixonada. Sociologias, Porto Alegre, ano 10, nº 20, jun./dez. 2008, p. 319-328 http://www.scielo.br/pdf/soc/ n20/a14n20.pdf

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A inquietação intelectual tem algo de semelhante, ela exige que se “alimente a cabeça”, cultive-se uma atitude de insatisfação em relação ao peso do senso comum acadêmico”. Renato Ortiz

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É muito mais frequente e comum do que gostaríamos o fato que indivíduos, grupos, redes, movimentos e organizações apresentem atitudes antidemocráticas na maneira como conversam internamente, articulam suas ações intersetoriais e procuram mobilizar os segmentos sociais com os quais trabalham em favor da cidadania, da democracia, das políticas públicas sociais, das intervenções em comunidades e da responsabilidade socioambiental. Quando verificamos ao longo da História, e do presente, a extensão dos prejuízos causados por essas atitudes mentais para os movimentos de transformação social, podemos afirmar que se trata de uma alarmante pandemia no território mental, que pode ser superada apenas pela re-ligação dos saberes sobre a sociedade com aqueles sobre a economia psíquica dos indivíduos. A desconexão entre essas dimensões é que faz tão frequente, na ação pela transformação social, o oposto dela: a traição, o cinismo, a vaidade, a violência, o autoritarismo, o roubo de projetos, a concentração de poder, a manipulação de assembleias e reuniões, o nepotismo, o fluxo hierarquizado e cristalizado de informações, a não escuta, a mentira deslavada, a distorção do que é dito, a supressão de informações decisivas, a competição antiética por patrocínios, a perseguição e menosprezo dos “derrotados” em geral etc., etc., etc., como se faz, nacionalmente, com o futebol, como se este ato de violência, que vai até a supressão física do outro, não estivesse mimetizando, em uma pedagogia social, o regime de servidão, no qual um sujeito transfere sua potência para o outro. Ao propor território mental como conceito político, o faço, como Deleuze tão bem recomendava, para ajudar a resolver o problema que é o entrave sistêmico que encontramos naqueles que se empenham em tornar viva a democracia, como se ela pudesse surgir apenas na dimensão que se denomina social, sem que se entenda e se exercite que a democracia apenas vigora, de fato, na capacidade que tenhamos de construir atitudes mentais democráticas2 nas e a partir das inter-relações. Para isto, é necessária uma mudança de rumo, pois é no território mental que se dão concretamente as relações de poder

psicossocialmente construídas, nas quais ou o indivíduo3, rede, movimento e organização, apropria-se, pela desobediência civil mental4, do poder, tornando-se assim, cada um deles, portador de voz própria, ou é então dominado pelo discurso que o atravessa – o que é muito fácil hoje, quando os valores mediatizados tendem a embeber a todos como se fossem esponjas –, tornando-se, assim, repetidor de mais do mesmo nos territórios, esta categoria hoje central na análise das questões sociais e que só revela sua potência de produção de autonomia interdependente quando alimentada por mudanças efetivas nas relações de poder, que são – sempre e apenas – determinadas por atitudes mentais. É por isto que André Mattelart5 vem insistindo que a liberdade política não pode mais ser apenas o exercício da vontade, mas passa – necessariamente – pelo domínio do processo de formação da vontade, de maneira a que, como tenho sustentado6, o desejo hoje mediatizado no reconhecimento pelo capital, vale dizer no reconhecimento pelo outro, seja, ao contrário, e a um só tempo, liberdade e vinculação socioambiental.7 Isto só é possível por meio da observação do fluxo dos estados mentais (pensamentos, afetos, sentimentos, emoções, perceptos etc.), que ocorrem no território mental, para o que é decisiva a arqueologia dos conceitos, ainda com Mattelart, pois apenas assim é possível fazer surgir os significados e os usos político-sociais sedimentados em cada termo, lembro eu, como é o objetivo também da história conceitual e do enfoque colingwoodiano da Escola de Cambridge.8 Conforme sintetiza Jardim, “o conceito (...) aparece como fenômeno da linguagem com consequências para “fora da linguagem”, porque conforma a própria vida histórica, enquanto elemento fundamental da disputa política. A afirmação de um conteúdo – de um conceito – é a vitória de um determinado projeto, de uma determinada maneira de ver as coisas”.9 Como comprova o biólogo cognitivo Maturana, “as palavras são nodos de redes de coordenação de ações, não representantes abstratos de uma realidade independente de nosso quefazer. [...] As palavras que usamos não revelam apenas nosso pensar, mas projetam o curso do nosso quefazer. [...] Os seres humanos, somos o que conversamos:

