pequenos contos tipográficos

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pequenos contos tipográficos por Fabio Lopez

Textos reunidos em agosto de 2009 para a revista Artigo Definido, produzida pelos alunos do curso de Editoração da Escola de Comunicação e Artes / USP.


6 bilhões de fontes

Designers de tipos são pessoas com hábitos e problemas estranhos. Um problema muito comum que afeta a todos eles é uma séria dificuldade de leitura. De tanto desenhar alfabetos, eles agora lêem as próprias letras e não mais o que elas tem a dizer. Mas me disseram que isso é um problema que pode afetar a todos, se uma fonte de leitura apresentar características muito particulares. As pessoas perdem-se no meio do texto deslizando em algum caractere mais elaborado, tropeçando em uma curva torta ou numa serifa mal colocada. Por esse motivo, os designers costumam afirmar que uma leitura confortável depende de letras que satisfaçam a expectativa do leitor. Características marcantes, eles dizem, são indicadas para logotipos e impressos com mais personalidade. Conheço um designer de tipos que hoje em dia só consegue ler o espaço vazio entre uma letra e outra. E o pior, ele jura de pés juntos que a palavra só é bem construída quando a proximidade dos caracteres encontra um balanço perfeito entre o negro das áreas impressas e o branco criado pelos contornos. De tanto buscar essa sintonia, ele agora só lê o que é branco – quando branco não é o que deveria ser preto. A maioria das pessoas desconhece o trabalho do designer de tipos. Algumas poucas, por algum acidente do destino, já esbarraram com algum. Muitas perguntam por que eles insistem em desenhar novos alfabetos, uma vez que já existem tantas fontes parecidas e prontas para serem usadas. Aquele meu conhecido que lia o vazio, respondia que era pelo mesmo motivo que se criavam novas músicas, novos carros, cadeiras, roupas, filmes e... pessoas. Existem 6 bilhões de pessoas diferentes no mundo e os casais insistem em fazer novas pessoas. As vantagens de se criar fontes e não pessoas são várias: elas não sujam fraldas, não pedem aumento de mesada e podem ser comercializadas. Mas não comercialize seu filho. Ensine ele a desenhar letras bonitas e tudo fará sentido. ... Para o professor e designer holandês Gerard Unger, a questão não é saber se existem fontes demais no mundo, mas se o ser humano já chegou ao seu limite no reconhecimento de novas formas tipográficas. De acordo com sua vasta experiência profissional, ele se diz certo de que isso ainda não ocorreu, e que essa capacidade de reconhecimento é virtualmente infinita. Ainda que nem todas as pessoas tenham essa capacidade desenvolvida, continua sendo necessário para uma gama enorme de profissionais a criação de novas interpretações do alfabeto.

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ninho tipográfico

Outro dia descobri que havia uma pequena oficina tipográfica a poucos metros da minha casa, no sótão desarrumado de uma gráfica mixuruca. O impressor, um senhor de meia idade, parecia habitar um universo paralelo estacionado no tempo: acabara de descobrir um equipamento chamado computador. Em breve, ele contou, venderia o lugar a uma rede de restaurantes e se livraria de toda aquela sucata inútil para se dedicar a fazer cartões pessoais no PC. Mas nossa conversa foi sobre o que estava guardado no sótão. Aprendi um bocado sobre processos de impressão, tipos de chumbo, vinhetas, máquinas e linotipo. Foram várias histórias, a mais curiosa eu conto aqui. Percebendo que a caixa de composição estava um pouco bagunçada (principalmente nos corpos menores), o velho impressor explicou que a culpa na verdade não era de nenhum funcionário relapso, mas das baratas que tradicionalmente habitavam as empoeiradas gavetas da oficina. É que a mamãe barata, depois que deposita a bolsa com seus ovos de pequenas e repugnantes baratinhas, arrasta com suas antenas caracteres de outros compartimentos para construir uma espécie de ninho tipográfico, escondendo assim no amontoado de letras o futuro da espécie. Tradicionalmente, as maternidades se localizavam junto aos sinais de pontuação nos cantos da caixa, por serem pedacinhos de chumbo mais fáceis de arrastar. Parafraseando Kafka, ao despertar pela manhã após ter tido sonhos agitados, a pequena barata encontrou-se em sua própria cama transformada num gigantesco tipógrafo.

