Democracia Viva 26

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DEMOCRACIA VIVA

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MAR 2005 / ABR 2005

Especial FSM

Dulce Pandolfi Hamilton Pereira Mario Lubetkin

Trabalho escravo

J. R. Ripper

Comida moderna

Renata Menasche


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Cândido Grzybowski Sociólogo, diretor do Ibase

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busca de uma democracia vibrante, da prática da cidadania

em todos os espaços, com vigilância e pressão sobre o poder constituído, de criação de condições de desenvolvimento sustentável nas quais todos os direitos humanos sejam para todos(as), é um compromisso que dá o rumo à revista do Ibase. Isso nos leva a dar abrigo a olhares e vozes conhecidos e desconhecidos, mas que nos parecem uma inestimável contribuição ao debate. Após termos publicado uma edição temática distribuída durante o Fórum Social Mundial 2005, fazemos agora um pequeno balanço. São três visões diferentes que mostram as possibilidades e os desafios que o FSM apresenta. Dulce Pandolfi, diretora do Ibase, dá voz a jovens de favelas que puderam participar do Fórum por meio de um fundo de solidariedade constituído pelo próprio Ibase. Hamilton Pereira, poeta e dirigente político, faz uma leitura do Fórum a partir dos desafios que traz às esquerdas e, em particular, ao PT. Mario Lubetkin, diretor da Inter Press Service (IPS), chama a atenção para a questão crucial da comunicação a fim de que o FSM consiga alimentar a participação de milhões na construção “de outro mundo”. Em sintonia com os três artigos, mas chamando a atenção para os desafios do próprio movimento por outra mundialização, traduzimos um artigo de Pierre Calame, um dos principais inspiradores e animadores da rede mundial denominada Aliança por um Mundo Responsável, Plural e Solidário, ativa no FSM desde o seu começo. Padre Ricardo Rezende, o entrevistado deste número da revista, nos dá uma dimensão profundamente humana e radicalmente comprometida com as pessoas excluídas na conturbada Amazônia. A questão voltou com força neste início de 2005, mas é antiga. Padre Ricardo, desde a década de 1970, vem atuando no sul do Pará, pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Este tema, trabalho escravo, é documentado pelas lentes de Ripper, de quem reproduzimos fotos e publicamos um testemunho na seção de cultura. A escravidão atual é distinta daquela do passado, mas guarda relação com ela. Diagnosticá-la, dissecar as suas raízes e ver a relação da escravidão com a persistente exclusão social e política de descendentes negros(as) até hoje exige um enorme esforço coletivo e é indispensável para a democracia. Henrique Cunha Jr. nos lembra a fundamental necessidade de formar pesquisadores(as) negros(as) para tal tarefa. A revista lança olhares sobre muitos temas novos. Destaco o artigo de Cássio Martorelli, administrador da rede local/TI do Ibase. Cássio, em linguagem bastante didática, destaca a dimensão democrática do debate sobre a adoção do software livre. Esse é um tema extremamente relevante num mundo em que tudo tende à mercantilização, privatizando o próprio saber humano e a seu modo contribuindo para a exclusão social. Outro debate que ainda vai render muito, apesar da aprovação recente pelo Congresso Brasileiro da Lei de Biossegurança, diz respeito aos alimentos transgênicos. O artigo de Renata Menasche traz luzes sobre os reflexos confusos de tal debate nas visões e práticas das pessoas, nas suas decisões de


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o Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas

03 Artigo

Formação de pesquisadores(as) negros(as), uma necessidade democrática Henrique Cunha Jr. 08 Artigo

Alimentos transgênicos: no meu prato, não? Renata Menasche Entrevista

16 NACIONAL

Energia nuclear no Brasil, pauta maldita

Padre Ricardo Rezende

Marcelo Furtado e Sergio Dialetachi 22 VARIEDADES 24 INTERNACIONAL

De uma coalizão antiglobalização a uma aliança por uma outra mundialização Pierre Calame 30

PELO MUNDO

32 ENTREVISTA

Padre Ricardo Rezende 48 CRÔNICA cultura

Algemas virtuais, dramas reais

A modéstia do sábio Alcione Araújo

50 RESENHAS 54 OPINIÃO IBASE

Software livre, conhecimento compartilhado na rede Cássio Martorelli

60 ESPECIAL FSM

Avanços e desafios Dulce Pandolfi

O mosaico imperfeito Hamilton Pereira

Uma comunicação à altura dos novos desafios Mario Lubetkin 78 CULTURA

Para apoiar os projetos desenvolvidos pelo Ibase, escreva para amigos@ibase.br ou telefone para (21) 3852-6028. Doações de pessoas jurídicas podem ser abatidas do Imposto de Renda.

Algemas virtuais, dramas reais J. R. Ripper

86 ESPAÇO ABERTO

Autonomia e democratização da cultura Francisco Humberto Cunha Filho 90 INDICADORES

Raios X das prefeituras brasileiras François E. J. de Bremaeker 104 ÚLTIMA PÁGINA Marco

O Ibase adota a linguagem de gênero em suas publicações por acreditar que essa é uma estratégia para dar visibilidade à luta pela eqüidade entre mulheres e homens. Trata-se de uma política editorial, fruto de um aprendizado e de um acordo entre os(as) funcionários(as) do Ibase. No caso de artigos redigidos voluntariamente por convidados(as), sugerimos a adoção da mesma política.

Av. Rio Branco, 124 / 8º andar 20148-900 Rio de Janeiro/RJ Tel.: (21) 2509-0660 Fax: (21) 3852-3517 <ibase@ibase.br> <www.ibase.br>

Conselho Curador Regina Novaes João Guerra Carlos Alberto Afonso Moacir Palmeira Jane Souto de Oliveira

Direção Executiva Cândido Grzybowski Dulce Pandolfi Francisco Menezes Jaime Patalano

Coordenadores(as) Erica Rodrigues Iracema Dantas Itamar Silva João Roberto Lopes Pinto João Sucupira Leonardo Méllo Moema Miranda Núbia Gonçalves

DEMO C RA C IA VIVA ISSN: 1415-1499 Diretor Responsável Cândido Grzybowski

Conselho Editorial Alcione Araújo Ari Roitman Eduardo Henrique Pereira de Oliveira Jane Souto de Oliveira Regina Novaes Rosana Heringer

Coordenação Editorial Iracema Dantas

Subedição AnaCris Bittencourt

Revisão Marcelo Bessa

Assistentes Editoriais Flávia Mattar Jamile Chequer

Produção Geni Macedo

Distribuição Maria Edileuza Matias

Projeto Gráfico Mais Programação Visual

Diagramação Imaginatto Design e Marketing

Capa Arte sobre foto de J. R. Ripper

Fotolitos Rainer Rio

Impressão J. Sholna

Tiragem 5 mil exemplares

democraciaviva@cidadania.org.br


artigo

Henrique Cunha Jr.*

Formação de pesquisadores(as) negros(as), uma necessidade

A historia da formação social brasileira é a história de um escravismo criminoso que produziu, ao longo de quase 300 anos, a imigração maciça de pessoas africanas. Como os processos de invasões européias no continente africano encontraram fortes resistências, as regiões de exploração e lutas variaram e se alternaram no tempo, fazendo com que as pessoas cativas trazidas para cá viessem de diversas regiões e culturas. Dado o imenso desenvolvimento técnico e social, para a época, vivido pelos diversos países africanos, o Brasil absorveu e se beneficiou de mão-de-obra portadora de todas as técnicas e conhecimentos utilizados nos diversos campos da produção no país. O conhecimento produtivo do Brasil Colônia é fundamentalmente africano, nas áreas de mineração, agricultura, produção de ferro e de açúcar, manufaturas, tecelagem e construção. Isso também se observa no campo da política, se considerarmos que os quilombos foram a forma mais sistemática de contestação do Estado escravista. Não paradoxalmente, as artes e a cultura se fundam também sobre as mesmas heranças africanas. Até a literatura e a música ditas eruditas são realizadas pelos povos africanos e descendentes. Basta nomearmos os marcos das nossas artes e da nossa literatura

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artigo

A produção da pesquisa científica no Brasil se inicia a partir do fim do século XIX e início do século XX. Nesse momento, também se observa a participação ativa de afrodescendentes. Há casos extremos como o do engenheiro Teodoro Sampaio. Filho de escrava, depois de formado na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, voltou à Bahia para comprar a liberdade de sua mãe. Tornou-se geógrafo, sanitarista, pesquisador e está entre os fundadores da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. A contradição que nos preocupa é a de que, mesmo em face de inúmeras evidências históricas, ainda é necessário discutir a pesquisa sobre a população negra e a formação de pesquisadores e pesquisadoras negros. Os argumentos da história não são suficientes para firmar a consciência de que existe um erro se perpetrando na composição dos corpos de pesquisa brasileiros, nas temáticas eleitas pela ciência brasileira, sobretudo nas políticas científicas e de formação de pesquisadores e pesquisadoras no país. Surpreende não apenas a ausência de políticas na área, como também de preocupações democráticas com a implantação dessas. Num país que forma 6 mil doutores e doutoras por ano, menos de 1% é formado de pessoas negras, menos de 1% trata temas de interesse das populações afrodescendentes. Ninguém discrimina ninguém, a razão disto é que a pessoa negra é pobre? Errado, o motivo é que os métodos de discriminação estão institucionalizados de tal maneira que não incomodam as consciências críticas. É natural uma pessoa negra não entrar nos programas de pós-graduação. Examinando o histórico de cerca de 2 mil pessoas negras com mestrado e doutorado existentes no país, vemos que a

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faixa etária das candidaturas e os regimes de trabalho estão fora dos perfis privilegiados pelas políticas e pelos programas de pós-graduação. Em geral, pesquisadores e pesquisadoras negros ingressam no mestrado aos 35 anos, trabalham e precisam participar do sustento da família, o que é incompatível com o número e valores das bolsas. Quem os programas favorecem em iniciação científica e artigos? Esses(as) pesquisadores(as) vêm de ensino universitário noturno, que não dá a oportunidade de iniciação científica. As disciplinas de base dos temas pretendidos por estudiosos e estudiosas negros não existem nas graduações. A única fonte de formação tem sido o próprio movimento negro. Os programas rejeitam pesquisadores e pesquisadoras militantes dos movimentos negros. Bancas de entrevista não conseguem superar a relação patroa–empregada existente nas nossas relações sociais cotidianas, tornando as entrevistas tensas e transformando as pesquisadoras negras em antipáticas. Fato mais notado entre as mulheres. Quem é antipático não entra. As negras “muito exibidas” não entram. Mas existem as pessoas negras que entram, mas não há quem conheça o tema para orientá-las. Isso produz dificuldade em ter sucesso na pesquisa no tempo determinado. A universidade brasileira não confessa sua ignorância nos temas de interesse da população afrodescendente. Assim, a responsabilidade do insucesso fica por conta do(a) pes­­qui­sador(a) negro(a). O problema é grave. Ainda mais grave é o fato de que nada disso tem sido questionado pela sociedade democrática acadêmica.

Falta tudo As populações negras vivem em espaços geográficos com total ausência de políticas públicas. São áreas sobre as quais o conhecimento científico é praticamente inexistente. Forma-se um círculo vicioso, nada se sabe, nada se faz de coerente, porque nada se sabe. As políticas universalistas do Estado se mostraram inócuas. No governo passado, uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) concluiu o que os movimentos negros vinham dizendo há quase 30 anos: a necessidade de políticas específicas. No entanto, quase nada se sabe sobre as especificidades porque os(as) pesquisadores(as) e os temas de pesquisas têm a ver com interesses distintos das populações de ascendência africana. Negro(a) e afrodescendente aqui são sinônimos, definições que vão além das


Formação de pesquisadores(as) negros(as), uma necessidade democrática

denominações de raça social. Estão ligados ao trânsito da história e a enfoques dos processos de dominação e da produção étnica da submissão neste país. Temos falado da necessidade de pesquisa e de produção de conhecimento sobre os territórios de maioria afrodescendente. Não há pesquisa, não há política pública, não há solução objetiva dos problemas. A democracia prevê a representação de todos os grupos sociais em todas as instâncias de decisão. No estágio atual do capitalismo, a pesquisa científica e os grupos de pesquisa constituem um grupo privilegiado de exercício do poder – quer pela ação direta na participação nos órgãos de decisão do Estado, quer pela indireta, por meio da difusão dos conhecimentos que justificam as ações dos poderes públicos. Os grupos sociais cujos membros não fazem pesquisa ficam alijados dessas instâncias de poder. A ausência de pesquisadores e pesquisadoras negros tem reflexo nas decisões dos círculos de poder: temas como educação e saúde de afrodescendentes só passaram para a agenda do Estado brasileiro depois que os movimentos negros, com esforços próprios, formaram uma centena de especialistas nessas áreas e produziram um número relevante de trabalhos científicos. Por que não há mais pesquisa e pesqui­ sa­dores(as)? Porque não se quer. Não existe vontade política das instituições universitárias e muito menos dos órgãos de política científica do Estado. Os movimentos negros têm sido muito ativos nas propostas de políticas públicas de ações afirmativas para formação de pesquisadores e pesquisadoras negros. Essas políticas só têm recebido a atenção de setores isolados da sociedade e das fundações internacionais.

Visão conformista e utilitária São infindáveis as posições e contraposições que o tema encerra. Ainda temos uma mentalidade nacional aversa à existência de pessoas negras ou, pelo menos, contrária e insensível a qualquer manifestação de afirmação da existência de identidades negras. A aversão não é contra a existência material desses seres ditos negros, mas contra a nossa existência política. Tal qual durante o período do escravismo criminoso, persiste a ótica dominante do medo branco com relação à onda negra. As idéias convenciam a sociedade de que o perigo era negro, enquanto a criminalidade oficial branca do Estado e todos os processos de dominação impostos pela ma-

triz européia não eram vistos como perigosos, danosos e dolosos à sociedade. Tal mentalidade continua se processando, sob novas formas de inculcação, com os mesmos resultados de um certo pânico e pelo menos indisfarçável desconforto quanto à visão da organização política, cultural e identitária negra. O país funciona bem, é democrático, a Constituição veda qualquer discriminação de raça, sexo ou religião. Esta é a visão conformista e utilitária da nossa situação: a harmonia. Quando um(a) pes­qui­sador(a) de pele clara se denomina negro(a), correm os pares, às vezes até mais escuros(as) que ele ou ela, para dissuadi-lo(a) com uma enxurrada de argumentos, e essa pessoa passa a ser vista como a produtora da discórdia. Quem é negro(a) nesta so­ciedade? Somos uma população mes­ tiça. Temos, todas as pessoas, um pouco de escravizado e escravizador no nosso passado. A pessoa negra passa a ser a introdutora de temas estranhos à comunidade harmônica brasileira. As falácias desses argumentos não são analisadas com o rigor da comunidade científica, ficam no pseudo-senso científico. As referências biologizantes do tema superam as políticas e sociais. Pesquisadores(as) de história se esquecem dos conceitos da história social e se amparam no argumento biológico. Socialmente, não temos nada do escravizador, visto que ele não mestiçou a sua posse proprietária com a nossa. Vejam que o escravizador sempre vendeu as crianças que teve com as escravizadas como escravizadas. A nossa dita morenidade não está representada na distribuição de renda. Importada é a maioria ou quase a totalidade das idéias científicas difundidas no país. Quais seriam os critérios da condenação

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artigo

* Henrique Cunha Jr. Professor titular do Departamento de Engenharia Elétrica e do Programa de Pósgraduação em Educação da Universidade Federal do Ceará. De 2002 a 2004, foi presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN)

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dessa importação em particular? A crítica da importação também prescreve uma ignorância sobre a nossa história social, em que os movimentos negros há mais de um século pautavam essas temáticas. É certo que nos damos bem no campo informal. Pulamos carnaval juntos(as) e jogamos futebol. Mas não estudamos juntos(as). Muito menos, pesquisamos juntos(as). Mas é um problema social. Não temos dúvida de que é um imenso problema social, para o qual não se procura solução. Há quem diga que tem em casa uma negra empregada que é como se fosse da família. Sem que divida com ela o capital cultural, a educação das crianças ou o seguro-saúde da família. No Brasil, até cachorro é membro da família. Desde que organizamos a Associação Brasileira d e P es qu is a do res Negros, em 2000, com o intuito de acelerar o processo de pesquisa das temáticas de interesse das populações afrodescendentes, tenho ouvido pelos corredores, e às vezes explicitamente, argumentos de que pesquisa não tem cor ou que as temáticas abordadas por nós não são suficientemente universais, ou seja, não fazem parte da ciência. Concordo que a pesquisa não tem cor, mas as políticas científicas, que não têm nada a ver com o cerne do fazer científico, têm os atributos de cor, de grupo social, de grupo histórico, de marginalizações e de produção das desigualdades sociais, econômicas e políticas. Quem detém o poder detém a primazia da ciência e determina quais temas são parte ou não da ciência. O mesmo universalismo cien­tí­ fico fez com que todas as teorias racistas fossem produzidas, divulgadas e aplicadas pelos corpos científicos. O argumento da universalidade da ci-

ência não serve como científico em face da própria história da sua construção eurocêntrica. Por que as ciências físicas ainda hoje travam um imenso debate sobre as idéias de generalização e universalização da ciência, como as discordâncias sobre a natureza do tempo e do espaço, sobre a lógica da previsibilidade da ciência destruída pela teoria do caos? Podemos quase afirmar que não existe uma ciência universal, pelo menos nos moldes em que era concebida há 30 anos. A formação de pesquisadores e pesquisadoras negros passa por todos esses obstáculos ideológicos, políticos, preconceituosos, eurocêntricos, de dominações e até mesmo de inocências úteis vigentes nas instituições de pesquisa e nos órgãos de decisão sobre as políticas cientificas. É fundamentalmente um problema político de concepção da sociedade e das relações sociais. Problema que a sociedade científica se nega a reconhecer, negando-se a tratá-lo e colocá-lo na agenda das preocupações. A mesma atitude ocorre na esfera governamental, que, de certa forma, reflete o pensamento das instituições de pesquisa. O capitalismo segue fabricando seus negros e suas negras. Utiliza a produção científica para reatualizar as estratégias de dominação e subordinação desses negros e dessas negras produzidos. As definições de negros(as) e das nossas condições de vidas seguiram se alterando ao longo do último século. Para se ter uma idéia dessa dinâmica, basta acompanhar as modificações que as Nações Unidas tiveram sobre a temática. Mas a média de pesqui­sadores(as) brasi­lei­ros(as) permanece alheia a tais definições e redefinições. A maioria ainda pensa a pessoa negra no mesmo referencial racista e biológico do século XIX. Praticam as concepções da existência de raças humanas e dos seus atributos. Tome-se como exemplo o imenso sucesso que o livro Casa-grande e senzala ainda faz entre essa maioria. Participam de um subdesenvolvimento científico mental no setor das relações étnicas, com graves conseqüências para as populações afrodescendentes. Sob um discurso de democracia e igualdade, impõem-se descasos e discriminações sobre a necessidade de pesquisas em temas de interesse da população negra e da formação de pesquisadores(as) origi­ná­rios(as) desse grupo social.


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artigo Renata Menasche*1

Alimentos transgênicos: no meu prato,

Ao menos desde 1999, os meios de comunicação têm veiculado notícias que atestam a presença, nas gôndolas de supermercados brasileiros, de alimentos em cuja composição tomam parte organismos geneticamente modificados. Em 2000, as primeiras denúncias de presença de transgênicos em alimentos industrializados em território nacional conformariam o eixo da campanha de opinião pública conduzida pela organização ambientalista Greenpeace, “Transgênicos no meu prato, não!”, que inspira o título deste artigo. Assim, a presença de organismos geneticamente modificados na 1 Este texto é uma versão resumida de um artigo de mesmo título (ver Menasche, 2004). 2 No período compreendido entre novembro de 2001 e março de 2002, foram realizadas 25 entrevistas em profundidade com pessoas moradoras de Porto Alegre (Menashe, 2003). Cabe comentar que, com o objetivo de preservar o anonimato das pessoas informantes, os nomes utilizados neste artigo são fictícios.

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alimentação das pessoas moradoras de Porto Alegre entrevistadas2 (Rio Grande do Sul) já era uma possibilidade. Tomando por abordagem as perspectivas de análise propostas pela antropologia da alimentação, o objetivo deste artigo consiste em, colocando o foco nas visões e práticas de informantes em relação à alimentação, buscar apreender suas percepções a respeito dos alimentos geneticamente modificados.


Sabemos que as classificações, práticas e representações que caracterizam um sistema culinário agem na incorporação do indivíduo a um grupo social. Afinal, “o homem se alimenta de acordo com a sociedade a que pertence” (Garine, 1987: 4). Ao mesmo tempo, pode-se afirmar que, ao se alimentar, o indivíduo incorpora as propriedades do alimento. Temos aí o princípio da incorporação, como proposto por Claude Fischler. Para esse autor, a incorporação é o movimento através do qual fazemos o alimento transpor a fronteira entre o mundo e nosso corpo... Incorporar um alimento é, em um plano real, como em um plano imaginário, incorporar todas ou parte de suas propriedades: tornamo-nos o que comemos. [...] É certo que a vida e a saúde da pessoa que se alimenta estão em questão cada vez que a decisão de incorporação é tomada. Mas também está em questão seu lugar no universo, sua essência e sua natureza, em uma palavra, sua própria identidade: o objeto incorporado intempestivamente a pode contaminar, transformar... (Fischler, 1993: 66, 69) Dessa forma, sugere Fischler, se o alimento constrói a pessoa que o ingere, é compreensível que essa pessoa busque se construir no ato alimentar. Daí esse autor deduz a necessidade vital de identificação dos alimentos, fonte principal da atual ansiedade em relação à alimentação. Ele indaga: Se não sabemos o que comemos, não se tornaria difícil saber não somente o que nos tornaremos, mas também o que somos? (1993: 70) É a partir desse quadro interpretativo, refletindo sobre a comida industrializada das sociedades contemporâneas, que Fischler (1993: 218) cunha a expressão objeto comestível não identificado (ocni), uma transposição jocosa, para o tema alimentação, do termo utilizado

em referência a discos voadores, artefatos que seriam produzidos por seres de outros planetas, objetos voadores não identificados (ovni). A ansiedade humana em relação à alimentação teria origem, segundo Fischler, no paradoxo do onívoro, manifestando-se pela ambivalência entre neofilia e neofobia. Ou seja, o ser humano, para satisfazer suas necessidades nutricionais, precisa introduzir alimentos variados em sua dieta. Mas, ao mesmo tempo, depara-se com os perigos oferecidos por novos alimentos. Inovação e prudência seriam, desse modo, características contraditórias do onívoro em suas escolhas alimentares. Cabe aqui uma precisão, explicitada por Ferrières (2002: 13) em seu estudo sobre a história dos medos alimentares a partir da Idade Média. Enquanto o medo seria referente a um objeto conhecido e claramente identificado, a angústia e a ansiedade, mais difusas e difíceis de suportar, seriam suscitadas pelo desconhecido. A inquietação diante dos alimentos modernos, gerada por acréscimos em sua composição – conservantes, corantes, agrotóxicos, aditivos etc. – ou por novos processos de transformação, é atestada pela multiplicação, nas últimas décadas, de rumores alimentares (Fischler, 1993: 218). Vejamos como essa ansiedade se expressa entre algumas das pessoas moradoras de Porto Alegre entrevistadas. Os enlatados, eu compro, mas morro de medo! [...] Parece assim que eu penso “ah, aquela coisa ficou ali dentro tanto tempo!”. Que nem o milho verde, que eu adoro, pra pôr numa salada. Às vezes eu abro, e dá vontade... [gesto significando ato de jogar fora]. (Clara) Até que chega no supermercado, até que o cara compra, o produto passa por muitas coisas, e o cara não sabe por onde ele passou [...] Muitas coisas eles botam ali no produto [inscrições nos rótulos], porque a lei exige, mas quem me garante aquilo lá? Eu não tenho

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artigo

condições de analisar. Eu sou um cara muito desconfiado. (Álvaro) A composição dos alimentos, seu processamento e a procedência deles, bem como a trajetória que percorrem até serem colocados à disposição do público consumidor, ou, mais precisamente, o fato de serem obscuros, seriam, assim, como apontado pelas pessoas informantes, fonte de desconfiança. O que é misturado ao pó que se transforma em sopa? O que é acrescentado aos grãos de milho verde para que se conservem por tanto tempo na lata? Ou ao leite de caixinha, para que demore tanto a estragar? Com que é alimentada a galinha, cujos pedaços congelados são oferecidos ao consumo, acondicionados em bandejas, envoltas por filme plástico? Se a presença de elementos desconhecidos na comida moderna gera, entre as pessoas entrevistadas, desconfiança e ansiedade, não é de surpreender que encontremos o mesmo tipo de reação diante dos alimentos transgênicos, resultantes, a partir de modificações genéticas, da introdução de genes estranhos aos vegetais habitualmente consumidos.

industrializada

Sujo e limpo: representações sobre a comida

Às vezes tu nem sabe o que está comprando. Não sabe de onde vem, se tem agrotóxico, não sabe o que eles colocam pra produzir. Não sabe se é limpo, não sabe se é sujo. (Cleusa) Na fala de Cleusa, moradora de Porto Alegre, a idéia de sujeira é associada à presença do desconhecido no alimento. Entre as pessoas informantes, várias seriam as que manifestariam considerar sujos os produtos trazidos do

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supermercado. Chego em casa, tiro, lavo... Bah, não consigo nem ver! Nem um frango e nem outra carne sem lavar! Meto na pia, corto tudo, tiro, limpo, lavo direitinho e separo. [...] Eu tenho uma mania, eu passo um paninho umidozinho em tudo o que é saquinho, tudo o que é latinha, tudo que é coisa que eu trago [do supermercado]. (Margarida) No que se refere, particularmente, às frutas e verduras, inúmeras seriam as pessoas entrevistadas que apontariam o descascamento e/ou lavagem como “medidas profiláticas” para evitar eventuais efeitos nocivos causados pela presença de impurezas – especialmente resíduos de agrotóxicos – nos alimentos. Meu pai não come, se ele vê tu comer um tomate com casca! Meu pai cuida muito isso aí, pra gente tirar, porque a concentração [dos agrotóxicos] está na casca. (Rosane) As verduras, deixo de molho um pouco, pra sair o veneno. Eu ponho um pouquinho de vinagre, às vezes deixo só na água, porque a água elimina o veneno, né? Aí deixo de molho. (Marta) As frutas que a gente compra no super, eu lavo tudo com sabão de glicerina. Pêssego, uva, essas coisas que a gente come assim. Banana eu não lavo, mas o resto, eu lavo tudo com sabão de glicerina. (Dirce) Descascando e lavando, as pessoas informantes considerariam ter, assim, expurgadas – física, mas também simbolicamente – as impurezas das frutas e verduras que consomem. Inúmeros são os estudos – particularmente os que tomam por objeto a alimentação em países desenvolvidos – que vêm apontando a crescente preocupação com a saúde nas escolhas dos alimentos, mas também com a boa forma ou a adesão a novas morais alimentares. Em depoimentos coletados para esta pesquisa, o desconhecido, impuro, sujo seria identificado pelas pessoas entrevistadas também como não-saudável. Da mesma forma, podemos sugerir, à interpretação construída por Douglas (1976) das prescrições alimentares contidas no texto bíblico. Nesse sentido, Cleomar, adepta do Adventismo do Sétimo Dia, citaria o Levítico para explicar as restrições que sua religião estabelece em relação ao consumo de carnes. Separando animais


Alimentos transgênicos: no meu prato, não?

“limpos” de animais “imundos”, a informante associaria a pureza do alimento – decorrente da ausência de “produtos químicos” – à saúde. Deus, desde o início, quando criou o mundo, se preocupou que as pessoas vivessem bem, e vivessem felizes, e com saúde. Que não adianta tu viver, mas sem saúde. Aí não teria alegria nenhuma. [...] Eu tenho como pra mim, que eu aprendi, o que eu acho que é errado em termos alimentares, o que eu acho que é certo. Acho assim que qualquer pessoa entende que os produtos químicos não fazem bem pra saúde. [...] Os produtos químicos, nossa! É superprejudicial, causa câncer, doenças as mais variadas, eu acho. (Cleomar) Essa visão pode ser mais bem apreendida se levarmos em conta que, como evidenciado por Sandra Pacheco, no trabalho em que analisa, em duas diferentes comunidades da capital baiana adeptas do Adventismo do Sétimo Dia, as relações entre prática religiosa e hábitos alimentares, na cosmologia adventista o alimento é um meio para a conquista/manipulação da saúde do corpo tomado como templo do Espírito Santo, instrumento físico a serviço de Deus. Esta “máquina” precisa ser cuidada para funcionar bem, cumprir sua meta. A alimentação deve ser pautada pela necessidade e não pelo desejo, devendo o controle racional do comer subjugar os elementos emocionais. Assim, os princípios de alimentação fazem parte de um projeto mais amplo de racionalização da conduta com vistas a transformar o homem em instrumento de Deus e prova de sua glória. (Pacheco, 2001: 158) É assim que, tendo por norma que aquilo que se come cabe garantir a saúde do corpo, Cleomar afirmaria que a presença de “produtos químicos” nos alimentos – bem como modificações genéticas – comprometeria sua função, tornando-os possíveis causadores de doenças. Para melhor apreender a associação entre pureza do alimento e saúde, será interessante, ainda, analisarmos o caso relatado por Luísa e Paulo a respeito do leite consumido. A maioria das pessoas entrevistadas declararia sua adesão ao leite acondicionado em embalagens longa vida, várias delas mencionando como vantagens a possibilidade de estocagem do produto – que permite que a aquisição do leite seja incluída no rancho, a compra semanal ou mensal, realizada em supermercado – e, uma vez aberta a

embalagem, sua maior durabilidade. Entretanto, algumas manifestariam considerar o leite fluido oferecido em saquinhos de melhor qualidade ou mais saudável. Entre essas, estariam Luísa e Paulo. Veremos a seguir a situação narrada pelo casal, cabendo aqui mencionar que ambos se definem como espiritualistas – ele kardecista, ela umbandista, médium. Segundo seu relato, toda a família, mas especialmente Paulo e uma das filhas do casal, manifestavam um problema de pele, de causa desconhecida. Buscando diagnóstico para o problema, Luísa realizaria uma consulta espiritual. Eu perguntei... foi pra Mãe Oxum, uma entidade da umbanda. Aí eu perguntei pra ela, falei de umas coceiras, umas alergias, falei “não sei se vem dos cachorros, ou de alguma coisa que nós estamos comendo”. Eu até não estava sentindo coceira nenhuma, eu procurava pulga e não via, não via nada, mas como era muito seco, podia ser uma poeira, um cimento, nós estávamos mexendo com cimento. Aí ela disse que era do leite, que tinha um conservante que estava fazendo mal. O leite de caixinha, ele tem uns conservantes, umas coisas a mais ali, né? Então eles [o marido e a filha] observaram. Eu troquei de marca, mas não adiantou. Aí ele [o marido] comprovou, passou a tomar leite em pó, a Júlia também. (Luísa) No diagnóstico espiritual, a doença de pele teria sua causa em algo que teria sido acrescido ao leite longa vida para garantir sua conservação. Conforme narrado pelo casal, seguindo a recomendação de Mãe Oxum, o leite de caixinha seria eliminado da dieta de Paulo e Júlia. Assim, eles se veriam curados do problema de pele. Desse modo, não apenas as pessoas informantes identificariam no elemento adicionado ao leite a causa da doença, como o fariam a partir do parecer da entidade espiritual, o que indicaria, é interessante notar, que também a partir do plano espiritual, simbólico, a comida moderna seria identificada como contendo substâncias estranhas, sendo, então, percebida como potencialmente maléfica. Assim, tendo anteriormente evidenciado entre as pessoas entrevistadas que a presença de elementos desconhecidos nos alimentos industrializados gera ansiedade, pode-se agora precisar que essa ansiedade é substanciada a partir da associação entre desconhecido e sujeira – ou impureza, desordem –, por sua vez percebida como não-saudável, fonte de doenças. Do mes-

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mo modo – e, podemos sugerir, no campo do imaginário, a partir da mesma construção –, a maior parte dessas pessoas informantes referir-se-ia aos alimentos geneticamente modificados como potencialmente prejudiciais à saúde.

O natural e as representações do rural O molho, eu gosto de fazer, que daí faz do gosto. O molho pronto geralmente tem uns gostos meio estranhos, eu não gosto. Gosto de pegar o tomate, cortar, fazer. [...] Não gosto muito de enlatados. [Por quê?] Não sei, acho que o gosto não é tão bom. Acho que às vezes o gosto não é bom. Não é que tem gosto ruim, mas a gente nota que não é um gosto natural, altera o gosto do produto, isso eu não gosto. Gosto de sentir o gosto natural dos alimentos. (Gilberto) No depoimento de Gilberto – bem como nos de muitas outras pessoas informantes –, a valorização do natural seria construída como reflexo da crítica ao artificial, qualificativo atribuído aos alimentos industrializados. Ou, como sugerido por La Soudière (1995: 158-160), temos que, como reflexo da desconfiança ante o moderno, o natural e o rural seriam identificados como autênticos. As possibilidades de análise oferecidas por essa contraposição serão aqui exploradas. Entre as pessoas entrevistadas, as verduras adquiridas em supermercados seriam percebidas como “muito grandes”, “sem gosto”. A galinha congelada “parece palha, fica desidratada”. Do leite “tiram todos os nutrientes”. Os ovos seriam considerados cópia dos “de galinha mesmo”. Talvez algumas das declarações que afirmam a superioridade do sabor dos alimentos não-industrializados se constituam em reação ao que poderia ser caracterizado como “gosto médio”, excludente de sabores fortes, proposto – como sugere Eizner (1995: 14) – pela indústria agroalimentar. Ou, como evidenciado por Álvarez e Pinotti, em estudo sobre as mudanças e permanências nos hábitos alimentares dos argentinos, a insipidez dos alimentos oferecidos pela indústria alimentícia e a sensação de insegurança provocada pela perda de controle sobre a cadeia de operações de produção e elaboração da comida, provocam o resgate de variedades vegetais, animais locais ou regionais e produtos artesanais... (2000: 272)

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Assim é que molhos e temperos prontos, pratos congelados, bolos e sopas pré-preparados, pães e massas industrializados, alimentos enlatados e refrigerantes seriam – juntamente com outros itens, anteriormente mencionados – reiteradamente condenados. Em detrimento desses, as preferências declaradas indicariam molhos, iogurtes, doces, bolos, pães e massas caseiros; galinhas e ovos caipiras; água e sucos; milho em espiga, vegetais e temperos frescos; verduras orgânicas. O que é natural, fresco, caseiro, próximo, tradicional seria, dessa forma, afirmado em oposição aquilo que é artificial, processado, distante, industrializado, moderno. Os alimentos industrializados seriam percebidos como excessivamente manuseados, e, ainda, provenientes de lugares distantes – em alguns depoimentos seria manifestada a preferência por produtos locais, gaúchos –, de origem não conhecida. Como no trabalho de Cazes-Valette (1997: 224), seria valorizada a identificação da origem do produto, que, muitas vezes, passa por um ser humano, alguém conhecido – no caso estudado pela autora, que analisa o consumo de carne bovina na França pós-crise da vaca louca, esse alguém seria o criador ou o açougueiro. O alimento natural não seria apenas considerado o de melhor gosto. Em oposição ao alimento industrializado, seria apontado como puro e, dessa forma, saudável. Os adjetivos relacionados ao natural seriam atribuídos aos alimentos frescos, ou aos provenientes da feira, ou aos orgânicos, ou aos trazidos de fora. Ainda, especialmente nos casos das pessoas moradoras de Porto Alegre entrevistadas e têm origem no meio rural – mas, como se pode observar no depoimento de Karen, a seguir, não somente entre essas –, os adjetivos relacionados ao natural seriam também atribuídos aos alimentos que remetem à memória da infância, da comida da mãe ou da avó. A minha avó materna, que era italiana, a família quando veio da Europa se estabeleceu na zona rural, na colônia, eram colonos. E a minha avó, que está viva até hoje... ela é uma pessoa muito ligada à terra, sempre foi. E mesmo depois de vir morar na cidade, depois de uma certa idade ela veio morar com meus pais... ela manteve aquela profunda ligação com a terra. [...] Eu lembro da minha avó italiana, fazia uma polenta! A polenta, eu já adorava. Mas depois, no dia seguinte, ela cortava a polenta em fatias, quando ela estava já seca, e fazia em cima de


Alimentos transgênicos: no meu prato, não?

uma chapa. E eu comia aquilo com mel! Como era bom! Ai, como era maravilhoso! Polenta brustolada, como ela diz. Com mel. Que o mel, isso é uma coisa gozada, porque minha avó é italiana, meu avô é alemão, e alemão mistura muito doce com salgado, os italianos já não... Eu me lembro dos pães que a minha avó fazia, também. Eu ajudava ela, que eu aprendi a fazer pão com ela. E faço pão, e gosto, adoro fazer pão. Me lembro do perfume dos pães, do cheiro da massa crua. (Karen) É interessante remarcar que todas as pessoas informantes, inclusas as nascidas em Porto Alegre, expressariam, de algum modo, uma memória culinária rural, vivida ou herdada, isto é, experienciada diretamente ou a partir do vivenciado por seus antepassados. A ruralidade, mais que qualquer outro atributo, parece condensar todas as vantagens que distinguem o alimento desejável do alimento industrializado. De fora são os alimentos que vêm do interior, do meio rural, cuja origem é associada diretamente ao produtor. De fora, podem ser os alimentos trazidos pela pessoa informante, ou por alguém de sua família, quando em visita à região natal, ou por alguma pessoa conhecida ou parente que de lá vem. Podem, também, ser os alimentos produzidos em chácara, perto da cidade. Ou os adquiridos em alguma viagem, de produtores que os ofertam, à beira da estrada. Ou os comercializados em feiras – de produtos orgânicos ou não –, supostamente pelas próprias pessoas que os produzem. Ou, ainda, aqueles que, de algum modo – como os ovos, trazidos de fora pelo “pessoal do estacionamento”, para vender –, vindos do campo, chegam à cidade por canais outros que os formalmente constituídos. Os alimentos que vêm de fora são considerados os melhores. Das verduras, é dito que “até a folha é mais macia”. A galinha, a carne e o leite “não têm comparação”, “é outro gosto”, as do supermercado não chegam “nem a seus pés”. Nos ovos “daquelas galinhas criadas com milho, a gema é supervermelha, bem diferente”. Podemos, assim, supor que, em relação aos alimentos, ocorra o correspondente ao indicado por Mathieu e Jollivet (1989: 11-12), que, na França, debruçando-se sobre o tema das representações da natureza, evidenciam que o senso comum urbano tende a associar ao campo, ao rural, os valores atribuídos à natureza e ao natural. Ou, ainda, processos semelhantes aos apontados por autores que, na Europa, vêm se

dedicando ao estudo da comida como patrimônio – e aí o caso dos produtos de terroir franceses são particularmente significativos –, mostrando como produtos alimentícios e pratos, associados a uma região, e referidos a uma natureza e a um campo, a uma identidade, tornam-se, a partir das representações do mundo rural, bens de consumo especiais (Bonnain, 1991; Bérard, 1998; Delbos, 2000; Rautenberg et al., 2000). Assim, o rural tende a ser qualificado como natural, mesmo quando, dadas as características intensivas da produção agropecuária – que inclui a utilização de agroquímicos dos mais diversos tipos –, não o seria. Do mesmo modo que indicado por Eizner (1995: 14) para o caso francês, talvez possamos identificar nessa valorização do natural e do rural mitos do natural e do artesanal, algo como a busca do consumo de “imagens dos sabores perdidos”. A idealização do rural, transposta aos alimentos de fora, torna-se evidente em alguns dos depoimentos das pessoas moradoras de Porto Alegre entrevistadas nascidas no meio rural. Em momentos diferentes, as mesmas pessoas informantes destacariam as delícias da comida do campo e, ao descrever a composição das refeições de sua infância, mencionariam a pouca variedade de alimentos disponíveis, ou mesmo a pobreza alimentar.

