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Uma Análise Sobre Reposição de Teor de Umidade

Conta o relato da Sagrada Escritura que em certa ocasião São Pedro questiona o Cristo acerca do número de vezes que se deveria perdoar algum ofensor reincidente, se sete vezes seria satisfatório, ao que Jesus lhe responde prontamente que não apenas sete, mas setenta vezes sete, apontando assim para um padrão de virtude e piedade extremamente elevado, de modo que deixa o apóstolo perplexo com a resposta.

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O assunto que pretendo abordar nesta edição não tem qualquer relação com teologia, embora o diálogo acima me faça lembrar de outra afirmativa que já ouvi inúmeras vezes, porém envolvendo teor de umidade de grãos.

Diz a lenda que umedecer os grãos depois de secos é sete vezes mais difícil do que secá-los. Quem fez a conta, por horas não tenho a menor ideia de quem seja, no entanto afirmo que, não apenas sete, mas seguramente “setenta vezes sete”.

Trocadilhos à parte, cabe entender alguns pontos básicos envolvendo o tema de modo a evitar algumas conclusões e expectativas por vezes irrealizáveis na prática.

Em primeiro lugar, devemos ter em mente algumas questões sobre o comportamento higroscópico dos grãos.

Por serem higroscópicos, os grãos buscam constantemente uma relação de equilíbrio com o ambiente à sua volta, de modo a encontrarem uma condição em que a pressão de vapor interna encontre igualdade com a pressão externa.

Uma vez encontrada essa razão dizemos que os grãos estão em equilíbrio higroscópico com o ambiente, no nosso caso o ar intersticial da massa de grãos.

Essa razão de equilíbrio por sua vez é diferente para cada tipo de grão, ou seja: para uma mesma condição de temperatura e umidade relativa ambiente, grãos diferentes encontram razões de equilíbrio diferentes.

Para uma umidade relativa ambiente de 75% grãos de soja, milho e trigo, apresentam teores de umidade de equilíbrio de 14%, 15% e 16% respectivamente.

Devemos considerar, no entanto, que o alcance desse equilíbrio não ocorre de maneira instantânea.

São necessários vários dias, as vezes semanas, para que os grãos encontrem essa razão de equilíbrio de forma plena.

Isso pode ficar mais claro no gráfico a seguir (figura 01), onde podemos ver a evolução do teor de umidade quando em dessorção (grãos em processo de secagem).

No gráfico os grãos (de trigo) partem de um teor de umidade inicial de 22% e temperatura estabilizada em 22,5°C sendo submetidos à 03 condições diferentes de umidade relativa, 35%, 60% e 80%.

Podemos perceber, analisando o gráfico (figura 01), uma queda acentuada no teor de umidade dos grãos nos primeiros 03 dias. Após o terceiro dia a queda de teor de umidade diminui e inicia-se um processo de “ajuste fino” dos mesmos à condição ambiente.

Podemos perceber que os grãos levam cerca de 10 a 15 dias para atingirem o equilíbrio higroscópico.

Vale frisar também que o ajuste se torna mais lento à medida que os grãos estejam mais próximos de atingirem o ponto de equilíbrio.

Podemos ver, observando o gráfico (figura 02), que os grãos com 12% de teor de umidade levam em torno de 15 dias para alcançar teor de umidade de equilíbrio de 12,5% para umidade relativa de 60% (ver curva vermelha do gráfico).

Para uma análise mais segura sobre o tema, entretanto, é necessário ainda levarmos em conta outro fenômeno que atinge os grãos, a sorção.

Devido sua característica higroscópica os grãos tendem a perder (dessorção) ou absorver (adsorção) água em forma de vapor do ambiente.

No entanto, quando os grãos perdem umidade (dessorção) acabam passando por algumas modificações em sua estrutura, de modo que os espaços porosos que continham água acabam se contraindo. Com isso suas relações de equilíbrio higroscópico acabam sendo alteradas, pois perdem a capacidade de repor a mesma quantia de água que tinham sob a mesma umidade relativa ambiente. Essa diferença no teor de umidade de equilíbrio dos grãos quando em dessorção ou adsorção chamamos de histerese. Veja o gráfico a seguir (figura 03) onde podemos visualizar esse fenômeno para uma melhor compreensão. Como podemos perceber analisando o gráfico, para uma umidade relativa ambiente “X” os grãos encontram diferentes teores de umidade para dessorção (A) e adsorção (B).

Um movimento semelhante ocorre quando temos uma situação de umedecimento dos grãos (adsorção), conforme podemos observar no gráfico da figura 02 onde temos novamente grãos de trigo, agora partindo de um teor de umidade próximo de zero, novamente com temperatura estabilizada em 22,5°C em três valores distintos de umidade relativa, 35%, 60% e 80%.

Observando o gráfico podemos notar novamente um movimento rápido nos primeiros 04 dias e depois uma estabilização sendo alcançada em torno de 15 dias.

Podemos perceber também que, para recuperar o teor de umidade em adsorção (B), de forma a buscar equivalência com o teor em dessorção (A), necessitamos uma umidade relativa ambiente “X+”. Ou seja: uma vez que os grãos foram secos, fazer a reposição do teor de umidade requer uma umidade relativa de equilíbrio consideravelmente mais alta e, como vimos no gráfico da figura 02, os grãos necessitam ficar expostos à essa condição por vários dias.

