tipografia, ordem e progresso

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por Fabio Lopez fltypedesigner@hotmail.com

Certamente a tipografia pode ser considerada uma das áreas mais especializadas e técnicas do design gráfico. Seu estudo envolve de maneira complexa e delicada uma interessante fusão de conhecimento histórico, criatividade e tecnologia. Um projeto tipográfico pode nascer a partir das mais variadas necessidades e objetivos, como uma experiência acadêmica, um trabalho profissional ou simplesmente originar-se na livre criação autoral. Enquanto algumas tipografias são carregadas de personalidade e expressão pessoal, outras entretanto visam resolver problemas bastante específicos de funcionalidade e leitura, levando-as a abordar de maneira rigorosa diversos aspectos técnicos em seu processo de construção. Fontes criadas para composição de textos acabam sendo as que enfrentam os maiores desafios dessa natureza, em virtude da grande quantidade de regras e parâmetros responsáveis por sua eficiência. Por estarem associadas basicamente ao aspecto funcional da leitura, acabam seguindo as definições mais conservadoras da tipografia, um universo composto de detalhes muitas vezes imperceptíveis a olhos não treinados. Desenhadas para serem lidas rapidamente e em tamanhos reduzidos, devem permitir o reconhecimento preciso das palavras através de formas razoavelmente comuns ao leitor, apresentando uma aparência simples e consistente. Como a leitura é um constante processo de identificação visual, facilitar a tarefa do leitor significa satisfazer suas expectativas tipográficas, permitindo-lhe ler um texto sem um esforço adicional de decodificação. Formas não usuais ou letras com características demasiadamente marcantes, acabam prejudicando o bom funcionamento da fonte, atuando como ruídos nesse processo de reconhecimento. Em um texto longo, esses ruídos são reproduzidos com grande freqüência, fazendo com que um pequeno detalhe se transforme num grande problema.

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fontes de texto Em muitos casos, uma fonte de texto é desenvolvida a partir da necessidade de se resolver questões específicas em projetos editoriais ou corporativos, com metas e objetivos bem definidos. Por determinações técnicas ou restrições relativas à aplicação e suporte, podem acabar apresentando um desenho com soluções inusitadas e até mesmo não adequadas a outras utilizações. Em outros casos, a simples proposta de se criar uma tipografia capaz de compor um texto de qualquer natureza, pode acabar representando uma tarefa ainda mais complexa e trabalhosa. o

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Entretanto, em nenhuma das duas situações um projeto de texto tem origem apenas numa idéia ou num bom desenho tipográfico. Visando aplicações extensas e necessidades múltiplas de utilização, uma fonte de texto deve ter em sua concepção inicial uma noção profunda de planejamento e expansão. Definições básicas em sua estrutura devem ser pensadas para suportar variações de peso, postura e acabamento, permitindo assim grande flexibilidade à tipografia. Muitas vezes, essas necessidades podem acabar influenciando a aparência final da fonte e determinando aspectos importantes na letra, como hastes, curvas e áreas de contorno interno.

Nos grandes projetos, podemos perceber que quanto mais regular for a constituição estrutural dos caracteres mais fácil acaba sendo sua manipulação, permitindo assim a criação de uma gama enorme de variantes. O tradicionalismo tipográfico de irregularidades e formas humanizadas, pode estar começando a demonstrar sinais de envelhecimento diante de projetos preparados para contextos mais flexíveis. Embora as fontes tradicionais ainda apresentem vantagens funcionais de leitura (por possuírem desenhos mais comuns e fáceis de serem reconhecidos), o surgimento de

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novas necessidades pode fazer com que seja questão de tempo uma substituição gradual nesse padrão tipográfico, exigindo do designer uma abordagem renovada e mais abrangente durante o desenvolvimento de uma fonte de texto.

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Outro aspecto importante na criação de um bom projeto é a concepção de um produto final operacionalmente impecável e de irretocável qualidade técnica. Além de possuir uma boa aparência, a tipografia precisa sobretudo funcionar bem frente às mais diversas aplicações e propostas. Ajustes e compensações visuais, padronizações, um espacejamento consistente, kerning e hints de visualização, são algumas das exigências fundamentais a uma fonte para assegurar sua eficiência.