Percepções à mesa No que se refere aos hábitos alimentares, a imagem de uma ruralidade idealizada não seria a única disjunção perceptível entre as visões expressas pelas pessoas entrevistadas e suas práticas. Embora cada uma declarasse, em algum momento, como visto, algum grau de

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desconfiança e ansiedade em relação à comida moderna, as descrições de seus cardápios cotidianos evidenciariam não apenas a inexistência de adeptas de dietas como o vegetarianismo e a macrobiótica, ou regidas pelo consumo de vegetais exclusivamente orgânicos – dietas que, como indicado por Ouédraogo (1998: 18-19), em seu estudo das visões e práticas de consumidores e consumidoras parisienses adeptos da alimentação orgânica, seriam parte integrante de um estilo de vida, regido por uma ética “que valoriza extremamente a vida simples, a natureza e o natural, o artesanal e o rústico [...] associados à saúde, à ecologia, à pureza, à solidariedade” –, mas também, e nem se poderia esperar que fosse de outro modo, o amplo consumo de alimentos industrializados. Cabe aqui uma observação. Como indicado por Darmon (1993: 77) – no estudo em que mostra que, há mais de um século, a crescente incidência de câncer vem sendo percebida, na Europa, como decorrente de hábitos, aí inclusos os alimentares, advindos com a civilização –, é comum, nas representações que as sociedades constroem sobre seu progresso, que os aspectos positivos do mundo moderno sejam omitidos. Assim, talvez possamos entender que, embora o consumo de alimentos industrializados em geral, e pré-preparados em particular, seja bastante difundido, seriam pouquíssimas as pessoas informantes que remarcariam a praticidade, facilidade ou economia de tempo decorrentes de sua utilização, a maioria preferindo ater-se a comentar, como visto, o que percebem como seus efeitos negativos. Observando as detalhadas descrições de refeições coletadas com as pessoas entrevistadas, bem como os itens presentes em suas listas de compras, podem-se notar algumas combi-

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nações interessantes. Gilberto – cujo trecho de depoimento foi reproduzido anteriormente –, por exemplo, que prefere preparar seu próprio molho de tomate, evitando o produto industrializado, artificial, consome diariamente, no almoço, uma Coca-Cola light. Já na geladeira de Carla, em que só entram vegetais orgânicos, adquiridos na feira ecológica, freqüentada semanalmente, a Coca-Cola, presença obrigatória, não é a light. A preocupação com a dieta faria com que Lourdes fosse menos rígida em relação ao refresco que coloca à mesa do que com os ingredientes que utiliza na preparação das refeições. Extrato de tomate, eu não compro. Eu vou na polpa de tomate, se eu quero engrossar meu molho... porque tem muito aquelas porcarias. Quer ver? Já te digo, olha aqui [a informante mostra a embalagem, que buscara no armário, embaixo da pia]. Eu compro a polpa de tomate. [...] Aqui não diz a composição? Vamos ver: tomate, açúcar e sal! Mas se tu pegar um extrato de tomate no supermercado, tu olha o que que tem! Um monte de coisa: conservantes, acidulantes, expectorantes [sic], não sei mais o quê. (Lourdes) Agora eu comprei o suco, aquele [nome do produto], com aspartame, eu acho. Então, como ele não engorda, eu gosto de tomar um suquinho assim, eu faço. É esse aqui ó, esse aqui é Tea de Limão. Bah! [olhando o rótulo] Tem quantidade de coisa aqui! Tudo artificial! Acidulante... edulcorante... lálálá... um monte de porcaria. Mas não tem açúcar! Então, isso aqui é liberado. Criança gosta, né? Essas porcariazinhas, a gente está tendo que ter. (Lourdes) Inúmeros seriam os exemplos equivalentes, referentes não apenas às bebidas, mas aos mais diversos produtos. É assim que Dirce, que prefere as verduras orgânicas, lava com sabão de glicerina as frutas e declarara não consumir galinhas de supermercado, manifestaria entusiasmo diante das misturas pré-preparadas para sopas: “Eu adoro sopa de pacotinho, aquele sopão. Ah, eu amo!”. Do mesmo modo, teríamos pessoas que, preferindo fazer seus próprios doces, consomem freqüentemente macarrão instantâneo; recusando alimentos congelados ou embutidos, têm por costume utilizar bolos de caixinha; alimentando-se preferencialmente de vegetais


Alimentos transgênicos: no meu prato, não?

orgânicos, consomem chocolates cotidianamente; negando-se a incluir enlatados em seus pratos, servem, em refeições familiares, pratos pré-elaborados, ou, ainda, que acrescentam cebolas e tomates ao molho comprado pronto, ou utilizam as misturas pré-preparadas para sopa para “incrementar” seus próprios caldos. Retomemos aqui a questão que se colocara como ponto de partida para o percurso deste artigo: o que as visões e práticas das pessoas informantes em relação à alimentação nos sugeririam a respeito de suas percepções sobre os alimentos transgênicos? Pôde-se, ao longo da pesquisa, observar que, para as pessoas entrevistadas, os alimentos transgênicos são percebidos como incluídos em uma série de medos contemporâneos, vindo a ser associados a clone, radiação, vaca louca, mutação, má-formação fetal e câncer. Entretanto, mesmo considerando os transgênicos potencialmente nocivos e declarando sua rejeição a esses alimentos, essas pessoas não adotam, efetivamente, a restrição a alimentos geneticamente modificados como critério de escolha de produtos alimentícios. Assim, ao mesmo tempo em que os alimentos transgênicos são afirmados como perigosos, entre tantos riscos com que se deparam em seu dia-a-dia, as pessoas moradoras de Porto Alegre entrevistadas parecem não eleger esse como um dos riscos com os quais efetivamente devem se preocupar.3 Ainda, evidenciou-se, entre essas pessoas, a presença de ansiedade diante da comida moderna. Os produtos industrializados são desqualificados, ao mesmo tempo em que são

afirmados como preferíveis os percebidos como naturais, associados a uma imagem idealizada do campo. Esses elementos indicariam uma disposição à rejeição aos alimentos transgênicos. No entanto, os mesmos alimentos produzidos pela indústria agroalimentar desqualificados nos depoimentos das pessoas moradoras de Porto Alegre entrevistadas são cotidianamente consumidos por elas, o que leva a supor que isso também possa ocorrer com os alimentos geneticamente modificados. Assim, se é possível afirmar que entre a maior parte das pessoas entrevistadas os alimentos transgênicos são objeto de rejeição, temos que essa opinião não necessariamente encontrará correspondência em suas atitudes diante das prateleiras dos supermercados e à mesa. Se é verdade que os organismos geneticamente modificados estão bem mais presentes nas lavouras e mesas brasileiras e gaúchas do que gostariam os setores contrários aos transgênicos, as contradições entre visões e práticas das pessoas moradoras de Porto Alegre entrevistadas, evidenciadas na pesquisa, indicam que as certezas a respeito do tema permanecem bastante aquém do que desejariam os setores pró-transgênicos. Não chegamos ao fim da história.

* Renata Menasche Professora da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs) e pesquisadora da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro) menasche@portoweb.

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3 Cabe aqui lembrar que, como afirmam Douglas e Wildavsky (1982), “a escolha dos riscos com os quais se preocupar depende das formas sociais selecionadas... a escolha dos riscos e a escolha de como viver são realizadas juntas”.

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Marcelo Furtado* e Sergio Dialetachi**

Energia nuclear no Brasil, pauta A comunicação com o grande público na era da mídia digital, globalizada e em tempo real é um dos grandes desafios da atualidade aos movimentos socioambientais. Em meio a milhões de textos, fotos, vídeos e sons, as organizações da sociedade civil competem hoje por espaços na mídia para divulgar grandes desafios nacionais e internacionais, denunciar abusos e propor soluções. Os meios de comunicação estão se concentrando num pequeno número de grandes corporações da mídia e, com isso, assumindo o controle da informação perante o grande público. As organizações não-governamentais estão sendo obrigadas a investir em estratégias de comunicação mais ousadas e inovadoras para garantir a possibilidade de comunicar a um público mais amplo, a baixo custo, temas importantes como meio ambiente, direitos humanos, desafios sociais, que muitas vezes não entram nas pautas dos grandes veículos de comunicação.

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onal A sociedade civil tem dois grandes desafios hoje. Em primeiro lugar, é fundamental trabalhar em rede com o maior número possível de organizações focadas em alguns interesses comuns para se lograr qualquer objetivo socioambiental. Em segundo lugar, é essencial mobilizar o grande público para que ele promova o processo de mudança por meio da ação política e da ação individual e coletiva. A campanha contra a retomada da aventura nuclear no Brasil conta com todos os elementos que desafiam os(as) profissionais de comunicação. Temos forte oposição pública, relatórios técnicos, documentos oficiais, análises qualificadas, material para Internet, campanha pública e outros. Entretanto, esse tem sido um tema de grande relevância ambiental e enorme impacto financeiro que está recebendo pouquíssima atenção da imprensa. O assunto é complexo, pois envolve questões ambientais (lixo radioativo), econômicas (bilhões de dólares em investimento) e de segurança nacional (enriquecimento de urânio, submarino nuclear e o domínio do ciclo do combustível nuclear). Segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser), em meado do ano passado, a pedido do Greenpeace, 80% da população brasileira não quer a construção de mais usinas nucleares no país. No início do primeiro governo civil eleito pelo voto direto, o então presidente Fernando Collor (1990) noticiou, com grande destaque, o fim de um projeto militar secreto. Numa área remota da Amazônia, fechou um buraco com 300 metros de profundidade que seria destinado a testes com artefatos atômicos. Era uma prova real de que as Forças Armadas chegaram muito perto de explodir uma bomba nuclear nacional. Durante o governo Fernando Henrique, o setor militar foi direcionado para a construção de satélites e desenvolvimento do programa espacial brasileiro. O presidente declarou, na época, que

as Forças Armadas estavam resignadas a viver sem a presença de armas nucleares. No início do governo Lula, o então ministro de Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral, declarou que o Brasil deveria desenvolver capacidade plena para o desenvolvimento de artefatos nucleares, apesar de não estar considerando a construção de uma bomba atômica. A prioridade seria o submarino nuclear e a geração de energia. O programa permitiria que, até o ano de 2010, fossem produzidos 60% do urânio enriquecido necessário para a operação das duas usinas nucleares existentes no país, Angra 1, Angra 2 e, possivelmente, Angra 3. A questão nuclear expõe a posição favorável do governo Lula na possível aplicação da tecnologia nuclear em áreas militares, como o submarino nuclear, e do enriquecimento de urânio. As recentes declarações do atual ministro de Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos, promovendo novas usinas e a retomada de projetos nucleares militares, corroboram as declarações do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, general Jorge Armado Félix, veiculadas pela Folha de S.Paulo em 14 de novembro de 2004. Na entrevista, o general afirmou categoricamente que a aprovação da construção da usina nuclear de Angra 3 “está para sair”. Ele também disse que estados com capacidade nuclear estão utilizando organizações não-governamentais para barrar o Brasil no ingresso nesse clube seleto. Tais declarações indicam que o Brasil pode caminhar na contramão do desenvolvimento sustentável e que o governo Lula está disposto a hipotecar nosso futuro ambiental e econômico. A tecnologia nuclear é financeiramente inviável e não existe solução para o seu lixo radioativo, apresentando um grande risco à população e ao meio ambiente. Durante o Fórum Social Mundial 2005, as ministras Dilma Rousseff (Minas e Energia) e Marina Silva (Meio Ambiente) mani-

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festaram sua oposição aos planos do governo Lula de construir a usina nuclear de Angra 3. O professor Luiz Pinguelli Rosa, em evento do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, coordenado por ele, também se opôs ao projeto. O Greenpeace já mobilizou mais de 20 mil mensagens ao presidente Lula contra a construção de Angra 3 e a retomada da aventura nuclear brasileira com a campanha “Lulinha Nuclear – Não dê uma bola fora. Diga não à Angra 3!”. A campanha circulou nos sites UOL, iG, Yahoo!, nas revistas Época, IstoÉ, Carta Capital, mas foi recusada pela revista Veja sob alegação de que a “campanha usava a imagem do presidente sem sua autorização”. Discutimos a opção da retirada do personagem “Luli­nha Nuclear” do anúncio, mas o texto também parecia ser problemático para a revista.

Arquivo energético A história da energia nuclear no país teve início por volta de 1945, ano da explosão das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki e do fim da Segunda Guerra Mundial. Apesar de pobre em reservas conhecidas de urânio, o Brasil era um grande exportador de monazita, um mineral radioativo. No entanto, essa exportação foi alvo crescente de denúncias de favorecimento a interesses estrangeiros e contrabandos. Na tentativa de moralizar essa situação, o governo passou a incluir nos contratos de exportação a exigência de beneficiar-se do minério antes de remetê-lo para o exterior. Assim, foram formados os primeiros grupos de pesquisas e implantadas as primeiras unidades de beneficiamento, o que despertou desvarios sobre a fabricação de uma bomba atômica nacional. A primeira central nuclear brasileira co-

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meçou a ser construída em 1971, em Angra dos Reis (RJ), sob suspeitas de instabilidade geológica e sísmica do local escolhido. O nome da praia, Itaorna, em língua tupi significa “pedra podre”. Simulações de acidentes revelaram a fragilidade do projeto e a impossibilidade de evacuação da população local em caso de uma emergência. Angra 1, conhecida popularmente como “vaga-lume”, por causa das freqüentes interrupções de funcionamento por motivos técnicos, foi inaugurada em 1982, em meio a controvérsias, já que a fabricante norte-americana, Westinghouse, recusou-se a transferir a tecnologia ao Brasil. Em 1975, ainda sob o regime militar, o governo firmou com a Alemanha um acordo de cooperação na área nuclear. Pelo acordo, seriam instalados mais oito reatores no país: dois em Angra dos Reis, ao lado de Angra 1, e outros seis no litoral sul do estado de São Paulo. Reagindo rapidamente, a população paulista impediu a construção de “suas” usinas por meio da criação de uma estação ecológica exatamente no local onde seria implantada a central nuclear. Assim, das oito usinas previstas, apenas Angra 2 foi concluída. Sua construção foi marcada por problemas técnicos e constantes atrasos no cronograma. Começou a operar somente em 2000, após quase 20 anos de construção, a um custo de cerca de US$ 14 bilhões. Segundo números oficiais, já foram gastos com Angra 3 US$ 750 milhões entre a compra e a estocagem dos equipamentos. O projeto de Angra 3 foi paralisado em 1992 por motivos econômicos. A indústria nuclear afirma que, até agora, já foi investida uma quantia de US$ 1,2 bilhão em Angra 3 e que, para o término da obra, será necessária mais uma quantia de US$ 1,8 bilhão. Hoje, no mundo inteiro, até mesmo na Alemanha, reatores nucleares têm sido gradativamente desativados e não há praticamente nenhuma nova usina sendo planejada ou construída, já que são consideradas caras e perigosas. A tecnologia nuclear é perigosa, já causou acidentes graves como o de Three Mile Island (Estados Unidos) e Chernobyl (Ucrânia), com milhares de mortes e enfermidades decorrentes dos acidentes, além da perda de grandes áreas. A utilização desse tipo de tecnologia continua apresentando graves riscos para toda a humanidade. Reatores nucleares e instalações complementares geram grandes quantidades de lixo nuclear que precisam ficar


Energia nuclear no Brasil, pauta maldita

sob vigilância por milhares de anos. Não se conhecem técnicas seguras de armazenamento do lixo nuclear gerado. Optou-se, nos reatores de Angra 1 e Angra 2, por estocar o resíduo dentro do próprio prédio do reator. No entanto, essa solução é provisória e arriscada, já que o próprio Relatório de Impacto Ambiental de Angra 2 reconhece que não há solução definitiva para os resíduos nucleares a longo prazo.

Grandes acidentes Em 6 e 9 de agosto de 1945, respectivamente, as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki foram destruídas por bombas atômicas lançadas por aviões do Exército dos Estados Unidos. Mais de 200 mil pessoas foram mortas nos ataques. Quase seis décadas depois do bombardeio, milhares de pessoas ainda apresentam seqüelas em virtude da exposição à radioatividade. Mais tarde, vários acidentes nucleares foram registrados no mundo. Em março de 1979, a usina norte-americana de Three Mile Island, na Pensilvânia, foi o local de um dos piores acidentes nucleares registrados até hoje. O gás responsável pela refrigeração de

um de seus reatores escapou, provocando o derretimento do núcleo. Embora não haja números oficiais de pessoas mortas ou afetadas pela radioatividade, sabe-se que houve grande aumento de incidência de câncer e problemas de tireóide, além de vários outros efeitos negativos sobre todos os tipos de vida na região. Sete anos depois, em abril de 1986, ocorreu o mais grave acidente nuclear da história. A explosão de um dos quatro reatores da usina nuclear soviética de Chernobyl, na Ucrânia, lançou na atmosfera uma nuvem radioativa de 100 milhões de curies – nível de radiação 6 milhões de vezes mais alto do que o que escapara da usina de Three Mile Island. Todo o centro-sul da Europa foi atingido. Estima-se que entre 15 mil e 30 mil pessoas morreram, e aproximadamente 16 milhões sofrem até hoje alguma seqüela em decorrência do desastre. Um ano depois do acidente na Ucrânia, em setembro de 1987, a violação de uma cápsula de césio 137 por sucateiros da cidade de Goiânia (GO), resultou em quatro mortes. Cerca de 250 pessoas tiveram problemas de saúde na época. No ano passado, cerca de

Comunicação e meio ambiente Durante a última grande conferência internacional sobre meio ambiente liderada pelas Nações Unidas, a Rio+10, realizada em Johannesburgo em 2002, ficou muito evidente que não seria possível superar os grandes desafios ambientais das próximas décadas (mudanças climáticas, gestão e acesso à água, poluição, desmatamento, consumo sustentável e outros) sem que o movimento ambientalista se articulasse melhor com os movimentos sociais, sindicatos, setores acadêmicos e setores industriais que promovem os produtos e tecnologias alternativas. A comunicação entre os atores integrantes de uma rede de interesse comum, assim como a comunicação com o grande público, se tornou um elemento fundamental de qualquer campanha de mobilização. Na grande mídia, os fatos passam por um funil, e as matérias que chegam aos jornais, rádios, televisão e Internet são fruto de uma decisão que leva em consideração os interesses corporativos, humanos ou o perfil do público leitor. Muitas vezes, o assunto é abordado com direcionamento político definido e baixa qualidade. Essa baixa qualidade está freqüentemente associada ao pouco tempo e espaço oferecido ao(à) jornalista para preparação da matéria. Outras vezes está associada ao investimento reduzido no treinamento de profissionais ou na falta de jornalistas especialistas na equipe para cobrir nichos como o ambiental. Portanto, a pressão econômica aliada ao posicionamento editorial dos meios faz com que, muitas vezes, a informação gerada pela sociedade

civil não chegue ao grande público ou, eventualmente, sofra modificações que podem comprometer seu conteúdo original. A comunicação dos temas ambientais passou a ser um desafio maior com o aumento da complexidade dos problemas, menor especialização dos meios e menor interesse do público pela pauta ambiental. A reação de muitas organizações foi preparar conteúdos com maior qualidade, oferecer capacitação para jornalistas nos temas específicos e procurar manter contato mais estreito com profissionais da mídia para estabelecer um canal de relacionamento e troca de informação. Esse cenário complexo forçou, em particular, as organizações ambientalistas a procurarem caminhos adicionais ou alternativos para informar o público e mobilizar a opinião pública. A mídia local ou regional, apesar de atingir um público menor, apresenta mais espaço e menos competição de pauta. A mídia alternativa ou especializada também atinge um público menor, mas permite, em geral, matérias com conteúdo robusto, oferece mais independência política e menos controle corporativo. A Internet oferece caminhos inovadores como os blogs e as redes de relacionamento. E ainda é possível o caminho direto com o público.

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* Marcelo Furtado Diretor de campanhas do Greenpeace

**Sergio Dialetachi Coordenador da campanha antinuclear do Greenpeace

1.600 foram consideradas, oficialmente, vítimas da radioatividade do césio de Goiânia, grande parte das quais são funcionários(as) pú­blicos(as) que trabalharam na assistência às pes­soas contaminadas. Atualmente, as 6 mil toneladas de lixo radioativo resultantes do acidente estão armazenadas em contêineres de concreto, em um depósito de Abadia de Goiás, próximo a Goiânia. O césio 137, subproduto das usinas nucleares obtido pela fusão do urânio 235, foi largamente empregado no tratamento de vítimas de câncer durante décadas, por meio da radioterapia. Em Goiânia, ele fora retirado de dentro de um equipamento que se encontrava nas ruínas do que costumava ser o Instituto Goiano de Radioterapia (IGO), no centro da cidade. Em maio de 2003, uma equipe de especialistas em radiação do Green­peace realizou no Iraque inspeções para detectar níveis de contaminação próximo à central nuclear de Tuwai­ tha, localizada no sul do país e abandonada durante a ocupação norte-americana. Ativistas encontraram um contêiner com cerca de cinco quilos de uma mistura de urânio conhecida como yellowcake (bolo amarelo) a céu aberto, além de detectarem taxas de radioatividade de até 10 mil vezes acima do considerado normal, em alguns locais. O Greenpeace também apurou que pelo menos 150 famílias estavam utilizando barris pilhados da usina para guardar

alimentos e água. O projeto nuclear é tratado com tanto sigilo na Presidência que alguns ministros, quando perguntados sobre o tema, reconheceram que ele nunca entrou na pauta das reuniões ministeriais. A questão nuclear não é relevante na matriz energética brasileira, não é sustentável ou renovável. Sua viabilidade só parece interessar a um setor específico – o militar. O fortalecimento do investimento militar, com o domínio do ciclo do combustível nuclear, pode ser uma ameaça a nossa imagem internacional e nos remete diretamente aos anos de chumbo da ditadura militar, quando o Brasil flertava com a possibilidade de desenvolver artefatos nucleares. Portanto, fica a questão: como um tema tão complexo, perigoso e de grande impacto ambiental e econômico não está sendo amplamente discutido na imprensa? Estamos num momento fundamental para a construção de parcerias com outras entidades da sociedade civil contra a aventura nuclear brasileira, pois o assunto é urgente e a decisão poderá ser tomada na próxima reunião do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE).

Divulgando quem faz O Greenpeace tem buscado melhorar a qualidade do conteúdo de sua comunicação, investindo mais tempo e recursos na preparação das histórias e facilitando o acesso direto da imprensa com os atores dos processos de mudança. O trabalho que fizemos na demarcação da reserva florestal em Porto de Moz é um exemplo dessa abordagem, garantindo que a voz da comunidade tenha acesso à mídia e que a discussão não seja polarizada por madeireiros e ambientalistas. Outro exemplo recente aconteceu nos primeiros dias do assassinato da irmã Dorothy Stang em Anapu. O Greenpeace deslocou jornalistas e equipamento de transmissão via satélite para garantir que as organizações sociais da região – que detinham informação relevante e um importante ponto de vista – pudessem ser ouvidas. Assim, conseguimos conectar o assassinato em Anapu, uma comunidade distante, sem telefonia celular, com a imprensa nacional e internacional em tempo real, fornecendo fotos, notas e entrevistas. Estamos buscando incrementar a divulgação de nossas campanhas nos meios locais, regionais e especializados. Essa foi a estratégia durante a Expedição Energia Positiva: viajamos mais de

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14.250 quilômetros, por 27 capitais e cidades em 20 estados, no período de 73 dias, divulgando as energias renováveis (solar, eólica, biomassa e pequenas hidrelétricas). Nessa expedição, conversamos com mais de 40 mil pessoas diretamente, tivemos mais de 30 horas de transmissão por televisão e geramos mais de cem artigos em jornais e revistas. Também desenvolvemos conteúdo específico para Internet e, em particular, blogs e redes de relacionamento. Outro exemplo foi a campanha contra os alimentos transgênicos, em setembro de 2004, que gerou 15 mil mensagens para o presidente Lula via Internet e mais de 700 mil visitantes em nosso site. Durante o último Fórum Social Mundial, testamos com sucesso uma nova estratégia de comunicação direta. Construímos no Acampamento da Juventude, em conjunto com a Federação Gaúcha, estruturas de skate com madeira legal e certificada pelo FSC, para engajar jovens na defesa da floresta e divulgar nossa campanha contra a destruição da Amazônia.


O Jornal da Cidadania é distribuído para pessoas que têm pouco ou nenhum acesso à informação crítica e comprometida com a democracia. Nossos leitores e leitoras são, especialmente, estudantes, professoras e professores de escolas públicas de todo o país. Mas também trabalhadoras e trabalhadores urbanos e rurais, líderes de comunidades, moradoras e moradores de periferias. São 60 mil exemplares distribuídos gratuitamente. Participe de mais esta iniciativa do Ibase. Você pode ajudar com contribuições financeiras ou orga-

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Flávia Mattar

Articulação feminina

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Respeito: degrau para a paz

O 10º Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe será realizado de 8 a 11 de outubro de 2005, em São Paulo. Feministas brasileiras e do Cone Sul estão se mobilizando para a formulação da linha política e de uma proposta de conteúdo, metodologia e dinâmica para o evento. Em 14 de julho, ocorrerá em Brasília a primeira reunião da comissão organizadora – composta por 18 mulheres de diferentes organizações – com os comitês consultivos nacional e do Cone Sul. A data e o local foram agendados em virtude da realização, um dia antes, da Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, ou seja, uma forma de aproveitar um momento de mobilização feminista. “A expectativa é que o encontro seja um espaço de convivência alegre e criativa, que preserve a diversidade de pensamento. Nós, da organização, estamos trabalhando para oferecer condições para que as mulheres reflitam sobre o próprio feminismo e a democracia na nossa região”, diz a feminista Dulce Xavier.

Anualmente, no mês de abril, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) organiza a Semana dos Povos Indígenas. A temática escolhida para 2005 – “Paz, solidariedade e reciprocidade nas relações” – convida a sociedade brasileira a repensar estilos de vida, cultivando valores como a solidariedade e a reciprocidade nas relações entre pessoas, famílias, comunidades e povos. A temática está em sintonia com o lema proposto pela Campanha da Fraternidade da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB): “Solidariedade e paz – felizes os que promovem a paz”. Para incentivar o debate, o Cimi organizará encontros em diversos pontos do país, entre os dias 17 e 23 de abril, contando com a presença do movimento indígena, de movimentos sociais, estudantes, estudiosos(as) e simpatizantes da causa indígena. As regionais do Cimi e o seu secretariado nacional estão disponibilizando cartazes e textos para facilitar o aprofundamento das discussões.

www.10feminista.org.br

www.cimi.org.br

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Pelo direito de decidir Pesquisas indicam que são realizados, anualmente, mais de 750 mil abortos em condições inseguras no Brasil. Complicações acarretadas pela prática clandestina são a quarta causa de mortalidade de mulheres no país. Além disso, cerca de 250 mil mulheres são internadas a cada ano no Sistema Único de Saúde (SUS) por complicações de aborto, sendo a maioria negra, jovem e pobre. Integrantes da organização Católicas pelo Direito de Decidir estão promovendo campanha para que o aborto deixe de ser considerado crime. A iniciativa prevê a realização de oficinas de formação sobre a situação do aborto, nas quais será utilizado um kit composto por história em quadrinhos, vídeo, CD para rádios e cartilha. Além disso, haverá coleta de assinaturas de forma qualificada, incluindo nomes de pessoas com posicionamento claro em relação à necessidade da legalização do aborto, tanto do ponto de vista da saúde pública como social.

www.catolicasonline.org.br


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Debate intenso

Web cidadã

Caxiri na cuia

Lideranças negras de todo o Brasil estão se articulando para a realização da Marcha Zumbi+10, prevista para ocorrer em novembro, em Brasília. A afirmação da unidade política e o comprometimento na superação das desigualdades erigidas pelo racismo serão os pontos fortes da iniciativa. Entre os principais focos de discussão da articulação para a Marcha estão as melhores estratégias de mobilização e a data mais indicada para a sua realização. Existem grupos que defendem que a articulação para Brasília deve ser iniciada a partir do âmbito municipal. Mas também há quem julgue ser melhor convocar todos e todas para uma plenária nacional. A data que vem sendo apontada como a mais propícia para a realização da Marcha é o dia 16 de novembro, em vez do dia 20 (Dia Nacional da Consciência Negra), domingo, feriado. Brasília, obviamente, estará esvaziada.

Está no ar a página Ação 17 – Jornalistas e Comunicadores pela Infância, em português e espanhol. O projeto – uma parceria entre Unicef, Andi e Rede Andi América Latina – foi lançado com o objetivo de criar uma aliança internacional para enriquecer a prática diária da comunicação, tanto nos veículos que abordam a infância em seu trabalho cotidiano como nos que são elaborados especificamente para o público infantil. Entre os serviços oferecidos pelo site estão: fórum de discussão, bate-papo, biblioteca, banco de fontes, guias, glossários e agenda de eventos. Assim, comuni­cadores(as), jornalistas e estudantes de comunicação de todos os países ibero-americanos e do Caribe poderão dialogar, trocar novas experiências e discutir a qualidade da informação sobre a infância e a adolescência. Faça parte dessa comunidade virtual.

Caxiri é bebida tradicional indígena feita à base de mandioca, frutas ou raízes fermentadas. Agora, também passou a ser nome de CD produzido pelas comunidades uapixana e macuxi, com a participação de 24 indígenas. O CD Caxiri na cuia – O forró da maloca foi criado para divulgar a história dos povos da terra indígena Raposa Serra do Sol, de Roraima. As decisões sobre a produção do CD ocorreram em assembléias nas aldeias e no Conselho Indígena de Roraima (CIR), organização que ficou responsável por atender às pessoas interessadas em adquirir uma cópia. O CD é dedicado a Aldo Macuxi, assassinado em 2003 em virtude de um conflito fundiário. “Cantamos a vida, a natureza e as lutas por nossos direitos”, afirma o texto de abertura do encarte do CD, que tem, entre suas faixas, “Nós queremos nossa terra homologada”, “Sofrimento é demais” e “Dom de índio”.

www.accion17.org

(95) 224-5761 cir@technet.com.br www.cir.org.br

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intern internacional Pierre Calame*

De uma coalizão

Perante uma globalização econômica sem uma regulação real, o que seria necessário? Uma coalizão antiglobalização ou a constituição de uma aliança por uma outra mundialização? Se for o caso de uma aliança, qual seria sua agenda, quais seriam seus objetivos, suas modalidades, suas etapas e suas propostas? Quando se trata de oposição, uma coalizão é suficiente e pouco importam as contradições de interesses, o simplismo e as análises aproximativas, somente os resultados são importantes: quanto mais numerosos, mais fortes. O desafio, porém, é outro quando se trata não só de se opor, mas também de construir um outro mundo, de afirmar que um outro mundo, uma outra mundialização é possível e, sobretudo, indispensável. Para a humanidade, é uma questão de sobrevivência: o impasse social e ecológico dos atuais [Traduzido do francês por Ana van Eersel, revisto por Jones de Freitas]

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modelos de desenvolvimento é evidente, e as regulações entre os Estados atuais são incapazes de garantir a paz e a justiça.


acional Isso pressupõe, primeiramente, a correta utilização das palavras. A falta de precisão dos conceitos favorece uma estratégia que permite incorporar tudo quanto possível e atrair a atenção dos meios de comunicação; é uma fonte de bloqueios quando se trata de construir pontos de vista. Os termos “globalização econômica” e “mundialização” são constantemente utilizados um no lugar do outro. Por isso, não podemos entender como as pessoas que são “antimundialização” podem estar a favor de “um outro tipo de mundialização”. Retomemos, então, a distinção entre “mundialização” e “globalização econômica”. A mundialização é a constatação de interdependências irreversíveis entre todas as sociedades e todas as pessoas do planeta. Da Internet ao efeito estufa, da interconexão de idéias e de moedas à dos ecossistemas, da competição pelo acesso à energia fóssil à circulação de músicas. Estamos no mesmo barco, que é frágil. E é bem possível que ele esteja navegando em direção a um iceberg e se torne em breve um Titanic, cuja primeira classe e cujo paiol afundarão juntos. Essa é a mensagem mais importante da mundialização. É necessário mudar de rumo a tempo porque o barco reage lentamente; por essa razão, é preciso chegar a encontrar pontos de vista em comum e modos de pilotagem. Antes de 1940, a consciência de humanidade era apenas um conceito filosófico; a humanidade tornou-se sujeito de direito depois do Holocausto. O grande desafio do século XXI é fazer surgir, de forma progressiva, uma verdadeira comunidade mundial dotada de novas capacidades de regulação. O surgimento de uma sociedade civil mundial que utiliza encontros mundiais, tanto próprios como dos outros, que se beneficia do fenômeno Internet e que aborda simultaneamente questões políticas, ecológicas, econômicas e culturais, é a clara expressão

dessa mundialização. Desse ponto de vista, e agrade ou não aos respectivos partidários, existem, entre Davos e Porto Alegre, mais seme­l hanças do que oposições! Esses Fóruns criam os espaços de diálogo e os cenários de debate público na escala dos novos desafios. A “globalização econômica” não é a mundialização, mesmo que se alimente dela e que a reforce. Não é um fato irreversível, é uma ideologia que aproveitou, durante a década de 1990, a morte de seu rival, com a implosão do comunismo histórico. O desmoronamento do modelo produtivista, centralizado e totalitário característico dos sistemas soviético e chinês permitiu que um tipo de pensamento de direita, que exerceu durante muito tempo o domínio, reivindicasse o caráter universal de pseudoleis econômicas e anunciasse o fim da história e do fato político em benefício do reino atemporal do intercâmbio mercantil. A coalizão antiglobalização (e não “antimundialização”, como é freqüentemente batizada pela mídia) é o reflexo de reações multiformes, é o sobressalto, a afirmação da primazia da vida, da história e da democracia sobre a rotina cinza das patentes, das fusões de empresas, das lógicas de poder e da for­m atação do pensamento. Mas, após o despertar, temos que começar a agir, temos que construir. Para isso, é necessário estabelecer uma agenda. Primeira fase: reconhecer as diversidades e partir delas. Nem em Davos nem em Porto Alegre, a diversidade do mundo está verdadeiramente representada. A China, a África, os países do antigo império soviético, o subcontinente indiano e os países muçulmanos estão praticamente ausentes dessa diversidade, e cada Fórum (o econômico e o social) só reúne um pequeno número de meios, convencidos de que avançam nas teses que se encontram em debate. Em termos do meio social e profissional – e também em termos geográficos –, cada Fórum representa

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internacional

1 Literalmente “patê de cotovia”, uma expressão utilizada em francês para aludir a uma representação desigual.

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só uma pequena minoria do mundo. A construção de uma aliança para uma outra mundialização supõe, pelo contrário, repartir as diversidades do mundo e buscar pacientemente os terrenos de entendimento em torno de desafios em comum. De qual diversidade se deve partir? Da diversidade geocultural, certamente. É a mais evidente. É necessário que cada povo esteja representado eqüitativamente tendo em conta sua importância numérica para sair do pâté d’alouette1 atual com a sua receita de “um cavalo ocidental por uma andorinha asiática ou africana”. Mas também, e principalmente, para sair da diversidade de meios sociais e profissionais porque a nossa sociedade mundializada é uma sociedade na qual, e com a ajuda da Internet, certos meios – grandes empresas, ONGs, cientistas etc. – dialogam de uma ponta a outra do planeta, enquanto se acentua a separação de seus vizinhos mais próximos. Por conseguinte, a partir do surgimento de “comunidades co­ l e­g i­a­d a s ” , pessoas pertencentes a um mes­­m o meio, conscientes de suas responsabilidades, pode-se estabelecer o diálogo entre os meios para identificar os desafios em comum. E o que debater? Sobre quais bases elaborar novas perspectivas? Tanto na democracia como nas empresas, o enunciado do problema e o estabelecimento dos termos do debate antecedem a negociação de soluções e são mais importantes que a negociação em si mesma, quando se trata de elaborar estratégias de mudanças. O processo de identificação de desafios em comum está atualmente no centro de toda estratégia de aliança para uma outra

mundialização. Essa identificação é possível? A diversidade de culturas, de pontos de vista e de interesses não representa um obstáculo radical para qualquer diálogo? Supondo que esse diálogo seja possível, poderemos fazer surgir dele desafios em comum e estratégias de mudança? É possível elaborar pontos de vista especializados em direção a uma abordagem mais global e mais sistemática das transformações que estão sendo geradas? É imaginável encontrar, no seio de cada meio social e profissional, pessoas prontas a reconhecer e assumir suas responsabilidades e a entrar em negociações de cooperação conflitantes, correndo o risco de serem tratadas de idealistas por umas e de traidoras sociais, por outras? Todas essas questões têm uma importância renovada após o 11 de Setembro porque cada pessoa começa a compreender que o simplismo é a cruzada, e a cruzada é a guerra. Elas estão no centro do processo de trabalho e do diálogo que chamamos de Aliança por um Mundo Responsável, Plural e Solidário (www.alliance21.org). As mesmas questões estiveram também no centro da Assembléia Mundial de Cidadãos, que, por iniciativa da Aliança e com apoio da Fundação Charles Léopold Mayer pelo Progresso do Homem (FPH), reuniu-se em Lille, de 2 a 10 de dezembro de 2001. A Assembléia Mundial de Cidadãos, por sua vez, dedicou-se a uma prática comparável. Nessa assembléia, a presença de 400 participantes refletia a diversidade da sociedade mundial. Não debateram temas preestabelecidos, mas sim elaboraram sua própria agenda identificando suas preocupações em comum. Essas preocupações possuem, portanto, uma capacidade federativa sem a qual uma sociedade democrática não pode conduzir transformações maiores. Elas sintetizam de alguma forma o “sentido comum”. Essas preocupações estão situadas em três grandes áreas: os sistemas de pensamento; os sistemas de produção e a organização da vida econômica e social; e os sistemas de regulação, ou seja, a governança. Nosso mundo tem sido arrastado, há dois séculos, por uma evolução técnica e econômica cada vez mais rápida. Nossos modos de pensar, nossos sistemas de valores e de educação e nossos modos de regulação evoluíram muito mais lentamente, tendo como conseqüência


De uma coalizão antiglobalização a uma aliança por uma outra mundialização

um atraso cheio de ameaças. É esse atraso que deve ser resolvido prioritariamente. Primeira área de preocupação: os valores e os sistemas de pensamento. A comunidade internacional tem uma base ética comum que pode ser, em complemento dos direitos do homem, o fundamento dos compromissos pessoais e coletivos, e também do direito internacional e da governança mundial. A Aliança propõe que a Carta de Responsabilidades Humanas se transforme no terceiro pilar da comunidade internacional ao lado da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Carta das Nações Unidas. O projeto da Carta, debatido e emendado por participantes da Assembléia de Lille, apóia-se numa definição ampliada da responsabilidade que cada pessoa deve assumir na proporção de seu saber e de seu poder, estendendo-se ao impacto direto e indireto de seus atos. Essa abordagem ampliada da responsabilidade tem conseqüências práticas consideráveis. Ela permite, por exemplo, definir as responsabilidades respectivas de credores, governantes e populações, no caso da dívida internacional, e também permite fundar o princípio de precaução, promover o comércio eqüitativo e as finanças responsáveis. Incentiva cada meio profissional a elaborar um código de conduta baseado no exercício prático de sua responsabilidade. A Carta impulsiona o respeito, a dignidade e a tolerância: isso garante que os direitos alheios sejam respeitados e leva a considerar a diversidade de conhecimentos, culturas e ecossistemas como um patrimônio comum. Finalmente, afirma a prioridade do ser sobre o ter, o que leva à busca de modelos de desenvolvimento, à evolução de valores nos quais o consumo mercantil não seja mais o padrão de medida do progresso individual e coletivo. A evolução dos valores corresponde à do pensamento. Um mundo tão interdependente como o nosso não pode mais se satisfazer com uma visão segmentada, compartimentada do ser humano, da sociedade, do conhecimento e da biosfera. A educação, a educação do ser e do mundo não pode estar baseada na transmissão de saber disciplinar. Deve ser a iniciação aos valores comuns a todas as pessoas, que é o meio pelo qual se podem entender os desafios do mundo e preparar os futuros cidadãos e cidadãs para que possam ser sujeitos de sua história.