2 Ver a oficina Construção de Atitudes Mentais Democráticas: o nó górdio do direito à comunicação, que propus e conduzi no Congresso da Intercom Sudeste, que ocorreu na Escola de Comunicação da UFRJ, em 7 e 8 de maio de 2009. <http://evouriques. wordpress.com/2009/04/25/ conduzirei-oficina-no-intercomsudeste-sobre-construcao-deatitudes-mentais-democraticaso-no-gordio-do-direito-acomunicacao/>. 3 Refiro-me ao indivíduo como o que permanece no sujeito igual apenas a ele mesmo, como mostra Charles Melman, portanto o que está nele, para além da dissolução das identidades defendida pela pós-modernidade, esta que provavelmente já terminou, de acordo com Terry Eagleton, e com o que estou de pleno acordo. A identidade é aquele território mental em relação ao qual que, como mostram Maturana e Varela em A Árvore do conhecimento, “na rede de interações linguísticas na qual nos movemos, mantemos uma contínua recursão descritiva – que chamamos de “eu”–, [e] que nos permite conservar nossa coerência operacional linguística e nossa adaptação ao domínio da linguagem.” (p. 254) 4 OURIQUES, Evandro Vieira. Desobediência Civil Mental e Mídia: a ação política quando o mundo é construção mental. Anais do 10º Encontro Nacional de Professores de Jornalismo. Goiânia, Goiás. 2007. ISSN: 1981-5859 5 MATTELART, Armand. História das Teorias da Comunicação. Edições Loyola, São Paulo, 2003. p.187 6 Por exemplo, por meio de minhas disciplinas Construção de Estados Mentais Nãoviolentos na Mídia, que criei em 2005/2 e Construção de Utopias, que criei em 2006/1, na ECO.UFRJ. 7 OURIQUES, Evandro Vieira. Comunicação, Educação e Cidadania: quando Diversidade e Vinculação Social são apenas Um. in Saúde e Educação para a Cidadania. Revista da Decania do Centro de Ciências da Saúde/UFRJ. Ano 1, no. 02, Março de 2006. UFRJ. Rio de Janeiro. pp. 33-36 www. ccsdecania. ufrj.br/extensao/ edicao02.pdf 8 FERES JÚNIOR, João & JASMIN, Marcelo (orgs.). História dos conceitos: diálogos transatlânticos. Ed. PUC-Rio: Ed. Loyola: IUPERJ, 2007. 9 http://www.puc-rio.br/ editorapucrio/autores/autores_ entrevistas_jasmin.html

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artigo

10 MATURANA, Humberto. Emociones y Lenguaje en Educacion y Política. Dolmen Ediciones, Santiago de Chile. 1997. pp 105-6 11 ARENDT, Hannah. A condição humana. Forense, Rio de Janeiro. 2005. p. 191 12 CASTORIADIS, Cornelius. Figures du pensable. Éditions du Seuil, Paris. 1999; e L’institution imaginaire de la société. Seuil. Paris, 1975. 13 http://www.ciranda.net/spip/ article1784.html