A seguir temos uma tabela (figura 04), onde podemos ver a diferença de teor de umidade em adsorção e dessorção para grãos de arroz em casca com temperatura estabilizada em 25°C.

Podemos perceber que, para uma umidade relativa de 70%, por exemplo, encontramos teores de umidade de 11,8% e 13,4% para adsorção e dessorção, respectivamente; uma diferença de 1,6%.

Observando os dados da tabela e as curvas do gráfico podemos facilmente chegar a uma conclusão simples: repor teor de umidade requer umidades relativas mais elevadas.

Vejamos ainda outro ponto interessante: se compararmos teores de umidade (figura 04) com valores semelhantes em adsorção e dessorção encontraremos umidade relativa de equilíbrio com 10% de diferença entre ambos, confirmando o que demonstra o gráfico da figura 03. Veja:

Dessorção: teor de umidade 13,4% - UR equilíbrio 70%

Adsorção: teor de umidade 13,6% - UR equilíbrio 80%

Dito isto, considerando a ideia de “devolver” umidade aos grãos, devemos avaliar também algumas questões quanto à psicrometria e as alterações nas caraterísticas do ar ocorridas durante a realização de aeração, considerando este ser o meio utilizado para insuflar ar na massa visando a manipulação das condições de temperatura e umidade intersticiais.

Para que a aeração seja feita de forma correta e preservado o teor de umidade dos grãos sem provocar secagem, devemos considerar a perda de umidade, devido o acréscimo de temperatura, a qual ocorre no sistema de aeração devido à pressão, atrito e turbilhonamento do ar no interior de ventiladores e canalizações. Assim, é de extrema importância que essas correções sejam feitas.

Fazendo uma ligeira análise na Carta Psicrométrica (figura 05) podemos perceber que, com elevação de 03°C na temperatura do ar ambiente (valor geralmente considerado para esse cálculo na maioria das literaturas técnicas) temos uma quebra de umidade relativa próxima à 10%.

Observando o gráfico (figura 05) temos temperatura de Bulbo Seco em 25°C (linha vermelha) com umidade relativa em 70% (curva verde).

Elevando a temperatura de bulbo seco em 03°C (linha laranja) vamos encontrar umidade relativa próxima a 60% (curva magenta), uma queda de cerca de 10%.

Assim, para obtermos (no caso da soja, por exemplo) um teor de umidade de equilíbrio de 14% (Umidade relativa de equilíbrio de 75%) em condições normais iremos necessitar uma umidade relativa ambiente próxima a 85% para aeração, considerada a perda ocorrida.

Finalmente, visto isso, considerando que por alguma razão promovemos secagem excessiva na massa de grãos e pretendemos então recuperar o teor de umidade, devemos levar alguns fatores em conta:

1. Necessitamos umidade relativa de equilíbrio mais alta para repor umidade dos grãos, seguramente na casa de +10%;

2. Necessitamos considerar a perda de umidade no sistema de aeração, portanto devemos acrescer ainda +10% de umidade relativa;

3. Devemos considerar submeter a massa de grãos por vários dias, talvez semanas, em condições de alta umidade relativa para buscar essa recuperação de teor de umidade, o que constitui um risco elevado para a conservação.

Resumindo, se para conservar os grãos em um teor de umidade adequado tínhamos necessidade de umidade relativa de equilíbrio na massa de grãos na casa de 75%, para recuperar o teor de umidade após secagem excessiva teremos necessidade de ar ambiente com umidade relativa próxima ou acima de 90% (75%+10%+10%=95%, um acréscimo de +20%), ou seja:

75% - umidade relativa de equilíbrio em dessorção

10% - acréscimo para compensar a adsorção

+10% - compensação devido perda no sistema de aeração 95% - Umidade relativa ambiente total para aeração

Como podemos verificar em várias literaturas técnicas, é dito que os grãos absorvem água mais rapidamente quando sujeitos à umidade relativa acima de 70-75%. Nota-se, no entanto, que tal condição na massa de grãos é bastante difícil de ser obtida por meio de aeração, visto que nossas médias máximas de umidade relativa dificilmente ultrapassam 85%, exceto em caso de ocorrência de chuva.

Assim, contabilizadas as perdas de umidade ocorridas no sistema de aeração, insuflar ar na massa de grãos com umidade relativa acima de 70% é bastante desafiador, considerando nosso clima.

Além da limitação climática, o risco envolvido é elevado, visto nossas temperaturas médias de armazenagem serem consideravelmente altas (entre 2427°C em média), o que poderia facilmente contribuir para o rápido desenvolvimento de fungos e deterioração.

Talvez venha daí a afirmação que diz ser sete vezes mais difícil repor umidade nos grãos do que tirar.

Se é esta a origem da colocação, não sei, mas diante dos dados apresentados, acredito que o leitor concorde que estamos mais para setenta vezes sete, praticamente uma Missão Impossível.

Observando os gráficos aqui apresentados, podemos ver que a operação, além de alto grau de dificuldade, possui também um enorme potencial para provocar efeitos extremamente prejudiciais para a massa de grãos.

Podemos afirmar sem grandes riscos de errar que tal operação, ainda que milagrosamente encontre viabilidade operacional, é sinônimo de perdas e prejuízos potenciais.

Visto isso, cabe atenção ao manejo da aeração, fazendo-se as devidas correções de quebra de umidade relativa de modo a evitar secagem excessiva para que, na hora de expedir os grãos, não necessite recorrer à métodos mirabolantes (quem lê entenda) para remediar as perdas.