As mesmas prioridades de pluralismo, de interdependência, de responsabilidade, de democracia e de solidariedade devem permitir a reorientação dos esforços públicos de pesquisa e desenvolvimento técnico. Segunda área de preocupação: os sistemas de produção e a vida econômica e social. A ecologia industrial e territorial leva a prestar atenção ao fluxo de intercâmbios materiais entre empresas ou entre as sociedades locais e seu meio ambiente em lugar de só se interessar pelos fluxos monetários, a valorização de intercâmbios independentemente de sua contrapartida monetária, a constituição do capital social das sociedades, a possibilidade de organizar em todos os níveis intercâmbios estipulados que criam tanto vínculos como bens – um movimento de unificação se produz progressivamente entre as inovações e os ensaios até então desordenados, alguns inspirados pela idéia de um desenvolvimento durável, outros pela idéia de uma economia solidária, e outros finalmente pela vontade de fugir do determinismo e dos impasses do poderio do mercado mundial. A terceira grande área de transformações, a mais ampla, refere-se à governança, ou seja, ao conjunto de regulações estabelecidas pelas sociedades para garantir sua coesão e seu desenvolvimento a longo prazo. A reforma da governança é a primeira prioridade que surge da Assembléia Mundial de Cidadãos e dos trabalhos da Aliança. Essa reforma deve ocorrer em todos os níveis (o local e o global) e em todos os domínios (da gestão de ecossistemas à reforma dos sistemas financeiros). As mudanças destes dois últimos séculos

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internacional

Pierre Calame Diretor da Fundação Charles Léopold Mayer

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obrigam a repensar os modos e os níveis de regulação, nela incluída a democracia ou a organização dos Estados, cujas bases são anteriores à revolução industrial. Quatro orientações destacam-se: a primeira é a implementação em todos os níveis, do local ao global, de uma governança legítima, democrática e eficiente. Uma divisão intensifica-se em todo o mundo, entre a legalidade da governança – sua conformidade às regras constitucionais – e sua legitimidade, o sentimento da população de concordar, com conhecimento de causa, com a­ban­dono da liberdade em nome das necessidades do bem comum. A democracia perde muito de sua substância se as condições de transparência não estão garantidas, se os contrapoderes não existem e se os verdadeiros motores de transformação estão fora do alcance e do controle dos cidadãos e das cidadãs. Nossos sistemas públicos compartimentados têm, por sua vez, dificuldade em assumir com eficiência os novos desafios da sociedade. Para que as sociedades locais possam dirigir seu futuro e também assumir as interdependências mundiais, é necessário definir sobre novas bases as modalidades de cooperação entre os diferentes níveis de governança. A segunda orientação refere-se à estruturação internacional de diferentes meios socioprofissionais e atores sociais e à organização de parcerias entre os atores e o poder público. A governança não consiste só, e antes de tudo, em organizar os serviços públicos. A gestão do bem comum envolve a responsabilidade e a cooperação de to-

dos, e é isso que deve ser organizado. Não haverá governança democrática, em escala mundial, se os diferentes atores sociais não se estruturarem também nesse nível. A terceira orientação refere-se ao papel da governança na proteção do direito dos mais fracos. A primeira vocação das regulações públicas é reequilibrar os mecanismos econômicos e sociais cumulativos colocando o poder nas mãos dos países, dos atores sociais ou de pessoas cada vez mais poderosas. Esse reequilíbrio é, hoje, urgente, já que se trata de condições de negociação, de regras de jogo internacionais dos países mais pobres ou mais fracos, ou da possibilidade de que, em cada país, os grupos mais fracos façam valer seus direitos e sejam cidadãos e cidadãs plenos. A quarta orientação, finalmente, refere-se à constituição de novas regulações públicas capazes de assumir os novos desafios sociais e ecológicos da humanidade e de opor-se à dominação somente por meio das relações mercantis. Da gestão da água ou dos solos à reforma dos sistemas monetários, dos limites da propriedade individual à definição ou preservação de bens comuns, essa orientação abrange e ordena muitas das preocupações do movimento antiglobalização. Sistema de pensamento, sistemas de produção, sistemas de governança... Como as transformações serão enormes e, portanto, longas, é urgente e imperativo realizá-las. Por causa disso, somente uma abordagem de acordo com os próprios objetivos tem possibilidade de sucesso: uma abordagem democrática que parte da diversidade, de baixo para cima, ligando as propostas, os pontos de vista, as informações, a criatividade e as energias procedentes de diferentes regiões do mundo e de diferentes meios. Essa é, a meu ver, a verdadeira agenda para uma outra mundialização.


1 55 seguido de 18 zeros.

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MUNDO

P ELO MUNDO Jamile Chequer Colaboração: Flávia Mattar

De olho na ONU

Aliança estratégica

Devastação cultural

Um total de 19 mil pessoas, de 19 nações, representando os cinco continentes, foram consultadas entre outubro de 2004 e janeiro de 2005 sobre o que pensam a respeito de uma possível reforma da Organização das Nações Unidas (ONU). O estudo, apresentado durante o Fórum Social Mundial 2005 (Porto Alegre, de 26 a 31 de janeiro), demonstrou que 79% consideram positiva a escolha de uma pessoa que represente sua nação, eleita por cidadãos e cidadãs, para integrar a Assembléia Geral das Nações Unidas. Ao serem perguntadas se concordavam ou não com a criação de um parlamento da ONU composto por representantes escolhi­dos(as) pelo voto cidadão, a maioria (63%) se posicionou favora­velmente. A resposta à pergunta sobre a importância de ONGs, sindicatos e organizações empresariais passarem a ter papel formal na ONU foi ‘sim’, com 61% dos(as) entrevis­tados(as) a favor. As nações que mais se destacaram na resposta favorável à questão sobre a Assembléia Geral da ONU foram Índia (85%), Alemanha (85%) e Indonésia (83%).

Estudos envolvendo a interação entre HIV/Aids e segurança alimentar e nutricional vêm crescendo nos últimos anos. Porém, há uma necessidade urgente de reunir esses estudos para que uma ação efetiva em larga escala seja iniciada. Muitos dos estudos foram feitos na África Subsaariana, onde os riscos e impactos são muito comuns e sérios. Por isso, a conferência HIV/Aids, Segurança Alimentar e Nutricional – que ocorrerá de 14 a 16 de abril em Durban, África do Sul – reunirá cerca de 200 pessoas, principalmente da Ásia e África, continentes em que os problemas de insegurança alimentar e o aumento da epidemia coexistem. Para um trabalho mais efetivo, uma rede de pessoas e organizações que estão interessadas, mas não poderão estar lá, está sendo desenvolvida como uma forma de participar do processo. A expectativa do encontro é uma atuação em larga escala que estabeleça conexões entre os dois temas. Estão previstos uma declaração para advocacy, uma rede de ação afinada, um livro e CD-ROM com os papers e procedimentos da conferência, entre outros.

Ao longo dos séculos, a humanidade enfrentou muitas guerras. Além das atrocidades contra a vida, elas têm outra violência em comum: a devastação cultural. No Iraque, a situação não foi diferente. O escritor venezuelano Fernando Baéz, especialista no assunto, declarou que 1 milhão de livros, 10 milhões de documentos e 14 mil artefatos arqueológicos forma perdidos durante a invasão e ocupação do Iraque por tropas dos Estados Unidos. Ele diz que os roubos continuam até hoje e acusa a coalizão de violar a Hague Convention. Datada de 1954, é uma convenção para a proteção à propriedade cultural em situações de conflito armado, que, aliás, não foi assinada por Washington. “O exército americano foi omisso”, publicou a agência de informações IPS, lembrando que não protegeram nem bibliotecas, nem museus, apesar de avisos de instituições como a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Segundo Fernando, em maio de 2004, 40 mil manuscritos foram destruídos em um ataque da coalizão a Nasiriya. O escritor teve seu visto negado para entrar nos Estados Unidos e não está mais tendo acesso ao Iraque. “Mas é tarde. Temos documentos e fotos que servem de evidências das atrocidades”, afirma.

Fonte: IPS

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PE


LO MUNDO P ELO MUNDO P ELO MUNDO

Ainda crianças e armas

Roteiro surdo

Ferramenta proativa

A Coalizão para o Fim do Uso de Crianças-Soldado defende que o Conselho de Segurança da ONU deve impor sanções concretas contra governos e grupos armados que usam crianças como combatentes em conflitos. A declaração foi feita após o encontro do Conselho que discutiu o tema, no fim de fevereiro. Documento recente do Conselho identificou 42 grupos em 11 países violando leis internacionais de recrutamento de crianças e adolescentes. Desses, 30 já haviam sido listados pelo menos uma vez e 21 já foram listados em dois dos três documentos sobre o assunto. “O conselho não pode permitir que outro ano passe com esses chefes acreditando que ninguém vai fazer nada contra o abuso de crianças”, disse o coordenador da Coalizão, Casey Kelso. Recentemente, a ONG Save The Children declarou que mais de 300 mil pessoas com menos de 18 anos estão participando de conflitos armados, não apenas como combatentes, mas como espiãs e, no caso das meninas, ‘esposas’ forçadas. Uma criança pode se tornar soldado por seqüestro, pobreza familiar e necessidade de proteção. Sua reintegração depende de um sólido entendimento social, político e econômico.

A cada 15 segundos, uma pessoa morre de tuberculose. Em dezembro passado, a população da República Democrática do Congo ficou novamente encurralada quando os conflitos recomeçaram no norte de Kivu. Há dez anos, a Chechênia está sob conflito e cerca de 90% das pessoas nos campos chechenos e 80% na Ingushetia perderam alguém próximo, vítima da violência. Na Etiópia, mais de 10% das crianças não sobrevivem ao primeiro ano de vida. Na Somália, que completou 14 anos de violência, pelo menos 5 milhões de pessoas não têm acesso a água potável e a cuidados de saúde. Você ouviu essas notícias veiculadas em 2004? Provavelmente não. Elas estão listadas, pela ONG Médicos sem Fronteiras (MSF), como algumas das dez crises humanitárias mais negligenciadas pela mídia no ano passado. “A grande quantidade de apoio oferecida às pessoas no sul da Ásia revela como a cobertura da imprensa pode ter um impacto positivo nos esforços de se levar ajuda humanitária para pessoas que vivem em situações de crise”, disse Nicolas de Torrente, diretor executivo do MSF nos Estados Unidos, completando que esse apoio pode ser estendido. “O silêncio é o melhor aliado das atrocidades, e este é o sexto ano consecutivo que incluímos na nossa lista crises como a vivida na Colômbia e na República Democrática do Congo”, revela.

Diálogo aberto, colaboração crescente e busca de soluções são ingredientes esperados na Conferência Democracia Mundial (G05), sediada pela organização Fórum Internacional de Montreal (FIM). Cerca de 800 pessoas estarão reunidas em Montreal, de 29 de maio a 1º de junho, para analisar o leque de enfoques democráticos sobre governabilidade mundial, avaliar seu potencial e compartilhar lições para promover teoria, estratégia e prática democrática no mundo. Serão colocadas na mesa as convergências e divergências das diversas linhas de pensamento que ali se encontrarão. O diretor do Ibase e membro do comitê executivo Cândido Grzybowski analisa o momento da conferência como oportuno. Resultado de um momento antes bipolar, o mundo abriga instituições inadequadas para os desafios apresentados e para as relações de força que, hoje, estão desequilibradas no mundo. “A ordem mundial que temos é uma desordem porque é fruto de um mundo pós-guerra que não existe mais”, diz. E ressalta que, em julho, ocorrerá uma reunião do G-8 e, em setembro, haverá a Cúpula da ONU, eventos que terão esse assunto na pauta. As inscrições para a conferência estão abertas.

www.G05.org

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ENTRE VISTA Entrevista

Ricardo Rezende

O padre Ricardo Rezende viveu 20 anos no sul do Pará: “Fui em 76 para conhecer; em 10 de maio de 77, fui para morar. Fiquei 12 anos em Conceição do Araguaia, depois oito anos em Rio Maria“. Lutou pelo direito dos(as) trabalhadores(as) rurais à terra e pelo fim do trabalho escravo. Morando atualmente no Rio de Janeiro, ele não se afasta da luta que o mobilizou por tanto tempo. Fundou e participa de instituições como o Comitê Rio Maria e a ONG Movimento Humanos Direitos. Ricardo Rezende conheceu a irmã Dorothy, assassinada na mesma região onde o padre viveu. Ele próprio também foi ameaçado durante muito tempo. Nesta entrevista à Democracia Viva, revela um conhecimento profundo sobre uma das mais enraizadas questões nacionais: a violência no campo. Suas conseqüências, entre elas o trabalho escravo, são milimetricamente expostas em seu relato. “A escravidão nunca é uma ação individual, é sempre fruto de trabalho de equipe: o fazendeiro, o gerente, o empreiteiro, o motorista, o aliciador etc. Juridicamente, é o que poderia ser chamado de quadrilha, trata-se de um grupo que se organiza para cometer um crime” – garante.

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Onde o senhor nasceu e quando iniciou sua vida religiosa? Ricardo Rezende – Nasci em Carangola, Minas Gerais, em 1952. Saí de lá com 6 anos para uma área semi-rural, Cisneiros, onde estudei as primeiras quatro séries do ensino fundamental. Com 11 anos, entrei para o Seminário dos Missionários do Sagrado Coração, em Juiz de Fora. Na época, já sabia que queria ser padre.

Sua família teve influência nessa decisão? Ricardo Rezende – Minha família é religiosa, mas me tornei padre por livre e espontânea vontade. Foi uma opção pessoal. Fiquei no seminário até os 17 anos, quando decidi voltar para casa. Concluí o ensino médio e prestei vestibular para a Universidade Federal de Juiz de Fora, onde cursei Filosofia e Ciência das Religiões. Concluí as duas faculdades em 1976. Naquele tempo, tínhamos a idéia de criar uma comunidade de fé, com homens e mulheres morando na mesma casa, baseados em experiências que vinham surgindo desde a década de 60. Mesmo padres e freiras moravam na mesma casa e, o que era importante, havia um ambiente de inserção no movimento social. Em cima dessa idéia, ao concluir o curso, decidi trabalhar em uma igreja, ainda como leigo, mas que fosse uma igreja comprometida com os trabalhadores. Fui até Goiás Velho; d. Tomás Balduíno estava lá naquela época. Depois, fui para Conceição do Araguaia, no Pará.

Quando o senhor foi ordenado? Ricardo Rezende – Pedi para ser ordenado em 1979 e fui ordenado em 27 de julho de 1980. Faço 25 anos de ordenação em 2005.

Chegou a Conceição do Araguaia logo após a guerrilha? Ricardo Rezende – Conceição do Araguaia despertava atenção e temor justamente porque de 1972 a 1974 tinha havido a Guerrilha do Araguaia. Em 1976, houve também o Conflito do Caçador, quando lavradores,

depois de terem sido atacados por pistoleiros e terem suas casas incendiadas, reagiram e mataram dois policiais. O Exército, então, imaginando que aquilo fosse o ressurgimento da guerrilha, que ainda era recente, resolveu interferir, voltando para a região. Dom Estevão Cardoso de Avelar, bispo de Conceição do Araguaia, já havia tido problemas com o Exército. Todas as casas paroquiais da prelazia e a própria residência do bispo haviam sido invadidas pelo Exército durante a guerrilha, padres tinham sido torturados, freiras tinham sido espancadas e uma tinha sido violentada. Era um clima de grande tensão social. Tinham tentado prender frei Gil Gomes, que desenvolvia um trabalho junto aos índios. Era um ambiente de muito medo. Dom Estêvão disse: “Provavelmente, eles vão torturar os trabalhadores rurais, temos que nos manifestar”. Ele tinha perdido a esperança, naquele momento, de que a solução passasse por um diálogo entre os príncipes: o bispo, príncipe da Igreja, e o general, príncipe do Exército. Até então, toda vez que havia conflito, ele ia até Marabá, na 8ª Região Militar, e conversava com o general, apresentando o problema. Normalmente, era muito bem-recebido, com muitas promessas de solução. A última ida dele à 8ª Região Militar foi uma visita que terminou com uma ruptura. O general Euclides Figueiredo, irmão do futuro presidente Figueiredo, o recebeu, e o bispo apresentou mais um problema de conflito fundiário. Euclides disse que resolveria o problema, e d. Estevão, então, perguntou: “O que me garante que o senhor vai cumprir o que está prometendo? O senhor não tem cumprido suas promessas”. Euclides ficou bravo e lhe disse: “O senhor está sendo leviano”. E d. Estevão respondeu: “Levianos são vocês que prendem, torturam e matam”. O general ficou muito irritado, bateu na mesa, quebrou um copo e expulsou o bispo da sua sala. A partir daí, d. Estevão percebeu que a solução não passava mais por esse canal

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de negociação. Por isso, sabendo que o Exército faria coisas terríveis na região, disse aos agentes de pastoral, em um encontro do Conselho Pastoral, que sua intenção era tentar deter a ação militar, indo até o local e demonstrando a solidariedade aos trabalhadores.

E ele foi na região do conflito? Ricardo Rezende – Não. Na região passava o padre Mabone, que foi fundamental nessa história. Ele disse para d. Estevão: “O senhor não pode ir, vão dizer que o senhor é comunista, que incentiva os posseiros. Mas eu posso porque sou capelão militar no Rio Grande do Sul, sou condecorado pelo Exército, ninguém vai achar que sou comunista ou terrorista, vou ser o melhor intermediador nesse momento”. Dom Estêvão decidiu então escrever uma carta aos trabalhadores. O padre Mabone não conhecia a região, então o jovem seminarista Hilário o acompanhou. Quando os dois chegaram a São Geraldo Araguaia, os oficiais do exército não levaram em conta o fato de padre Mabone ser militar, e eles foram presos e violentamente torturados. A tortura foi realmente insana, o seminarista parou de ser torturado porque imaginaram que ele, menor de idade, tinha enlouquecido. Eles batiam e faziam as mesmas perguntas, diversas vezes. Em vez de responder às perguntas, ele começou a rir, provavelmente de nervoso. Imaginaram que ele estava ficando doido e deixaram-no ir embora. Mas o Mabone continou sendo torturado, e isso criou graves seqüelas nele.

Foi nesse clima que o senhor decidiu ficar em Conceição do Araguaia? Ricardo Rezende – Sim, cheguei a Concei-

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ção nesse contexto. Sabia da prisão do padre Mabone, das torturas e também da história de três jovens de Petrópolis que tinham ido trabalhar na região e eram influenciados pelo espírito franciscano. Quando o padre Mabone e Hilário foram presos e também um grupo de trabalhadores rurais, esses três jovens ficaram ajoelhados na praça onde estavam os presos, de braços erguidos, rezando, e aí foram presos também. Como dois deles eram filhos de um oficial, não foram torturados. Foram levados para Belém e, talvez por terem curso superior, o Exército quis lhes oferecer um tratamento, através da comida por exemplo, especial em relação aos demais presos. Eles recusaram. Conceição do Araguaia era uma região isolada, a ponte que ligava o atual estado de Tocantins ao estado do Pará não existia, a travessia era feita de balsa. Não havia luz elétrica, salvo de motor, não havia telefones públicos nas residências, apenas um telefone público. Qualquer conversa por telefone a cidade inteira acompanhava. Eu tinha 24 anos, fiquei impressionado com tudo aquilo. Decidi ficar. Era uma prelazia enorme, com poucos padres, pouca gente trabalhando. Havia o Movimento de Educação de Base (MEB), coordenado pela grande amiga que também vinha de Juiz de Fora, Heloísa. Através do MEB, promovíamos cursos profissionalizantes, o supletivo do primeiro grau, com escolas radiofônicas. As comunidades rurais recebiam um rádio, daquele motivo antigo, grande, uma bateria, um lampião e material pedagógico que a própria equipe elaborava, inspirada no método Paulo Freire. Tínhamos 60 escolas na área rural, um monitor local e um programa na rádio. O pessoal acompanhava a aula através desse programa, que complementava a ação do monitor. Tudo isso, as matas, os conflitos, a coragem da equipe local, o isolamento, tudo aquilo me atraiu. Fui em 1976 para conhecer e, em 10 de maio de 1977, fui para morar. Fiquei naquela prelazia durante 20 anos.

O senhor permaneceu 20 anos na mesma região? Ricardo Rezende – Na mesma diocese, mas em áreas diferentes. Fiquei 12 anos em Conceição do Araguaia, depois oito anos em Rio Maria. Os 12 anos em Conceição foram principalmente trabalhando na Comissão Pastoral da Terra (CPT). Praticamente criei a CPT lá. Frei Henrique Marques tinha criado oficialmente a CPT na diocese em 1976, mas não havia um escritório, nada estava organizado. Em 1977, quando cheguei, fiquei tão angustiado com o que via – trabalho escravo, violência contra


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trabalhadores, queima de casas, expulsão de pessoas das suas casas –, fiquei desesperado e falei com d. Estêvão: “Estamos aqui em cima de um barril de pólvora”. Aquela região da Amazônia concentrava os maiores grupos empresariais nacionais de capital financeiro industrial, mexendo com pecuária. Mais de 50% do dinheiro liberado pela Sudam [Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia] para toda a Amazônia tinha ido para dois municípios da nossa diocese: Santana do Araguaia e Conceição do Araguaia, como revela um livro de Octávio Ianni . Aquela região foi privilegiada em projetos governamentais para atender à iniciativa privada. Conceição do Araguaia recebeu o maior número de projetos aprovados pela Sudam e foi o segundo em volume de dinheiro; e Santana do Araguaia foi o segundo município em número de projetos e o primeiro em volume de dinheiro. Era uma explosão de crescimento econômico. O aeroporto de Conceição do Araguaia era extremamente movimentado, com um tráfego aéreo surpreendente. Era uma cidade pequena, mas com muito dinheiro público liberado pela Sudam. Além disso, centenas de caminhões descarregavam madeira nobre diariamente. Como não havia estradas, a primeira providência do fazendeiro era construir o campo de aviação, daí a intensidade do tráfego aéreo. Mas por causa da guerrilha, para combatê-la e prevendo futuras guerrilhas, o Exército cortou toda aquela região de estradas. Era um momento de forte conflito fundiário. Eram dois grupos sociais: um tinha ido buscar terra, formado por pessoas que queriam ser posseiras, pequenos proprietários de terra, que eram incentivados pelo governo, que, por sua vez, queria ocupar a Amazônia. Do outro lado, tinha os grandes grupos empresariais que também tinham sido convidados pelo governo. Os primeiros chegaram de pau-de-arara, de caminhão, e o segundo grupo chegou de avião. O segundo grupo pegou muita terra.

O senhor falou da sua participação na organização da CPT. Poderia falar mais sobre esse assunto? Ricardo Rezende – A CPT foi criada em 1975 por conta de graves conflitos no campo e da violência sofrida por milhares de lavradores. Em 1977, com a ajuda de uma equipe, consegui iniciar um arquivo, que foi muito importante na nossa luta. Esse arquivo nasceu de uma limitação minha: a memória. Eu me esqueço muito de nomes, datas, números. Quando cheguei a Conceição do Araguaia, fui procurado por lavradores que estavam sendo despejados,

tinham tido suas casas queimadas, estavam sendo ameaçados. Um grupo de lavradores me procurava em uma semana, eu os ouvia, ficava emocionado com suas histórias, mas dali a duas semanas eles reapareciam e eu já não me lembrava mais de alguns detalhes daquelas histórias. Por isso, resolvi começar a anotar as informações. Depois, eu não sabia mais onde estavam as anotações e, assim, resolvi guardá-las dentro de pastas. Então tive que arranjar um lugar para colocar as pastas e, por isso, comprei um arquivo, tive que colocar tudo em certa ordem; comecei a colocar pelo nome da fazenda e a separar por município. Enfim, comecei a criar um arquivo que até hoje funciona. Ele tem quase 30 anos e é composto por milhares de documentos.

Então o arquivo da CPT foi criado a partir de uma dificuldade de memória?! Ricardo Rezende – Primeiramente, sim. Depois, logo vi que estávamos atuando em uma região muito perigosa, precisávamos ter provas, dados e anotações a respeito das denúncias que recebíamos. Em casos mais graves, pegávamos uma declaração do trabalhador, se ele não sabia assinar, colocávamos a sua digital na folha e algumas testemunhas assinavam ou registrávamos em cartório uma declaração pública. Assim, começamos a transformar o arquivo em um espaço de provas da arbitrariedade da polícia, dos fazendeiros, da violência fundiária. Nesse processo, convenci d. Estevão de que era necessário contratar um advogado. Fizemos várias tentativas até encontramos Paulo Fontelles, um jovem advogado. Ele era uma pessoa muito brilhante, inteligente, com

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uma capacidade de argumentação fantástica e com experiência política. E era do PCdoB, mas até então não sabíamos. Começamos a investir na área de assistência jurídica, para apoiar os trabalhadores e tirá-los da cadeia. Os trabalhadores, as verdadeiras vítimas, eram presos, não os pistoleiros. Não sei se pela necessidade de defesa ou se por influência de tudo que viram na guerrilha do Araguaia, mas os trabalhadores começaram a enfrentar pistoleiros e policiais na mata. Esse era o contexto em que estávamos vivendo: de um lado, os trabalhadores sendo atacados, porque resistiam; de outro lado, os fazendeiros bem-armados, com muito dinheiro e tendo ao seu lado o juiz, os advogados da cidade e as polícias militar e civil.

Nessa época, o senhor se aproximou dos sindicatos de trabalhadores rurais? Ricardo Rezende – Nesse período a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais d e C o n ce i çã o d o Araguaia tinha sofrido interferência. Foi destituído pelo governo o seu presidente, e colocado um pelego, um militar reformado. Por sugestão do Paulo Fontelles, decidimos criar a oposição sindical ao pelego. Colhemos, entre as Comunidades Eclesiais de Base, as lideranças mais interessantes e inteligentes. Foi assim que surgiram Gringo, o Raimundo Ferreira Lima; João Canuto; Expedito Ribeiro de Souza; Oneide Lima; Maria Pereira... Começamos a descobrir, entre lavradores das comunidades, quem tinha liderança e sensibilidade.

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ajudei a organizar a CPT em Conceição do Araguaia e me tornei o primeiro coordenador local. Depois assumi cargo de direção no chamado Regional da CPT Araguaia-Tocantins, que abrangia o estado do Tocantins e parte do norte do Mato Grosso e sul do Pará, uma região maior que a da Alemanha unificada. Fui ainda um dos cinco diretores nacionais da CPT Nacional. Em 1988, saí de Conceição do Araguaia, deixei a direção da CPT e assumi a paróquia de Rio Maria também no sul paraense.

Como o senhor vê a participação das mulheres nessa resistência? Ricardo Rezende – As mulheres sempre foram muito importantes na resistência. Também havia no trabalho a preocupação com a questão de gênero. Muitos assuntos eram levantados nessas reuniões, e a participação feminina no sindicato se expressou fortemente. Sempre tivemos candidatas femininas para a diretoria. A Aninha, Ana de Souza Pinto, da CPT de Conceição do Araguaia, a Heloisa e a Marilza por exemplo, tiveram um papel importantíssimo ao investir na formação das mulheres. Lembro de um conflito em Xinguara em que a polícia fez um cinturão em torno dos trabalhadores porque eles estavam entrincheirados. Só quem conseguia passar eram mulheres porque achavam que elas não representavam perigo. Justamente uma delas – uma grande amiga nossa que era evangélica, usava cabelo comprido, saia bem comprida e uma bíblia sempre debaixo do braço – levava a munição para a defesa dos trabalhadores, e os policiais nunca poderiam imaginar isso. Outro caso de mulher que descobriu muita coisa foi a d. Pureza, no Maranhão. Ela até recebeu mais tarde um prêmio da Anti-Slavery, que tem sede em Londres. Quando o filho dela desapareceu e ela soube da história de trabalho escravo, saiu louca pelo mundo. Ela era evangélica e carregava a bíblia, um gravador, uma máquina fotográfica e um caderno que ela chamava de “o caderno da encrenca”. Ali, ela registrava o que considerava fazenda brava e fazenda mansa. Fazenda “mansa” era a que usava o trabalho escravo, mas não matava; e a fazenda “brava” matava. Ela saiu atrás do filho e conseguia entrar nas fazendas porque não levantava suspeitas, ninguém imaginava que ela pudesse representar um perigo, assim ela transitava de fazenda em fazenda, sem risco de vida.

Essa trajetória o levou à direção da CPT?

O senhor nunca foi preso ou processado?

Ricardo Rezende – Durante 12 anos,

Ricardo Rezende – Fui processado pela


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Polícia Federal, interrogado. No final da década de 1980, estava ameaçado de morte. Passamos por momentos diferentes, o primeiro foi como os trabalhadores podiam conquistar a terra; o segundo foi como poderiam permanecer na terra. A primeira fase, da qual participei muito intensamente, foi a da conquista da terra. Como não ser morto, não ter a casa queimada, como ficar? Isso foi até 1984. A partir de 1985, com a chamada Nova República, surgiram as promessas – primeiro de Tancredo, depois de Sarney – de que a reforma agrária seria feita. Isso criou um problema para os fazendeiros, que ficaram em dúvida se o governo cumpriria a promessa e tiveram medo de perder o apoio da polícia. Eles se organizaram na União Democrática Ruralista e criaram milícias. Em vez de atuarem individualmente agiam coletivamente. Esse tipo de organização trazia novidades, o crime agora era organizado, crescente e seletivo. Por isso, as lideranças mais importantes começaram a morrer e tinha uma espécie de pedagogia do terror. Não era só matar, era matar e queimar o corpo da vítima; ou matar, mas queimando vivo; ou era matar, mas impedir o sepultamento; matar crianças para aterrorizar os adultos e diminuir a resistência. Em 1988, pela primeira vez, eu teria uma paróquia, e o bispo resolveu escolher uma paróquia que parecia a mais tranqüila da diocese, onde não acontecia nada, lugar perfeito para encaminhar um padre que sofria muitas ameaças. E aí fui para Rio Maria. Lá havia morado João Canuto e vivia Expedito, ambos sindicalistas rurais ligados ao PcdoB que haviam sido fundadores de capelas em bairros de periferia. Na primeira oposição sindical que formamos, Rio Maria não existia como município, pertencia a Conceição do Araguaia, e eles tinham sido membros da chapa de oposição sindical de Conceição. Quando foi criado o município de Rio Maria, João Canuto e Expedito criaram o sindicato local. O primeiro foi assassinado em 1985, o segundo em 1991.

Era uma região muito isolada. Como o senhor acompanhou os principais acontecimentos políticos da época, como a formação da CUT e do PT, a campanha pela anistia? Ricardo Rezende – Acompanhei limitadamente. A repressão era fortíssima e tinha ainda o isolamento geográfico. A prática dos trabalhadores rurais era política, mas era muito mais avançada na prática do que na teoria. Eles colocavam em questão o latifúndio, esfacela-

vam áreas enormes de latifúndio, não tem nenhum lugar do Brasil com tanta desapropriação como naquela região, mas isso não significa que havia uma consciência política do que eles estavam fazendo. Quando ocorreu a primeira assembléia do MST, eu estava em Curitiba e pude acompanhar. Mas não tínhamos como permanecer o tempo todo articulados; acabávamos ficando de fora das discussões. Como não tínhamos como saber tudo o que estava acontecendo, às vezes, também éramos mal compreendidos. Por exemplo, quando começamos a organizar a oposição sindical, fizemos uma carta-circular aos amigos para levantar dinheiro. Fizemos a carta junto com nosso advogado, o Paulo Fontelles, do PCdoB. A carta circulou pelo Brasil e todo mundo achou que nós fôssemos do PCdoB e que estávamos levantando dinheiro para recomeçar a guerrilha no Araguaia. E não sabíamos disso, não dominávamos esse jargão político. Por esses detalhes, às vezes, éramos mal compreendidos.

O senhor nunca se filiou a um partido? Ricardo Rezende – Nunca, nem subia nos caminhões para fazer campanha, mas tinha minhas preferências. Pessoalmente, eu falava e as pessoas sabiam em quem eu iria votar. Um padre numa cidade pequena é uma referência forte. Um padre no Rio de Janeiro é um cidadão a mais entre milhares, mas, naquela região, cada paróquia abrange um ou mais municípios e só há um padre, ele é referência.

As primeiras lutas foram pela terra. Quando o trabalho escravo entrou nessa história? Ricardo Rezende – Ainda na década de 70, d. Pedro Casaldáliga divulgou um documento alertando sobre o problema do trabalho escravo. Não tenho certeza, mas possivelmente a primeira denúncia contundente depois desta veio do sul do Pará. Nós começamos a registrar a história do trabalho escravo, que tinha uma incidência muito grande, e não sabíamos nem como denominar o fenômeno, ora chamávamos de prisão em fazenda, cárcere privado, ora chamávamos mesmo de trabalho escravo. Em 1983, fiz a primeira denúncia pública do sul do Pará contra a fazenda chamada Vale do Rio Cristalino, que pertencia a Volkswagen. Já tínhamos informações anteriores, mas o nosso drama é que recebíamos as denúncias sempre a posteriori e, como se tratavam de empresas poderosas, não tínhamos provas e não sabíamos como tratar o problema. Se denunciássemos, poderíamos

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ser processados por calúnia. Os trabalhadores sempre estavam em trânsito, o escravo nunca é da região, é um “estrangeiro”, isso dificultava a feitura de provas.

Vocês tinham relação com os posseiros locais. Como fizeram para lidar com essas pessoas de fora? Ricardo Rezende – Isso foi um drama, não sabíamos como lidar com essa população que estava em trânsito, se hospedava em pensões, ou nem passava pela pensão. Às vezes essas pessoas iam direto, chegavam à cidade, eram colocadas dentro do avião e iam para a fazenda. Ou, se já tinha estrada, chegavam à cidade ao entardecer, recebiam cachaça e à noite iam para fazenda embriagadas intencionalmente para não verem o caminho. Era um pessoal com o qual não tínhamos contato ou, quando tínhamos, era esporádico. Era um desafio tão grande que uma vez a equipe de São Félix do Araguaia fez um estudo sobre o tema e publicou com o título de Peão gira peão. Era preciso ter um trabalho com o peão em sua cidade de origem, e não depois, quando ele já estivesse escravizado, era uma angústia sobre o que fazer. Durante alguns anos, nosso trabalho foi organizar, juntar os dados. Não podíamos contar com a polícia, a imprensa estava longe, não tínhamos um jornal, nem telefone, era tudo no isolamento. A gente só anotava e arquivava. Em 1983, a equipe de São Félix do Araguaia, do Mato Grosso, telefonou para Conceição do Araguaia – e aí já tínhamos telefone –, eu era coordenador da regional Araguaia–Tocantins, e me disseram: “Ricardo, estamos aqui com três

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jovens, dois são menores, eles acabaram de escapar da Vale do Rio Cristalino e eles dizem que existem mais uns 600 homens lá dentro”. Era a hora, poderíamos fazer um flagrante. E tinha uma grande novidade, estávamos com uma esperança enorme porque tínhamos conseguido eleger um cara “progressista”, do PMDB autêntico, que era governador do estado do Pará, Jader Barbalho. Ele tinha apoiado os padres franceses quando foram presos em São Geraldo, tinha ido à cadeia visitá-los, feito discursos. Na campanha eleitoral, se não me engano a eleição foi em 1982, ele dizia no palanque o seguinte: “Pistoleiros do sul do Pará, no dia 15 de março eu tomo posse, é melhor vocês fugirem na véspera porque, no dia 15 mesmo, todos estarão presos”. Ao receber o telefonema de São Félix, liguei para o governador, que até então eu chamava de Jader, não era Excelência. Ele tinha ido ao nosso escritório, dado entrevista para a nossa rádio, viajava com a gente. Liguei para ele, não consegui falar, mas expliquei ao chefe de gabinete que havia um caso gravíssimo e que precisava marcar uma audiência urgente com o governador. Marcamos, peguei o avião, fui a São Félix do Araguaia para buscar um dos três rapazes, o que tinha 18 anos, os outros tinham 16 e 17 anos, e me dirigi a Belém – fiz uma viagem de mais de mil e quinhentos quilômetros. A companhia aérea na região funcionava como táxi aéreo, era caríssimo. Chegamos lá, o governador tinha viajado para Brasília. Discuti com o pessoal da CPT e concluímos que tinha que ir atrás dele, não adiantava falar com o vice. Avisei a assessoria dele e embarcamos para Brasília. Ele sabia que se tratava do problema da Volkswagen. Mas, ao chegarmos em Brasília, fomos informados que ele havia viajado para o Rio de Janeiro. Perguntei a d. Luciano Mendes, na época secretário da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil): “E agora?”. Nossa idéia era fazer o flagrante com o auxílio do governador. Ele respondeu: “Se não é possível falar com o governador, convoque a imprensa e faça a denúncia aqui mesmo. É prioritário salvar as vidas”. Em Brasília mesmo, no prédio da CNBB, a imprensa foi convocada e foi feita a denúncia. Foi a nossa primeira denúncia de uma lista de centenas de denúncias que seriam feitas pela CPT daquela região.