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esse é o modo como a cultura e a história se encarnam em nosso presente”.10 Ou seja, apenas pelo enfrentamento das relações de poder que se dão na tensão conceitual (uma vez que somos cultura e, portanto, linguagem), no território mental, é que os sujeitos podem tornar-se editores de suas falas no mundo, uma vez que treinem suas mentes para a ação política e deixem de ser movidos por impulsos reativos e impulsivos, e portanto a-críticos, e, assim, deixem de ser atravessamentos de discursos. Não é à toa que o maior valor patrimonial das corporações nestes tempos de cultura da produção e de culturalização da economia são suas marcas, pois elas são conceitos do que a vida seja ou do que se é com elas nos territórios. Qual é, portanto, a responsabilidade democrática que temos sobre nossos estados mentais? Os discursos que identificamos como nossos são nossos mesmo? O quanto a Diferença que sustentamos é democrática? As metodologias que empregamos para tomar decisões, para escutar nossos públicos, são democráticas mesmo ou vazamentos dos valores com que fomos impregnados pelas Velhas Mídias, pela Velha Teoria, pela Velha Gestão e assim repetimos erros do passado? Nenhuma outra atividade humana precisa tanto do discurso quanto a ação, uma vez que, como diz Hannah Arendt, “o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade, isso é, do viver como ser distinto e singular entre iguais”11, já que, de volta a Maturana, a origem da linguagem como um domínio de coordenações consensuais de conduta exige um espaço de reencontro na aceitação mútua suficientemente intensa e recorrente, espaço este que só é possível, digo eu, quando os comportamentos ditos privados passam a ser focados, aceitos, acolhidos, tratados e superados de maneira corajosa e transparente nas parcerias, associações, redes, movimentos e organizações. Ora, quando como observadores entendemos as palavras como designadoras de objetos ou situações no mundo, o que de fato estamos fazendo é falar de um acoplamento estrutural que não reflete o funcionamento do sistema nervoso, uma vez que o sistema nervoso não funciona com representações de mundo e, portanto, não há legitimidade no

hábito de naturalizar a violência, a política como luta, a vida como guerra, como algo transcendental sobre o qual não teríamos controle algum, pois as palavras com as quais designamos e construímos tais estados mentais, e os consequentes atos físicos por eles criados, são de responsabilidade exclusiva da cultura, e não da natureza. Dito de outra forma, construímos na Grécia o que chamamos de cultura, que se tornou, ao final de cerca de dois mil anos, insustentável social e ambientalmente, argumentando que esta cultura, e a filosofia dela, é a ruptura do continuum do processo natural. O que fazemos é de nossa exclusiva responsabilidade, o fizemos e fazemos em nome da liberdade e, ao invés de assumirmos a responsabilidade, construindo a democracia em nosso território mental, responsabilizamos uma suposta natureza humana por isto, retiramos os estados mentais das agendas “para não nos ferirmos”, e acabamos, claro, nos ferindo ainda mais pelo desencontro, retrabalho, desconfiança, desânimo, e pelo péssimo exemplo de pseudotransformadores que damos às próximas gerações que muitos acusam de serem despolitizadas. É assim que de maneira dominante a teoria social, a teoria política, a teoria da comunicação, a teoria da cultura, a filosofia da linguagem, a teoria psicanalítica etc., insistem em dizer que a violência, a vontade de dominação/opressão, o regime de servidão psicossocial, são tendências naturais do ser humano e que seria ingenuidade construir qualquer pensamento que diga o contrário. Aí está a questão. As múltiplas resistências, agentes e agências de resistência ao mal-estar da civilização precisam instalar-se no território mental, pois é lá que se dá ou não a autonomia, esta questão central do pensamento de Castoriadis12 e central, por exemplo, quando se quer comunicação compartilhada, empoderamento das periferias, ouvir a voz das comunidades. Como lembra Marilena Chauí, se está, ou se pensa “perdida a autonomia, o que resta senão o silêncio?”.13 É por isto que tenho insistido na recuperação do primado da autonomia e da criatividade, a base esquecida de constituição do Ocidente, em sua reação ao Mito, aquele ponto central em relação ao qual só nos restaria adequarmo-nos. Insisto neste ponto,


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uma vez que permanece na pós-modernidade e hoje no que a sucede, um impressionante fundo metafísico nas forças que trabalham pelo avanço da consolidação democrática. Explico. Acredita-se: 1.

