Scientific American - Aula Aberta 17

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Roteiros temáticos para atividades em sala de aula

Aula Aberta

Matriz de referência do

O prazer de ensinar ciências

BRASIL

ANO II - NO 17 - 2013 - R$ 6,90

Animais em

Como eles se manifestam diante da perda de entes próximos GEOGRAFIA Os números acadêmicos do avanço social na China e na Alemanha

MATEMÁTICA A geometria presente na arte renascentista

FÍSICA Ison, uma promessa de brilho no céu. Ou não.

QUÍMICA A tabela periódica está completa?

00017

9 772176 163001

LUTO BIOLOGIA

ISSN 2176163-9

ENEM



SUMÁRIO

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BIOLOGIA Quando animais incorporam o luto Evidências crescentes em espécies tão diversas como gorilas, gatos e golfinhos indicam que seres humanos não são os únicos que lamentam a perda de entes queridos

SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA No 17

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ÉTICA NA CIÊNCIA

A pesquisa sobre medicamentos é confiável? A indústria farmacêutica canaliza dinheiro para pesquisas de eminentes cientistas relacionadas a seus produtos, configurando um evidente conflito de interesses

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FÍSICA

Um cometa que pode surpreender Ison, que terá máxima aproximação da Terra em dezembro de 2013, seria um dos mais brilhantes já observados. Será?

28

QUÍMICA

As (surpreendentes) alterações da tabela periódica A descoberta do elemento 117 preencheu a última lacuna dessa sistematização. Mas mesmo completa ela parece perder sua eficiência

40 48

GEOGRAFIA As razões do avanço da China e da Alemanha

MATEMÁTICA

Óptica e realismo na arte renascentista Uma teoria muito divulgada afirma que pintores do século 15 atingiram novo nível de realismo com a ajuda de lentes e espelhos. Mas descobertas recentes levantam dúvidas sobre essa hipótese


SEÇÕES 6 NOTAS n

Pragas que adoram produtos frescos

n

Mais perto de casa

n

Fóssil redesenha passado geológico no Ceará

n

Relógios de sol

n

Projeto limita pesquisas em história

n

Costura das cavernas

n

O risco da cânabis

n

Deixe o sol entrar

55 PARA O PROFESSOR

Roteiros elaborados por professores especialistas com sugestões de atividades para a sala de aula

12 COMO FUNCIONA Vidro inteligente

www.sciam.com.br

BRASIL

COMITÊ EXECUTIVO Jorge Carneiro e Rogério Ventura

Aula Aberta EDITOR: Luiz Marin DIAGRAMAÇÃO: Juliana Freitas redacaosciam@duettoeditorial.com.br EDITOR-CHEFE: Ulisses Capozzoli EDITOR DE ARTE: João Marcelo Simões ASSISTENTE DE ARTE: Ana Salles ASSISTENTE DE ICONOGRAFIA: Luiz Loccoman ESTAGIÁRIAS: Isabela Jordani (arte); Jéssica Nogueira (planejamento) COLABORADORES: Carmen Weingrill (redação); Edna Adorno; Denise Martins (arte); Paulo César Salgado (tratamento de imagem) DIRETOR EXECUTIVO: Rogério Ventura

4 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

14 FÍSICA NO ESPORTE

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COORDENADOR DE PUBLICIDADE: Robson de Souza (11) 2713-8185

ESPÍRITO SANTO: Dídimo Effgen (27) 3229-1986/ 3062-1953/ 8846-4493/ 9715-7586 MATO GROSSO - MATO GROSSO DO SUL: Luciano de Oliveira - (65) 9235-7446 fenixpropaganda@hotmail.com CEARÁ- PERNAMBUCO - BAHIA - SERGIPE: Rozana Rocque (11) 4950-6844/ 99931-4696 rozana@ediouro.biz / rrocque@terra.com.br CEARÁ: Izabel Cavalcanti (85) 3264-7342/ 99914360/ 8874-7342 - izacalc@yahoo.com.br PERNAMBUCO: Carlos Chetto (71) 9617-6800, Rosângela Lima (81) 9431-3872/ 9159-0256 carloschetto@canalc.com.br / rosangelalima@canalc.com.br BAHIA-SERGIPE: Carlos Chetto (71) 9617-6800, Carmosina Cunha (71) 8179-1250/ 3025-2670 carloschetto@canalc.com.br / carmosinacunha@canalc.com.br

Energia ou potência?