Qual foi a repercussão da denúncia na imprensa? Ricardo Rezende – Estavam presentes na coletiva o Jornal do Brasil, O Estado de S.


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Paulo, a Folha de S.Paulo, jornais de Brasília e algumas revistas. Eram muitos repórteres e fotógrafos. Não publicaram nada. O único jornal que deu uma matéria, mesmo que pequena e discreta, foi O Globo. Mas a matéria repercutiu no exterior quase imediatamente porque em 24 horas comecei a receber telefonemas dos correspondentes estrangeiros aqui no Brasil.

Mas houve o flagrante na fazenda? Ricardo Rezende – Não conseguimos que a polícia entrasse e fizesse o flagrante. Mas, com as pressões vindas do exterior, o governador mandou instaurar um inquérito policial. Existiam muitas testemunhas, eu tinha acumulado documentação sobre o crime na fazenda. O delegado da Polícia Civil responsável pelo inquérito concluiu rapidamente o inquérito. Reconheceu ter havido trabalho escravo ali, mas afirmou que a responsabilidade era apenas dos empreiteiros, que a direção da fazenda não tinha nenhuma responsabilidade. E, para surpresa minha, as peças do inquérito eram apenas a documentação que eu tinha mandado ao governador. Na verdade, ele não foi à fazenda, não ouviu ninguém. O Secretário de Segurança Publica não concordou com o delegado e incluiu no inquérito que, se o crime tinha sido feito, os funcionários da empresa também deviam responder por ele.

uma quantidade enorme de autores, do Rio de Janeiro e de São Paulo. Eu lia um atrás do outro e ninguém definia o que era trabalho escravo, todo mundo pressupunha que era um dado, não se descrevia.

Mas qual é a sua definição? Ricardo Rezende – O trabalho escravo é aquele em que uma pessoa física ou jurídica, um grupo social ou um indivíduo submete uma pessoa ou um grupo de pessoas de tal forma que ele não tem mais liberdade de vender a sua própria força de trabalho e ele é tratado como se fosse uma mercadoria. Algumas características da escravidão contemporânea se assemelham àquelas da escravidão antiga, e outras se distinguem dela.

E quais são essas

Quando se começou a usar o termo ‘trabalho escravo’? Ricardo Rezende – Sobre o ponto de vista teórico, vários pesquisadores nos anos 1970 escreveram sobre o assunto da peonagem, mas em geral classificaram essa forma de trabalho, depois de descrevê-la, como “semi-escrava”. Nos anos 1980 e seguintes, Neide Esterci e José de Souza Martins trataram do tema de forma mais exaustiva. Para José Martins, o que estava havendo ali era claramente trabalho escravo. Tenho a impressão de que a primeira tese de doutorado sobre o assunto foi a minha. Nela, retomo a categoria escravidão para discutir mais exaustivamente o que isso significa. Foi um pesadelo enfrentar a questão da categoria, fazer uma análise sobre como ela havia sido abordada por outros autores. E o pouco que havia era sobre a escravidão legal, a africana que existiu nas Américas até o século XX ou a antiga, que houve em Roma ou na Grécia. Não encontrava, nas áreas da antropologia e da sociologia, referências que contemplassem o assunto. Pensei: a história vai me dar o porquê; existe uma literatura muito vasta sobre a escravidão. E comecei a devorar livros de historiadores, inclusive brasileiros – existe

características? Ricardo Rezende – Na escravidão contemporânea no Ocidente, o que predomina é o pretexto da dívida para justificar sua existência; a pessoa está sempre devendo alguma coisa e não pode se desligar do trabalho e do seu senhor. A segunda característica é universal. O escravo não é alguém de casa, é o de fora. Normalmente, o escravo não é da região: Campos não usa como escravo o trabalhador de Campos, vai buscar em Minas Gerais ou em Alagoas.

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O Pará vai buscar no Tocantins, no Maranhão ou no Piauí. Rio usa escravo de Minas, Minas usa escravo do Nordeste. Mato Grosso do Sul vai usar escravo mineiro. O motivo é mantê-lo mais frágil, deslocado de uma rede de apoio e sustentação. Há aspectos que diferenciam uma escravidão da outra, como lembra Kevin Bales. Em geral, a escravidão antiga era de longa duração; a nova é de curta duração e a razão é a seguinte: o escravo hoje é mais barato que o escravo do passado. Antes havia menos escravos disponíveis. Hoje, a quantidade de pessoas disponíveis ao aliciamento é tão abundante porque a identidade do escravo hoje não é a cor, é a pobreza, a miséria. Onde há bolsões de miséria e de desemprego, as pessoas são mais facilmente atraídas e escravizadas. Depois que utiliza essa mão-de-obra, que é muito barata, é mais barato descartar o escravo do que mantê-lo na entressafra. Antigamente, o escravo tinha um custo que justificava mantê-lo mesmo na entressafra.

O pretexto da dívida também foi usado para escravizar antigos prisioneiros de guerra? Ricardo Rezende – Sim. No livro O Etíope, do século XVIII, escrito por um advogado e padre português que morava em Salvador, o autor justifica a escravidão sob a ótica de uma dívida. Ele diz que todo homem nasceu para a liberdade, ninguém nasceu para ser escravo. No entanto, a escravidão é legítima, é correta, se houver uma “guerra justa e declarada entre dois príncipes”. O vencido deve indenizar o vencedor por conta dos custos da guerra, então ele deveria trabalhar para reembolsar os gastos da guerra que eram sua dívida. A escravidão

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tinha, contudo, um tempo limitado. Esse é um dos pretextos mais antigos da escravidão. Mas, no livro, ele se pergunta: quem garante que esse negro escravo que está aqui no Brasil é fruto de uma guerra justa e declarada entre dois príncipes? Nada. Então ele deve ser colocado em liberdade, conclui no primeiro momento. Mas ele encontra outra justificativa para manter a escravidão: se a pessoa ficasse na África, onde era prisioneira, seria morta. Se alguém vai lá e o resgata, está salvando-o de duas mortes: da morte espiritual, porque ele iria para o inferno por não ser batizado, e da morte física, porque ele iria ser assassinado. Ir lá e resgatá-lo é um ato de misericórdia. Ele não deve ser visto como um escravizado, mas como um resgatado, que deve trabalhar para indenizar aquele que o salvou, do contrário não vai ter dinheiro suficiente para salvar outros. Aí tem um problema econômico: qual é o tempo necessário para reembolsar a pessoa que salvou a outra? O padre fez os cálculos e disse que esse prazo não deveria ultrapassar 20 anos. E ele ficou com um problema teológico e jurídico porque na Bíblia e em Roma antiga era previsto um tempo bem menor. Mas ainda assim ele justifica que a diferença no caso é que se tratavam de escravos brancos, portanto mais trabalhadores que os daqui.

O sistema de barracão, que sempre existiu no Nordeste, é na verdade uma forma de trabalho escravo, não? O trabalhador recebe só um vale e tem que comprar na terra do dono da fazenda. Ricardo Rezende – Exatamente, a própria categoria utilizada por trabalhadores no Nordeste é de trabalho cativo. O que define o trabalho escravo é a dívida, a dívida o impede de sair. Mas o crime não deixa de existir se a vítima não tem noção de que está sofrendo o crime. A pessoa é prisioneira de uma dívida. Às vezes, a vítima acha isso normal e, se ela fugir, achará que está roubando – e muitos acham isso, por isso, quando fogem, não buscam as autoridades porque acham que são criminosos, que estão roubando. E os outros, que não fogem, julgam os que fogem como ladrões. Apesar disso, o crime existe.

Como funciona exatamente? Ricardo Rezende – É um sistema de enganos, de mentiras. A dívida é montada através do transporte do local do aliciamento até a fazenda; dos gastos de hospedagem e alimentação. No Pará, por exemplo, existem as pensões que


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vendem peões, são as pessoas que estão em trânsito, estão em busca de trabalho, não têm onde dormir, o dono da pensão convida : “Vem dormir aqui, quando você conseguir trabalho, você me paga”. Chega o gato e compra aqueles peões, paga por eles R$ 20, R$ 30 ao dono da pensão e os leva.

Qual o perfil desse trabalhador? Ricardo Rezende – Normalmente, analfabeto e desempregado. Existe o peão do trecho e o peão de família. O peão do trecho não tem relações familiares, não tem mulher, não tem para onde ir, ele sai e entra em fazenda, em um circuito sem saída. Em geral, também é alcoólatra. No Nordeste, muitos vêm do antigo sistema de morada, é um sistema que faz com que a pessoa more e trabalhe naquela terra. O dono da fazenda oferece a terra, um quintal, a pessoa passa a morar ali, mas também trabalha. Esse sistema de morada segura não só o pai e a mãe, mas também os filhos e faz com que a família toda trabalhe. É o caso, por exemplo, de Barras, no Piauí. Quando esse sistema entrou em crise e os trabalhadores foram “libertos”, eles não tinham mais interesse nesses trabalhadores e os filhos, desempregados, foram buscar trabalho fora, em São Paulo, Rio, Pará. Eles são aliciados, chega alguém que oferece um trabalho com boa remuneração, oferece boas condições de trabalho e eles vão. Mas, uma vez que estão na fazenda, são informados de que não podem sair enquanto não pagarem a dívida. Se entrevistarmos alguns deles, são capazes de dizer: “Foi tudo bem”. Mas aí a gente pergunta: “Devendo pode sair?”, e ele responde: “Não, não pode”. E se sair? “Aí não pode, se tentar sair, pode até morrer.”

Eles não recebem nenhum tipo de remuneração? Ricardo Rezende – Depende. Em geral, não recebem nada; mas recebem alguma coisa se o empreiteiro pretende retornar ao mesmo município para aliciar novas pessoas. Por exemplo, pensando em retornar, terminada a empreita, o “gato” (empreiteiro) explica ao trabalhador: “Infelizmente, você ganhou pouco porque você pegou uma área que era mais difícil. Na próxima vez, quem sabe, vai ter mais sucesso?”. O trabalhador, ao chegar em casa, pode, por exemplo, comprar uma cama de casal, que foi um dos objetivos da sua ida ao Pará. Ele e a mulher nunca dormiram numa cama e ele viajou pensando nisso. Ou ele mesmo vai querer voltar na expectativa de que terá mais sucesso da próxima vez, ou pelo menos ele não vai falar mal do gato, mas vai

dizer: “Ganhei menos do que imaginava, mas quem sabe com outro gato vai dar certo?”. Agora, se o empreiteiro não pretende retornar ao município, não paga nada.

Poderia detalhar mais como se dá a arregimentação dos trabalhadores? Trata-se de uma rede de trabalho escravo? Ricardo Rezende – A escravidão nunca é uma ação individual,ela é fruto de trabalho de equipe: tem o fazendeiro, o gerente, o empreiteiro, o motorista, o aliciador etc. Juridicamente, é o que poderia ser chamado de quadrilha, trata-se de um grupo que se organiza para cometer um crime. O empreiteiro tem duas formas de agir: primeiro, ele tem que identificar onde existe mão-de-obra sobrando e onde existe necessidade de mão-de-obra. Abundância de mão-de-obra é possível encontrar no Vale do Jequitinhonha, em todo o Nordeste, em bolsões de pobreza no Paraná e mesmo no Rio de Janeiro. Quase todos os estados do Brasil têm regiões com alta incidência de mão-de-obra ociosa. Se chega lá um carro ou alguém, às vezes utilizando um carro de som ou a rádio local, dizendo: “Quem quer trabalhar no estado tal, na fazenda tal, onde se paga bem?”. Se no local, por exemplo, a diária for de R$ 10, eles vão dizer que a diária é de R$ 20. Eles têm propostas que são atraentes. Quem vai aceitar o convite? Primeiro, são pessoas desempregadas, com muita necessidade. Segundo, isso pode ser a expectativa, por exemplo, para o jovem empreender uma viagem que nunca fez. Pode ser uma espécie de rito de passagem. Qual é o rito de passagem de um jovem que vive no Rio de Janeiro? Se for um jovem pobre, conseguir

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trabalho; se não conseguir trabalho legal, pode conseguir um ilegal. Ou entrar na faculdade ou entrar no ensino médio. Se o jovem não tem esse rito de passagem, não se torna adulto. Como ele vai namorar, se não trabalha nem estuda? Um jovem em Barras, no Piauí, por exemplo, não tem estudo nem trabalho, como ele se explica para a mãe ou para a namorada a sua situação? Ele tem que provar que é homem e faz parte do rito de passagem correr um risco. Viajar, para ele, tem algo de sedutor, é conhecer o estranho, o diferente que, de um lado, seduz, de outro, ameaça. Mas a raiz de tudo é o desemprego, então eles vão. Uma vez que chegam à fazenda, são informados de que não poderão sair sem antes pagar a dívida. E lá eles têm que comprar não apenas a comida, mas também os instrumentos de trabalho. Isso faz com que quanto mais tempo na fazenda, mais a dívida aumenta; a dívida não diminui, só cresce.

Nesse perfil de trabalhadores e trabalhadoras escravizados, o número de pessoas negras não é maior? Ricardo Rezend e – Não tenho números sobre a proporção de negros e brancos. Como no Brasil as pessoas mais pobres são negras, certamente predomina o negro, mas não temos o número. Mas é surpreendente que encontramos também entre os escravos gente loira, por exemplo, ou de origem asiática, isso não é incomum. Mas certamente a maioria é composta por negros.

São mais homens do que mulheres? Ricardo Rezende – Na atividade de derru-

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bada de florestas, a predominância é masculina. Já em área de cana-de-açúcar, carvoaria ou fruticultura não tem sido raro encontrar mulheres e crianças.

A área que concentra o maior número de mão-de-obra escrava no Brasil ainda é o sul do Pará? Ricardo Rezende – Não sei se é exatamente onde existe mais trabalho escravo, mas é onde se conhecem mais casos – algo que só é possível saber graças ao trabalho feito pela CPT.

Se compararmos os dados levantados pela CPT no início, quando foi criada, com os levantamentos realizados hoje, diria que a situação melhorou ou piorou? Ricardo Rezende – Na Amazônia, o apogeu do trabalho escravo mais recente foi nas décadas de 70 e 80 porque as fazendas estavam se instalando. Quando o governo cortou os financiamentos e subsídios da Sudam, quando derrubar mata deixou de ser benfeitoria, muitas empresas diminuíram a área de devastação e outras venderam suas fazendas. Certamente, hoje há um índice menor de devastação do que no passado. Tudo é baseado em suposições, mas hoje a CPT fala que no Brasil existiriam 25 mil escravos por ano; a Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura] fala em 40 mil. Certamente, nas décadas de 70 e 80, o número ultrapassava os 100 mil só na Amazônia. Mas são estimativas apenas.

Por que o trabalho escravo contemporâneo é sazonal? O que leva os fazendeiros a renovar constantemente essa mão-de-obra? Ricardo Rezende – O esquema é o seguinte: o fazendeiro contrata empreiteiros. As fazendas têm dois tipos de trabalhadores: o permanente e o temporário. O permanente fica o ano inteiro, é o vaqueiro, o agrônomo, o funcionário do escritório, o porteiro, o segurança. Existe um corpo de funcionários com carteira assinada. Para atividades temporárias, como o período de pasta, feitura de cerca, aceiro etc., vai depender do empreiteiro que leva os trabalhadores. Se o empreiteiro não tem outro contrato, libera os trabalhadores ou pode tentar vender esses trabalhadores para outro empreiteiro que esteja precisando. Por isso, acontece a transferência de peões de uma empreita para outra. Ou se esse gato terminou o trabalho nessa fazenda, mas foi contratado para trabalhar em outra, ele pode levar os mes-


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mos trabalhadores para essa outra fazenda. Por exemplo, Santana de Indaiá e Santo Antônio de Indaiá tinham o mesmo empreiteiro e ele levava de uma fazenda para a outra aqueles trabalhadores. Isso significa que o tempo de permanência do trabalhador torna-se maior. Mas se a empreita for por um tempo limitado e não há mais trabalho, os trabalhadores são libertados.

O senhor falou em contrato. Esses trabalhadores chegam a assinar alguma coisa? Ricardo Rezende – Muitas vezes, o empreiteiro assina um contrato com o fazendeiro. Quando se trata de uma empresa grande, que paga impostos, que é reconhecida pelo governo, em geral, ela obriga o pistoleiro, que é o empreiteiro, a se constituir como firma. A maioria dos pistoleiros vira firma, o pretexto inicial é tirar a responsabilidade da empresa. Mas eles não têm obtido sucesso nisso. A Justiça do Trabalho não reconhece essa isenção de responsabilidade porque, como o empreiteiro não tem condições de arcar com os custos, a empresa beneficiada é responsável. Sob o ponto de vista penal, o gerente e o fazendeiro podem ser acusados de conivência com o crime. Nos poucos casos de trabalho escravo em que houve processos, os fazendeiros foram condenados.

Os peões assinam alguma coisa? Ricardo Rezende – Mais recentemente sim, antes não. Como o Grupo Móvel (do Ministério do Trabalho e Emprego) tem feito fiscalização com muita freqüência, algumas fazendas providenciam carteira de trabalho para os trabalhadores e as recolhem no escritório. Se a fiscalização chegar, os responsáveis pela fazenda tentam preencher às pressas as carteiras profissionais. Outras assinam as carteiras antes mesmo de a fiscalização chegar. Isso ocorre porque existem empresas que estão sendo fiscalizadas duas a três vezes por ano, pelo grau de reincidência no crime. Outra estratégia é quando um trabalhador foge e, com medo de denúncias, o fazendeiro assina a carteira e publica uma notícia no jornal local informando que aquele trabalhador desapareceu, como se fosse abandono de emprego.

No livro que lançou ano passado, o senhor mostra como é a vida do ex-escravo. Como foi essa produção e qual a diferença para o primeiro levantamento que o senhor realizou? Ricardo Rezende – Quando estávamos no Pará, nossa equipe tinha uma urgência: salvar

vidas. Quando recebíamos os trabalhadores, em casa ou no escritório, nossa angústia era: “O que faço para salvar essa vida e as outras?”. A solução era pegar um depoimento, no qual fazíamos perguntas que nos auxiliariam nessa tarefa, perguntas relacionadas aos direitos humanos – qual foi o problema, quando foi contratado, quais foram as violências sofridas, houve homicídio, houve espancamento? –, e registrávamos esses dados. No levantamento que fiz mais recentemente, pude fazer perguntas que nunca poderia fazer no Pará. Talvez nem soubesse fazê-las naquele contexto em que eu vivia. Pude fazer perguntas aos trabalhadores sobre o medo, sobre a mulher, a filha, sobre a resistência. Queria compreender, por exemplo, por que ele aceitou ir para o Pará, quais foram as razões subjetivas dele. Esse novo lugar social que eu estava ocupando, a universidade, me possibilitava um olhar diferente, sem abandonar aquele olhar anterior. Agora, em vez de receber na minha casa os trabalhadores, fiz o caminho inverso, fui à casa deles, nunca tinha ido.

Quantas entrevistas o senhor fez? Ricardo Rezende – Mais de cem. Eu escolhi duas áreas: Barras, no Piauí, que é uma região dos estabelecidos que moram lá há duas ou três gerações; e o norte de Mato Grosso, onde o pessoal está mais recentemente. Uma das surpresas ao conversar com as famílias, além da quantidade de pessoas que estiveram no Pará, era ouvir as mulheres. Também é muito impressionante a quantidade de desaparecidos. Lembro que, numa conversa com os trabalhadores, era um grupo de cerca de 40 pessoas, perguntei quem tinha parente desaparecido. Uma quantidade enorme de pessoas começou

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a tirar do bolso, da camisa, da calça ou de uma bolsa um plástico e dentro dele tinha a foto do desaparecido, era o filho sumido, o noivo sumido, o esposo, o pai, quase todas as famílias têm alguém que foi ao Pará e não voltou. Essas pessoas podem ter sido mortas ou podem não ter retornado à família por outra razão, briga familiar. É muito comum também outro fenômeno: o homem às vezes sai de casa contra a vontade da esposa – ou da noiva ou dos pais – porque ela tem medo do que possa acontecer e aí ele só quer voltar quando tiver dinheiro porque tem vergonha de voltar mais pobre do que saiu. Essa vergonha impede inclusive o contato com a família, a pessoa fica escondida.

Nessas entrevistas, algum caso o marcou especificamente? Ricardo Rez e n d e – Quando estive em Teresina e estava na casa de uma religiosa, ela me contou que ali perto morava uma senhora que havia me procurado muito, há muitos anos, quando eu estava em Conceição do Araguaia, em 1986, porque o filho dela, Francisco, tinha desaparecido. Naquela ocasião, colocamos aviso nas rádios, nos jornais, procuramos em hospitais, funerárias, não tivemos a menor notícia, e ela voltou para o Piauí. Agora, quando estava produzindo a tese, em 2001 e 2002, fui à casa dela e ela me reconheceu, chorou muito, me apresentou ao marido, que eu não conhecia, e ela disse: “Meu filho está vivo, mas não tive contato com ele, eu sonhei com ele esta noite, eu estava dormindo na rede e ele balançou minha rede e conversou comigo. Ele está vivo porque ele apareceu para mim hoje e agora você apareceu também, tenho certeza que meu filho

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está vivo”. Eu disse que também esperava isso e fui embora. Três meses depois, ela recebeu um telefonema. Uma mulher ligou de Santana do Araguaia dizendo para ela: “Queria saber se o Chico é seu filho. Ele tem alguma mulher aí?”. O Chico estava vivendo com uma mulher em Santana do Araguaia, ele foi para a mata trabalhar, a mulher pegou a identidade dele, viu o nome do pai e da mãe dele. Ela tinha uma amiga que era telefonista. Graças a essa amiga, ela descobriu que os pais do Chico agora tinham telefone e aí ligou para Teresina para saber se o Chico tinha outra mulher, ela estava com medo de estar sendo enganada. A senhora quase morreu de susto, mas descobriu que o filho estava vivo. Mas, quando o Chico voltou, a mulher contou que havia falado com a mãe dele. Aí o Chico ligou para a mãe, com quem não falava há mais de dez anos. Eles choraram e o filho disse: “Quando eu tiver dinheiro, volto”. Ele tinha ido contra a vontade da mãe, não queria voltar pior do que tinha saído, por isso não queria manter contato. Antes disso, ela tinha feito uma promessa que cumpriria se tivesse novamente o filho no colo. Em todo o caso, estive com ela depois desse telefonema, ela achou que eu tinha localizado o filho dela, eu disse que não, que tinha sido coincidência. Voltei para o Rio de Janeiro e recebi um telefonema de lá me contando que o filho tinha sido assassinado antes de voltar para casa. Essa mulher, que era muito tímida, analfabeta, se transformou. Ela virou uma fera, virou o mundo de cabeça pra baixo, foi à prefeitura, foi ao governo do estado, conseguiu um avião – uma mulher que não tinha dinheiro para pegar um ônibus – do governo do estado para ir a Santana do Araguaia buscar o corpo do filho, conseguiu que ele fosse embalsamado, conseguiu levar o corpo do filho. A história é longa, é uma aventura, o corpo ainda ficou retido em Araguaina. Quando o corpo chegou em Teresina, ela colocou o filho no colo.

Vocês criaram o Comitê Rio Maria. Como funciona hoje? Ricardo Rezende – O Comitê Rio Maria foi criado em 1991, numa reunião que fizemos em Redenção. A idéia era criar pressões políticas e jurídicas para frear as mortes, a impunidade no campo e acelerar o processo de reforma agrária. Esse comitê acabou dando certo por uma série de razões, entre elas a presença de frei Henry des Roziers. Tivemos também a ajuda de uma série de advogados. Houve pressões na ONU [Organização das Nações Unidas] e na OEA [Organização dos Estados Americanos]. A Anistia


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Internacional ajudou. Foram formados Comitês Rio Maria na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, onde até hoje o comitê é mais forte. Criamos diversos grupos de pressão no Brasil e fora do Brasil, que começaram a pressionar os governos federal, estadual e municipal e o Poder Judiciário de tal forma que alguns casos foram julgados e condenados. Principalmente, o objetivo central foi conseguido: nenhuma liderança foi assassinada naquela região do sul do Pará depois de 1991 até 2005. Foram assassinadas em outras regiões do Pará: na diocese de Marabá, por exemplo, ocorreram 19 assassinatos de integrantes do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra]. Acho que o Comitê Rio Maria, a presença de frei Henry e o apoio dos advogados foram definitivos para dar visibilidade ao sul do Pará. Graças à movimentação após a morte do Expedito Ribeiro de Sousa, conseguimos implantar, até em Brasília, um núcleo de discussão contra a violência no campo.

Mas frei Henry está sendo ameaçado de morte, não? O que o Comitê está fazendo quanto a isso? Ricardo Rezende – Estamos fazendo pressão de novo, isso funcionou durante um tempo, pode ser que agora os mecanismos sejam outros. Uma das coisas que fizemos naquela época foi levar atores e atrizes para a região. Pensamos o seguinte: quem fala para aquele fazendeiro que está no Pará? A TV Globo. Conseguimos fazer aqui no Rio, por exemplo, o Canto da Terra, um show com Caetano Veloso, Djavan, Chico Buarque, Lobão etc. Vários artistas fizeram um show por Rio Maria, então a imprensa toda tratou da reforma agrária. Naquele tempo, a reforma agrária era uma espécie de tema-tabu, conseguimos alguns tipos de mobilização que faziam com que, às vezes, o tema entrasse na pauta, esse show, por exemplo, propiciou isso. Depois levamos o Ângelo Antônio e a Letícia Sabatella ao sul do Pará, eles estavam no auge da fama, estavam terminando uma novela, e os fazendeiros ficaram doidos, queriam autógrafos. E o Ângelo Antônio e a Letícia Sabatella andavam abraçados com os ameaçados de morte. Era uma forma de dizer: tocar no ameaçado de morte era tocar neles. O Paulo Betti também foi com o Lula, o pessoal não estava querendo autógrafos do Lula, só do Paulo Betti. Também foram ao sul do Pará a Cristina Pereira e o Sérgio Mamberti. Existe um grupo de atores que tem sido solidário à questão agrária há um certo tempo. A idéia é

colocar a visibilidade dessas pessoas famosas a serviço das lutas sociais.

E como funciona o Movimento Humanos Direitos? Ricardo Rezende – O Movimento Humanos Direitos, criado sob inspiração de Marcos Winter, está no Rio de Janeiro e lança luzes sobre o movimento social. Sua prioridade tem sido o trabalho escravo, mas envolve também a questão do menor, a questão do índio, violência sexual contra menores, meio ambiente. E temos feito algumas ações dependendo da conjuntura. Por exemplo, quando houve a invasão do Iraque, o Movimento Humanos Direitos fez vinhetas pela paz, contra a guerra. Cerca de 30 atores e atrizes deram depoimentos, e a TV Globo veiculou essas vinhetas durante algumas semanas. No caso do assassinato da irmã Dorothy, outro exemplo, o grupo convocou a sociedade civil e fez uma manifestação no Centro do Rio de Janeiro.

Depois de Conceição do Araguaia, o senhor ficou em Rio Maria oito anos. Por que veio para o Rio de Janeiro? Ricardo Rezende – Queria estudar, estava há muitos anos lá e não conseguia estudar porque era ameaçado de morte e não queria sair sendo claramente ameaçado de morte para não dar a impressão de que estava fugindo. No último ano em que passei lá, apesar da insegurança, não houve nenhuma ameaça explícita, nenhum telefonema, nada, aí achei que era a hora que daria para eu sair.

Atualmente, o senhor também está envolvido na produção de um filme? Ricardo Rezende – Na verdade, são vários filmes. Um deles é sobre a vida de Expedito Ribeiro de Sousa, assassinado em Rio Maria, com os professores Beto Novaes, Adônia, Rosilene e Aida. Outro, sobre ameaçados de morte, com Emilio Gallo. Temos outro, que por enquanto é só um projeto, sobre traba-

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lho escravo, composto por cinco pequenos documentários. Além disso, outra atividade importante que desenvolvo no Rio é que ajudei a criar, com a participação da professora Gelba, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Escravo Contemporâneo, com um banco de dados e a nossa idéia é, através da pesquisa e do estudo dentro da universidade, auxiliar a sociedade civil e o Estado na erradicação do trabalho escravo, passar pistas para políticas públicas, inclusive.

Qual é a sua avaliação sobre a reação do governo Lula em relação ao caso da missionária Dorothy Stang? Ricardo Rezende – O governo às vezes me dá a impressão de viver uma situação de indefinição. Uma coisa é estar no Poder Executivo, outra é estar no Poder Legislativo. Pelo menos uma parcela do governo não sabe o que fazer, não tem propostas. Isso me pareceu claro quando houve a morte da irmã Dorothy. O atraso para tomar medidas foi um fato. O governo já sabia sobre a situação dos ameaçados há muito tempo. O ministro Nilmário Miranda – que me parece uma pessoa bastante séria – já estava convidado para ir à região. Estive no Rondon do Pará com d. Maria Joel, que também é ameaçada de morte, e ficamos impressionados com o clima de violência. O Movimento Humanos Direitos tentou de tudo para dar visibilidade ao que estava acontecendo. O ministro me falou durante o Fórum Social Mundial: “Quando soube que vocês estavam indo ao Rondon do Pará percebi que a situação era mais grave do que eu imaginava”. Ele foi, conversou com a d. Maria Joel e com outras pessoas ameaçadas, inclusive com a irmã Dorothy. No entanto, duas semanas depois, a irmã foi morta. Durante o velório, que foi realizado em Belém, telefonei para o José Batista, advogado da CPT que mora em Marabá e perguntei: “Batista, o que foi feito depois da passagem do ministro?”. Ele disse: “Por enquanto, nada”. Houve um atraso, uma lentidão. No fundo, acho que não é falta de interesse; me dá a impressão de uma perplexidade, de não saber bem como enfrentar. Ele não tem talvez os meios, os instrumentos. Estes são definidos por uma opção econômica do governo.

Qual seria um exemplo dessa imposição do fator econômico? Ricardo Rezende – A Polícia Federal está dizendo que não vai fazer fiscalizações de trabalho escravo porque a diária que os policiais recebem é tão baixa que teriam que pagar para trabalhar. Se não há fiscalização, o trabalho

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escravo vai crescer. Se a polícia não recebe diária, como vai proteger lavrador, que não tem comida nem cama, nem carro para oferecer? A Polícia Federal já não tem carro; sem diária, fica complicado. A falta de recursos econômicos, a decisão de cortar gastos cria um obstáculo também. É uma opção política de uma política econômica que resolve o problema da dívida externa mas não resolve os nossos problemas internos. Outra questão importante é a conjuntura de sustentação do governo. A bancada ruralista parece cada vez mais forte: em nome da governabilidade, cede-se tudo. O problema é até onde isso vai. A PEC [Proposta de Emenda Constitucional] que prevê a expropriação da propriedade de quem utilizar mão-de-obra escrava nunca foi à votação na Câmara dos Deputados. E quem presidia a Câmara dos Deputados era o João Paulo, do PT! O governo brasileiro jogou todas as cartas para aprovar o salário mínimo, mas não fez o mesmo para aprovar essa PEC. O salário mínimo é um problema conjuntural, todo ano temos essa discussão. A aprovação dessa PEC significaria uma segunda lei abolicionista. Em 1888 foi criada uma lei: é proibido trabalho escravo. Agora, poderia ser criada outra lei: quem usar mão-de-obra escrava perde a propriedade. Seria a criação de uma punição exemplar. O governo Lula seria reconhecido, seria uma referência por essa lei abolicionista. Mas acho que até nisso ele perde o bonde da história.

Essa emenda está na Câmara há mais de uma década, não? Ricardo Rezende – Sim, a primeira proposta de emenda constitucional foi feita em 1992; posteriormente, em 1996 ou 1997, passou pelo Senado. Agora está sendo rediscutida na Câmara dos Deputados. Significa que estamos de novo como se estivéssemos em 1992, voltamos à estaca zero. Agora, o presidente da casa, Severino Cavalcanti, diz que aqui não é França, ele tem uma posição que demonstra sua aliança com a Bancada Ruralista. Se já era difícil com o João Paulo, imagine agora! Vamos continuar fazendo pressões. Continuará sendo nossa prioridade. Mas sabemos que é uma luta que vai demandar muito tempo e esforço. Acho pouco provável que essa PEC seja aprovada, infelizmente.

Diante disso, sua expectativa em relação à reforma agrária também não é muito diferente? Ricardo Rezende – A reforma agrária é algo mais complexo do que a PEC, que inicial-


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mente eu imaginava ser mais simples. No caso da reforma agrária, é muito mais difícil, porque os interesses são maiores, a propriedade tem mais valor que a vida e a política agrária tem privilegiado projetos que visam à exportação, que visam ao preço de mercado. De fato, não sou muito otimista. Com o governo Lula, tivemos passos que foram além do governo Fernando Henrique Cardoso, mas muito abaixo da necessidade do país.

questões da Trindade, são questões de dogmas que em geral têm criado problemas maiores. São questões como a do aborto e do uso de preservativo que geram mais tensões internas na Igreja. Não sou teólogo, estudei teologia, evidentemente, mas minha especialização não é essa. Sou apaixonado pela teologia, pela Bíblia, dou cursos, mas trabalho, escrevo sobre outro tema, um tema que para a Igreja é menos complicado.

Participaram desta entrevista: AnaCris Bittencourt, Cândido Grzybowski, Dulce Pandolfi, Iracema Dantas e J. R. Ripper Fotos: Vanor Correia

O senhor não teve conflitos pessoais entre a hierarquia imposta pela Igreja e toda essa sua militância política? Ricardo Rezende – Não tive problemas dessa natureza, talvez tivesse tido em Juiz de Fora em 1976. Nunca quis perder tempo brigando dentro da Igreja, para mim, o problema era fora da Igreja, não dentro. Sempre procurei ter uma relação com quem tinha mais simpatia pela questão social, foi uma das razões para eu sair de Juiz de Fora e buscar uma igreja fora. Tive uma sorte enorme de acertar, peguei uma prelazia coordenada por d. Estêvão Cardoso, que tinha uma história e uma tradição de compromisso social e sempre me deu todo apoio. O bispo que o sucedeu, d. José Patrício, também tinha a mesma perspectiva. Muito mais do que um aliado, ele foi um incentivador, nunca tive problemas. Em relação à CNBB, também recebi todo apoio. Enquanto morava em Conceição do Araguaia, todas as vezes em que tive que ir a Brasília, era muito bem-recebido. Dom Luciano, que foi secretário-geral da CNBB, depois foi seu presidente, foi sempre supergeneroso. Muitas vezes, ele me hospedava no prédio da CNBB. A primeira coletiva de imprensa que falei do trabalho escravo foi em Brasília, na CNBB. Nunca tive problemas dessa natureza. Em 1980, a CNBB fez um dos documentos mais interessantes sobre a necessidade da reforma agrária no Brasil. É um documento muito lúcido e atual e foi aprovado, praticamente, por unanimidade. De mais de 300 bispos, talvez seis tenham votado contra. Nessa questão, nunca tive nenhuma dificuldade.