que a dominação é feita de forma exclusiva por “eles”, que seriam um fora absoluto, e portanto metafísico – o capitalismo, a classe dominante, o neoliberalismo, a corporação, os pais, os jovens, a periferia, a classe média, os traficantes, o outro time, o outro gênero, a outra raça, o consumo, a mídia, as drogas, e assim por diante, entendidos todos e quaisquer outros como a sede por definição do mal absoluto, suposta exterioridade absoluta que garantiria a desnecessidade de tratar-se de maneira responsável as relações de poder que se dão no território mental, uma vez que se supõe que seríamos necessariamente os “puros”, já que o mal aqui não residiria;

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e que a via de transformação está igualmente fora, ou no produtivismo da ação não-crítica, da ação pela ação, em atitude totalmente sincrônica a do consumismo que criticamos; ou na tecnologia, no caso das forças que se querem democráticas, especificamente a cultura digital, a mídia livre, a convergência tecnológica e comunicação compartilhada.

Isto é muito grave. Uma pergunta: como uma espécie (1) constrói-se como cultura rompendo radicalmente com o que chama de natureza; (2) colhe cerca de dois mil anos depois como resultado a insustentabilidade socioambiental; (3) nega-se a responsabilizar-se pelo controle dos estados violentos de dominação e opressão que ocorrem em seu território mental e dele se alastram pelos territórios, inclusive em sua face de territórios descontínuos, como os das grandes cidades; (4) eterniza na teoria social e no senso comum a afirmação de que as ações humanas são movidas apenas pelo interesse e pelo poder auto-referenciados (“a vida é uma luta”); deixa sem respaldo teórico as ações movidas pela generosidade (não aquela a que Zuenir Ventura referiu-se como

“paternalista e distante”14, claro, pois isto não é generosidade, porém mais opressão) mas como a que permite o envolvimento15; (5) atribui estas atitudes a uma suposta natureza humana; (6) e nega, ao mesmo tempo, em nome da garantia da liberdade, a existência desta mesma natureza humana quando se trata de encontrar princípios de igualdade que possam orientar a ação coletiva, de sermos iguais na diferença? Para avançar mais, é prudente focarmos o ponto cego do processo. Por exemplo, na recente e importante iniciativa do MinC de selecionar 78 Pontos de Mídia Livre no país, o critério utilizado para se ter certeza de que a mídia selecionada é “livre” e de que assim se está cumprindo “a missão de democratizar a comunicação social feita no Brasil” para que “iniciativas que estão fora das grandes corporações midiáticas tenham voz e expressem o anseio de suas comunidades” é o de considerar como “iniciativas de comunicação compartilhada e participativa aquelas que reúnem pelo menos dois membros em sua equipe editorial e que buscam interatividade com o público”.16 Nada é falado quanto aos valores que circulam nos territórios mentais destas iniciativas (por exemplo a antidemocrática e usual conexão conceitual entre liberdade, progresso, desenvolvimento e civilização), nem nas metodologias que elas utilizam para garantir que estão de fato escutando e expressando os anseios de suas comunidades, nem a respeito do território mental destas comunidades que se supõe espontaneamente democrático malgrado saibamos da concentração de mídia e da qualidade da educação no Brasil. Parte-se do pressuposto de que basta não ser corporativo, portanto o lugar do mal, que se é socialmente democrata. Quando fiz parte do grupo que organizou o Fórum de Mídia Livre-Rio, em 2008, argumentei que tínhamos nele duas tendências: a da verba livre, que entende que a distribuição das verbas publicitárias estatais também para mídias de novo “livres”, garantiria mais democracia; e a do verbo livre, que entende que a cultura digital garantiria o mesmo. Argumentei que faltava a força da mente livre. Consegui realizar lá a oficina Mente Livre, Mídia Livre, que teve o maior número de inscritos de todas as do FML, e nela trabalhei a construção de uma mente

14 VIVAFAVELA. Viva Favela. Prefácio de Zuenir Ventura. Viva Rio. 2009. http://portalliteral.terra.com.br/ artigos/viva-favela-por-zuenirventura 15 OURIQUES, Evandro Vieira. Comunicação, palavra e políticas públicas: a importância do conceito envolvimento para a construção da cidadania sustentável. Revista Z. Programa Avançado de Cultura Contemporânea-PACC.FCC.UFRJ. Junho de 2009. Ano V no.2 16 Todas as citações deste parágrafo são do edital em http://www.cultura.gov.br/site/ wp-content/uploads/2009/01/ edital_pontos_de_midia_livr_-_ publicado.pdf