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o sete cortado

Certa vez em uma lista de discussão, perguntaram por que ao escrever o número sete temos o hábito de cortá-lo com um traço. Alguns disseram que era simplesmente para distingui-lo do número um, mas a verdadeira explicação é bíblica: Reza a lenda que Moisés desceu do Monte Sinai com as tábuas dos dez mandamentos e começou a lê-las para seu povo. Quando chegou no sétimo mandamento 'não cometerás adultério' o povo se revoltou e começou a gritar: – Corta o sete! Corta o sete! Na grafologia – técnica que interpreta características pessoais através da escrita – se você quiser saber se alguém 'mija fora do pinico' é só verificar se o sujeito corta o sete ou não. Desde os primórdios o sete vem sendo cortado no mundo inteiro, mas no Brasil a coisa é meio institucionalizada. Aqui as crianças aprendem a cortar o sete já na escola, com a cartilha de caligrafia. Em alguns países esse hábito não é comum, e o sete não é cortado: a diferença fica por conta do número 1, que apresenta uma barra inferior para facilitar a distinção. No entanto, isso nada diz dos hábitos de seus moradores – nunca soube de um lugar no mundo em que não se cometesse adultério. Diversas outras lendas existem para explicar a origem dos sinais tipográficos. Os caracteres monetários, por exemplo, também tem sua história igualmente curiosa e mística. Na maioria dos casos esses sinais são formados pela letra inicial do nome da moeda do país, e para distingui-la de sua letra correspondente, essas iniciais são cortadas por um ou dois traços. Os gregos em suas histórias acreditavam que nada existia além do Mediterrâneo, e que o mundo terminava num pavoroso abismo. Nas lorotas da Grécia antiga, os limites do mundo eram marcados por duas torres de rocha, localizadas no estreito de Gibraltar e na Tunísia, conhecidas como os dois pilares de Hércules. Os pilares passaram a ter a conotação de marcos de superioridade, na lenda que ficou conhecida como "non plus ultra". Quando as primeiras navegações chegaram à América, o grandioso feito significou a superação daquele antigo marco, transformando-se num emblema do Novo Mundo. Como simbolismo da conquista, o imperador de Habsburg, Charles V mandou cunhar nas moedas levadas ao continente dois traços verticais. Em 1776, os Estados Unidos tornaram-se independentes e resolvem criar sua própria unidade monetária, passando a rejeitar a moeda inglesa. Dessa maneira, aproveitaram para traçar os mesmos dois traços sobre o 'S' do Shilling, simbolizando que aquelas moedas que pertenciam à América Independente eram ainda mais valiosas que às britânicas. Nascia o dólar $. Posteriormente, o costume de se traçar uma ou duas retas sobre a letra inicial da moeda acabou se transformando num padrão em todo mundo, sendo adotado por diversos outros países.

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comic sans

Se a sequela da tuberculose é uma audição mais sensível, a da tipografia é um olhar exigente – e não se escolhe doença. Estava assistindo atentamente a TV, pois seria feito um pronunciamento de prestação de contas da operação de busca e resgate do acidente aéreo que vitimou 228 pessoas em maio deste ano. O vice-chefe de comunicação da aeronáutica do Brasil apresentaria para a imprensa internacional os esforços feitos até aquele momento, no intuito de diminuir o sofrimento dos familiares das vítimas. As luzes se apagaram e começou a apresentação. A fonte escolhida: Comic Sans! Que ser humano escolheria uma fonte com nome engraçadinho e aspecto de letra infantil para apresentar uma operação de resgate em um acidente aéreo? Eu entendo que para muitos, escolher a fonte de uma apresentação deva ser tão desimportante quanto escolher uma gravata. Ainda assim, quem usaria uma gravata do Frajola no enterro da própria mãe ou em uma entrevista de emprego? Bom senso não exige formação técnica. O formato das letras – assim como as cores , imagens e os sons associados a uma mensagem – ajuda a construir o tom da comunicação. São informações que determinam as trilhas que o leitor deve seguir para sentir o texto, mesmo que o faça de maneira inconsciente. Se o designer não compreende o universo de valores aos quais determinada fonte está associada, muito provavelmente vai confundir o leitor com dicas equivocadas sobre o que está querendo dizer. E o pior de tudo é que a culpa sempre recai sobre a fonte. O caso da Comic Sans é emblemático, por que ela é aplicada de maneira inadequada em 99% das vezes – o que a tornou maldita no ambiente do design profissional. Entretanto, a fonte desenvolvida pelo designer Vincent Connare em 1994 é um projeto muito bem feito: foi criada originalmente para substituir a Times New Roman em um software infantil chamado Bob – onde um cachorrinho falante conversava com as crianças. Será que a aeronáutica também estava brincando?

Fabio Lopez é designer e mestre pela Esdi, tem um curso de tipografia chamado 'Typofreaks' e é autor do projeto 'War in Rio'. Trabalha como freelancer em projetos de identidade corporativa e estampas, desenvolve fontes digitais e pesquisa tipografia desde 1998. Só topou escrever o artigo se este não precisasse ser acadêmico, mas adorou participar. contato: fltypedesigner@hotmail.com

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