Então, fé e política podem ser conciliadas? Ricardo Rezende – Os problemas maiores entre padres e a hierarquia da Igreja, na maior parte das vezes, não se referem a posições de natureza política. É claro que existe um efeito político, mas em geral são questões que envolvem aspectos morais e teológicos. Questões ligadas à teologia propriamente, por exemplo, se Jesus teve ou não dúvidas diante da morte,

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A modéstia do Moreira Sampaio – nome fictício –, advogado bem-sucedido que atende a uma dezena de empresas de médio porte, bom marido, ótimo pai, cinéfilo com veleidades literárias, tem a vida que planejou e soube construí-la com esforço e dedicação. O senso comum o chamaria de um homem realizado, sortudo, ou, pelo menos, de aquele que não tem do que reclamar. Eis que, tirando-o da comodidade de um cotidiano organizado para poupar-lhe surpresas, a vida lhe impõe o imprevisível ou, dependendo de como se olhe, lhe oferece a oportunidade de uma extraordinária experiência. Ao deixar o escritório num fim de tarde e seguir para o estacionamento, desaba a marquise de um prédio antigo, atinge duas pessoas e passa rente ao seu corpo, a dez centímetros de esmagá-lo. Um susto. Ao mesmo tempo que se dá conta de que escapou ileso, Sampaio choca-se com o estado dos que foram atingidos. Alguém põe uma garrafa de água na sua mão trêmula, ele bebe e começa a se afastar meio tonto. Sai dali sem um arranhão, mas tal proximidade da morte jamais lhe ocorrera nos 45 anos de vida. O que para muitas pessoas seria moti-

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vo de comemoração, de agradecer a Deus, de fazer penitência ou um grande gesto de filantropia, para Sampaio foi uma revelação, uma descoberta que o deixou abalado. Descobriu que aqueles dez centímetros, os insignificantes dez centímetros, menos que a distância da ponta do polegar à do indicador, o separaram da vida, de estar vivo, como agora estava, e não existir mais, simplesmente não estar no mundo. Dez centímetros, um triz, um nada entre ser e não-ser. Não que não estivesse contente – claro que estava, teve arrepios ao sentir-se poupado, achou até que algum privilégio o tocara e agradeceu com fervor por merecer continuar por mais tempo na Terra, convivendo com as pessoas, amando e sendo amado pela família, amigos e amigas. Para ele, o simples fato de ainda estar vivo era motivo de alegria e o inundava de gratidão. No entanto, embora contente e agradecido, Sampaio não consegue esquecer o momento do acontecimento, aquele instante terrível. E as imagens que não lhe saíam da cabeça davam mais nitidez à revelação


que o deixara chocado. Deixou-se possuir pelo sentimento de que a vida é apenas um acaso e que nos pode ser tirada a qualquer momento, de surpresa, sem aviso, motivo ou explicação, por um acaso, um mero acaso sem qualquer importância. Aos 45 anos de idade, em plena colheita do que plantara na profissão e na família, o advogado Moreira Sampaio realizara, no estômago e na corrente sanguínea, a idéia da vulnerabilidade humana. E essa consciência o deixara assustado, estarrecido, em pânico. Conheço o Sampaio. Bem sei que não é infantil nem imaturo. Já vivenciara a perda do pai, convive com longa doença da mãe idosa, experimentou a sensação da anestesia geral numa cirurgia, na faculdade andou lendo sobre criminalística e medicina legal, sei que leu Sartre e entendeu que tudo na vida é contingente. Mas diz ele: “Nada se compara com o que senti na pele. Parece que abriram a cortina de um palco e me deixaram ver os mecanismos que movem a vida. E, ao ver, descobri que tudo o que acontece é por mero acaso. A-ca-so! Não há nenhuma ordem, nenhuma idéia de justiça ou de merecimento. Tudo vem do acaso. Os homens morrem ao acaso. Assim como nascem ao acaso, claro. É um grande caos. A gente cria as leis, a ordem, a educação, a segu-

rança, a propriedade, o conhecimento, enfim, cria tudo para organizar a vida, entender a vida – e nada há a organizar nem entender na morte. Tentar entender e organizar a vida é uma grande bobagem”. Sampaio não esconde um misto de ressentimento e revolta, dá a impressão de que se sente traído, de que o enganaram, embora não nomeie os responsáveis – nem pode, se inexistem. O advogado Moreira Sampaio entende que a queda da marquise, que não o matou nem o feriu, lhe concedeu, como um presente, uma vida nova. E ele quer viver essa nova vida de uma maneira, de fato, nova. Acha até que a sua vida anterior, de homem realizado, sortudo, que não tem do que se queixar, pertence já a uma outra pessoa que, essa sim, talvez tenha morrido. Agora, quer a vulnerabilidade presente no cotidiano. Viver como se a qualquer momento uma marquise pudesse desabar sobre a sua cabeça. Para descobrir essa vida, pôs na balança, de um lado, a profissão, a família, os bens, a segurança; do outro, a intensidade, o risco, o perigo, a emoção, o efêmero, a liberdade. Quando perguntei para que lado pendia a balança, ele silenciou e sorriu. Com a modéstia de um sábio.

Alcione Araújo alcionaraujo@uol.com.br

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O desafio do Fórum Social Mundial – Um modo de ver Chico Whitaker Editora Fundação Perseu Abramo / Edições Loyola 264 págs. O Fórum Social Mundial (FSM) realizou em janeiro sua quinta edição, reunindo mais de 150 mil pessoas e influindo até mesmo nas discussões em Davos. O livro de Chico Whitaker, um dos criadores e principais organizadores do FSM, é um oportuno balanço desse processo, contando um pouco da história e examinando as principais questões que o Fórum enfrenta atualmente. O autor lembra que a idéia original do FSM era levantar a bandeira da utopia de “um outro mundo possível” diante do “pensamento único” do liberalismo dominante na década de 1990. Reunindo lideranças sociais e intelectuais, o Fórum surgiu como um es-

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paço aberto para trocar idéias, experiências, visões de mundo. Ele não é um partido ou movimento e “não mudará o mundo; quem o mudará será a sociedade. O Fórum cumpre, na luta pela mudança, um papel unicamente intermediário” (p. 21). Esse papel – que pode ser definido como um espaço, e não como um movimento ou coalizão de partidos e organizações – nem sempre é compreendido pelo público e pela imprensa, que às vezes cobram do FSM manifestos e listas de propostas, objetivos que nunca foram os seus. Na análise de Whitaker, o eixo central é a adesão à Carta de Princípios do Fórum e a busca de alternativas ao liberalismo, a insatisfação com o mundo atual, que ele chama de “insurgência cidadã”. Contudo, não é qualquer organização que pode fazer parte do FSM. Grupos que utilizem a violência, como terroristas ou guerrilheiros, estão proibidos. O mesmo vale para partidos e governos, que podem participar somente de maneira secundária, a convite da organização de uma atividade. Os critérios provocam discussão – as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farcs), por exemplo, insistiram em participar, sem sucesso – mas funcionam para preservar o caráter democrático do Fórum. Nesse sentido também pode se compreender a regra de decisão por consenso, estabelecida no Conselho Internacional do Fórum. Se, por um lado, ela torna as negociações e articulações mais lentas e difíceis, por outro tem a vantagem de assegurar que todos os lados envolvidos terão oportunidade de expor suas razões. O autor destaca a importância do princípio da co-responsabilidade entre participantes e organização, apostando na autogestão como maneira de preparar as atividades do FSM e desenvolvendo temas caros ao pensamento e à prática libertária: “Autonomia e autogestão têm que ser aprendidas, para que


possamos superar o infantilismo a que o sistema capitalista nos empurra. A experiência de autogerir atividades, num Fórum marcado por diferentes tipos de diversidade, entre as quais a do ritmo da caminhada de cada um, transforma o Fórum Social Mundial também numa grande escola de crescimento cidadão” (p. 49). A ênfase na autogestão apontou caminhos que, num primeiro momento, não haviam sido considerados pela organização do FSM. Um exemplo foi a decisão de permitir não apenas delegados(as) das instituições participantes, mas também liberar a inscrição de pessoas que poderiam ou não ter vínculos com movimentos sociais, mas se sentiram estimuladas a se reunir no Fórum. Uma boa parte desse grupo é formado por jovens que contribuem para dar ao FSM um inconfundível traço de alegria e mesmo de irreverência, às vezes mostrado como caricatura, como uma versão contemporânea de Woodstock. O autor observa que, para além dos aspectos mais chamativos para a imprensa (como as roupas, o comportamento e a música), a participação da nova geração rendeu contribuições decisivas, como a formação do Acampamento Intercontinental da Juventude. Outro ponto que chama a atenção de Whitaker é a retomada de valores ligados à espiritualidade: “participantes de vários países explicitaram claramente, em diversas ocasiões e de diversas maneiras, a necessidade de uma ‘mudança interior’ como condição para se conseguir construir o ‘outro mundo possível’” (p. 114). O autor identifica esse sentimento com os movimentos católicos progressistas da década de 1950 e indica que é algo também importante na agenda de correntes religiosas em diversos credos. A diversidade é um elemento central no FSM e, desde o princípio, havia a convicção de que o Fórum não poderia ficar restrito a Porto Alegre. Whitaker examina em detalhes o Fórum Social Mundial de 2004, realizado

em Mumbai, na Índia, e o verdadeiro choque cultural que o evento provocou nas pessoas vindas do Ocidente, com o despertar de temas como a discriminação das castas e a mobilização dos(as) dalits, os(as) intocáveis. Mumbai também é um marco pela importância dada às questões culturais, que passam a ganhar mais espaço. Igualmente relevante é a multiplicação dos fóruns sociais regionais, que têm ocorrido no âmbito de países (Brasil, Chile etc.), continentes (Europa, América), regiões geográficas subnacionais (Nordeste do Brasil) ou transnacionais (Amazônia, Mediterrâneo). Já existe o projeto de realizar uma edição do Fórum na África, e Whitaker levanta a hipótese de expandir o espaço para outros cantos do mundo, como o Oriente Médio e a Europa Oriental. É uma oportunidade para mobilizar militantes desses lugares, que muitas vezes não têm os recursos necessários para visitar países distantes. O autor apresenta seu modo de ver o FSM de forma bem organizada e de fácil consulta, numa obra que se torna referência para conhecer o desenvolvimento do Fórum Social Mundial. No entanto, o texto poderia ter sido mais bem editado: em diversas ocasiões, Whitaker transcreve entrevistas que concedeu à imprensa brasileira e estrangeira, num formato que se torna cansativo pela freqüência com que é repetido. O livro contém cerca de cem páginas de anexos que incluem documentos importantes no Fórum Social Mundial, como a Carta de Princípios e diversos artigos que fazem balanços do processo e examinam seus principais impactos e perspectivas. São informações valiosas para quem quer se informar sobre os debates que influem sobre os rumos do FSM. Maurício Santoro Jornalista e cientista social,

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e agricultoras, trabalhadores e trabalhadoras do campo, povos indígenas e afrodescendentes, da Ásia, Europa, América e África [...] que, por princípio, estamos em oposição total ao modelo neoliberal, que mata e destrói culturas, povos e famílias camponesas no mundo todo. Vimos como nossas organizações e nosso movimento cresceu, se fortaleceu e tem conseguido pôr o movimento camponês no centro das lutas populares.

O Banco Mundial e a terra: ofensiva e resistência na América Latina, África e Ásia Mônica Dias Martins (Org.) Editora Viramundo 223 págs. Os movimentos sociais em luta pela terra têm ampliado suas estratégias de ações, quer no plano nacional quer no plano mundial. A Via Campesina, desde 1992, é marco fundamental desse processo de luta por direitos dos movimentos sociais do mundo todo. Em sua Declaração da 4ª Conferência Internacional, a Via Campesina afirmou-se como um movimento mundial de organizações de mulheres rurais, camponeses, camponesas, pequenos agricultores

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Denunciaram também “o papel de guardiões do capital” que representam o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), e que está sendo igualmente assumido pela Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad) e Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Além dos movimentos sociais que estão em luta por direitos, aparecem também as organizações de apoio internacionais e nacionais. A Foodfirst Information & Action Network (Fian) e a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos do Brasil são duas delas. A Fian constituiu-se como “uma organização internacional de direitos humanos que centra seu trabalho na realização do direito à alimentação, reconhecido pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais [...]”, que tem aglutinado “[...] uma rede de organizações nacionais com membros em mais de 60 países da África, América, Ásia e Europa”. A Rede Social de Justiça e Direitos Humanos nasceu como “resultado da experiência de trabalho com dezenas de organizações não-governamentais e movimentos sociais” e tem como “objetivo responder a uma demanda de ação e articulação de denúncias de violações de direitos humanos ocorridas no Brasil”. Essa posição combativa da Via Campesina e de seus parceiros colocou para o


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neoliberalismo e para os órgãos internacionais a necessidade de opor rapidamente políticas públicas de tentativa de esvaziamento dessas bandeiras. Dessa forma, o Banco Mundial iniciou várias experiências de implantação de políticas de reforma agrária no interior dos mecanismos de mercado. As experiências sobre essas políticas do Banco Mundial são objetos centrais do livro, organizado por Mônica Dias Martins, pesquisadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, e apresentado por Maria Luisa Mendonça e Marcelo Rezende, ambos integrantes da Rede. O prefácio foi escrito pelo brilhante estudioso da reforma agrária, Plinio de Arruda Sampaio, atual presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra). O primeiro artigo do livro, “O bom, o mau e o feio: a política fundiária do Banco Mundial”, é de autoria de Peter Rosset, co-diretor do Institute for Food and Development Policy, e discute as políticas globais para o campo do Banco Mundial. Os demais textos estão subdivididos em quatro partes. Na primeira, estão os desafios da reforma agrária no Brasil com os artigos “O ‘Novo Mundo Rural’”, de Manuel Domingos Neto (vice-presidente do CNPq); “A terra por uma cédula: estudo sobre a ‘reforma agrária de mercado’”, de Sérgio Sauer (doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília); “Aprendendo a participar”, de Mônica Dias Martins; e “A contra-reforma agrária no Brasil”, de Marcelo Rezende e Maria Luisa Mendonça. Todos analisam criticamente a aplicação no Brasil da política da reforma agrária de mercado do Banco Mundial. Na segunda parte, “Insurgência e reforma agrária na América Latina”, estão os três textos sobre as experiências em outros países latino-americanos: “Colômbia: mercado de terras ou reforma agrária, eis a questão”, de Héctor Mondragón (economista e assessor da Federação Nacional Sindical Unitária

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Agropecuária da Colômbia); “Acordo de paz e fundo de terras na Guatemala”, de Laura Saldivar Tanaka e Hannah Wittman (pesquisadoras do Instituto Food First); e “A reforma agrária mexicana: do ejido à privatização”, de Laura Saldivar Tanaka (também pesquisadora do instituto). Na terceira parte, questões relativas ao racismo e à reforma agrária na África são discutidas nos textos “A experiência sul-africana de reforma agrária”, de Wellington D. Thwala (coordenador do Comitê Nacional da Terra da África do Sul), e “Reforma agrária e ocupação de terra no Zimbábue”, de Tom Lebert (também do comitê). A quarta e última parte traz a temática “Pobreza e reforma agrária na Ásia” com o trabalho “Problemas e desafios da reforma agrária na Índia”, de Minar Pimple (pesquisador da Foco no Sul Global), e o estudo “Titulação da terra na Tailândia”, de Rebeca Leonard e Kingkorn Narintarakul Na Ayutthaya (ambas da Fundação do Desenvolvimento do Norte, da Tailândia). As políticas do Banco Mundial relativas à reforma agrária de mercado são dissecadas para revelar ao mundo seu caráter de classe e sua alternativa de mudar para nada mudar. Esse envolvimento do Banco com as questões relativas à terra e à produção comunitária e familiar tem o objetivo de desenvolver políticas públicas que visam beneficiar quem detém a concentração da terra, deixando para camponeses, camponesas, indígenas e demais povos africanos e asiáticos a dívida e o pagamento dos juros ao Banco Mundial. O livro é, pois, mais um instrumento de combate que vem se somar à decisão da Via Campesina e da Fian internacional de denunciar o “Banco Mundial por promover políticas de contra-reforma agrária que têm feito da terra uma mera mercadoria reconcentrando-a em poucas mãos e por ser cúmplice das massivas e sistemáticas violações dos direitos humanos

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Ib a s e opinião Cássio Martorelli*

Software livre,

O direito de escolha deve estar presente em todos os momentos de nossas vidas, em relação ao caminho que fazemos para ir e vir, o uso de nossas roupas, o que comemos, o que pensamos, o time pelo qual torcemos e o que estudamos. E também deve se fazer presente no software que usamos em nossos computadores. Neste artigo, tentarei buscar definições e idéias sobre software livre (SL), tema presente hoje em muitos jornais, revistas, na mídia em geral, até mesmo não-especializada, e também em nossos lares e instituições, em fóruns especializados e no contexto global. Há anos no Brasil, e também em boa parte do mundo, principalmente nos países em desenvolvimento, temos sido forçados(as) a utilizar o mesmo sistema operacional e os mesmos aplicativos em nossos computadores, em casa, nos pontos de acessos, cibercafés, e no ambiente de trabalho. Até então, não tínhamos alternativas de uso de sistemas de computadores diferentes da monopolização de softwares que nos foi passada desde o surgimento dessa

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Nossa questão de aprisionamento no uso de software está diretamente relacionada aos problemas culturais que enfrentamos no dia-a-dia. A mesma resistência que temos quanto a aceitar o que é diferente ou novo nos aspectos sociais, econômicos e étnicos também existe quando falamos em SL. Essa herança cultural deve ser rompida a partir do momento que buscarmos alternativas quanto à escolha do software que podemos usar. O movimento de SL baseia-se no princípio do compartilhamento do conhecimento e na solidariedade praticada pela inteligência coletiva conectada na rede mundial de computadores. Na era da informação, o acesso e o direito à comunicação em rede aparecem como a nova liberdade de expressão e cidadania. “Somos cada vez mais uma sociedade tecnodependente. O controle da tecnologia torna-se vital e dita as possibilidades de desenvolvimento e de inclusão social. As funções e processos principais da era informacional estão sendo cada vez mais organizados em rede e através da Internet”.1 Analisando os termos liberdade de expressão e conhecimento compartilhado, há muitas idéias e conceitos disponíveis na Internet. O termo software livre se refere aos softwares fornecidos ao público com a liberdade de executar, estudar, modificar e repassar (com ou sem alterações), sem que seja preciso, para isso, pedir permissão à pessoa que criou o programa. Em geral, SL se assemelha a domínio público – na verdade, software de domínio público também entra no conceito de SL. Segundo definição da Free Software Foundation (www.fsf.org), o software livre se refere a quatro tipos de liberdade: 1 de executar o programa para qualquer propósito; 2 de estudar como o programa funciona e adaptá-lo às suas necessidades (acesso ao código-fonte é um prerrequisito para essa liberdade); 3 de redistribuir cópias de modo que uma

pessoa possa ajudar outra; 4 de aperfeiçoar o programa e liberar seus aperfeiçoamentos, de modo que toda a comunidade se beneficie (acesso ao código-fonte também é um prerrequisito para essa liberdade). É importante notar que os quatro itens não fazem referência a custos ou preços. O fato de se cobrar ou não pela distribuição ou pela licença de uso do software não interfere no conceito de SL. Nada impede que uma cópia adquirida seja revendida, seja modificada ou não. De fato, o que garante a propagação de direitos em um SL é um conceito conhecido como copyleft, presente apenas em algumas licenças. Um SL sem copyleft pode se tornar propriedade de uma pessoa. Já um SL protegido por uma licença que ofereça copyleft deverá ser distribuído sob a mesma licença, ou seja, repassando os direitos. Em todo caso, não é necessário redistribuir um SL modificado. A liberdade de utilizar um programa significa que qualquer pessoa, física ou jurídica, pode utilizar o software em qualquer tipo de sistema computacional, para qualquer tipo de trabalho ou atividade, sem precisar comunicar ao desenvolvedor ou a qualquer outra entidade em especial. A liberdade de redistribuir deve incluir a possibilidade de se repassar tanto os códigos-fonte como os arquivos binários gerados da compilação desses códigos, quando isso é possível – seja o programa original, seja uma versão modificada. Não se pode, nem há necessidade, exigir autorização da pessoa que criou o software para a sua redistribuição, as licenças de SL já dão essa prévia autorização. Para modificar o software (para uso particular ou distribuição), é necessário ter o código – outro prerrequisito para garantir a liberdade do SL. Caso não seja distribuído com os executáveis, o código deve ser disponibilizado em local de onde possa ser baixado ou entregue ao(à) usuário(a), se solicitado,

1 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Paz e Terra, 1999.

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sem custos adicionais (ou apenas se cobrando transporte e mídia). Para que essas liberdades sejam reais, têm que ser irrevogáveis. Se a pessoa que desenvolveu o programa detiver o poder de revogar a licença, mesmo que o(a) usuário(a) não tenha dado motivo, o software não pode ser considerado livre. Desenvolvedores(as) de software na década de 1970 freqüentemente compartilhavam seus programas de uma maneira similar aos princípios utilizados hoje com o SL. No fim dessa década, as empresas começaram a impor restrições ao público usuário, com o uso de con­ tratos de licença de software. Em 1984, Richard Stallman iniciou o projeto GNU (GNU is Not Unix), fundan­do a Free Software Foun­d ation. Stall­man introduziu os conceitos de SL e copyleft, os quais foram especificamente desenvolvidos para dar ao público liberdade e restringir as possibilidades de “propriedade”. Em 1991, o sis­ tema operacional já estava quase pronto, mas faltava o principal, o kernel do sistema operacional. O grupo liderado por Stallman estava desenvolvendo um kernel chamado Hurd. Porém, naquele ano, ocorreu algo que mudou o rumo da história da informática: o jovem finlandês Linus Torvalds conseguiu criar um kernel que poderia usar todas as peças do sistema operacional GNU. Esse kernel ficou conhecido como Linux, contração de Linus e Unix. Atualmente, o sistema operacional GNU com o kernel Linux é conhecido como GNU/Linux ou apenas Linux. Linus Torvalds foi o responsável pelo mascote oficial do Linux, chamado de Tux e perfeitamente aceito pela comunidade de amantes do SL.

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Resposta coletiva O cenário internacional na área de Tecnologia da Informação (TI) aponta para um processo cada vez mais agudo de disputa entre propostas conflitantes em relação à apropriação e ao tratamento de informações com a utilização de meios computacionais. Hoje, o monopólio exercido por empresas de software no mundo vulnerabiliza as instituições, e mesmo governos, às políticas dessas empresas. Esse quadro se manifesta de modo especialmente forte, mas não exclusivamente, nos preços, na estrutura de programação e atualizações, na segurança e no sigilo das informações. Sociedade civil, empresas públicas e privadas, universidades, Estados nacionais e entusiastas em tecnologia não assistem passivamente à fragilização de sua autonomia, fazendo crescer o movimento dos adeptos ao SL. Ao contrário dos programas de empresas proprietárias, que possuem os códigos de comando fechados para impedir modificações por parte de sua clientela, os SL permitem que qualquer pessoa faça uma cópia, use-a como quiser e a distribua, na forma original ou com modificações, sem pagar royalties ou licenças. Os SL já fazem parte da rotina de instituições como Universidade de São Paulo (USP), Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal (CEF) e de vários órgãos, ministérios e secretarias do governo federal. No exterior, mostram resultado na Bolsa de Valores de Nova York, Deutsch Bank, IBM, nos servidores do maior sítio de busca do mundo, o Google, na Casa Branca, em prefeituras como de Munique – a terceira mais rica da Alemanha, que, em 2003, migrou 14 mil computadores para Gnu/Linux – e a de Rio das Ostras, no Rio de Janeiro. Essas experiências apontam a importância que ganhou o tema e o esforço aplicado no desenvolvimento e uso de novas ferramentas que substituam os programas proprietários pagos. Trata-se de uma tendência global. Além de países como Alemanha, França, Espanha e Índia, há um número crescente de empresas adotando essa nova forma de fazer negócio na área de TI. O governo federal brasileiro está sendo o carro-chefe desse embate. Disposto a acabar com o monopólio no setor de informática, lançou em junho de 2004 uma cartilha que determina a troca do sistema operacional e aplicativos de programas proprietários para


Software livre, conhecimento compartilhado na rede

Experiência do Ibase Historicamente, o Ibase se caracteriza, entre as ONGs nacionais, por ser uma instituição pioneira na utilização de meios computacionais como ferramenta de trabalho de seu corpo de funcioná­rios(as) e no uso da Internet. Mais recentemente, surgiu a idéia de discutir uma política institucional de TI com enfoque na utilização de plataforma livre. Como objetivo específico, agregar à imagem do Ibase o fato de ser uma instituição que apóia o princípio do software livre e subordina-o à missão institucional. A atenção maior desse embate tem sido apresentar as oportunidades políticas que representam a escolha de uma plataforma livre de programas, as implicações institucionais, os custos e os benefícios para cada um(a) de nós, funcionários(as) e cida­dãos(ãs). Adicionalmente, o Ibase otimiza seus recursos ao não os gastar com licenças de programas, direcionando-os para o treinamento dos(as) funcionários(as) e o aumento de sua capacidade produtiva e atualização dos equipamentos físicos. Estamos conscientes de que tal mudança institucional envolve um processo de negociação, e não uma imposição. É fundamental que as pessoas se sintam contempladas. Para tanto, deve existir

a compreensão de que tanto a implementação de um projeto dessa grandeza como as etapas que se seguem à sua implementação são passíveis de alterações, sugestões e negociação para ser mais bem absorvido pelo conjunto da instituição. Se, em um primeiro momento, poderá haver resistências, é importante que as pessoas dêem chance ao novo e que tenham a possibilidade de treinamento para uma melhor absorção do tema. A mudança tem como princípios básicos a liberdade de escolha dos programas ou softwares a serem usados, a quebra da monopolização dos gigantes internacionais de software, o incentivo e apoio à pesquisa voltada à tecnologia da informação, e ao desenvolvimento de softwares nacionais, a segurança, a otimização e a redução nos custos com TI a médio e longo prazos. Ao optar por essa política institucional, o Ibase poderá aproveitar a oportunidade para ocupar um espaço maior também na discussão sobre a utilidade e adequação desse tipo de paradigma para outras organizações da sociedade civil e entre instâncias de decisão e diálogo com o poder público.

livre em toda administração federal. Significa que o governo deixará de gastar, a longo prazo, pelo menos R$ 80 milhões por ano, pagos em royalties a uma única empresa líder de mercado. Significa também que essa migração encadeará uma crescente revolução verticalizada nos estados, municípios, entidades e empresas relacionadas com o governo e também a sociedade civil. Estimulada pela adesão acelerada ao SL por parte de órgãos e autarquias públicas, que proporciona reduções significativas de custo, a demanda por mão-de-obra especializada em Linux nas áreas do governo federal está crescendo. Um programa de desenvolvimento de TI, especialmente orientado à inclusão digital, educação e capacitação técnica, pode ser um ponto de partida efetivo para consolidar uma indústria de hardware e software que agregue valor à economia nacional, baseado em equipamentos otimizados e softwares não-proprietários. Recente levantamento realizado no Brasil pela Impacta Pesquisas de Mercado (IPM), aplicado em 50 grandes empresas e 50 médias empresas da iniciativa privada –

O certo é que passaremos por muitas mudanças, experiências positivas e negativas, conflitos e novidades para que, em futuro próximo, possamos colher bons fru­tos desse processo e alavancar a construção de uma sociedade mais justa e igualitária no mundo e para nós brasi­ lei­ros(as) e ibaseanos(as). Atualmente, estamos em processo de migração dos softwares de escritório, navegadores, clientes de e-mail e sistemas operacionais da plataforma proprietária para livre. Iniciamos, no início de 2004, um projeto chamado “Ibase Plataforma Livre” e estamos em pleno desenvolvimento. O principal fator para avançarmos é a absorção da idéia pela instituição e pelas outras pessoas ligadas a ela. O corpo funcional por completo deve atuar junto com o setor de TI para que, durante o processo, possamos alcançar os objetivos propostos e reduzir os riscos e problemas de percurso. O cenário futuro que sugerimos é de uma instituição que priorize a utilização e a difusão dos programas livres, bem como mantenha a comunicação com o mundo externo.

todas usuárias de serviços de informática que operam no país –, mostra o impacto dos programas livres no mercado nacional. O SL Linux já é utilizado por 38% das médias e grandes empresas, com vantagens de custos. Pelo menos 85% das empresas que trabalham com Linux no Brasil não têm certificação técnica, como ocorre nos ambientes de software proprietários. É um sinal de que o mercado de software livre Linux ainda não amadureceu, mas tem muito a crescer. Isso se deve ao fato de que especialistas em Linux são, na sua maioria, jovens que se utilizam da comunidade de SL na Internet e seus milhares de sites para aprender e trocar informações. Basta fazer uma busca por “linux” no Google (www.google.com.br) e se admirar com o resultado de quase 13 milhões de links relacionados na propriedade “Web” e quase 1 milhão na propriedade “somente páginas do Brasil”. No Brasil, a entidade federal responsável pelo crescimento se chama Instituto de Tecnologia da Informação (ITI), uma au­tarquia vinculada à Casa Civil da Presidência da República, que faz o papel de autoridade certificadora raiz da certificação digital (ICP-Brasil). O órgão

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* Cássio Martorelli Administrador da Rede Local/TI do Ibase cassio@ibase.br

é encarregado de rever as políticas gerais da área de TI do governo brasileiro e de incentivar a adoção do software livre em autarquias públicas. Segundo o ITI, há pequenos institutos com cem computadores, mas também grandes ministérios e empresas estatais. O Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), maior empresa de TI do governo federal, com mais de 8 mil funcionários(as), criou uma força-tarefa para executar o processo de migração de 60% de suas estações de trabalho (aproximadamente 2,5 mil computadores) para o sistema operacional GNU/Linux.

Fóruns internacionais Desde o surgimento do processo Fórum Social Mundial (FSM), em 2001, foi na edição de 2005 que o SL, a sociedade da informação, a revolução digital e a liberdade do conhecimento ganharam mais espaço na pauta do evento. No ano passado, em Mumbai, Índia, a organização já havia colocado em pauta a prática durante o Fórum, mas somente no espaço destinado à imprensa. Durante o FSM 2005, o tema já estava mais amadurecido e pôde ser planejado com antecedência. Desta vez, todos os computadores utilizaram programa com o código aberto – tanto sala de imprensa como em pontos de acesso. A organização do FSM 2005 destinou um eixo temático chamado “Pensamento próprio, reapropriação e socialização dos saberes, conhecimentos e tecnologias”. Várias experiências de inclusão digital, de adoção do software livre e de mudança do conceito (e da gestão) da propriedade intelectual foram apresentadas em Porto Alegre, assim como houve debates sobre o impacto da revolução digital em todos os campos. No Acampamento Intercontinental da Juventude, foi montado o Laboratório de Conhecimento Livre – um espaço de produção digital em software livre. Construído com paredes de barro, capim e bambu, com o chão forrado de grama – princípios da chamada bioarquitetura para reduzir o impacto ambiental –, o Laboratório de Conhecimento Livre possuía computadores conectados à Internet para incentivar a produção de vídeos e programas de rádio. Na minha opinião, esse foi o principal local de realização do SL, tanto na teoria como na prática. Muitas oficinas, palestras e cursos foram realizados para o pessoal acampado e para quem estivesse disposto(a) a conhecer formas alternativas de criação de inúmeros

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assuntos ligados ao tema do SL. Para abordar o tema durante o FSM 2005, o Ibase organizou a oficina “Processo de migração da plataforma proprietária para livre e seus aspectos reais”. O encontro teve como palestrantes Carlos Afonso, da Rede de Informações do Terceiro Setor (Rits); Cláudio Ferreira Filho, do Projeto OpenOffice.org.br; Sophie Gosselin, da organização francesa Nomad; e João Cassino, representante do ITI. O objetivo da oficina foi debater o processo, os problemas e soluções na migração de plataformas. A atividade também buscou compartilhar experiências e mostrar ao público participante aspectos concretos, políticos e técnicos, planejamento e prática atual de uma migração baseada em software livre, em governos, ONGs, universidades, empresas etc. Não foi a primeira vez que Porto Alegre foi palco de discussões sobre SL. Em junho de 2004, 5 mil pessoas representando 35 países estiveram presentes ao 5º Fórum Internacional de Software Livre. Foi uma oportunidade singular de presenciar discussões em torno do tema e suas nuanças, levando-nos a refletir sobre conhecimento compartilhado, solidariedade e até mesmo o entusiasmo coletivo de desenvolvedores(as), programadores(as), entusiastas e amantes dessa causa. A vedete do encontro foi o Creative Commons/CC (www.creativecommnons.org), cuja característica principal é a idéia de que toda obra seja livre na distribuição, mas que sua autoria seja mantida. O CC possui vários tipos de licenciamento sobre as obras criadas. Vale dar uma passada no site e pesquisar melhor. Para quem gosta de áudio e vídeo, é possível baixar vários arquivos licenciados. O próximo fórum já está marcado: será mais uma vez em Porto Alegre, de 1º a 4 de junho. O Comitê Organizador recebeu, até agora, cerca de 300 propostas de palestras que pretendem abordar temas como banco de dados, casos de sucesso, comunidade, desenvolvimento, desktop, inclusão digital/social, política/filosofia, redes, segurança e governo. O que não falta é assunto interessante. Para quem quer se envolver com o tema, é uma ótima oportunidade de conhecer a comunidade SL de perto, apreender conhecimentos e trocar experiências para projetos pessoais e institucionais. A seguir, uma tabela com os principais programas utilizados em softwares livres.


Software livre, conhecimento compartilhado na rede

Os softwares mais usados O que faz Nome

Links (gratuitamente)

Sistema operacional GNU/Linux FreeBSD OpenBSD

http://www.linux.org http://www.freebsd.org http://www.openbsd.org.br

Servidor Web

http://www.apache.org

Apache (2/3 do mercado internacional)

Versões de Linux Debian Slackware Conectiva Mandrake Kurumin Red Hat

http://www.debian.org.br http://www.slackware-brasil.com.br http://www.conectiva.com.br http://www.mandrakelinux.com/pt-BR http://www.guiadohardware.net/kurumin http://www.redhat.com

Pacote escritório OpenOffice.org Koffice

http://www.openoffice.org.br http://www.kde.org

Programa gráfico

http://www.gimp.org

GIMP

Navegador Internet Mozilla Konqueror Galeon

http://www.mozilla.org http://www.kde.org http://www.galeon.org

Cliente de e-mail Evolution Kmail

http://www.ximian.com/products/evolution http://www.kde.org

Banco de dados MySql PostgreeSQL

http://www.mysql.org http://www.postgresql.org.br

Glossário Copyleft – A maioria das licenças usadas na publicação de software livre permite que os programas sejam modificados e redistribuídos. Essas práticas são geralmente proibidas pela legislação internacional de copyright, que tenta impedir que alterações e cópias sejam efetuadas sem prévia autorização. As licenças que acompanham software livre fazem uso da legislação de copyright para impedir utilização não-autorizada, mas essas licenças definem clara e explicitamente as condições sob as quais cópias, modificações e redistribuições podem ser efetuadas, para garantir as liberdades de modificar e redistribuir o software assim licenciado. A essa versão de copyright dá-se o nome de copyleft. GPL – A Licença Pública Geral acompanha os pacotes distribuídos pelo Projeto GNU e mais uma variedade de softwares, incluindo o núcleo do sistema operacional Linux. A formulação da GPL é tal que, em vez de limitar a distribuição do software por ela protegido, de fato impede que esse software seja integrado em software proprietário. A GPL é baseada na legislação internacional de copyright, o que deve garantir cobertura legal para o software licenciado com a GPL. (Veja

também a recém-publicada licença CC-GNU GPL [Brasil].) Software em domínio público – Significa software sem copyright. Alguns tipos de cópia, ou versões modificadas, podem não ser livres porque o(a) autor(a) permite que restrições adicionais sejam impostas na redistribuição do original ou de trabalhos derivados. Software semilivre – Apesar de não ser livre, é concedida permissão para que indivíduos o usem, copiem, distribuam e modifiquem, incluindo a distribuição de versões modificadas, desde que o façam sem o propósito de auferir lucros. Exemplos de softwares semilivres são as primeiras versões do Internet Explorer da Microsoft, algumas versões dos browsers da Netscape e o StarOffice. Freeware – O termo não possui uma definição amplamente aceita, mas é usado com programas que permitem a redistribuição, mas não a modificação, e seu código-fonte não é disponibilizado. Esses programas não são considerados softwares livres. Shareware – Software disponibilizado com permissão para que seja redistribuído, mas sua utilização implica o pagamento

pela licença. Geralmente, o código-fonte não é disponibilizado, portanto modificações são impossíveis. Software proprietário – É aquele cuja cópia, redistribuição ou modificação é, em alguma medida, proibida pelo proprietário. Para usar, copiar ou redistribuir, de­ve-se solicitar permissão ou pagar. Software comercial – Desenvolvido por uma empresa com o objetivo de lucrar com sua utilização. Comercial e proprietário não significam o mesmo. A maioria dos softwares comerciais é proprietária, mas existem softwares livres comerciais, assim como softwares não-livres não-comerciais. Referências na Internet http://portal.softwarelivre.org http://www.cultura.gov.br http://www.iti.br http://www.modulo.com.br http://www.softwarelivre.gov.br http://www.iti.br http://www.cipsga.org.br http://www.fsf.org http://www.wikipedia.org http://www.rits.org.br http://www.openoffice.org.br http://www.nomadfkt.org

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F Ó RUM SO C IAL

F Ó RUM SO C IAL MUNDIAL

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Avanços e desafios Dulce Pandolfi Diretora do Ibase e pesquisadora do CPDOC/FGV dulce@ibase.br

Mais um sucesso! Maior certeza de que um outro mundo é possível! Foi esse o sentimento que tomou conta dos corações e mentes das milhares de pessoas que participaram da quinta edição do Fórum Social Mundial realizada em Porto Alegre, de 26 a 31 de janeiro de 2005. Gabriel de Souza, 17 anos, morador da favela Santa Marta, no Rio de Janeiro, afirma: “O Fórum foi ótimo para mim, pois abriu muitos horizontes em relação a tudo. Eu posso falar que mudei muito. Particularmente, eu tinha uma visão muito capitalista do mundo, mas, ao participar do Fórum, mudei totalmente meu ponto de vista”. Otimismo semelhante aparece na fala do jovem Leonardo Soares Lima, morador do morro do Turano, uma das favelas da Grande Tijuca, também no Rio de Janeiro: “O que a mídia nos passa nos deixa descrentes de que pessoas diferentes possam viver unidas, trocando experiências. Esse Fórum nos provou o contrário. Somos capazes. O Fórum Social Mundial 2005 fez com que as pessoas se sentissem úteis e importantes dentro de suas comunidades, dentro da sociedade em que vivem e percebessem que são agentes multiplicadores de idéias e experiências”.1 A fala desses jovens revela expectativas e esperanças na construção de um mundo melhor. Mas a singeleza dessas palavras contrasta com a complexidade dos problemas vividos nos cinco continentes do nosso planeta. Sem dúvida, vivemos tempos difíceis. Saímos do século XX e entramos no século XXI distantes de uma ordem mundial justa e democrática. No fim da década de 1980, caiu o Muro de Berlim, um dos maiores símbolos da chamada Guerra Fria, que polarizou o mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Logo em seguida, nos países do Leste da Europa, levantes populares exigiam a derrubada do regime comunista. Esse processo, que culminou em 1991 com o desmoronamento da União Soviética, representou o fim de uma era marcada por disputas em torno de dois projetos distintos: o capitalista e o comunista. Com a ruína do império soviético, ruíram,

também, as certezas e as fórmulas sobre o caminho para construir um mundo não-capitalista. Quase tudo estava por construir. Por outro lado, o colapso do socialismo real e o ritmo elevado do crescimento econômico dos Estados Unidos contribuíam para reforçar teses defendidas por um certo número de cientistas sociais sobre o fim da luta de classes e o fim da história.2 Segundo esse grupo de cientistas, diante do fracasso da experiência socialista, o capitalismo era a única alternativa a ser adotada em todos os países do mundo. Anunciava-se a perspectiva de um cosmopolitismo capitalista, pacífico e democrático. As palavras de ordem do chamado neoliberalismo eram privatizar e desestatizar a economia, cujo controle e regulamentação deveriam se dar a partir do mercado. O processo de globalização era considerado positivo e inevitável. Todavia, em pouco tempo, essa retórica foi perdendo fôlego. Os efeitos perversos da globalização tornavam-se cada dia mais visíveis. Ela havia produzido uma enorme concentração de riqueza e aumentado as desigualdades entre os países do Norte e os países do Sul e dentro de cada um deles. Conflitos bélicos multiplicavam-se em diversas partes do mundo. A partir dos ataques terroristas do 11 de Setembro de 2001, a situação mundial tornou-se ainda mais dramática. Como resposta a esses atentados, o governo Bush, unilateralmente, contrariando a posição da maioria dos governos, declarou guerra ao Iraque e ocupou o país. A atitude dos Estados Unidos fragilizou a Organização das Nações Unidas (ONU), criada no meado do século passado para regular as relações internacionais. A partir daí, a (in) governabilidade acentuou-se no mundo. Como enfrentar essa situação? Os desafios eram muitos. Diante desse quadro, seria possível construir uma ordem mundial centrada em princípios éticos e democráticos? Enfim, como construir uma cidadania planetária num mundo cada vez mais globalizado, mais violento, mais desigual e mais diversificado? Paradoxalmente, a luta contra a (in) governabilidade mundial e contra a globalização levada a cabo por ONGs e diversos setores

1 Graças a um fundo de solidariedade organizado pelo Ibase, 40 pessoas, entre elas jovens como Gabriel de Souza, Leonardo Soares Lima, Eduardo Farias Ferreira e Vagner Ramos da Paz Pereira, todas morando em comunidades de baixa renda do Rio de Janeiro nas quais o Instituto desenvolve projetos sociais, puderam participar do Fórum Social Mundial. 2 Entre esses(as) cientistas, destaca-se o economista americano Francis Fukuyama, autor do livro O fim da história.