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17 Ver minha entrevista sobre o assunto em http:// forumdemidialivre.blogspot. com/2008/06/mdia-s-livrequando-mente-livre.html 18 OURIQUES, Evandro Vieira. Gestão da Mente Sustentável®, o Extended Bottom Line: o desenvolvimento socioambiental como questão da consciência e da comunicação. In GUEVARA, Arnoldo José de Hoyos, et al. (orgs.). Consciência e desenvolvimento sustentável nas organizações. Editora Campus, Rio de Janeiro. 2009. pp. 195-203. 19 Autonomia é o exercício de reger-se por si mesmo. Do ponto de vista do Direito, podemos exemplificar com o contrato. Trata-se de um acordo entre as partes, não imposto por terceiros. Já a heteronomia, por exemplo no Direito, fala de norma jurídica imposta coercitivamente ao indivíduo, independente de sua vontade. 20 BIRMAN, Joel. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 21 LEBRUN, Jean-Pierre. Um mundo sem limites: ensaio para uma psicanalítica do social. Companhia de Freud. Rio de Janeiro. 2004. 22 MELMAN, Charles. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun. Companhia de Freud Editora, Rio de Janeiro, 2003. 23 ARENDT, Hannah. A dignidade da política. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1993. p. 122 24 Apud PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal. A lógica e o sentido da formação: heterotopias, acontecimentos e sujeitos. Rev. Dep. Psicol.,UFF [online]. 2007, vol.19, n.1 [cited 2009-05-15], pp. 127-143. Available from: <http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid =S010480232007000100010 &lng=en&nrm=iso>. ISSN 0104-8023. doi: 10.1590/ S0104-80232007000100010. Acesso em 15 de maio de 2009.

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livre17 (conceito então cunhado), de uma mente sustentável 18 (conceito cunhado em 2005), sem a qual é impossível a autonomia. Para Castoriadis, a sociedade autônoma é aquela que se autoinstitue através da atitude, que ele entende revolucionária, de seus membros fazerem valer o que imaginam em termos de instituições, leis, tradições, valores e comportamentos. Ou seja, o contrário de sociedades e ações heterônomas19 como as presentes, nas quais a vida privada está divorciada da ação política e os atos ditos pessoais, como já disse, fora das agendas, relegados quase sempre à malidicência e à rádio-corredor, até que se dê a exclusão daquele que apresenta um comportamento que dificulte o trabalho ou que questione a maneira como ele vem sendo realizado. Trata-se de esgotos mentais a céu aberto nos territórios, que não são vistos e para os quais não se pensam políticas públicas e metodologias de saneamento. Trata-se pois, de evitarmos engrossar o regime de servidão20, no sentido da clínica social da psicanálise21, ou seja, de pessoas que ao transferirem sua potência para um outro, passam a dele depender em estado de perversão22, como de uma droga, em adição, sempre fundamentalista, ao que se pode chamar de “ego auxiliar” que pensa e sente por ele. Essa é uma atitude devocional, e quando se espera milagres (ou não é esperar um milagre que as máquinas que criamos sejam mais inteligentes do que nós?), é a morte da política, como disse Hannah Arendt: “a questão se a política ainda tem de algum modo um sentido remete-nos necessariamente de volta à questão do sentido da política; e isto ocorre exatamente quando ela termina em uma crença nos milagres – e em que outro lugar poderia terminar?”23. Neste sentido, é emblemática recente manchete no jornal laboratório de uma nacionalmente conhecida escola de comunicação brasileira, cuja edição é toda dedicada ao que devocionalmente supõe ser o “ilimitado” espaço da Internet, em matéria que trata do que chama “feroz campanha de adesão à fé cibernética”. Eis a manchete: “Hereges da Internet resistem à conversão”. Quando reflete sobre o que é necessário para a transformação social, Boaventura de Sousa Santos afirma que mais do que