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Durante o desenho dos primeiros caracteres, a tipografia já começa a ser testada simulando e antecipando situações reais de uso. Dependendo do nível de complexidade do projeto, a fase de ajustes pode ser até mais demorada e trabalhosa que a fase de construção propriamente dita, evitando assim que pequenas falhas comprometam futuramente seu desempenho.

tecnologia e produção nacional O surgimento de novos formatos e a utilização de softwares cada vez mais completos, tem permitido ao tipógrafo um domínio até então inimaginável de todo o processo


criativo de uma fonte, ampliando enormemente o controle sobre seus diversos parâmetros construtivos. Entretanto, a expansão dos recursos tecnológicos a serviço da tipografia acaba sendo um processo tão excitante quanto perigoso, quando percebemos que seu acesso acaba restrito a uma pequena elite profissional, distanciando cada vez mais os centros desenvolvidos das periferias de mercado. Num mundo que prega uma globalização escorada em desigualdades econômicas, torna-se importante discutir o papel da produção nacional nesse momento ao encararmos a tipografia como negócio. Por esse motivo, a criação de centros de debate voltados a difundir e ampliar o conhecimento tipográfico, passa a ser essencial para a expansão e o amadurecimento da atividade no país. Ao mesmo tempo, o crescimento na quantidade de publicações e leituras especializadas, naturalmente estimula o interesse pela tipografia, e os primeiros resultados já podem ser vistos. De alguns anos pra cá, trabalhos de grande qualidade têm surgido em diversos pólos regionais, comprovando o desenvolvimento de uma produção legitimamente brasileira.

alguns projetos Figurando como o mais representativo e completo projeto comercial desenvolvido no país, a família Houaiss criada pelo designer Rodolfo Capeto para o dicionário de mesmo nome, é sem dúvida uma referência de qualidade no cenário nacional. Direcionada para composições em corpos bastante reduzidos e para uma leitura intencionalmente descontínua, a tipografia criada por Capeto não pode sequer ser considerada uma fonte de 'texto', por trabalhar abaixo dos limites de legibilidade e conforto. Resolvendo com eficiência os diversos aspectos funcionais de um projeto de grande porte e relevância, Houaiss não é apenas um trabalho de altíssimo nível técnico, mas sobretudo um exercício de bom gosto e precisão.


A fonte Lalo, de Eduardo Omine, é outro excelente exemplo de qualidade. Exposta na 1a Bienal Letras Latinas realizada em maio deste ano, o projeto foi selecionado dentre os 40 trabalhos mais significativos da mostra, organizada pela conceituada revista tipoGrafica (Argentina). Ainda em fase de desenvolvimento, Lalo demonstra grande consistência na composição de textos longos e bastante legíveis, como resultado de uma tipografia especialmente desenhada para a criação de livros. Recentemente, outra fonte de Eduardo também foi premiada, desta vez no conceituado e concorrido “International Type Design Contest 2003”, organizado pela Linotype Library.

A família de texto Colonia, de minha autoria, trata-se de um extenso e profundo exercício de construção tipográfica originalmente realizado durante meu projeto de graduação. Apresentado no 1o Congresso Nacional de Tipografia e premiado na bienal de Design Gráfico deste ano, o trabalho é uma espécie de laboratório tipográfico, onde procuro experimentar questões de forma, legibilidade e acabamento, resultando na criação de uma completa família de texto.

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Desenhando fontes há quase dez anos, a designer, pesquisadora e professora Priscila Farias, realiza no projeto 'Nova' sua primeira experiência em tipografias de texto. Ainda em fase de ampliação, a fonte teve seus primeiros esboços desenhados durante o workshop do renomado tipógrafo inglês Bruno Maag, em 2002. Resultado desse ilustre


encontro, o trabalho é um óbvio retrato da maturidade e competência da autora, através de uma tipografia construída de maneira cuidadosa, planejada e bem orientada.

Outro belo espécime de texto, a fonte Paulisthania de Luciano Cardinali é também um resgate à tradição tipográfica. Baseada totalmente em caligrafia, a estrutura de seus caracteres foi desenhada a partir de traços feitos com bastão de madeira e nanquim, posteriormente refinados e remodelados no processo de digitalização da fonte. O projeto, que teve seu início no workshop de Rubén Fontana em 2002, também foi destaque na mostra Letras Latinas 2004, homenageando a cidade de São Paulo em seus 450 anos.

paulisthania posto queo capitam moor desta vossa frota e asy os outros capitaães screpuam avossa alteza anoua do achamento desta vossa terra noua que se ora neesta naue

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Assim como as fontes em destaque nesta matéria, vários outros trabalhos de qualidade foram realizados nesses últimos anos, apresentando a tipografia nacional num novo estágio de desenvolvimento. Um cenário de crescimento e evolução indiscutível, gratificante principalmente para todos aqueles que participaram da construção dessa realidade. De maneira simbólica, fica registrado que seria impossível citar todos os bons projetos nacionais nesses breves parágrafos, assim como foi difícil resumir em poucas frases os trabalhos de grande profundidade e primazia que aqui se encontram. E isso é um bom sinal.


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