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3 As oito entidades eram: Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong); Ação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos (Attac); Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania (Cives); Central Única dos Trabalhadores (CUT); Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase); Centro de Justiça Global (CJG); Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). 4 Sobre as origens do Fórum Social Mundial, ver o artigo “Fórum Social Mundial: origens e objetivos” de Francisco Whitaker (Correio da Cidadania, n. 222, 2000).

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sociais ampliou a constituição de redes internacionais e processos civis globais. A partir dessas articulações, manifestações contrárias ao processo de globalização em curso foram sendo organizadas em diferentes partes do mundo. Uma das que produziu mais impacto na mídia foi a de Seattle, nos Estados Unidos, contra a Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1999, organizada por cerca de 750 entidades e movimentos sociais e com mais de 100 mil manifestantes. O Brasil, por meio de seus sindicatos, ONGs, partidos e demais associações da sociedade civil, também teve participação em diversas manifestações e articulações contra o rolo compressor do novo liberalismo. No dia 28 de fevereiro de 2000, representantes de oito entidades brasileiras 3 reuniram-se em São Paulo e firmaram um “Acordo de Cooperação”. O objetivo do acordo era realizar um encontro de dimensão internacional, com a participação das organizações que vinham se manifestando e buscando alternativas para combater a escalada do neoliberalismo. Nascia, assim, a idéia do Fórum Social Mundial.4 Para dar uma dimensão simbólica ao evento, ele deveria ocorrer nos mesmos dias em que estivesse sendo realizado o Fórum Econômico Mundial, em Davos, uma luxuosa estação de esqui na Suíça. Em Davos, desde 1971, líderes políticos e representantes de grandes instituições financeiras se encontravam anualmente para formular estratégias voltadas para a condução do capital em escala planetária. Esse processo avançou e resultou num modelo que, reforçando outros pactos e consensos do grande capital transnacional, ficou conhecido mundialmente como o neoliberalismo. Financiado

por mais de mil empresas multinacionais, a base organizacional do Fórum Econômico Mundial era uma fundação suíça que funcionava como consultora da ONU. Para se contrapor à opulência e ao elitismo de Davos, o lugar escolhido para sediar o Fórum Social Mundial foi Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Por sua história recente voltada para uma nova forma de governar, a cidade gaúcha chamava a atenção do mundo inteiro. Administrada pelo PT desde 1988, a prefeitura conseguia trazer para o seu dia-a-dia práticas democráticas, como o Orçamento Participativo, e inverter prioridades, colocando as comunidades mais desfavorecidas no centro da política municipal. O primeiro Fórum Social Mundial, realizado em janeiro de 2001, surpreendeu e excedeu as expectativas dos seus organizadores. O segundo, com as mesmas características, foi programado para 2002. A partir daí, fóruns sociais temáticos e regionais foram se espalhando pelos diversos cantos do mundo. Todos deveriam se nortear pela Carta de Princípios aprovada pelo Conselho Internacional do Fórum Social Mundial, em junho de 2001. Definido como um espaço plural e diversificado, não-confessional, não-governamental e não-partidário, o Fórum Social Mundial deveria aglutinar as entidades e os movimentos da sociedade civil que se opunham ao neoliberalismo e ao domínio do mundo por qualquer forma de imperialismo. Ainda segundo a Carta de Princípios, apesar de ter sido um evento localizado no tempo e no espaço, o Fórum Social Mundial não poderia ser reduzido a um evento. Deveria se tornar um processo permanente na busca por um mundo justo e solidário. Sem caráter deliberativo, ele não se constituía, portanto, em uma instância de poder. Embora reunisse e articulasse entidades e movimentos da sociedade civil de quase todos os países do mundo, ele não pretendia representar institucionalmente a sociedade civil mundial. Mais do que tudo, ele deveria ser um espaço para debate, formulação de propostas, troca de experiências e articulação de ações que seriam implementadas pelos grupos, entidades e movimentos sociais. Consolidado, o Fórum Social Mundial passou a ser realizado anualmente. À exceção de 2004, quando a cidade-sede foi Mumbai, na Índia, todos ocorreram em Porto Alegre. Seu


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crescimento e sua importância política foram se tornando incontestáveis. Em 2001, participaram 20 mil pessoas; em 2002, 50 mil; em 2003, 100 mil; em 2004, 115 mil; e, finalmente, em 2005, o quinto Fórum Social Mundial reuniu mais de 150 mil pessoas credenciadas, vindas de 135 países e representando perto de 7 mil entidades. Em uma área central de Porto Alegre, com mais de seis quilômetros quadrados, que passou a ser denominada Território Social Mundial, além dos grandes galpões já existentes na região portuária, montaram-se centenas de tendas. A localização do Fórum, em uma região central da cidade, facilitou a participação da população local. Durante o Fórum, foram realizadas mais de 2.500 atividades entre seminários, debates, shows, projeções de filmes, exposições fotográficas etc. O evento contou com a atuação de 500 intérpretes voluntários(as). Foi coberto por mais de 6 mil jornalistas profissionais e cerca de 2.800 voluntários(as). Mais de 35 mil jovens instalaram suas barracas no Acampamento da Juventude, nas margens do rio Guaíba, onde podiam desfrutar de uma programação específica. Próximo dos(as) jovens, representantes de 150 povos indígenas estavam reunidos na Tenda Puxirum de Artes e Saberes Indígenas, onde discutiam e realizavam cerimônias espirituais. À semelhança de todos os demais Fóruns, o de 2005 também foi inaugurado com uma grande marcha: por mais de cinco horas, mais de 150 mil pessoas percorreram as ruas da cidade. Num misto de festa e protesto, a principal palavra de ordem da passeata, cantada ou gritada nos mais diversos idiomas, era: “Um outro mundo é possível!”. Manifestações contra a guerra e pela paz explodiam em todos os lugares da marcha. Segundo a avaliação de Eduardo Farias Ferreira, morador de Sepetiba, e Vagner Ramos da Paz, membro atuante das associações de Piabetá e Santa Cruz, localidades periféricas do estado do Rio de Janeiro, “esse foi um dos momentos mais importantes. Nunca vimos tanta gente, de raças, etnias, discursos ideológicos diferentes com um mesmo propósito, de querer ter um mundo melhor. Nunca mais esqueceremos esse momento. Aquela grande marcha prova que o bem pode vencer o mal e que os países subdesenvolvidos e em desenvolvimento têm que fazer parte deste mundo globalizado de uma forma igualitária”.

Diferentemente dos Fóruns anteriores, quando a organização dos eventos propôs os temas que seriam debatidos, em 2005 foi implantada uma nova metodologia. Por meio de uma ampla consulta, realizada alguns meses antes do Fórum, quase 2 mil organizações indicaram as questões e os temas que seriam debatidos. Definidas as propostas, coube a uma comissão aglutiná-las em 11 espaços temáticos. Reunidas nesses espaços, as atividades giraram em torno das mais variadas questões: defesa dos bens comuns da Terra e dos povos; construção de uma nova ordem democrática internacional; paz e desmilitarização; direitos humanos; economias soberanas; arte e criação; ética, cosmovisões e espiritualidades; comunicação; lutas sociais etc. Essa aglutinação possibilitou que pessoas e entidades interessadas em lutar pelos mesmos objetivos pudessem efetivamente se encontrar, articular e planejar ações comuns. As grandes conferências das edições passadas foram substituídas por atividades autogeridas. Em vez de projetar prioritariamente as grandes estrelas internacionais do altermundialismo, a preocupação foi que o Fórum fosse, de fato, apropriado pelos movimentos sociais, seus principais atores. Por isso, não se priorizaram eventos grandiosos. Nas maiores tendas ou galpões, cabiam, no máximo, 600 pessoas. As únicas atividades que fugiram a esse esquema foram as duas que, reafirmando a importância do Fórum, contaram com a presença de dois presidentes de República: Lula, do Brasil, e Hugo Chávez, da Venezuela. Ambas foram realizadas num grande estádio, o Gigantinho, onde milhares de pessoas disputaram um lugar ao sol. Em ambas também houve muita disputa política. As presenças de

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5 Documento de Avaliação do GT Sustentabilidade e Meio Ambiente do Fórum Social Mundial 2005, produzido em 11 de fevereiro de 2005.

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Lula e Chávez evidenciaram divergências entre as forças de esquerda do Brasil e do mundo. Parte das pessoas que se sentiam desiludidas com as posições de Lula parecia buscar em Chávez uma alternativa para suas esperanças. Também, diferentemente do passado, o Fórum de 2005 foi, na prática, quase todo autogestionado. Grande parte dos serviços e produtos oferecidos foi produzida no esquema da economia solidária. É claro que, diante da dimensão do Fórum, isso gerou alguns problemas, por exemplo, em relação à informática, à t ra du ç ã o , a o s aparelhos de som. Mas é certo que isso se constituiu numa experiência avaliada com muitos pontos positivos. Por outro lado, o calor quase insuportável, a precariedade de algumas tendas e galpões, as longas distâncias para se locomover de um espaço para o outro foram aspectos negativos. Co m r e l a ção à nova metodologia implantada, houve avanços significativos. Entretanto, os avanços variaram de espaço para espaço. Onde havia mais acúmulo, o debate fluiu melhor e as articulações também funcionaram melhor. Um exemplo de experiência de aglutinação bem-sucedida foi a do Grupo de Trabalho Sustentabilidade e Meio Ambiente. Além de permear os debates do Fórum com a visão da sustentabilidade, buscou-se reduzir o impacto ambiental do próprio evento. Segundo a avaliação feita pelo grupo, a existência de espaços de economia popular com a oferta de produtos agrícolas orgânicos, o boicote aos produtos de grandes transnacionais e a inscrição prévia de ambulantes foram experiências positivas. No entanto, criticaram a incapacidade dos(as) participantes do Fórum em

utilizar corretamente as lixeiras. Muitas pessoas jogavam o lixo no chão ou misturavam o lixo seco com o orgânico. 5 Durante o Fórum, foram articuladas e lançadas inúmeras campanhas. Uma delas foi a campanha com o lema “Você é o que você consome”. A proposta é que cada pessoa reflita e adira a formas de produção e distribuição que estejam a favor do desenvolvimento humano, além de reforçar o boicote a empresas transnacionais descompromissadas com o desenvolvimento humano. Outra campanha foi a Chamada Global para a Ação contra a Pobreza, que contou, no ato de lançamento, com a presença de Lula. O objetivo é mobilizar milhões de pessoas para pressionar governantes e dirigentes das grandes instituições multilaterais para priorizar a erradicação da pobreza no mundo. Também fazem parte da agenda dessa campanha a luta por um comércio justo, pela anulação da dívida externa, por novas formas de financiamento, por mais cooperação internacional e pela fixação das Metas do Milênio, estabelecidas em torno dos Objetivos do Milênio, propostos pela ONU. A campanha conseguiu reunir mais de cem entidades e espera-se que surjam novas adesões. Mobilizações mundiais estão previstas para as seguintes datas: em 1º de julho, um dia antes da reunião dos países mais desenvolvidos do mundo, articulados no G-8; no dia 10 de setembro, um dia antes dos atentados do 11 de Setembro nos Estados Unidos e um pouco antes da reunião da Cúpula do ONU; e em dezembro, próximo à reunião da OMC. As organizações que formam a rede Nosso Mundo Não Está à Venda também prepararam manifestações contra a OMC. Elas se opõem às propostas apresentadas pelos países que compõem o G-20, incluindo o Brasil, para as negociações agrícolas, “pois elas se restringem à defesa da abertura dos mercados europeus e estadunidense para grandes produtores, estimulando o modelo agrícola baseado na monocultura para exportação. Os movimentos sociais defendem o princípio da soberania alimentar, que consiste basicamente em priorizar o mercado interno e a agricultura camponesa, garantindo que cada país tenha condições de alimentar seu próprio povo”.6 Ainda durante o Fórum, 19 intelectuais lançaram um documento intitulado Manifesto de Porto Alegre, com o objetivo de sintetizar o consenso. Entre as pessoas que assinaram


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estavam José Saramago, Pérez Esquivel, I. Wallerstein e Boaventura de Sousa Santos. Embora não se questionem os pontos assinalados, para algumas entidades, como a Articulação de Mulheres Brasileiras, tal proposta caminha na contramão do Fórum Social Mundial. Além de se tomar o consenso de algumas pessoas como o consenso de todas, tal atitude “coloca uns na condição de proponentes e outros na posição passiva de apenas aderir. É tudo o que se quis evitar nestas cinco edições do FMS”.7 Os desdobramentos do Fórum Social Mundial são incontáveis. Dele, surgiram inúmeras articulações e propostas que alimentarão ações dos mais diversos segmentos da sociedade civil organizada: jovens, feministas, indígenas, pacifistas, negros(as), homossexuais, ecologistas etc. Inúmeras propostas encaminhadas no FSM 2005 vêm sendo gestadas desde Fóruns anteriores: ações contra a guerra; reforma da ONU; comércio justo; criação de uma universidade que reúna intelectuais e representantes dos movimentos sociais de todo o mundo, entre outras. Durante o Fórum, formaram-se algumas redes, e outras antigas se fortaleceram. Enfim, o diálogo foi fecundo, e muitas parcerias foram estabelecidas. Sem dúvida, as pessoas e as entidades saíram dali mais revitalizadas. Ainda antes do evento, o Conselho Internacional acordou que, em 2006, o Fórum será descentralizado. O objetivo é expandir e enraizar o processo em outros lugares. Em 2006, fóruns sociais ocorrerão simultaneamente em distintas regiões do planeta, na mesma data do Fórum de Davos, ou seja, durante o mês de janeiro. Embora sujeito à confirmação, já existem as candidaturas de Marrocos (Marrakesh) e Venezuela (Caracas) e discussões sobre um país asiático. No entanto, em 2007 deverá ocorrer um Fórum centralizado, possivelmente, em um país africano. Certamente essas mudanças representam novos riscos e desafios. Como os movimentos sociais e o comitê organizador do Fórum terão fôlego para enfrentar a descentralização? Provavelmente, haverá um esforço adicional de garantir que a descentralização não signifique dispersão. Se a descentralização é um objetivo legítimo de um tipo de construção democrática que respeita a diversidade, por outro, pode-se perder o impacto pelo fato de o mundo todo não estar reunido em um mesmo lugar do planeta. Também é certo que chegou a vez da África. Mas que repercussões o acúmulo da

África terá sobre o Fórum Social Mundial de 2007? A importância de ir para o continente africano tem que levar em conta a necessária descontinuidade dos debates que a especificidade dos povos africanos exige, como a Índia já exigiu em 2004. Geograficamente distante dos próximos encontros, como se sentirá o Brasil, um dos principais articuladores e animadores do Fórum Social Mundial? Jovens como Gabriel, Leonardo, Eduardo e Wagner poderão vivenciar os próximos encontros? Como saber tudo isso a priori? Não há como. Trata-se de um experimento social. E, como tal, exige apostas. Se esses são apenas alguns dos novos desafios, muitos dos velhos ainda permanecem. A despeito do s g ra n des avanços, o embate mal começou. O risco e a esperança são condições essenciais para as as pessoas qu e qu erem c o n s truir um mundo melhor. Por tudo isso, sem dúvida, a luta continuará para que um outro mundo seja possível!

6 Palavras de Maria Luisa Mendonça, membro do Conselho Internacional do FSM, no artigo “O que esperar do Fórum Social Mundial?”. 7 Articulando Eletronicamente – Veículo de informação da Articulação de Mulheres Brasileiras, ano IV, n. 109, 3

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O mosaico imperfeito Hamilton Pereira (Pedro Tierra) Poeta e presidente da Fundação Perseu Abramo, instituída pelo Partido dos Trabalhadores em 1996. É autor de oito livros de poemas. Recorro a uma constatação singela, registrada há algum tempo por Hobsbawn, para iniciar este diá-

logo. O século XX se extinguiu como começou: engendrando utopias. E indagar: para onde aponta o século XXI? Contemplada, assim, por dois prismas simultâneos, essa constatação pode nos ajudar a compreender o que ocorreu em janeiro dos últimos anos em Porto Alegre e Mumbai: um cristal que recolhe a luz das experiências e da busca de alternativas contra o império da cinza – “o pensamento único” – para multiplicá-la pelos infinitos vértices e planos capazes de ferir, com as armas da cor, as nossas retinas e os nossos sonhos. A generosidade, entretanto, para não sucumbir, não pode obscurecer o permanente exercício da crítica. Para o primeiro Fórum Social Mundial, a algum espírito sensível ocorreu a idéia de que as pessoas trouxessem consigo pedras dos seus lugares de origem, dos seus continentes. Depositadas sobre o recanto de um jardim à entrada da PUC-RS, formaram outro jardim de enigmas: um mosaico de pedras e sentidos. Devo me aproximar das pedras desse mosaico imperfeito, para dialogar com elas. São pedras de diferentes idades e formas. Trazem inscritos na superfície os códigos do vasto tempo mineral, do esmeril dos ventos e, também, dos frágeis tempos humanos. Pensá-las como testemunhos da aventura imemorial dos povos que as converteram em alicerces, paredes, ladrilhos, casas, estradas, monumentos. Pensá-las como signos das vontades impressas em cada experiência que representam. E nas mãos de quem as trouxe até aqui, vindas do Sul e do Norte; da sensibilidade e da compaixão; das lutas contra a fome e o horror da guerra; da solidariedade; vindas do combate à indiferença diante da dor do outro e das antigas cartografias que nos ensinaram a precária noção de um planeta precário: os contornos da Austrália, da Ásia, da Europa, da África e da América percebidos como lugares tocados – freqüentemente de modo devastador – pelas mãos humanas. Examiná-las sob essa nova luz que escapa pelas frestas da lógica do mercado. Uma luz ao sul das engrenagens que trituram identidades culturais, línguas, povos, nações; de modo limpo, asséptico e silencioso. E na velocidade dos computadores.

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Percorrido o tempo – breve e trágico – de um século, afastamo-nos das utopias unificadoras, redutoras e, portanto, autoritárias. Todos conhecemos o perigo que reside na alma dos(as) utopistas possuídos(as) pelas absolutas verdades que professam. Aprendemos a ler nas pedras inscritas do século XX até onde nos levam essas utopias: a Auschwitz ou ao gulag. Independente das forças políticas que a governem, Porto Alegre se desenha como a cidade da invenção, da reinvenção de utopias a partir da crítica, da pluralidade, da diversidade, da infinita multiplicidade dos nossos enfoques. Refletindo sobre modernidade e romantismo, num pequeno texto incluído no volume A outra voz, Octavio Paz, severo crítico das utopias socialistas, nos adverte: “A utopia é a outra face da crítica e só uma idade da crítica pode ser inventora de utopias: o buraco deixado pelas demolições do espírito crítico é sempre ocupado pelas construções utópicas. As utopias são os sonhos da razão. Sonhos ativos que se transformam em revoluções e reformas”. Ele se referia às grandes utopias do século XVIII que resultaram da implacável crítica que as precedeu – convertida em ação revolucionária em 1789 –, que, por sua vez, seriam alimentadoras da crítica ainda mais radical do movimento operário e socialista do século XIX. A crise das utopias no fim do século XX é filha da anemia crítica das esquerdas ao processo avassalador e totalitário – globalitário, na expressão de Milton Santos – do capitalismo financeiro, na economia, do mundo unipolar na dimensão político-militar e da dissolução das identidades, na cultura. Em parte porque as esquerdas, nos países centrais – mas também nos países periféricos... –, converteram-se em porta-vozes das classes trabalhadoras incluídas. O vigor das utopias geradas a partir de experiências como o Fórum Social Mundial resultará, salvo engano, de sua capacidade de suscitar dois movimentos: radicalizar a crítica ao sistema imperial vigente e restabelecer os laços entre os(as) excluí­dos(as), em escala global. A realização do Fórum em Mumbai, em janeiro de 2004, propiciou um momento fecundo em


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ambas as direções: incluiu a Ásia de modo definitivo na agenda do Fórum e trouxe para o centro do debate a problemática da guerra que atormenta quase dois terços da humanidade, naquele continente. A descentralização do Fórum aprovada em Porto Alegre nos últimos dias de janeiro aproxima “invenção política”, que é o FSM, de seus e suas protagonistas em cada continente. Em suma, a necessária radicalidade da crítica não deve obscurecer a dimensão da generosidade capaz de incorporar num novo projeto humanista a imensa legião dos(as) condenados(as) da terra.

Construção quotidiana do impensável Neste continente de paradoxos, neste país de paradoxos, pensando naquela sociedade fechada, na virada da década de 1970 para a de 1980, não é demais lembrar a uma frase do Che: “A revolução acontece quando o impossível invade o quotidiano”. Para os argumentos que desejo alinhar, julgo necessário um registro das circunstâncias históricas que cercaram o nascimento do Partido dos Trabalhadores, no Brasil. Ao forçar as portas do sistema político brasileiro, o PT constituiu-se simultaneamente num fato político e cultural. Político, porque recolheu a indignação e as esperanças de vastas camadas populares oprimidas e deu a elas a materialidade da ação coletiva contra a ditadura militar, já em declínio. Cultural, porque rompia com a tradição autoritária do comportamento das elites e da relação entre as classes sociais e se afirmava a partir de um exercício radicalmente democrático. O movimento operário do ABC, que lhe deu o berço e o impulso, no fim da década de 1970, foi o sinal definitivo do esgotamento da ditadura militar. Revelou aos olhos de um país castigado durante mais de duas décadas de perseguição, de exílio, de delação, de tortura, de assassinatos de opositores políticos e de tentativas malsucedidas de resistência armada, nas ruas e nos campos, ou de resistência pacífica dentro do parlamento consentido, um sujeito social novo. Emergia com insuspeitada capacidade de mobilizar uma importante massa de trabalhadores até ali imperceptíveis dentro do seu macacão azul. Imperceptíveis até o momento em que cruzaram os braços num movimento grevista que haveria de sacudir o país. Por outro lado, a emergência dos movimentos sociais de trabalhadores e trabalhadoras estabeleceu um ponto final na diáspora

de duas décadas, na esquerda brasileira. De algum modo, ela antecipava a crise dos partidos socialistas e comunistas tradicionais, não por uma inspiração intelectual e profética, mas pela surda determinação de uma realidade social que exigia a fala de um novo personagem no cenário político do país. É possível dizer que vivíamos um processo de refundação da esquerda no Brasil, sob o impulso do novo movimento operário que infundiu nela a energia social capaz de livrá-la do gueto para onde fora empurrada pelo Estado policial. Em raros momentos da história do Brasil assistimos a algo semelhante. O movimento operário do ABC e a reação em cadeia que ele desatou em diferentes regiões do país surpreenderam, de maneira fulminante, a ditadura militar, que se perguntava: como pôde se gestar tamanha força nos alicerces da sociedade sem que os controles policiais acusassem seus movimentos? A estupefação da esquerda tradicional não foi menor. Como era possível emergir um movimento daquelas dimensões espontaneamente, sem a fecundação prévia da teoria revolucionária, sem a mão organizadora dos partidos? Tudo indica que a realidade da classe operária brasileira e sua capacidade de organização, naquele momento, eram mais fecundas e mais revolucionárias que a teoria dos partidos da esquerda tradicional. Na raiz de todo o processo se encontravam as políticas econômicas do regime militar que resultaram na concentração de grandes plantas industriais no sudeste do país e na mobilização da mão-de-obra indispensável para fazê-las produzir. São importantes os registros de algumas características originais dessa experiência de construção partidária, num país marginal e desmesurado – no seu potencial e nos seus problemas – no último quarto do século XX, para a compreensão das suas possibilidades nas relações com um fenômeno novo: o Fórum Social Mundial. O Partido dos Trabalhadores constituiu-se, assim, no estuário de uma longa busca. Atraiu uma multiplicidade de experiências de lutas vindas de diferentes gerações de militantes e de várias vertentes da complexa rede de organizações populares que ganharam contorno sob a ditadura: o novo sindicalismo; as comunidades eclesiais de base, da Igreja Católica; as pastorais populares ligadas à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil que cumpriram um destacado papel na resistência ao regime; as organizações da esquerda clandestina que haviam tentado a

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resistência armada – ou militantes disper­sos(as), remanescentes delas –; e setores de intelec­tuais que, dentro das universidades ou em centros de pesquisa, produziam um pensamento de resistência de diversos matizes à ditadura. De pronto, somaram-se a eles, na construção da proposta do PT, os movimentos de trabalhadores e trabalhadoras do campo, renascidos com o apoio das pastorais populares e de alguns grupos da esquerda clandestina que haviam construído, em diferentes regiões do país, as oposições sindicais ou fundado novos sindicatos e movimentos urbanos – movimentos comunitários, associações de bairro, movimentos contra a carestia etc. Por fim, a proposta atraiu personalidades da resistência que atuavam, sob a legenda do Movimento Democrático Brasileiro, dentro do parlamento e grupos de militantes que se deslocaram dos antigos partidos comunistas. Naquele momento, a sociedade fechada, mantida pelo Estado policial, estreitara de tal modo os limites da ação coletiva de cidadãos e cidadãs que mesmo a luta por reivindicações específicas em torno de reposição salarial ou melhores condições de trabalho adquiriu uma dimensão política inescapável e de contestação ao regime, como se dizia então. A ditadura havia gerado seu próprio impasse e o sujeito social que haveria de destruí-la: gestara, pelo projeto de desenvolvimento assentado sobre as grandes plantas industriais do setor automotivo, uma nova classe operária que se despedira de suas heranças rurais, ganhara uma desconhecida autonomia de ação e, de repente, se dava conta do papel fundamental que desempenhava na produção da riqueza do país. E revelou-se capaz de ser o ponto de convergência dos interesses, não raro contraditórios, de vastos setores da

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sociedade brasileira. Essa nova classe operária adquiriu, ainda que de maneira difusa, a consciência de estar incluída no setor de ponta da economia, mas se encontrava excluída das decisões políticas do país. O passo seguinte era inevitável: a construção de um conjunto de instrumentos de ação sindical e política capaz de dar conseqüência aos anseios de liberdade e participação das classes trabalhadoras e dos setores médios da sociedade, com energia suficiente para afirmar-se como força política independente, em contraposição – no programa e no método – aos partidos conservadores tradicionais ou mesmos aos partidos comunistas clássicos.

Sedução da esfinge Passadas duas décadas, desde o retorno ao regime representativo, nenhum organismo de natureza política ou social, religiosa, civil ou militar escapa à dilaceração em que se encontra a sociedade brasileira. O volume, a qualidade e o ritmo das mudanças que ocorreram nos últimos 20 anos aprofundaram o abismo que já separava pessoas ricas de pobres no país. Esse processo ocorreu simultaneamente com a queda da ditadura e os avanços democráticos que conquistamos. Em outras palavras, a democracia representativa, para milhões de brasileiros e brasileiras, veio acompanhada pelo aprofundamento da miséria. Isso, de algum modo, estimula, nos setores sociais excluídos, simpatias por soluções populistas de direita ou mesmo a busca de amparo sob o teto das políticas clientelistas das velhas oligarquias regionais revigoradas. A miséria econômica de milhões de trabalhadores e trabalhadoras fatalmente incide sobre a ação dos seus movimentos sociais, debilitando-os, e sobre a sociedade política, retirando-lhe legitimidade. Abriu-se, assim, na década de 1990, uma crise de legitimidade tanto nos movimentos sociais como nos partidos. Sob a pressão das políticas neoliberais que resultaram particularmente nas altas taxas de desemprego, no aviltamento dos salários, os movimentos perderam consideravelmente sua capacidade de mobilização e se limitaram a uma defesa quase formal das conquistas anteriores. Na contramão desse processo, nutrindo-se da energia dos movimentos da década anterior, as esquerdas ocuparam sistematicamente espaços cada vez mais amplos na disputa política do país. Ampliaram suas bancadas parlamentares,


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assumiram governos estaduais, mais de quatro centenas de prefeituras, entre elas algumas das mais importantes cidades do país, e, num processo eleitoral inédito no Brasil, elegeram com votação esmagadora seu principal líder – Luiz Inácio Lula da Silva – presidente da República. De certo modo, o PT encarnou o grito organizado dos(as) excluídos(as). Ofereceu-lhes uma voz, entre outras vozes, na institucionalidade política estabelecida. Essa forte presença dentro da moldura institucional trouxe consigo uma inescapável ambigüidade para um partido que busca manter seus laços com as lutas sociais que lhe deram origem. A inclusão do PT no sistema político brasileiro, contudo, não deteve, ao longo da década de 1990, a usina de produzir exclusão social. Entraram em cena os(as) novos(as) excluí­dos(as). E são milhões. Não se encontram inse­ri­dos(as) em nenhum setor importante da economia. Nem da política. Com exceção do momento do voto. Vivem, para utilizar um eufemismo, na informalidade, como se diz por aqui. São invisíveis. A sociedade só percebe sua existência quando transgridem. Então, lança sobre eles(as) o fisco e as operações policiais. Vão constituindo assim, a cada dia, fora dos muros de uma sociedade fraturada, as classes perigosas. Primeiro são os(as) ne­gros(as) e os(as) pobres percebidos(as) com certo incômodo, mas tolerados(as) com um misto de desprezo e condescendência; depois, como alvo de políticas compensatórias; mais tarde, como alvo das armas da polícia. Lançados(as) para fora dos muros dos condomínios, das cercas dos latifúndios, do amparo das leis, é possível imaginar a sorte que espreita os(as) excluídos(as) dentro de alguns anos, caso o governo Lula não consiga interromper esse processo movido pela insensibilidade da lógica de acumulação do capital financeiro, pela cegueira da inércia e do conservadorismo das políticas econômicas e pela falta de imaginação política das esquerdas no sentido de libertar-se das amarras do modelo neoliberal que herdou. À medida que se aprofundou o abismo entre a economia formal e informal; entre os os(as) trabalhadores(as) de uma e de outra; entre as pessoas que sobrevivem, ainda que precariamente, num posto de trabalho e as que amargam o desemprego; entre as representadas; entre as que elegem e as que são eleitas; entre as que moram e as que só têm o viaduto; entre as que comem regularmente e as que

disputam com os ratos o lixo das grandes cidades para se defender da fome, os movimentos sociais e o Partido dos Trabalhadores passaram a ser acuados pela esfinge do Estado brasileiro assentada sobre os alicerces da exclusão social. Essa esfinge, velha de cinco séculos, tem demonstrado enorme capacidade para destruir a sangue e fogo, ou para digerir imperceptivelmente, as mais autênticas e autônomas formas de organização social e política dos(as) ex­clu­ído(as). Assim foi com a rebelião dos(as) escra­vos(as) negros(as) em Palmares, durante o período colonial; dos(as) sertanejos de Canudos e do Contestado, na Primeira República, ou com as pequenas rebeliões camponesas do último quarto do século XX, na Amazônia; assim tem sido com todas as tentativas dos partidos populares que puseram os pés na institucionalidade e acabaram por fazer da permanência nela seu maior objetivo. À medida que avançamos para dentro de um território hostil, que modifica constantemente seus contornos e regras, não podemos deixar de ter os olhos fixos nas classes perigosas para escapar do deslumbramento e da sedução da esfinge. É preciso estar atento ao fato de que a adoção do discurso e dos métodos políticos das elites não nos levará a outro destino senão ao dos(as) sócios(as) subalternos(as) de um sistema que desejamos combater. A chamada sociedade da informação introduziu definitivamente um conjunto de exigências ético-culturais na sua pauta como condição para respaldar a ação dos partidos e movimentos sociais.

Retorno à multidão De como resolver aquela ambigüidade – resultante de sua presença simultânea nos mo-

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1 GENRO, Tarso; SOUZA, Ubiratan de. Orçamento participativo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1997. 2 Id., ibid.

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vimentos sociais e na condução de governos nos municípios, nos estados e agora na União – dependerá a profundidade das transformações propostas pelo Partido dos Trabalhadores e pela frente que ele lidera, para a sociedade brasileira. Não é demais lembrar que o partido disputou pe­la quarta vez a Presidência da República e venceu. Venceu e convenceu o povo brasileiro das necessidades da mudança no modelo econômico, social e cultural de desenvolvimento. O Fórum Social Mundial inquire e apresenta novos desafios para essa árdua construção democrática conduzi­da por socialistas no Brasil. Aguça a sensibilidade e amplia a percepção para a pluralidade de temas novos que a lógica globalitária lança para as esquerdas. E abre perspectivas inéditas de equacionamento, em escala global, para as grandes questões vividas pelos(as) excluídos(as) em escala global. Não por acaso o presidente Lula empunhou a bandeira do combate à fome e à miséria como prioridade de governo. O impulso do Fórum Social Mundial oferece um novo alento ao abrir caminho para revigorar o pacto entre os novos movimentos sociais e as esquerdas. Contribui para evitar a armadilha, sempre presente, que deseja aprisioná-las na moldura de partidos puramente de representação como seus ancestrais: os partidos socialistas e sociais-democratas. No plano da formulação estratégica das forças de esquerda, no Brasil, o desafio que nos propõe o Fórum Social Mundial traduz-se em: discernir os novos caminhos pelos quais passa a energia transformadora da sociedade – os seus novos atores – que já não são os mesmos de 20 anos atrás; de compreender-lhes a pulsação; de nomear com clareza quais são as suas contradições mais profundas e aglutinar as forças políticas interessadas em – e capazes

de – oferecer a base social para as transformações demandadas pelos(as) “novos(as) excluídos(as)”. Uma experiência concreta, entre outras, encarna essa busca: a experiência do Orçamento Participativo, em Porto Alegre e outras cidades brasileiras governadas por frentes de esquerda. Abre caminho para fixar um novo paradigma das esquerdas nas relações institucionais, a partir de um processo consistente de participação da cidadania. Numa década de predomínio das políticas neoliberais, como foi a década de 1990; de uma ideologia privatista; do individualismo e consumismo como valores sociais determinantes; da produção industrial da indiferença, as esquerdas brasileiras vieram construindo um processo de contra-hegemonia assentado sobre valores opostos: a solidariedade, a ação coletiva, a participação popular, o exercício de direitos, o reforço da esfera pública, a democratização das relações Estado–sociedade. Uma experiência valiosa, não apenas por navegar na contracorrente do pensamento único, mas por representar “a superação, de maneira contemporânea, da crise do socialismo burocrático, respondendo de maneira criativa e original à principal política da decadência e da derrocada do Leste Europeu, ou seja, a relação autocrática do Estado com a sociedade”.1 Essa experiência, entre outras, indica um caminho proposto pelas esquerdas brasileiras para estabelecer laços consistentes com os(as) “novos(as) excluídos(as) e para combater a indiferença das classes trabalhadoras incluídas, no caso brasileiro, com o poderoso estímulo do exercício da cidadania”. “Outra contribuição universal do Orçamento Participativo é a criação de uma esfera pública não estatal.” 2 A sociedade esboça instrumentos democráticos de controle do Estado à medida que constitui de maneira autônoma, num exercício de democracia direta, um processo de co-gestão da cidade com o governo eleito e a Câmara de Vereadores. Não elimina, nem mesmo diminui as atribuições da Câmara de Vereadores, que permanece como espaço legítimo da democracia representativa, ao contrário, valoriza esse espaço fixando novos critérios de relação entre as pessoas eleitas e cidadãos e cidadãs protagonistas do processo. A experiência do Orçamento Participativo, com os novos conteúdos que aporta ao debate sobre o rumo das esquerdas, nos aproxima deste fato novo, o Fórum Social Mundial. A própria trajetória dos partidos e suas relações com


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os movimentos sociais, ao superar as antigas concepções de subordinação dos movimentos, mantém pontos de contato ponderáveis com a matriz de pluralidade ideológica, autonomia de ação e diversidade temática que caracterizam o Fórum Social Mundial. Faz-se agora necessário o esforço para formular as múltiplas perspectivas de ação, em escala global, que preencham o calendário de lutas, no quotidiano de cada movimento social. Em outras palavras, é preciso encontrar as formas permanentes de ação quando deixamos o “estado de multidão” em Seattle, Washington, Praga, Gênova, Florença ou Porto Alegre. Em algum momento, Boaventura de Sousa Santos, importante intelectual português, colaborador do Fórum Social Mundial, definiu como um espectro bicéfalo o inimigo que enfrentamos: A sua primeira cabeça é a eventualidade de, à medida que a democracia perde a capacidade de distribuir riqueza social, estarmos a caminhar para sociedades que são politicamente democráticas e socialmente fascistas. O novo fascismo não é, assim, um regime político; é antes um regime social, um sistema de relações muito desiguais que coexiste cumplicemente com uma democracia política socialmente desarmada. A segunda cabeça do espectro é a tentação hegemônica de se pensar que a primeira cabeça do espectro pode ser exorcizada nos países ricos mediante a contínua e crescente exploração dos países pobres. Esta segunda cabeça é a globalização neoliberal e é a mais insidiosa porque, no deserto de alternativas por ela criado, se arroga credivelmente ser a única solução do problema que ela própria constitui.3

Produção industrial do inconformismo e aprendizado da nova insurreição O Fórum Social Mundial constitui-se, em âmbito internacional, no fato político-cultural mais significativo para as esquerdas, desde a queda do Muro de Berlim. No Brasil, por exemplo, a capacidade que o governo Lula demonstrar de introduzir novos elementos na agenda da esquerda e os desdobramentos que vier a produzir dentro e fora do país poderão redimensionar esse fato e conferir a ele um novo significado. O Fórum Social Mundial marca, a seu modo, um

momento de convergência diante da ofensiva avassaladora do neoliberalismo. E demonstra uma capacidade in­sus­p eitada de modificar a pauta do debate mundial ao po­larizar as atenções, já no seu momento inaugural com o Fórum Econômico Mun­dial, de Davos. Não é ocioso lembrar que a agenda de Davos, em janeiro último, dispensou uma parcela importante de tempo ao debate em torno do combate à fome e à miséria no mundo. Incorporando, nos seus termos evidentemente, uma agenda que, antes da emergência do FSM, era olimpicamente ignorada. Chama a atenção de quem examina a trajetória das esquerdas brasileiras ao longo dos últimos 20 anos um aspecto curioso: apesar de terem se afastado das estratégias de transformação social po r meio de rupturas (guerra de guerrilhas, guerra revolucionária, insurreição popular) e, portanto, adotado o processo de acumulação de forças combinando lutas sociais e ocupação de espaços institucionais, não pautaram com o devido relevo o debate em torno do processo e dos meios para a conquista da hegemonia das idéias na sociedade e o papel que desempenha, nessa disputa, a formulação de um projeto cultural. A sociedade brasileira herdou da ditadura militar (1964–1985) um vasto aparato de telecomunicações que foi concebido naqueles anos como uma eficiente rede de “integração nacional”, para recuperar a linguagem da época, e como um sistema de controle social que pode ser expresso nesses dados da década de 1980: A Rede Globo chegou então a 1982 – ano da primeira eleição direta para governadores após 1964 – como a quarta maior rede de televisão do mundo, composta de seis emissoras geradoras,

3 Revista Visão, edição de 2 de maio de 2002.

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36 afiliadas e mais cinco estações repetidoras, o que dava um total de 47 emissoras, cobrindo 3.505 dos 4.063 municípios brasileiros, ou seja, 93% da população do país e 99% dos 15,8 milhões de domicílios com TV existentes naquela data.4

4 LIMA, Venício A. de. Mídia, teoria e política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001. 5 Mattelart, A.; Mattelart, M. Carnaval de Imagens: a ficção na TV. São Paulo: Brasiliense, 1989.