“uma teoria comum, do que necessitamos é de uma teoria da tradução que torne as diferentes lutas mutuamente inteligíveis e permita aos actores colectivos ‘conversarem’ sobre as opressões a que resistem e as aspirações que os animam”.24 É neste sentido que proponho o conceito de território mental, dentro da economia psicopolítica da comunicação a que venho me dedicando como esta teoria da tradução. Para que os atores conversem sobre as opressões a que resistem, eles precisam estar no território mental, o único a rigor humano, pois território enquanto espaço + relações de poder é conceito também aplicado aos animais não humanos. De que outra maneira podemos potencializar nossas aspirações, que nos animam, senão pela tomada de posse do território que de fato é o único que é realmente nosso, ou seja, o nosso território mental? Um dos muitos exemplos atuais da desconexão entre democracia social e democracia nas inter-relações são as audiências públicas nas câmaras legislativas. Elas se transformaram em mesas-redondas, onde inexiste escuta apropriada do público, restrita ao formato superado de dar, sob a pressão do tempo então exíguo, a palavra ao final de tudo. Quando existem metodologias para levantar o imaginário do público, o que eles querem, se dispõem e podem de fato se comprometer a fazer.

Território mental e ação intelectual Por fim, gostaria de falar brevemente da importância do conceito de território mental para a ressignificação em curso do conceito de intelectual, que desde a década de 1970 tem passado por mudanças profundas em suas antigas representações identitárias associadas à intelligentsia diante do fim do regime militar, da profissionalização dos intelectuais no Estado e na indústria cultural (esta desde a década de 1960), da queda do Muro de Berlim, da construção de um novo socialismo, da revalorização da democracia, da individualidade e dos movimentos populares espontâneos etc., o que resultou, grosso modo, na substituição de seu compromisso com a ruptura coletiva com o subdesenvolvimento nacional e a exploração das classes para o empenho no acesso individual ao


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desenvolvimento globalizado.25 Com a eclosão das novas tecnologias da informação, da cultura digital, das possibilidades da comunicação compartilhada26 e das culturas das periferias, no quadro da ação política rizomática, improvisada, anônima e enxameada defendida por Deleuze, Guattari, Rolnik, Negri e outros, o intelectual configura-se hoje como mediático, condição na qual está dissolvido o monopólio discursivo da intelligentsia, já foi dito, num pluralismo mediático: em certo sentido, desdobra-se no intelectual operador 27 recentemente proposto por Marcus Vinicius Faustini28, ou seja, aquele que em vez de produzir grandes discursos de síntese de ação, dispara ações. Dessa forma, os sentidos do conceito dados por exemplo por Gramsci de intelectual orgânico (e de suas vinculações com a ironia apaixonada, como prefere Renato Ortiz29) e por Sartre de intelectual engajado, têm estado abalados e/ou retraídos em prol de seu entendimento, em certos meios consensual, como função intelectual presente em toda a sociedade, como defendido, por exemplo, por Félix Guattari, e isto é muito importante, mesmo que a tecnologia vista como poderosa via de democratização tenha deixado sincronicamente de ser suporte do capital para tornar-se meio direto da acumulação capitalista, na qual a investigação é em grande parte substituída por modos de conhecimento determinados economicamente de maneira fragmentada em meio à compressão espaço-temporal identificada por David Harvey30, ao que soma-se a substituição do intelectual pelo especialista supostamente competente a quem está confiada a missão de dizer o que se deve pensar sentir, fazer e esperar. É importante pois superarmos a dicotmia entre pensar e fazer, trabalho intelectual e trabalho braçal, que tanto marca ainda nosso país, e portanto faz todo o sentido o surgimento da potência operativa de transformação do conceito território mental, pois ele incorpora, ao dissolvê-las, dias dicotomias da dominação: a do pensar e do fazer, e a do social e do psíquico, pois para que os intelectuais desempenhem o seu papel na promoção e na sustentação da vida no planeta, como quer Antonio Negri, revolução que para ele só se faz hoje com inteligência e amor (estes outros nomes para mim da generosidade, do espírito público),

precisamos rever profundamente nosso território mental para que não voltemos a pensar que a revolução é possível de ser feita sem conexão com a totalidade dos humanos. Ou, como ele prefere, com a multidão, que, claro, também pensa e faz e, digo eu, com uma nova e operativa teoria, sustentada claro por um discurso síntese de ação compromissado não com a torre de marfim, mas com o saneamento do esgotos mentais, estejam eles onde estiverem. Quando proponho o conceito território mental, da forma que o faço, concordo com Terry Eagleton, que “com o deslanchar de uma nova narrativa global do capitalismo, junto com a guerra ao terror, pode muito bem ser que o estilo de pensamento conhecido como pós-modernismo esteja agora [ele afirmou isto em 2003] se aproximando de um fim. Foi, afinal, a teoria que nos assegurava que as grandes narrativas eram coisa do passado. Talvez sejamos capazes de vê-lo, em retrospectiva, como uma das pequenas narrativas que ele próprio tanto apreciava. Isso, no entanto, propõe à teoria cultural um novo desafio. Se for para se engajar numa ambiciosa história global, tem que ter recursos próprios adequados, tão profundos e abrangentes quanto a situação que defronta. Não se pode dar o luxo de continuar recontando as mesmas narrativas de classe, raça e gênero, por mais indispensáveis que sejam esses temas. Precisa testar sua força, romper com uma ortodoxia bastante opressiva e explorar novos tópicos, inclusive aqueles perante os quais tem mostrado até agora [...] uma timidez excessiva”31. É exatamente no sentido desta contribuição que desde a década de 1960 persisto em que a questão central da teoria e da ação social é a fonte de referência que o indivíduo, parceiros, associados, grupo, comunidade, rede, movimento e organização utiliza para a decisão comunicativa, que é sempre e apenas política, uma vez que sua ação é definida pelos valores nos quais ele se referencia, consciente ou inconscientemente. Portanto do domínio do que ocorre em seu território mental.

25 RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Editora Record, Rio de Janeiro, 2002. 26 Refiro-me ao conceito como definido a partir do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, em 2002, e desde então em discussão. Por exemplo ver <http://diplonarede.org.br/ tudo-num-espaco/o-que-ecomunicacao-compartilhada> que ao estimular a discussão on line deste conceito inspirou-me a desenvolver o argumento deste artigo, que eu vinha escrevendo para a revista Democracia Viva do Ibase por convite de Ana Cristina Bittencourt, que honroume ao ser minha aluna da 5ª edição do curso de extensão JPPS-Jornalismo de Políticas Públicas Sociais, que coordeno. 27 Refiro-me aqui à palestra dada por Faustini na Reunião Mensal do Programa de Pós-doutorado do Programa Avançado de Cultura Contemporânea-PACC-Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, realizada no dia 30 de abril de 2009, quando tratamos dos temas “Aproximações na Compreensão do Território usado Enquanto Categoria de Análise Social”, por Anita Burth Kurka, Doutora em Serviço Social pela PUC-SP; “Violência, Medo e Estigma: efeitos sócio-espaciais da ‘atualização’ do ‘mito da marginalidade’ no Rio de Janeiro”, por Fernando Lannes, Doutor em Geografia Urbana pela UFRJ e Coordenador Adjunto do Observatório de Favelas, na Maré; e “A Linguagem e a Vida São uma Coisa Só: Estratégias Estéticas de Circulação na Cidade”, por Marcus Vinícius Faustini, Cineasta, Diretor Teatral e Secretário Municipal de Cultura e Turismo de Nova Iguaçu/RJ. 28 Como Secretário de Cultura e Turismo de Nova Iguaçu, ele tem se mostrado inovador. Recorro a Kari Palonen em seu estudo sobre Tempos da política e temporalização conceitual: um novo programa para a história conceitual quando afirma que “políticos conceitualmente inovadores são aqueles que usam essa falta de controle no uso dos conceitos a seu favor e que gostam de brincar com as ambiguidades das palavras e detectam novas dimensões e importância em conceitos já existentes”. In Ver FERES JÚNIOR, João & JASMIN, Marcelo (orgs.). História dos conceitos: diálogos transatlânticos. Ed. PUC-Rio: Ed. Loyola: IUPERJ, 2007. pp41-42 29 ORTIZ, Renato. Octávio Ianni: a ironia apaixonada. Sociologias, Porto Alegre, ano 10, nº 20, jun./ dez. 2008, p. 319-328 http://www.scielo.br/ pdf/soc/n20/a14n20.pdf 30 HARVEY, David. Condição Pósmoderna. Loyola, 1989. 31 EAGLETON, Terry. Depois da teoria: um olhar sobre os Estudos Culturais e o pós-modernismo. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro. 2003. p. 297

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Colaboração

Envio de artigo

Gostaria de saber qual o procedimento para submissão de artigos para a revista Democracia Viva.