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Desejo fazer-nos refletir sobre o controle quase totalitário exercido pelo regime militar e o complexo construído à sua sombra sobre uma sociedade, em grande medida, iletrada. Ocorre que as elites liberais à frente da democracia representativa que sucedeu a ditadura apoderaram-se desse complexo e, sem modificá-lo substancialmente, deram-lhe funcionalidade para a nova fase que se abria nas disputas políticas no Brasil. A expressão “totalitário”, que mencionei acima, não se refere, por suposto, apenas à cobertura de 93% da população do país, mas, além disso e sobretudo, à quase impossibilidade de se veicular um discurso substantivamente diverso do discurso oficial. Essa matriz evoluiu ganhando complexidade nos anos mais recentes, de um lado pela conjugação das telecomunicações com os meios de comunicação de massas e com a informática, porque, a partir da “revolução digital”, elas não podem mais ser tratadas como áreas distintas. De outro lado, na dimensão propriamente política, diante do impulso do movimento de massas que emergiu no fim da década de 1970 e início da década de 1980, de uma nova correlação das forças políticas nas lutas sociais do país, do desmoronamento do regime militar e da necessidade de um novo pacto das elites. Aquele aparato – agora já não representado apenas pelas

Organizações Globo, mas dividido com outras redes de informação e entretenimento – passou a cumprir novos papéis. Num país de instituições frágeis e de partidos políticos mais frágeis ainda, o poderoso complexo de comunicação de massas – sobretudo a TV – foi posto em movimento a partir da credibilidade construída diante da sociedade e passou a atuar diariamente não apenas como indutor de hábitos de consumo, mas como condutor das opções políticas de cidadãos e cidadãs, de tal maneira que hoje ocupa “[...] um lugar inconteste de ‘intelectual orgânico’ da sociedade brasileira (o que) não deixa de ter relação com a crise real desses outros intelectuais coletivos que são os partidos atualmente legalizados, e também com a crise da classe intelectual e do pensamento crítico”. 5 Sofisticou-se em certa imprensa brasileira a prática de vender opinião injetada no conteúdo mesmo da notícia de tal modo que o(a) cidadão(ã) – ou o(a) con­su­midor(a) – é agressivamente conduzido(a) a preocupar-se com uma agenda selecionada pelos meios e recebe o discurso permeado por juízos do veículo que consome, sobre os fatos do dia ou da semana. Mais do que compreender intelectualmente, as elites brasileiras concertaram sua ação para o novo período partindo do entendimento de que o poder político depende relativamente pouco, exceto em tempos de crise extrema, da intervenção coercitiva do Estado. Ele se apóia, ao contrário, na força de uma visão de mundo, num sistema de pressupostos e valores sociais aceitos como ‘senso comum’ que legitimam a distribuição do poder (hegemonia). [...] O Estado desempenha um papel na divulgação da visão de mundo, mas o sistema cultural legitimador, decisivo para o poder político, é mantido principalmente por instituições privadas, autônomas...6

Idéia de ação cultural revolucionária Esse complexo painel que serve de pano de fundo para as disputas pela hegemonia na sociedade brasileira exige das esquerdas não apenas o esforço para a compreensão objetiva do processo, mas, igualmente, para conferir


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certo grau de convergência na definição da agenda dos problemas do país, considerando que não é possível nem desejável uma unificação dos enfoques. Essa diversidade não significa necessariamente fragilidade, ao contrário, pode ser uma riqueza. Excluídas do grande negócio das comunicações no país, as esquerdas brasileiras não dispõem de um único meio de comunicação de alcance nacional. O esforço deve orientar-se em expandir e qualificar cada vez mais no âmbito das comunicações para alcançar a maior capilaridade possível na base da sociedade e, ao mesmo tempo, disputar os espaços formais na “grande mídia”. A disputa pelo controle democrático dos meios de comunicação supõe uma resposta sobre o que desejamos dizer à sociedade. Diluir as diferenças entre o que propõe a direita e as esquerdas tem levado essas últimas a colherem sucessivas derrotas, no Sul e no Norte. Os processos políticos que protagonizamos no continente, em particular na América do Sul, indicam a existência de um vasto e profundo anseio de mudanças na sociedade. Os processos eleitorais que resultaram na vitória de Lula, Kirchner e Tabaré Vasquez; a resistência do povo venezuelano ao golpe contra Chávez e o referendo que se sucedeu; a aproximação com Lagos, no Chile, e a proposta de constituição da Comunidade Sul-Americana de Nações reconfiguram o perfil das democracias na América do Sul. Vivemos um momento privilegiado no continente, arduamente construído pelas esquerdas, sob severas condições impostas por Washington. Esse processo revela que as esquerdas souberam evitar a tentação do gueto, o isolamento e a derrota a que nos levaram as sucessivas tentativas das soluções de força. Resta enfrentar o gigantesco desafio de governar sem abandonar os compromissos com as classes perigosas que nos deram raiz, sem perder o norte que aponta para a construção de sociedades democráticas e soberanas. Resta investir todo o potencial dos nossos povos para formular um modelo de desenvolvimento sustentável e socialmente justo. Resta materializar em ações de governo a busca secular da integração efetiva na economia, na sociedade e na cultura, que alimentou o sonho dos(as) Libertadores. Num período histórico em que os(as) conser­vado­res(as) buscam diluir as diferenças, para as esquerdas torna-se crucial ex­plicitá-las como con­dição de reforçar a confiabilidade no programa que apresenta. A ousadia de for-

mular uma crítica im­pie­do­sa aos fundamentos do pensamento único deve ser secundada pela necessária recuperação das utopias que nutriram as lutas dos setores populares nos últimos 150 anos. Se, hoje, as sociedades apresentam suas demandas e, sobretudo nos países do Sul, exigem urgência nas soluções, desejam também conhecer os contornos do projeto de longo prazo que oferecemos a elas. Em suma, a exigência ético-cultural se instalou na medula do processo de transformação sonhado pelos(as) novos(as) excluí­dos(as), que pressentem, ainda que de modo impreciso, que não haverá lugar para eles(as) sem um profundo processo de regeneração social, em escala planetária. Num mundo em que a palavra radical foi abolida dos dicionários da política, cabe às esquerdas apontar os caminhos que nos reconciliem com a radicalidade, não apenas no exercício da crítica, mas, sobretudo, no que se refere à subversão da lógica do processo que diariamente reproduz as condições materiais da exclusão social, tanto no interior das fronteiras nacionais como nas relações entre o Norte e o Sul. Restabelecer, na pauta do debate mundial, outra tábua de valores que balizem perspectivas diferentes para o desenvolvimento humano é a tarefa central que nos exige a “nova insurreição”. Retorno à reflexão de Venício A. de Lima comentando o grande educador brasileiro Paulo Freire: A idéia de ação cultural revolucionária em Freire precisa ser compreendida no contexto do que ele considera o problema central da segunda metade do século XX: a desumanização. Este fato, segundo ele, constitui a libertação como o objetivo fundamental

6 HALLIN apud LIMA, op. cit.

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a ser atingido pela ação cultural. A desumanização se caracteriza por ser um processo “que marca não apenas aqueles cuja humanidade foi roubada [os oprimidos], mas também os que a roubaram [os opressores]”. Assim, no processo de libertação (ação cultural revolucionária) “os oprimidos não devem, ao procurar reconquistar sua humanidade, se transformar, por sua vez, em opressores dos seus opressores, mas sim restaurar a humanidade de ambos”. Freire identifica a libertação como “o processo [ou luta] pela afirmação dos homens enquanto pessoas”. Para ele “a grande tarefa humanística e histórica dos oprimidos” torna-se então a de “libertar-se a si próprios e seus opressores” por meio de um permanente processo histórico de libertação.7

Carta do Sul Este texto, de minha autoria, foi lido pela primeira vez no ato de encerramento do 2º Fórum Social Mundial, em 2002, em Porto Alegre, ao lado do texto do escritor português José Saramago. Regressamos como os pássaros migradores. Sabemos que Davos é branca. Porto Alegre, um arco-íris, onde pousar para beber a multiplicação das cores que inventamos. Aprendemos que Davos é a ordem. O silêncio branco. Nova York, o poder e o medo. Porto Alegre, a liberdade. A palavra tecendo sonhos, como agulhas urdindo um tapete sem desenho prévio. Somos filhos da vertigem. Desse impulso de extrair do impossível mundo das cifras e da ferocidade capitalista, um outro mundo possível... As mãos que trazemos tatearam noites e labirintos. Não moldam no ar o frágil desenho da cidade futura. Sabem da terra proibida pelo arame; do trabalho escasso; do pão escasso; da fome. Recolhem das ruas do mundo destroços da alegria, da paixão, da dor, da exploração, da violência, do êxodo de tantos, dos sonhos arquivados da multidão, soterrados pela demolição dos direitos, da resistência e, novamente, da alegria e da paixão e propõem um novo mosaico. Um novo mosaico possível... Morremos em Eldorado dos Carajás; a caminho de uma escola em Ramallah; no sonho que anoitece sob a burka de uma mulher em Mazar-i-Sarif; numa clareira na selva colombiana; em Gênova, no corpo de Carlo Giuliani; ao pé das Torres Gêmeas, em Nova Iorque; numa esquina em Kandahar. E renascemos nas ruas rebeladas de Buenos Aires e Santo André. Para renascer nascemos... Somos centelhas de 7 LIMA, op. cit.

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acender outras possibilidades. Deixamos de parte as cifras, as taxas de juros, o comportamento das bolsas de valores: esse mundo estéril e homicida. Fixamos os olhos e o coração indignado sobre os dramas que nos afligem: a fome, as guerras, a exclusão social, a limpeza étnica, o desemprego, a Aids, a morte dos rios, a cinza das florestas, a concentração galopante da riqueza, a destruição das conquistas dos trabalhadores, o controle da informação, a lógica única do pensamento único. Despidos de toda humanidade, em duas gerações testemunhamos a espantosa morte de um continente: a África. Viemos nos despedir da indiferença. Trazemos a vocação do diverso. Do libertário. A vocação do humano. Recusamos a branca ordem de Davos, o poder e o medo de Nova York e suas siglas: OMC, FMI, Alca, Otan. Somos a desencontrada polifonia das vozes do Sul e do Norte que rejeita a marcha fúnebre do mercado. A solidariedade é o ar que nos sustenta as esperanças. O mesmo alento que prolonga o vôo dos pássaros migradores. Somos herdeiros da vertigem criadora dos nossos povos: pretos, brancos, amarelos, vermelhos, verdes, azuis... A frágil possibilidade de que um outro mundo é possível...


uma comunicação à altura dos novos desafios

Uma comunicação à altura dos novos desafios Mario Lubetkin Diretor-geral da agência de notícias Inter Press Service

O processo do Fórum Social Mundial (FSM) 2005 foi concluído, tendo sido o mais numeroso em termos de participantes e o de maior impacto em relação à participação e organização. A bela cidadela do Fórum foi construída às margens do rio Guaíba, na cidade de Porto Alegre. Havia muitos desafios e questionamentos antes da abertura do Fórum e muitos deles ainda estão sem respostas, mesmo após a realização desse grande evento internacional – o principal evento da sociedade civil. Antes do Fórum, a comunicação e a informação do FSM eram uns desses desafios, dos quais derivavam muitos questionamentos. Após o evento, um monitoramento inicial e breve dos meios de comunicações em diferentes partes do mundo mostrou uma diminuição de interesse pelo Fórum por parte desses meios de comunicação, que, em anos anteriores, haviam dado atenção particular ao encontro, até mesmo dando espaço similar ao encontro de Porto Alegre e ao Fórum Econômico Mundial de Davos. Essa paridade de espaço na mídia não se repetiu, pois, enquanto Davos manteve seu espaço na imprensa internacional, Porto Alegre viu o seu ser reduzido substancialmente, embora o FSM tenha credenciado mais de 4 mil jornalistas. Antes do Fórum, existia a preocupação de que isso pudesse acontecer. Por isso, entre outras iniciativas, um grupo de organizações internacionais, redes de comunicação e figuras destacadas do FSM se reuniram em Roma, em setembro, para analisar as melhores formas de ajudar a resolver essa situação. Entre outras idéias, ficou acertado realizar, um dia antes do FSM, o Fórum Mundial de Comunicação e Informação, com o objetivo de concentrar os esforços de tantos(as) protagonistas do setor de comunicação e poder gerar mensagens de maior impacto, tanto para a própria sociedade civil como para a opinião pública internacional, interessada em saber dos resultados, desafios e do próprio futuro do FSM. Esse Fórum Mundial de Comunicação teve uma visão crítica sobre a capacidade de informação do FSM, especialmente pela dispersão gerada pelo seu programa, no qual sempre estão previstos milhares de iniciativas e debates sobre todos

os temas de interesse do público, o que complica o trabalho dos(as) profissionais de comunicação presentes ao evento. Em especial, foram assinaladas dificuldades para conseguir explicar que o FSM é somente a conclusão de um processo de iniciativas e debates realizados durante todo o ano, além do fato de que pouquíssimas pessoas refletem sobre o “dia seguinte” do Fórum, principalmente sobre seus efeitos e sua projeção futura. O que foi assinalado anteriormente é somente um diagnóstico da realidade, talvez o mais fácil de entender, por isso o Fórum Mundial de Comunicação concentrou sua atenção sobre o que fazer e como fazer. As três resoluções finais, aceitas consensualmente, talvez sejam os instrumentos futuros que sirvam para reverter a tendência de impacto limitado – o que, na última edição do FSM, ocorreu nos meios de comunicação.

1. Rede mundial de comunicação para acompanhar o FSM A proposta é criar mecanismos permanentes que permitam aos meios de comunicação que, ao longo desse processo, demonstraram interesse em acompanhar o processo FSM – com uma visão crítica, positiva ou mesmo negativa – obter todas as informações necessárias, não somente durante os cinco dias desse grande evento, mas também ao longo de todo o ano (nos fóruns nacionais, regionais e temáticos). Além disso, devem permitir a obtenção de informações sobre os principais aspectos do debate e das propostas que surgem desse grande movimento de ativistas da sociedade civil. Jornalistas desses meios de comunicação devem compreender por que o Fórum é um processo, e não somente um acontecimento pontual. Por meio de uma melhor projeção, é possível compreender toda a riqueza, profundidade e contradição desse movimento de massas.

2. Comunidade virtual mundial de jornalistas Esta iniciativa, relacionada à anterior, procura gerar sinergia não somente entre jornalistas que trabalham nos meios de comunicação,

[Traduzido do espanhol por Jones de Freitas]

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mas também entre qualquer profissional de comunicação interessado(a) no FSM, para que sejam informados(as) e participem ativamente do processo de informação e comunicação do Fórum. Mais de 10 mil jornalistas participaram, de alguma maneira, das cinco edições do FSM, o que indica uma força muito poderosa de comunicação, mas que, por sua própria dispersão, não aparece em toda a sua dimensão. Ao contrário da rede mundial de meios de comunicação, a comunidade virtual mundial de jornalistas deve conseguir um espaço interativo, no qual comunicadores e comunicadoras possam encontrar todas as informações necessárias e também participar da sua alimentação ativa, para o enriquecimento da comunidade e de quem participa dela.

3. Universidade virtual de jornalistas Um tema destacado no Fórum Mundial de Comunicação e Informação de Porto Alegre foi a análise de que os aspectos de formação são essenciais para que profissionais de comunicação possam compreender melhor o significado das iniciativas da sociedade civil, seus objetivos, alcances, mecanismos de funcionamento etc. Não se trata somente de informar melhor, mas de melhorar a formação para que a informação seja mais bem entendida. São pouquíssimos os centros universitários no mundo que prestam atenção ao tema da sociedade civil na formação de novos(as) profissionais. O novo cenário virtual, com a contribuição de importantes universidades de diferentes partes do mundo, pode ajudar a preencher esse vazio inadmissível. Também é preciso focalizar na formação de ativistas da sociedade civil, para que compreendam como se comunicar melhor e entender os interesses e as necessidades dos(as) jornalistas, de modo

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que o público receba uma informação de melhor qualidade. Essas três iniciativas, vistas em conjunto e não de forma separada, podem ajudar a construir outra comunicação possível e, especialmente, outra forma de informar que esteja à altura dos novos desafios contemporâneos. Caso essas idéias sejam concretizadas, serão um resultado importante do processo do FSM, surgido em janeiro de 2001, na cidade sulista brasileira. Outras iniciativas no campo da comunicação nasceram do coração desse processo multitudinário do FSM, como o Observatório Mundial da Mídia (MWG, na sigla em inglês), criado há três anos e que tem por objetivo juntar comuni­cado­res(as), acadêmi­cos(as) e o público consumidor dos bens de comunicação numa só conjunção de interesses, para melhorar a qualidade da informação nesse mundo global. Às vezes, não somente devemos atentar à análise do que se informa, mas também entender as lacunas do que não é informado – o que, de fato, é uma opção da informação. É preciso compreender quem – e por que – dá tão pouca importância aos grandes temas tratados pela sociedade civil, especialmente às questões do desenvolvimento, tão importantes para o futuro da humanidade – freqüentemente substituídas por informações frívolas ou por informações errôneas sobre temas de interesse central. Trata-se de entender, de modo profissional, com a participação ativa da universidade e de quem paga por essas informações (o público consumidor), por que algumas tendências de certos meios de comunicação importantes em muitos de nossos países estão concentradas em determinados temas, mesmo com má informação, para gerar na opinião pública um estado de desinformação e, portanto, de desinteresse e de passividade diante dos grandes fatos que afetam seus próprios interesses. Será somente o somatório de iniciativas sérias, criativas, participativas e propositivas que permitirá passar da simples reclamação e da crítica ao que não se informa ou ao que se informa mal a um processo no qual o público tenha os elementos para saber, decidir e agir? Este é um dos desafios para o futuro do FSM: conseguir outra comunicação, para obter uma participação diferente. Do contrário, o objetivo de criar “outro mundo possível” ficará como simples desejo no imaginário de milhões de pessoas.


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cul c u lt u r a J. R. Ripper*

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c u lt u r a

Trabalho escravo, condições semelhantes à escravidão e formas degradantes de trabalho são definições diferentes. Mas descrevem o mesmo crime: a abominável exploração do ser humano e da sua miséria. O trabalhador e a trabalhadora escravizados têm nome, coração, corpo, alma, sentimentos, sonhos e esperança. Lutam para preservar sua sobrevivência e dignidade. A maioria trabalhou na infância, ou seja, são pessoas que foram vítimas de outro crime. A maioria é analfabeta, de letras e de cidadania. Todas essas pessoas buscam, no trabalho, salário e condições para ser gente, para se integrar à humanidade. Os feitores antigos e modernos não só degradam o trabalho humano, mas também, em nome do lucro, rejeitam a civilização. Na Amazônia, a indústria do trabalho escravo fabrica a destruição ecológica. Degradação humana e ambiental faz parte da cultura do lucro fácil de latifundiários e grileiros da região. Infelizmente, escravizar, praticar cárcere privado, explorar homens, mulheres e crianças em trabalhos pesados, omitir socorro a pessoas

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doentes, muitas vezes torturar e até matar são práticas repugnantes que se repetem por várias décadas para garantir custo mínimo nas derrubadas das florestas que objetivam a exploração da madeira e a preparação dos pastos para os rebanhos de gado. Segundo o trabalhador rural Carlos da Costa Silva, em cada linha são derrubadas, no mínimo, cem árvores de médio e grande porte. Cada alqueire tem 4,84 hectares (ou 1,4 quilômetro quadrado) e é dividido em 16 linhas. Se, em cada alqueire, são derrubadas pelo menos 1.600 árvores, significa que, numa empreitada de 40 alqueires, são derrubadas pelo menos 64 mil árvores de médio e grande porte. Só a equipe de Carlos já tinha derrubado 23 alqueires e duas linhas de floresta, cerca de 37 mil árvores. Um peão leva cinco meses para conseguir derrubar 20 hectares de floresta. Nos municípios de Tucumã e São Félix do Xingu foram destruídos 200 mil hectares de floresta – o que nos leva a suspeitar da existência de 10 mil traba­lha­ dores(as) escravi­za­dos(as) nas matas. Em um hectare da Floresta Amazônica, existem, em média, 200 espécies de árvores. Isso dá uma idéia da diversidade da mata. Em várias partes da mata amazônica como em localidades do sul amazônico, a cada dois metros quadrados existe uma árvore, grande, média ou pequena. Isso daria em torno de 1.500 árvores por hectare. Segundo lavradores e lavradoras, em florestas maiores, por exemplo Marabá, a quantidade de árvores é menor, pois há uma competição maior por luz e algumas não resistem. “A escravidão é decorrência da miséria, da negação da cidadania a brancos ou negros, do descumprimento das leis pelos mais ricos e poderosos, social e politicamente. O sistema de escravidão, trabalho forçado ou degradante, é de absoluta exclusão social. Está presente neste país tão rico e, ao mesmo tempo, tão desumano na distribuição de renda”, afirma Valderez Maria Monte Rodrigues, ex-coordenadora do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo. Ela enumera os itens que montam a corrente da escravidão no Brasil: miséria, analfabetismo, negação de cidadania, aliciamento, isolamento, vigilância armada, submissão, pressão psicológica, castigos físicos, endividamentos, negação do direito de ir e vir, discriminação, tratamento desumano e trabalho infantil. Mas talvez todos esse itens possam ser resumidos em apenas um: ausência do Estado. O Estado é ausente na punição da qua-

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drilha de criminosos, mandantes e executores, na implantação da cidadania para as pobres populações e trabalhadores(as) da região. A justiça não funciona. Existe o trabalho escravo clássico, no qual a pessoa é literalmente impedida de sair da área, vigiada por homens armados. Existem também as situações em que a escravidão é disfarçada. Inúmeras vezes, a escravidão é feita contra criança ou adolescente ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), 25 mil pessoas ainda são submetidas no Brasil a condições semelhantes ao trabalho escravo. Como a CPT só formula suas previsões com base em depoimentos e denúncias, acredito que esse número seja ainda maior. Inúmeras vezes, quem escraviza são pessoas muito ricas. Por exemplo, das 13 fazendas que compõem o Grupo Quagliato, seis já foram denunciadas por esse crime: Rio Vermelho, Primavera, Califórnia, Brasil Verde, São Carlos e Santa Rosa. A Brasil Verde foi fiscalizada em 1988, 1989, 1992, 1993, 1997 e 1999. Em to­

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das as ocasiões, constatou-se a reincidência de gravíssimas infrações. Apesar disso, houve um novo delito em 2000. “Doutora, obrigado, é a terceira vez que a senhora me liberta.” A auditora fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Cláudia Márcia Brito, escutou essa declaração de um trabalhador que libertara em operação anterior. Apaixonada por seu trabalho, ela sonha com um mundo melhor para esses(as) trabalhadores(as), mas é realista na sua reflexão sobre trabalho escravo no Brasil: “O escravo contemporâneo é submetido a essa situação degradante em razão da miséria, da distribuição injusta de renda que temos no nosso país, do desemprego e da falta de qualificação profissional e de uma reforma agrária. São muitas as causas que levam pessoas iguais a nós a serem desrespeitadas nos seus direitos. O trabalhador se submete à escravidão por absoluta falta de opção de vida e trabalho. A escravidão no Brasil é praticada com uma freqüência muito maior do que a sociedade imagina, pois esse tema não é discutido abertamente pela sociedade, pelos políticos, pelos sindicatos”. Segundo Cláudia Brito, o próprio Ministério do Trabalho só começou a se preocupar com o tema bem recentemente. “Somente em 1995, com as ameaças de sanções internacionais e a pressão da sociedade civil, foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, com o objetivo de combater o trabalho escravo. Atualmente, sentimos que há uma preocupação maior com o tema: a própria OIT [Organização Internacional do Trabalho], as Procuradorias do Trabalho e da República e outros órgãos e entidades começam a despertar e procurar soluções. Em nossas fiscalizações, quantas vezes, trabalhadores libertados pelo Grupo Móvel há dois, três meses voltam à mesma situação. Por que isso acontece? Por falta de oportunidade de emprego e de uma qualificação profissional que lhes ofereça uma perspectiva de mudança. A qualificação profissional está ligada diretamente à educação, e a maioria dos escravos é analfabeta. São pessoas que não tiveram oportunidade de exercer sua cidadania, um direito de todos”, indigna-se ela. O trabalho escravo não é conseqüência da pobreza, mas do lucro fácil. Parte da nossa economia ainda está calcada na obtenção de matérias-primas como carvão vegetal, madeira, cana-de-açúcar e na derrubada de florestas para preparação de pastos a custo quase zero. Combater o trabalho escravo deveria ser uma determinação política, envolvendo expropriação

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de terras, prisão de pessoas ricas e influentes, reforma agrária e investimento maciço na educação e na geração de empregos. A pessoa que hoje é escrava trabalhou na infância, e sua mãe e seu pai também foram escravizados. Esse é o ciclo da ignorância, do lucro fácil, da exploração e da escravidão por dívida e renda, por fome, que precisa ser interrompido. Registrar nomes e rostos de brasilei­ ros(as) ainda escravizados(as), expor sua chocante servidão, essa é apenas a contribuição de documentarista. Dar fim ao trabalho escravo é uma tarefa difícil, mas possível, para toda a sociedade. Venho documentando trabalho escravo há mais de 20 anos e, infelizmente, creio que essa chaga tem aumentado. Selecionei imagens com mais de uma década e fotos recentes que compõem uma pesquisa feita pela OIT. Que sirvam de alerta para que esse problema seja, de fato, resolvido.

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* J. R. Ripper Repórter fotográfico ripper@imagenshu­­­­ma­­­­­

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e s pa ç o a b e rt o Francisco Humberto Cunha Filho*

Autonomia

e

Na história constitucional brasileira, a expressão ‘direitos culturais’ aparece pela primeira vez em 1988, visando estabelecer entendimento e tratamento sistemático da matéria, a qual também foi tratada nas Constituições precedentes, porém de forma pontual e restrita, enfocando preferencialmente as belas-artes, o beletrismo e o patrimônio edificado. Em termos operacionais da política pública de cultura, a Constituição atual determina que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais” e que “o poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro”, que se constitui de todos os bens referenciais à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da nossa sociedade. Os direitos culturais, por óbvio, são os relativos à cultura, tema fartamente tratado na vigente Constituição brasileira, que lhe dedicou seção específica dentro do título da ordem social, além de fazer-lhe referência em diversas outras passagens ao longo do texto. Mas cultura, por sua vez, é um termo polissêmico, possui múltiplos significados, centenas, aliás,

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aberto como bem o atestam especialistas em antropologia, sociologia e cultura em geral. Por essa razão, antes de qualquer passo, é necessário delimitar do que pode ser entendido por cultura, a partir da nossa Lei Maior, o que se faz pela acurada observação dos dispositivos constitucionais já referidos, após o que é possível elaborar uma definição jurídica da expressão nos seguintes termos: cultura é a produção humana juridicamente protegida, relacionada às artes, à memória coletiva e ao repasse de saberes, e vinculada ao ideal de aprimoramento, visando à dignidade da espécie como um todo, e de cada um dos indivíduos. A definição proposta contempla, além do elemento descritivo (produção humana juridicamente protegida), o raio de abrangência (artes, memória coletiva e repasse de saberes) e os valores (aprimoramento e dignidade). Os dois primeiros elementos (descrição e abrangência) são tradicionais em temos de definição de um certo objeto de estudo, mas os valores são usualmente vistos por tradicionalistas com certa desconfiança, por retirar, em suas opiniões, a neutralidade essencial ao estudo científico da matéria. Tal perspectiva, porém, encarada de forma absoluta, já está um tanto gasta até mesmo para as ciências naturais e, em termos do Direito, que se rege, segundo o culturalista Miguel Reale, pelo trinômio ‘fato-valor-norma’, é de aplicação mínima, porque o Direito existe precisamente para concretizar valores eleitos pela sociedade em suas relações sociais. A partir dessa constatação, e considerando que o primeiro título da Constituição do Brasil trata “dos princípios fundamentais”, deve-se entender que ‘aprimoramento e dignidade’ são valores embutidos nos princípios constitucionais culturais, inferíveis, também, dos elementos jurídicos até agora referidos. Em seu conjunto, tais princípios são: pluralismo cultural; participação popular na

concepção e gestão de políticas culturais; atuação do Estado no setor cultural como de suporte logístico; respeito à memória coletiva; e universalidade. É importante conhecer esses princípios porque, a partir dos valores por eles veiculados, as normas devem ser elaboradas, e a ação pública relativa à cultura deve ser fiscalizada. Precisamente sobre a maneira de como o Estado deve atuar nesse setor, há um campo nebuloso no qual a tendência atual é de se enxergar apenas a obrigação do fornecimento de bens e serviços culturais, ou seja, o poder público como provedor. Não se descarta esse importantíssimo papel, mas se adverte que ele não é o único, porque, em termos de direitos cultuais, muitas vezes o Estado tem a obrigação de atuar de forma a nada fazer, abster-se mesmo, para garantir, por exemplo, as liberdades de expressão, criação e difusão. Em outros momentos, a atuação estatal é de coordenação dos esforços públicos com os da cidadania para otimizar atitudes como fiscalização, resgate e ampliação do patrimônio cultural. Esses três tipos de posturas atribuídas ao Estado no trato da cultura (abstenções em favor das liberdades, prestações positivas e coordenação de esforços) nada mais traduzem que as gerações (ou esferas) de direitos fundamentais que vêm sendo construídas desde que a humanidade resolveu lutar por valores como liberdade, igualdade e fraternidade. O direito à cultura, portanto, mesmo ganhando evidência apenas em nossos dias, está presente em todas as gerações de direitos fundamentais. Mas qual o significado de um direito fundamental? A maneira mais simples de chegar à resposta é, simbolicamente, colocar a expressão diante de um espelho invertido, comparando-a com seu antípoda que seria ‘um direito não-fundamental’, um direito simples. O resultado desse exercício pode ser evidenciado pelo próprio adjetivo ‘fundamental’,

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e s pa ç o a b e rt o

que explicita um tipo de direito especial, mais estável que os demais, com preferência na efetivação, guarnecido no documento jurídico mais importante, a Constituição. Além disso, tal tipo de direito, uma vez desrespeitado ou negligenciado, gera como conseqüência severos danos no núcleo que dá a razão de ser do ordenamento jurídico: a dignidade humana, já referida. Os direitos culturais possuem todas essas características, o que os faz merecedores, portanto, da classificação de fundamentais.

Falso dilema? Esse status, contudo, não retira a complexidade do tema. Ao tratar a cultura como direito fundamental, a Constituição estabelece que “é livre a expressão da atividade [cultural], independentemente de censura ou licença”. Além disso, ordena: “a lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais”. Eis, aqui, uma equação dilemática, que demanda desfecho. Explica-se: o Estado, historicamente manipulador da atividade cultural, tem a obrigação de apoiar essa atividade, cuja essência é a liberdade de expressão, e que, por isso mesmo, não raras vezes, faz a crítica do compulsório apoiador, o dito Estado. E mais: quem realiza a manifestação cultural recebeu do constituinte originário a incumbência de funcionar como uma espécie de ouvidor ou ombudsman dos sentimentos sociais, podendo, a qualquer tempo, manifestar o que pensa sobre o statu quo, com liberdade acentuada – uma vez que está jurídica e politicamente distante, como visto, dos grilhões da censura e da licença. Mas o dilema referido é apenas aparente, porque na própria Constituição se encontra, mesmo sem a explicitação desejável, a solução do problema; nela está ordenada uma gestão democrática e diferenciada da cultura, a partir da reelaboração e da utilização de mecanismos garantidores da ‘representação de interesses’ do segmento cultural, em desenho jurídico que possibilita a construção da seguinte hipótese: da mesma maneira que a Constituição Federal de 1988 confere autonomia aos entes políticos (União, estados, Distrito Federal e municípios), também o faz para com certos segmentos sociais, é o caso da cultura. Somente com tal prerrogativa pode-se compatibilizar plena liberdade e compulsório apoio público, depurado de preferências e dirigismos ilegítimos.

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Argumentar em favor da hipótese delineada demanda vencer algumas incompreensões que ela pode suscitar. Em primeiro lugar, de pronto se afasta a possibilidade de que seja ela contenedora de uma tautologia ou redundância, qual seja: sendo o Brasil um Estado democrático de direito, não somente a cultura, mas todo e qualquer segmento da ação estatal deve ter gestão democrática. Esse pensamento, não obstante correto, de tão óbvio cega para a realidade de que, sendo a democracia progressiva, ela se espraia de forma paulatina sobre as relações sociais. Significa que em ambientes democráticos formam-se, não raro, reservas aristocráticas ou até mesmo autocráticas, que, somente com o passar do tempo e a luta das pessoas interessadas, se harmonizam com o regime da liberdade e da igualdade. Assim foi, por exemplo, com os direitos da mulher, assim continuou sendo com a cultura, o que fica evidenciado pelo estudo da normatividade de regência cultural, desde o Brasil Colônia à Constituição de 1988 – interregno durante o qual os órgãos desse setor são reservados aos “notáveis homens de cultura”, com exclusão, por conseguinte, dos “incultos”, assim consideradas as pessoas que se identificam com “o povo”, palavra entendida em sua acepção mais usual. A atual Constituição não mais dá guarida a esse tipo de diferença, o que não significa, em absoluto, exclusão da inteligência dos afazeres públicos da cultura, mas uma aproximação desta com as distintas pessoas vinculadas ao tema, cada uma contribuindo como pode. Afinal de contas, o processo artístico e criativo é apenas uma etapa (importantíssima, aliás) da manifestação cultural, que deve conviver com outras tão simples quanto indispensáveis, como as que garantem infra-estrutura, platéia, patrocínio etc. Também se afasta a possível cogitação de que a hipótese contenha uma contradição, representada pela associação entre democracia e representação de interesses. A dúvida nesse ponto surge porque, historicamente, esse tipo de representação, em momentos bastante vívidos e publicizados, está mais associada à autocracia que a democracia. Vejam-se os exemplos das guildas (corporações) medievais e dos experimentos parlamentares dos nacionalismos do entre-guerras. Sem esquecer essas experiências, mas, ao contrário, avivando-as para depurá-las dos erros, a representação de interesses de que se fala não constitui uma retomada de modelo

ESpaço


Autonomia e democratização da cultura

antigo; em sentido diverso, representa uma síntese entre a representação nacional (na qual representantes não defendem interesses de categorias isoladas, mas o anseio geral da nação) e aquela outra referida. Fala-se, agora, da representação de interesses em segundo grau, com ampla autonomia, mas submetida à vontade geral, estabelecida pela lei. A representação de interesses, nesses moldes, somente pode prevalecer quando presente pelo menos um dos seguintes fatores: a) se ocorre o império do conhecimento técnico-científico sobre o político, o que se averigua quando a situação fática demonstra não ser racional a adoção de medida discricionária em lugar de outra necessariamente emanada de padrões da ciência ou da técnica; ou b) se o reconhecimento da necessidade de tratamento específico, em virtude de peculiaridades do modus faciendi ou da finalidade implícita ou explicitamente definida pela sociedade, por meio da Constituição política, em favor de determinado segmento. Assim, a atividade cultural, por ter técnicas próprias e a peculiar missão de livremente ponderar sobre o statu quo, deve gerir, dentro de largas balizas legais, seus próprios interesses, o que é feito pela elaboração e aplicação de normas próprias. Essa prerrogativa autonômica, aliás, é constitucionalmente explicitada para outros segmentos, como o desporto, que chega a ter uma justiça própria, e as comunidades indíge-

nas, com autonomia para construir, em solo brasileiro, até mesmo sistemas paralelos de direito civil e penal. A concretização da representação de interesses e da autonomia da cultura pode se dar, por exemplo, pela instituição de órgãos normativos secundários, relativamente ao parlamento, como os conselhos de cultura. Estes, é bem verdade, não constituem algo novo, em temos de nomenclatura, mas devem ser profundamente renovados nos critérios de competência, composição e investidura de seus membros. Quanto à competência dos conselhos, deve extrapolar a prática corrente que os reduzem a simples opinantes, passando a atribuir-lhes o papel de produtores de normas e de fiscalizadores da execução delas. Relativamente à composição, é preferível que a representação estatal seja minoritária, pois o sentido dela é velar pela harmonia funcional desses órgãos representativos da comunidade cultural com o todo da Administração. Quanto à investidura, deve-se atentar para que os diferentes segmentos culturais (respeitada, ainda, a complexidade de constituição deles: múltiplas correntes teatrais, musicais, literárias, de investidores, de público etc.) tenham o máximo de poder na escolha de seus representantes, somente podendo haver a recusa de nomeação em casos extremos como a inidoneidade moral ou a incapacidade civil.