Sou apreciador desta publicação e gostaria de colaborar. Sou graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Alagoas; mestrando do programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco; pesquisador do Grupo de Pesquisa Comulti – Ufal/ COS/ CNPq, no grupo de estudo Mídias, Processos Sociais e Economia Política da Comunicação e, finalmente, articulista do portal Profissão Mestre. Desde já, tomo a liberdade de enviar uma colaboração para a livre apreciação da redação, visando a publicação. Trata-se da resenha: “Gradual e não linear – a afirmação dos direitos humanos no mundo”.

Júlio Cesar Andrade de Abreu Bolsista IFP – International Fellowships Program/UFBA

Resposta da redação: agradecemos pelo contato e pelo interesse em colaborar com a revista Democracia Viva. Em caso de sugestão de artigo, o ideal é que o senhor nos envie um resumo sobre o tema e a linha que deseja adotar em sua análise para podermos avaliar se tem a ver com a linha editorial da revista. Os artigos para a revista têm, em geral, cerca de 12 mil caracteres (cerca de 4 laudas).

Tiago Eloy Zaidan Maceió/Al

Em sala de aula Gostaria de solicitar o envio dos exemplares da revista Democracia Viva para minha escola. Prof. Sergio Andrade Campos Ciep Doutor Adelino da Palma Carlos Jacarepaguá/ RJ

Resposta da redação: agradecemos pelo contato e pelo interesse em receber a revista. O nosso público-alvo são professores(as) e estudantes universitários(as), por outro lado, não há como enviar vários exemplares para serem trabalhados em sala de aula. Mas podemos inclui-lo como assinante para que possa receber um exemplar. Também é possível acompanhar as edições por meio do Portal do Ibase <www.ibase.br>.

Agradecimento Prezada diretora Dulce Pandolfi, recebemos o exemplar da revista do Ibase nº 41, de janeiro de 2009. Agradecemos a gentileza e manifestamos nosso apreço. Eliane Souza, presidenta Conselho Municipal de Defesa dos Direitos do Negro (Condedine/RJ)

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Democracia Viva Nº 42

Nota da redação Agradecemos ao público leitor por todas as mensagens e todos os artigos recebidos no endereço eletrônico da revista e no Portal do Ibase. Informamos que os textos serão avaliados e, se possível, publicados. Lembramos que também é possível fazer comentários, enviar sugestões e ler o conteúdo da revista no orkut. Esperamos que esse possa se tornar mais um espaço de troca e estreitamento de nosso contato com vocês. Agradecemos, também, por todas as cartas enviadas, informando que, de acordo com a necessidade editorial, essas serão publicadas com cortes. Esperamos que vocês continuem colaborando com a revista Democracia Viva: escrevam, opinem, critiquem, mantenham contato! <democraciaviva@cidadania.org.br>


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a cidadania e com a democracia. Democracia Viva não se alinha com partidos nem religiões, mas toma partido desde que

VIVA

e aberta, parte do compromisso radical com

DEMOCRACIA

A agenda da revista Democracia Viva é ampla

esteja em jogo a possibilidade de aprofundar a democracia. Não disputa poder, mas quer exercer um papel de vigilância, monitoramento e avaliação; com toda autonomia e independência, das políticas públicas e das ações governamentais, bem como das práticas empresariais e das relações econômico-financeiras. Quer ser ativa como interpeladora de consciências e vontades, questionando práticas e valores que limitam a democracia, estimulando a participação cidadã. Sua qualidade é a força das reflexões, análises,

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propostas e dos argumentos.


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