* Francisco Humberto Cunha Filho Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco; mestre em Direito pela UFC; professor de Direito Constitucional da Unifor; autor, entre outros, do livro Cultura e democracia na Constituição Federal de 1988 (Letra Legal, 2004)

Caso Pronac Um exemplo de estrutura possivelmente concretizadora da representação de interesses do setor cultural perante o Estado brasileiro pode ser extraído do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), que constitui, para esse fim, um observatório privilegiado, em virtude dos seguintes motivos: 1) tem abrangência nacional; 2) foi promulgado sob a égide da nova Constituição, que previu, como visto, a integração da cultura ao mundo democrático; 3) serve de exemplo à construção de programas análogos, em estados e municípios. O Pronac, em sua origem, foi construído, ao menos parcialmente, sob o signo da representação de interesses, quando tinha como principal órgão de poder a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), de composição plural e paritária na relação Estado–sociedade, e cujos poderes eram suficientes para definir e fiscalizar ações públicas de cultura relativas ao dito programa. Porém, em virtude da incompreensão do novo papel constitucional da cultura, adida a históricos anseios centralizadores, cassaram-se, desde 1997, por meio de medida provisória há muito convertida em lei, os poderes originários da CNIC. Em conseqüência, o Pronac foi deformado, nesse aspecto, não passando, hoje, de um tradicional programa de

governo que omite observar qualquer peculiaridade do fluxo de poder atinente ao setor cultural. Uma gestão pública da cultura que contemple os valores da autonomia e da democratização tem a vantagem de conferir legitimidade permanente à atuação estatal. Presta-se também ao fomento da cidadania, pois a proximidade das pessoas interessadas é o mais eficiente instrumento de combate a um dos maiores males de nossa convivência cívica: a síndrome da ineficácia das leis, comum a todo o direito brasileiro, e que, relativamente à cultura, tem peso duplicado: primeiro, pelo motivo geral da dificuldade de implementação das normas; segundo, porque há a necessidade prévia de entender o novo status jurídico da cultura, desenhado na Constituição Cidadã. Esse entendimento, que perpassa pelo estudo acadêmico e popular dos direitos culturais, conduzirá, sem dúvida, à racionalização gerencial do setor, permitindo otimizar as responsabilidades do Estado e da sociedade para com a cultura, um setor tão estratégico para a vida em sociedade que, mesmo que quiséssemos, dele não poderíamos nos desvencilhar.

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Indicadores François E. J. de Bremaeker*

Raios X das Em 1975, o Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam) realizou, pela primeira vez, uma pesquisa sobre as características e percepções de prefeitos e prefeitas, tendo repetido o levantamento em outras oportunidades, sempre a partir de dados obtidos por meio de questionários aplicados durante seminários destinados às pessoas eleitas. As informações contidas no presente estudo pertencem ao cadastro elaborado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e disponibilizado em meio eletrônico. Muito embora as informações disponíveis se refiram exclusivamente às características de prefeitos e prefeitas, pelos dados processados é possível conhecer, em detalhes, quem é esse prefeito ou essa prefeita, o que facilita o trabalho de pessoas estudiosas do tema. Em fins de 2002, o Ibam realizou uma amostra de representantes dos Executivos municipais, na qual levantava as percepções e expectativas em relação ao governo federal e aos governos estaduais que estariam sendo empossados em janeiro de 2003. Muito em-

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bora tenham sido utilizadas bases de dados e procedimentos metodológicos distintos, os resultados encontrados são passíveis de serem incorporados aos resultados do presente estudo, pois a experiência empírica sobre o tema indica que é elevada a probabilidade de que os resultados encontrados na pesquisa realizada em 2002 não viriam a diferir significativamente se fosse efetuado um novo levantamento em 2004, com prefeitos e prefeitas eleitos, pois muitas dessas pessoas se reelegeram. A partir de algumas características – sexo, idade, grau de instrução, ocupação, partido político e estado de nascimento –, é possível conhecer quem está na chefia do Executivo municipal, agente político mais próximo da população e que, portanto, tem mais informações a respeito das necessidades das suas comunidades. A descrição desse perfil está relacionada com as regiões do país e com o porte demográfico dos municípios, o que permite uma melhor compreensão na relação que pode existir entre o desenvolvimento socioeconômico do município


e as características exigidas de seus prefeitos ou suas prefeitas. Em 2004, foram realizadas eleições em 5.562 municípios. Esse número corresponde a 5.558 municípios existentes em 2004 e mais quatro novos municípios instalados em 1º de janeiro de 2005. Efetivamente, não foi realizada eleição

em um município do estado de Minas Gerais, em decorrência da impugnação de todas as pessoas que se candidataram. Como o estudo foi realizado tomando por base o cadastro de prefeitos e prefeitas eleitos nos dois turnos da eleição, os dados referentes a esse município foram considerados como “sem informação”.

Principais características As variáveis utilizadas foram estruturadas da seguinte forma: • Sexo – se masculino ou feminino. • Idade – caracterizada segundo cinco diferentes grupos: - até 29 anos; - de 30 a 39 anos; - de 40 a 49 anos; - de 50 a 59 anos; - com 60 anos ou mais. • Grau de instrução – categorizado segundo quatro diferentes grupos: - superior (completo ou incompleto); - médio (completo ou incompleto); - fundamental (completo ou incompleto); - lê e escreve, o que significa dizer que não freqüentou o ensino formal. • Ocupação – utilizando-se a informação correspondente à declaração feita pelo(a) prefeito(a) eleito(a) ao preencher a ficha de inscrição da

Sexo No pleito de 2004 para as prefeituras do Brasil, nada menos que 92,46% das pessoas eleitas são do sexo masculino e apenas 7,52% do sexo feminino. A região Sul teve maior participação relativa de prefeitos (95,79%) e, conseqüentemente, a menor participação de prefeitas eleitas (4,21%). Percentuais bastante semelhantes também são registrados na região Sudeste: 94,54% de prefeitos e 5,40% de prefeitas.

candidatura, mantendo-se o máximo de detalhe, em que são listadas 102 diferentes ocupações, além das categorias “outra” e “não informada”. • Partido político – considerando-se a filiação partidária do prefeito ou prefeita eleito(a), e não a coligação partidária. • Estado de nascimento – considerando-se tão-somente se o prefeito ou a prefeita é natural ou não do estado em que se elegeu. Muito embora na ficha cadastral esteja relacionado o município de nascimento, é difícil ter certeza se a pessoa eleita é realmente natural do município: no caso de municípios emancipados posteriormente à data de nascimento do prefeito ou prefeita, mesmo que a pessoa fosse natural do novo município, está oficialmente registrado o nascimento sob o nome do município de origem.

A região Centro-Oeste apresenta números relativos próximos da média nacional: 92,04% de prefeitos e 7,96% de prefeitas. As outras duas regiões registraram uma participação relativa de prefeitos abaixo da média brasileira, ou seja, são as que apresentam maior participação de prefeitas: 10,02% no Norte e 10,94% no Nordeste. A distribuição por sexo de representantes dos Executivos municipais para o conjunto dos municípios brasileiros, segundo os grupos

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indicadores

de habitantes, não apresenta uma tendência definida, uma vez que as participações relativas alternam resultados acima e abaixo da média nacional pelos diferentes grupos de habitantes. Em cinco desses grupos, a participação relativa de prefeitos e prefeitas supera a média brasileira: municípios com população até 2 mil habitantes têm 93,44% do total de prefeitos e prefeitas; municípios com população entre 5 mil e 10 mil habitantes (92,98%); municípios com população entre 10 mil e 20 mil habitantes (92,79%); municípios com população entre 100 mil e 200 mil habitantes (94,66%); e municípios com população superior a 5 milhões de habitantes (100,00%). Nos demais seis grupos, a participação relativa das prefeitas supera a média nacional: municípios com população entre 2 mil e 5 mil habitantes têm 8,00% do total de prefeitos e prefeitas; municípios com população entre 20 mil e 50 mil habitantes (8,12%); municípios com população entre 50 mil e 100 mil habitantes (8,04%); municípios com população entre 200 mil e 500 mil habitantes (7,87%);

municípios com população entre 500 mil e 1 milhão de habitantes (10,00%); e municípios com população entre 1 milhão e 5 milhões de habitantes (9,09%).

Idade A variável idade pode dar uma idéia da experiência de vida do prefeito ou da prefeita e ser determinante na sua escolha pela comunidade. No pleito de 2004, a maior parte de representantes do Executivo municipal eleita está no grupo de idade entre 40 e 49 anos (39,36%), seguindo-se em importância o grupo de idade entre 50 e 59 anos (27,85%). Prefeitos ou prefeitas com idade entre 30 e 39 anos representam 18,70% do total, enquanto aqueles(as) que possuem 60 anos ou mais chegam a 11,18%. Prefeitos ou prefeitas com idade até 29 anos representam tão-somente 2,21% do total. A maior participação de prefeitos ou prefeitas com idade entre 40 e 49 anos é encontrada na região Centro-Oeste (47,31%) e a menor participação na região Sudeste (36,39%). Para representantes com idade superior a 60

Tabela 1 Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo o sexo, pelas grandes regiões – Brasil Grandes regiões Sexo Brasil Norte Nordeste Sudeste

Sul Centro-Oeste

TOTAL

5.562

449 1.792 1.668 1.188 465

Masculino

5.143

404 1.596 1.577 1.138 428

Feminino

418 45 196 90 50 37

Sem informação 1 - - 1 - Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

Tabela 2 Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo o sexo, pelos grupos de habitantes – Brasil População total (por mil) Até 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 Sexo Total a a a a a a a a a e 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 mais TOTAL

5.562 122 1.238 1.311 1.317 1.010 311 131

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20

11

2

Masculino 5.143 114 1.138 1.219 1.222 928 286 124 82 18 10 2 Feminino 418 8 99 92 95 82 25 7 7 2 1 Sem informação 1 - 1 - - - - - - - - Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

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Raios x das prefeituras brasileiras

a 49 anos apresentam participações relativas mais elevadas nos municípios com população até 10 mil habitantes, enquanto prefeitos ou prefeitas dos grupos de idade de 50 a 59 anos e com 60 anos ou mais apresentam participações mais elevadas nos municípios com população superior a 10 mil habitantes. A participação mais elevada de prefeitos ou prefeitas com idade inferior a 29 anos ocorre nos municípios com população entre 5 mil e 10 mil habitantes (3,13%). Quanto a representantes com idade superior a 50 anos, a maior participação ocorre nos municípios com população entre 1 milhão e 5 milhões de habitantes (63,63%) e na totalidade daqueles com população superior a 5 milhões de habitantes.

anos, a maior participação é encontrada na região Nordeste (11,94%) e a menor na região Centro-Oeste (5,38%). Quanto a representantes mais jovens, a região que apresenta a maior participação relativa é a Nordeste (4,07%), enquanto a menor participação está na região Sudeste (1,02%). A distribuição da idade de representantes dos Executivos municipais para o conjunto dos municípios brasileiros mostra que existe uma tendência no sentido de que aumenta a idade à medida que aumenta o porte demográfico dos municípios. Prefeitos ou prefeitas dos grupos com idade até 29 anos, de 30 a 39 anos e de 40

Tabela 3 Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo a idade, pelas grandes regiões – Brasil Grandes regiões Idade Brasil Norte Nordeste Sudeste TOTAL

5.562

Até 29 anos

Sul Centro-Oeste

449 1.792 1.668 1.188 465

123

7

73

17

18

8

De 30 a 39 anos

1.040

107

360

260

214

99

De 40 a 49 anos

2.189

190

672

607

500

220

De 50 a 59 anos

1.549

111

459

536

331

112

De 60 anos ou mais

622

32

214

233

118

25

Sem informação

39

2

14

15

7

1

Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

Tabela 4 Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo a idade, pelos grupos de habitantes – Brasil População total (por mil) Até 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 Idade Total a a a a a a a a a e 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 mais TOTAL Até 29 anos

5.562 122 1.238 1.311 1.317 1.010 311 131

89

20

11

2

123 3 27 41 24 24 3 - 1 - - -

De 30 a 39 anos

1.040

26

271

246

260

163

51

10

9

2

2

-

De 40 a 49 anos

2.189

51

499

537

509

391

102

50

39

9

2

-

De 50 a 59 anos

1.549

29

320

329

370

304

113

45

27

6

5

1

De 60 anos ou mais

622

10

114

147

145

121

41

25

13

3

2

1

Sem informação 39 3 7 11 9 7 1 1 - - - Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

MAR / ABR 2005

93


indicadores

Grau de instrução A maior parte dos novos prefeitos e prefeitas brasileiros possui ensino superior (47,86%), seguindo-se em importância quem possui ensino médio (30,33%) e fundamental (19,11%). Prefeitos e prefeitas sem instrução formal constituem 1,67% do total. A região que apresenta maior participação relativa de prefeitos e prefeitas com nível superior é a Sudeste (50,48%), seguindo-se em importância a região Nordeste (49,11%). As demais regiões se posicionam abaixo da média nacional: Sul (46,21%), Centro-Oeste (45,81%) e Norte (39,64%). Para prefeitos e prefeitas com ensino

médio, a maior participação relativa é encontrada na região Centro-Oeste (34,62%), seguida de perto pelas regiões Norte (34,08%) e Sul (33,25%). As demais regiões se posicionam abaixo da média do país: Nordeste (29,69%) e Sudeste (26,74%). Quanto a representantes que possuem ensino fundamental, a maior participação relativa é encontrada na região Norte (23,16%), seguindo-se em importância as regiões Sudeste (19,66%) e Sul (19,36%). As demais regiões se posicionam abaixo da média nacional: Centro-Oeste (17,85%) e Nordeste (17,75%). A distribuição do grau de instrução de representantes dos Executivos municipais para o

Tabela 5 Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo o grau de instrução, pelas grandes regiões – Brasil Grandes regiões Grau de instrução Brasil Norte Nordeste Sudeste

Sul Centro-Oeste

TOTAL

5.562

449 1.792 1.668 1.188 465

Superior

2.662 178 880 842 549 213

Médio

1.687 153 532 446 395 161

Fundamental 1.063 104 318 328 230 83 Lê e escreve

93

10

43

30

5

5

Sem informação

57

4

19

22

9

3

Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

conjunto dos municípios brasileiros mostra que existe uma tendência no sentido de que aumenta o grau de instrução à medida que aumenta o porte demográfico dos municípios. Prefeitos e prefeitas com ensino superior apresentam uma participação relativa de 27,05% para os municípios com até 2 mil habitantes, que se eleva paulatinamente até atingir a totalidade dos casos para os municípios com população acima de 1 milhão de habitantes. Prefeitos e prefeitas com ensino médio apresentam uma participação relativa de 38,52% para os municípios com população até 2 mil habitantes, que se reduz à medida que aumenta o porte demográfico dos municípios, caindo para 25% para os municípios com população entre 500 mil e 1 milhão de habitantes. Quanto a representantes com ensino fundamental, apresentam uma participação relativa de 28,69% para os municípios com população até 2 mil habitantes, que se reduz a 10% para os municípios com população entre

94

Democracia Viva Nº 26

500 mil e 1 milhão de habitantes.

Ocupação Segundo o cadastro do TSE, a partir das respostas dos novos prefeitos e prefeitas, foi possível identificar 102 diferentes tipos de ocupação, além das categorias “outra” e “sem informação”. Interessante observar que as 13 ocupações que apresentaram maiores indicações totalizaram 68,02% do total de respostas, a saber: • 11,27% de comerciantes; • 9,80% de agricultores ou agricultoras; • 7,44% de médicos ou médicas; • 6,85% de empresários ou empresárias; • 5,57% de prefeitos ou prefeitas; • 4,51% de advogados ou advogadas; • 3,96% de professores ou professoras de ensino fundamental e médio; • 3,94% de servidores ou servidoras públicas municipais;


Raios x das prefeituras brasileiras

Tabela 6 Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo o grau de instrução, pelos grupos de habitantes – Brasil População total (por mil) Até 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 Grau de instrução Total a a a a a a a a a e 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 mais TOTAL

5.562 122 1.238 1.311 1.317 1.010 311 131 89

20

11 2

Superior 2.662 33 446 541 639 597 203 105 72 13 11 2 Médio 1.687 47 422 430 407 271 74 20 11 5 - Fundamental 1.063 35 335 282 246 123 29 5 6 2 - Lê e escreve 93 3 27 43 13 4 3 - - - - Sem informação 57 4 8 15 12 15 2 1 - - - Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

• 3,72% de pecuaristas; • 3,33% de engenheiros ou engenheiras; • 3,15% de servidores ou servidoras públicas estaduais; • 2,39% de produtores ou produtoras agropecuárias; e • 2,09% de administradores ou administradoras. Da lista acima, se fossem reunidos numa mesma categoria agricultores e agricultoras, pecuaristas e produtores e produtoras agropecuárias, que têm a ver com o setor primário da economia, totalizariam

15,91% das ocupações. Da mesma forma, se fossem reunidos professores e professoras de ensino fundamental e médio aos servidores e às servidoras públicas municipais, uma vez que a primeira é um detalhamento da segunda, essa categoria se elevaria a 7,90%. A distribuição das 13 principais ocupações segundo os grupos de habitantes mostra que tendem a prevalecer para os municípios de menor porte demográfico aquelas relacionadas ao setor primário (agricultor e agricultora, pecuarista e produtor ou produtora agropecuária), além de servidores e servidoras públicas

Tabela 7 Distribuição de prefeitos(as) em 2004, segundo a ocupação, pelas grandes regiões – Brasil Grandes regiões Ocupação Brasil Norte Nordeste Sudeste TOTAL Administrador Advogado Agente administrativo Agente de saúde Agricultor Agrônomo Analista de sistemas Aposentado Arquiteto Assistente social Auxiliar de escritório Auxiliar de laboratório Bancário Bibliotecário/ arquiv. Biólogo

Sul Centro-Oeste

5.562 449 1.792 1.668 1.188 465 116 251 17 2 545 83 7 63 12 5 4 1 52 2 7

3 16 - - 27 6 - 3 - - - - 1 1 -

41 25 74 91 11 4 2 - 169 158 33 16 2 3 13 34 3 5 1 4 - 2 - - 17 15 - - 2 2

33 14 50 20 1 1 - 156 35 21 7 1 1 13 2 2 - 2 - 1 17 2 1 2 1 continua

MAR / ABR 2005

95


indicadores

Grandes regiões Ocupação Brasil Norte Nordeste Sudeste Carvoeiro Comerciante Comerciário Contador Corretor imóveis/seg. Despachante Digitador Diretor de empresa Diretor estab. ensino Dona de casa Economista Eletricista Empresário Empresário espetáculo Enfermeiro Engenheiro Estatístico Estudante Farmacêutico Fiscal Fisioterapeuta Garimpeiro Geógrafo Geólogo Gerente Industrial Jornalista Locutor Magistrado Mecânico Médico Membro Forças Armadas Membro Minist. Público Militar reformado Motorista transp. carga Motorista transp. colet. Ocup. cargo comissão Odontólogo Operad. equip. médico Padeiro Pecuarista Pedagogo Pescador Piloto Policial Civil

Sul Centro-Oeste

1 - - - - 1 627 40 185 195 154 53 17 - 4 6 6 1 60 4 12 17 18 9 7 - - 4 3 6 - - 1 5 1 - 1 - - 11 - 3 1 7 7 - 1 4 1 1 16 2 6 4 1 3 37 5 15 11 5 1 8 1 2 2 2 1 381 36 101 127 83 34 11 2 4 3 - 2 7 1 3 2 - 1 185 7 71 64 30 13 2 - 2 - - 13 - 9 2 1 1 20 2 5 4 9 6 - 2 1 3 4 - 2 1 1 1 - 1 - - 1 - - 1 - 3 - 1 - 1 1 13 1 2 2 7 1 63 5 10 23 19 6 12 - 4 5 3 13 2 4 1 5 1 1 - 1 - - 2 - - - 2 414 16 203 119 41 35 2 - - 1 1 1 1 - - - 8 1 1 4 2 22 - 9 7 5 1 14 3 5 5 1 10 1 6 1 1 1 67 5 19 27 12 4 1 - - - 1 3 - - 2 1 207 31 72 55 22 27 14 - 8 3 1 2 2 - 1 - 1 2 1 1 - - 12 - 5 4 2 1 continua

96

Democracia Viva Nº 26


Raios x das prefeituras brasileiras

Grandes regiões Ocupação Brasil Norte Nordeste Sudeste Policial Militar 10 - 4 Prefeito 310 23 83 Produtor agropecuário 133 10 28 Professor ensinos fund. e médio 220 31 71 Professor ens. profis. 7 2 1 Professor ens. superior 43 6 9 Protético 3 - 1 Psicólogo 5 1 1 Publicitário 4 1 1 Químico 4 - - Representante comercial 8 - 2 Sacerdote 22 2 7 Secretário/datilógrafo 5 1 2 Securitário 1 - - Senador /dep./veread. 97 7 40 Serralheiro 1 - - Serventuário da Justiça 17 1 2 Serv. publ. aposentado 72 7 21 Serv. publ. estadual 175 25 71 Serv. publ. federal 46 11 24 Serv. publ. municipal 219 8 53 Sociólogo 3 - 2 Tabelião 10 - 4 Taxista/mot. particular 2 - 1 Técnico agronomia 39 4 10 Técnico contabilidade 45 4 13 Técnico edificações 2 - 2 Técnico eletricidade 2 1 1 Técnic laborat./Raios X 2 1 - Técnico mecânica 2 - 1 Técnico mineração 2 - - Técnico obras civis 1 - - Técnico química 1 - - Trab. construção civil 4 - 2 Trab. fab. artef. mad. 3 1 - Trab. metalúrgico 1 - - Trab. serviço contábil 1 - 1 Vendedor com. atac./var. 4 2 1 Vendedor pracista 4 1 - Veterinário 37 4 9 Vigilante 1 - - Zootecnicista 4 - 2 Outra 345 48 111 Não informada 163 23 62

Sul Centro-Oeste

1 2 3 95 76 33 52 17 26 47 57 14 3 - 1 17 8 3 2 - 3 - 2 - 3 1 3 3 10 3 - 2 - 1 21 14 15 1 - 4 8 2 26 13 5 37 28 14 8 2 1 82 67 9 1 - 2 2 2 1 - 7 15 3 9 14 5 - - - - 1 - 1 - 2 - 1 - 1 - 2 - 2 - - 1 - - 1 - 2 1 8 12 4 1 - 1 1 98 56 32 42 28 8

Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

MAR / ABR 2005

97


indicadores

municipais (professores e professoras de ensino fundamental e médio e quem se declarou servidor público municipal). Nada menos que 80,25% das principais atividades ligadas ao setor primário se encontram nos municípios com população entre 2 mil e 20 mil habitantes, enquanto, em relação a servidores e servidoras públicos municipais, 76,31% dessas atividades se encontram nesses mesmos municípios. Para os municípios de médio e grande portes demográficos tendem a prevalecer prefeitos e prefeitas que declararam ser empre­ sários(as) ou profissionais liberais – médico(a),

engenheiro(a), advogado(a) e adminis­tra­dor(a). 61,49% desses e dessas profissionais se encontram nos municípios com população entre 10 mil e 100 mil habitantes. Em âmbito regional, ao serem destacadas as cinco principais ocupações dos novos prefeitos e das novas prefeitas, o que se observa é que os resultados da região Sudeste são os que mais se aproximam do conjunto brasileiro.

Partido político Os dez partidos políticos que mais elegeram representantes dos Executivos munici-

Tabela 8 Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo a ocupação, pelos grupos de habitantes – Brasil População total (por mil) Até 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 Ocupação Total a a a a a a a a a e 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 mais TOTAL

5.562 122 1.238 1.311 1.317 1.010 311 131

89

20

11

2

Administrador 116 5 17 22 34 29 4 1 3 1 - Advogado 251 3 35 42 50 66 27 15 8 3 2 Agente administrativo 17 - 4 2 9 1 - 1 - - - Agente de saúde 2 - - - 2 - - - - - - Agricultor 545 21 168 166 122 60 8 - - - - Agrônomo 83 - 10 19 28 16 9 1 - - - Analista de sistemas 7 - 1 - 2 4 - - - - - Aposentado 63 - 23 18 9 8 4 - - 1 - Arquiteto 12 - 1 1 3 2 2 3 - - - Assistente social 5 - - 1 2 2 - - - - - Auxiliar de escritório 4 - 3 1 - - - - - - - Auxiliar de laboratório 1 - - - - - 1 - - - - Bancário 52 - 10 17 11 9 5 - - - - Bibliotecário/arquiv. 2 1 1 - - - - - - - - Biólogo 7 1 1 2 3 - - - - - - Carvoeiro 1 - - 1 - - - - - - - Comerciante 627 13 145 165 167 111 19 2 4 1 - Comerciário 17 1 2 8 5 1 - - - - - Contador 60 1 12 15 18 11 3 - - - - Corretor imóveis/seg. 7 - - - 4 2 1 - - - - Despachante 6 1 4 - 1 - - - - - - Digitador 1 - 1 - - - - - - - - Diretor de empresa 11 - 1 2 5 3 - - - - - Diretor estab. ensino 7 - 2 4 1 - - - - - - Dona de casa 16 1 6 5 3 1 - - - - - Economista 37 1 4 4 9 9 4 - 3 - 1 2 continua

98

Democracia Viva Nº 26


Raios x das prefeituras brasileiras

População total (por mil) Até 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 Ocupação Total a a a a a a a a a e 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 mais Eletricista 8 - 3 3 1 - - - 1 - - Empresário 381 2 42 68 109 91 40 20 8 1 - Empresário espetáculo 11 - 3 - 4 1 2 - 1 - - Enfermeiro 7 - 1 1 3 2 - - - - - Engenheiro 185 1 21 28 38 53 19 14 10 - 1 Estatístico 2 - - - 2 - - - - - - Estudante 13 - 3 3 2 5 - - - - - Farmacêutico 20 - 3 7 5 1 1 3 - - - Fiscal 6 - 2 2 1 1 - - - - - Fisioterapeuta 4 - 1 2 - 1 - - - - - Garimpeiro 1 - 1 - - - - - - - - Geógrafo 1 - - - - - - - 1 - - Geólogo 3 - 1 - - - - 2 - - - Gerente 13 - 4 5 4 - - - - - - Industrial 63 - 11 17 16 15 3 1 - - - Jornalista 12 - 1 - 3 3 4 1 - - - Locutor 13 - 1 2 2 3 2 1 1 1 - Magistrado 1 - - - - 1 - - - - - Mecânico 2 - - 1 1 - - - - - - Médico 414 1 44 70 129 113 32 15 5 5 - Membro Forças Arm. 2 - - 1 - 1 - - - - - Membro Min. Publ. 1 - - 1 - - - - - - - Militar reformado 8 - 3 3 - 2 - - - - - Motorista transp. carga 22 - 4 11 6 1 - - - - - Motorista transp. col. 14 3 5 4 2 - - - - - - Ocup. cargo comissão 10 - 2 3 3 2 - - - - - Odontólogo 67 - 15 13 22 13 2 2 - - - Operad. equip. médico 1 - - - - 1 - - - - - Padeiro 3 - - 1 1 1 - - - - - Pecuarista 207 10 57 61 43 29 7 - - - - Pedagogo 14 1 3 5 1 2 - 1 1 - - Pescador 2 - - 1 1 - - - - - - Piloto 2 - - - 2 - - - - - - Policial Civil 12 1 - 9 2 - - - - - - Policial Militar 10 - 6 2 1 1 - - - - - Prefeito 310 8 87 61 61 46 23 9 11 1 3 Produtor agropecuário 133 5 45 36 27 15 3 1 1 - - Prof. ens. fund. e médio 220 5 58 61 47 38 7 2 2 - - Professor ens. profis. 7 - 1 2 2 1 1 - - - - Professor ens. superior 43 - 3 5 9 9 5 5 6 - 1 Protético 3 - 1 1 - - 1 - - - - Psicólogo 5 - 1 1 - - - 1 1 1 - Publicitário 4 - - - 1 1 1 - 1 - - Químico 4 - - 1 1 1 - 1 - - - continua

MAR / ABR 2005

99


indicadores

População total (por mil) Até 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 Ocupação Total a a a a a a a a a e 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 mais Repres. comercial 8 - 2 2 3 1 - - - - - Sacerdote 22 - 3 5 6 4 3 1 - - - Secretário/datilógrafo 5 - 2 1 1 1 - - - - - Securitário 1 - - 1 - - - - - - - Senador/dep./veread. 97 2 15 12 13 13 10 12 12 5 3 Serralheiro 1 - 1 - - - - - - - - Serventuário da Justiça 17 - 5 3 4 4 1 - - - - Serv. publ. aposentado 72 1 18 16 15 13 7 2 - - - Serv. publ. estadual 175 8 31 52 38 31 9 4 2 - - Serv. publ. federal 46 - 12 9 10 13 1 - 1 - - Serv. publ. municipal 219 12 90 46 33 31 5 2 - - - Sociólogo 3 - - 1 - 1 - 1 - - - Tabelião 10 - 2 2 1 3 1 1 - - - Taxista/mot. part. 2 - - 1 1 - - - - - - Técnico agronomia 39 2 15 9 11 1 1 - - - - Técnico contabilidade 45 - 9 16 8 8 3 - 1 - - Técnico edificações 2 - 1 - - 1 - - - - - Técnico eletricidade 2 - 1 1 - - - - - - - Técnico laborat./raios X 2 - - - 1 1 - - - - - Técnico mecânica 2 - - - 1 1 - - - - - Técnico mineração 2 - - - 1 1 - - - - - Técnico obras civis 1 - 1 - - - - - - - - Técnico química 1 - - - - 1 - - - - - Trab. constr. civil 4 1 - 1 1 - 1 - - - - Trab. fab. artef. mad. 3 - 1 - 1 1 - - - - - Trab. metalúrgico 1 - - - - - - 1 - - - Trab. serviço contábil 1 - - - - 1 - - - - - Vend. com. atac./var. 4 - 1 1 2 - - - - - - Vendedor pracista 4 - 2 - 2 - - - - - - Veterinário 37 - 4 8 11 12 2 - - - - Vigilante 1 - 1 - - - - - - - - Zootecnicista 4 - 1 - - 1 2 - - - - Outra 345 7 106 99 70 41 16 3 3 - - Não informada 163 3 30 38 44 35 9 2 2 - - Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

pais em 2004, dentro de um universo de 24 partidos que tiveram representantes eleitos(as), conseguiram concentrar nada menos que 94,91% do total de pessoas eleitas, totalizando 5.279 cargos. Os partidos políticos que mais elegeram prefeitos e prefeitas foram: • PMDB – 19,06%; • PSDB – 15,66%; • PFL – 14,29%;

100

Democracia Viva Nº 26

• • • • • • •

PP – 9,91%; PTB – 7,62%; PT – 7,39%; PL – 6,89%; PPS – 5,50%; PDT – 5,45%; PSB – 3,15%. Em âmbito regional, observa-se que, entre os três partidos políticos que apresentam para o conjunto do país as principais


Raios x das prefeituras brasileiras

para todos os dez partidos, a maior concentração ocorre nos municípios com população entre 2 mil e 50 mil habitantes, variando essa concentração de 90,86% a 80,05%. A concentração pelos principais partidos, ordenados segundo o número total de prefeitos e prefeitas eleitos, é: • PMDB – 88,40%; • PSDB – 85,30%; • PFL – 90,19%; • PP – 89,66%; • PTB – 88,68%; • PT – 80,05%; • PL – 90,86%; • PPS – 86,60%;

posições, o PMDB é o partido que apresenta uma situação mais regular, ocupando o primeiro lugar na região Sul e quatro segundos lugares. O PSDB apresenta três primeiros lugares, nas regiões Norte, Sudeste e Centro-Oeste, o terceiro lugar no Nordeste e o quarto lugar na região Sul. Quanto ao PFL, o partido apresenta o primeiro lugar na região Nordeste, o terceiro lugar no Sudeste e o quinto lugar nas regiões Norte, Sul e Centro-Oeste. A distribuição de prefeitos e prefeitas segundo os partidos políticos e de acordo com o porte demográfico dos municípios mostra que,

Tabela 9 Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo o partido político, pelas grandes regiões – Brasil Grandes regiões Partido político Brasil Norte Nordeste Sudeste TOTAL PAN

5.562

Sul Centro-Oeste

449 1.792 1.668 1.188 465

1 - - 1 - -

PCdoB

10 - 8 1 - 1

PDT

303 17 52 69 145 20

PFL

795 40 418 210 86 41

PHS

25 - 15 6 3 1

PL PMDB

383 42 143 129 16 53 1.060 62 268 288 373 69

PMN

31 2 14 14 - 1

PP

551 24 123 110 242 52

PPS

306 34 92 83 44 53

Prona

7 1 6 - - -

PRP

37 3 28 2 4 -

PRTB

12 4 3 5 - -

PSB

175 8 109 39 15 4

PSC

23 4 9 9 1 -

PSDB

871 89 232 354 96 100

PSDC

12 2 6 1 1 2

PSL

24 4 6 6 8 -

PT

411 60 68 156 95 32

PT do B

23

PTB

424 47 133 153 57 34

2

16

4

1

-

PTC

16 - 11 4 1 -

PTN

5 - 4 1 - -

PV

56 4 28 22 - 2

Sem informação 1 - - 1 - Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

MAR / ABR 2005

101


indicadores

• PDT – 87,79%; • PSB – 84,57%. Como os municípios com população entre 2 mil e 50 mil habitantes representam 87,67% do total de municípios do país, observa-se que seis partidos políticos foram os que mais concentraram prefeitos e prefeitas nos municípios de pequeno e médio portes demográficos: PMDB, PFL, PP, PTB, PL e PDT. Sendo assim, os partidos políticos que concentram maior número relativo de prefeitos e

prefeitas em municípios de grande porte demográfico são PSDB, PT, PPS e PSB.

Estado de nascimento Segundo os dados do cadastro do TSE, 83,82% dos novos prefeitos e das novas prefeitas são naturais do próprio estado. Em âmbito regional, observa-se que existe uma nítida distinção entre as regiões Norte (51,67% de prefeitos

Tabela 10 Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo o partido político, pelos grupos de habitantes – Brasil População total (por mil) Até 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 Partido político Total a a a a a a a a a e 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 mais TOTAL PAN

5.562 122 1.238 1.311 1.317 1.010 311 131 89

20

11 2

1 - - - - 1 - - - - - -

PCdoB

10 - 1 1 3 2 1 1 1 - - -

PDT

303 6 68 81 59 58 11 9 7 2 2 -

PFL

795 16 169 208 216 124 38 15 6 2 - 1

PHS

25 - 3 8 7 6 - 1 - - - -

PL

383 8 88 91 93 76 16 9 2 - - -

PMDB

1.060 25 273 259 241 164 64 19 12

2

1 -

PMN

31 - 3 7 9 10 2 - - - - -

PP

551 18 157 126 119 92 30

PPS

306 7 52 64 83 66 16 7 10 - 1 -

6

2

1

-

-

Prona

7 - - 4 1 2 - - - - - -

PRP

37 - 3 7 15 10 1 1 - - - -

PRTB

12 2 2 - - 5 3 - - - - -

PSB

175 1 41 31 47 29 9 8 5 3 1 -

PSC

23 - 3 4 6 6 3 1 - - - -

PSDB

871 18 178 209 194 162 65 22 16 5 1 1

PSDC

12 - - 3 3 1 3 1 - 1 - -

PSL

24 - 5 9 3 7 - - - - - -

PT

411 8 71 89 93 76 24 20 22 4 4 -

PT do B

23 - 1 5 11 6 - - - - - -

PTB

424 13 111 94 90 81 22 8 4 - 1 -

PTC

16 - - 4 8 4 - - - - - -

PTN

5 - - 2 1 2 - - - - - -

PV

56 - 8 5 15 19 4 3 2 - - -

Sem informação 1 - 1 - - - - - - - - Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

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Democracia Viva Nº 26


Raios x das prefeituras brasileiras

e prefeitas nascidos no estado) e Centro-Oeste (52,90%), que são regiões receptoras de migrantes, e as demais regiões, nas quais predominam largamente prefeitos e prefeitas nascidos no próprio estado: 91,79% no Sudeste; 91,41% no Nordeste; e 85,44% no Sul.

apresenta nenhuma tendência, situando-se em torno da média nacional.

* François E. J. de Bremaeker Economista e geógrafo do Ibam, coordenador técnico do Banco de Dados Municipais (Ibamco) e do Centro

A distribuição de representantes dos Executivos municipais, segundo o estado de nascimento pelos grupos de habitantes, não

de Estudos de Finanças Municipais (Cefim) bremaeker@ibam.org.br

Tabela 11 Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo o estado de nascimento, pelas grandes regiões – Brasil Grandes regiões Estado de nascimento Brasil Norte Nordeste Sudeste TOTAL

Sul Centro-Oeste

5.562

449 1.792 1.668 1.188 465

Mesmo estado 4.662

232 1.638 1.531 1.015 246

Outro estado 874 213 152 125 166 218 Sem informação 26 4 2 12 7 1 Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

Tabela 12 Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo o estado de nascimento, pelos grupos de habitantes – Brasil População total (por mil) Estado de Até 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 nascimento Total a a a a a a a a a e 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 mais TOTAL

5.562 122 1.238 1.311 1.317 1.010 311 131

89

20

11

2

Mesmo estado

4.662 98 1.058 1.083 1.103 838 266 114

74

17

9

2

Outro estado

874 24 175 219 209 167 43 17 15 3

2 -

Sem informação 26 - 5 9 5 5 2 - - - - Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

Referências bibliográficas BRASILEIRO, Ana Maria; KLEIN, Lúcia Maria Gomes. O prefeito brasileiro: características e percepções. Coord. de Paulo Fernando Cavallieri. Rio de Janeiro: Ibam, 1975. 145 p. BREMAEKER, François E. J. de. Perfil do prefeito brasileiro: 1989–1992. Rio de Janeiro: Ibam, 1990. 35 p. (Estudos Especiais, n. 2). ______. O que os prefeitos esperam dos governos federal e estaduais a partir de 2003. Rio de Janeiro: Ibam, 2002. 84 p. (Estudos Especiais, n. 42). ______. Perfil dos candidatos a prefeito e a vereador nas

eleições de 2004 no Estado de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Ibam, 2004. 36 p. (Estudos Especiais, n. 74). ______. Perfil dos candidatos a prefeito e a vereador nas eleições de 2004 no Estado de São Paulo. Rio de Janeiro: Ibam, 2004. 37 p. (Estudos Especiais, n. 75). ______. Perfil dos candidatos a prefeito e a vereador nas eleições de 2004 no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ibam, 2004. 35 p. (Estudos Especiais, n. 76). SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos; BREMAEKER, François E. J. de (Coords.). O prefeito brasileiro: características e percepções

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