PROJETOS ESPECIAIS MERCADO FARMACÊUTICO GERENTE DE NEGÓCIOS: Walter Pinheiro REPRESENTANTES COMERCIAIS COORDENAÇÃO GERAL: Mauro R. Bentes (21) 3882-8315/ 8135-3736 - bentes@ediouro.com.br BRASÍLIA: Sônia Brandão (61) 3321-4304 RIO GRANDE DO SUL: Roberto Gianoni (51) 3388-7712/ 9985-5564 gianoni@gianoni.com.br GOIÁS - RONDÔNIA: Marco Antônio Chuahy (62) 8112-1817/ 3281-2466 - machuahy@gmail.com PARANÁ - SANTA CATARINA - TOCANTINS: Euclides de Oliveira, Marco Monteiro (41) 3023-0007/ 9943-8009/ 9698-8433 euclides@dmci.com.br / mmonteiro@ebgepr.com.br PARÁ: Alex Bentes (91) 8718-3351/ 3222-4956 alexbentes@hotmail.com MINAS GERAIS: Tadeu da Silva (31) 8885-7100 tadeuediouro@gmail.com

LIVROS

Uma boa ficção científica

MARKETING GERENTE DE MARKETING: Moacir Nóbrega ANALISTAS DE MARKETING: Cinthya Müller e Samantha Seabra


EDITORIAL O

tão aguardado visitante, proveniente da nuvem de Oort, na fronteira gelada do sistema solar, já alimentou expectativas das mais otimistas às de completo fiasco. Quando o artigo de Enos Picazzio foi publicado pela Scientific American, Ison era alcunhado de o cometa do século, o mais brilhante jamais visto. Da descoberta desse astro em setembro de 2012 para cá, as notícias sobre ele trafegaram senoidalmente pela mídia, com vaticínios que ora nos prometiam um brilho espantoso, ora faziam crer que o cometa se desintegraria. Imagens recentes obtidas pelo Hubble dão conta de que o Ison se mantém intacto. Imprevisível, como todos os cometas, pode ser que ao sul do equador tenhamos a possibilidade de vê-lo brilhar em dezembro, nas primeiras horas da manhã. Qualquer que seja o desfecho, no entanto, o assunto vai chamar a atenção de todos, o que justifica o roteiro de atividades proposto nesta edição, que permite examinar com os alunos alguns conceitos pouco explorados, como brilho, luminosidade, magnitudes aparente e absoluta dos astros. Controverso, mas de forma diferente, é também nosso artigo de capa, que em última análise aborda a questão do

sentimento animal. Sobre esse assunto, tão frequente nas redes sociais, no cinema e também na literatura, há evidências comportamentais, mas será que podemos falar em emoção? O plano de aula sugerido com base nesse artigo abre espaço para algumas discussões esclarecedoras. Ousadamente, esta edição remete um artigo de arte e óptica geométrica para ser trabalhado em aula de matemática. Que ambas (arte e matemática) andam juntas não é novidade, mas o uso de lentes e espelhos para produzir a perspectiva é, no mínimo, desafiador e pode render bons frutos para os estudantes, com a grande vantagem de permitir a conceituação de entidades abstratas por meio de atividades práticas. Da mesma forma, a construção de uma tabela periódica sugerida para a aula de química abre caminho para jogos com os elementos químicos, que possibilitam fixar suas características na memória. Esta edição apresenta ainda, entre outros temas relevantes, a oportuni-

CIRCULAÇÃO E PLANEJAMENTO COORDENADORA DE CIRCULAÇÃO: Luciana Pereira COORDENADOR E PLANEJAMENTO: William Cardoso COORDENADORA DE CIRCULAÇÃO: PRODUÇÃO GRÁFICA: Wagner Pinheiro VENDAS AVULSAS: Fernanda Ciccarelli

Rio de Janeiro (21) 4062-7551 www.lojaduetto.com.br e www.assineduetto.com.br

NÚCLEO MULTIMÍDIA/ ASSINATURAS DIRETORA: Mariana Monné REDATORA DO SITE: Fernanda Figueiredo WEB DESIGNER: Patricia Mejias ASSISTENTE ADMINISTRATIVA: Eliene Silva GERENTE DE ASSINATURAS: Alex Jardim SUPERVISOR DE ASSINATURAS: Cleide Orlandoni ANALISTAS DE ATENDIMENTO: Marcia Paiva Silva CENTRAL DE ATENDIMENTO segunda a sexta das 8h às 20h / sábado das 9h às 15h ASSINANTE E NOVAS ASSINATURAS São Paulo (11) 3512-9414

Para informações sobre sua assinatura, mudança de endereço, renovação, reimpressão de boleto, solicitação de reenvio de exemplares e outros serviços acesse www.assinaja.com/atendimento/duetto/ faleconosco Números atrasados e edições especiais podem ser adquiridos através da Loja Duetto, ao preço da última edição acrescido dos custos de postagem, mediante disponibilidade de nossos estoques. SCIENTIFIC AMERICAN INTERNATIONAL EDITOR IN CHIEF: Mariette DiChristina EXECUTIVE EDITOR: Fred Guterl MANAGING EDITOR: Ricki L. Rusting CHIEF NEWS EDITOR: Philip M. Yam SENIOR EDITORS: Mark Fischetti, Christine Gorman, Anna Kuchment, Michael Moyer, George Musser, Gary Stix, Kate Wong DESIGN DIRECTOR: Michael Mrak

CAPA: Oliver Werner/Getty Images

dade de debater com a garotada os vínculos entre os avanços econômicos e sociais e o desenvolvimento da ciência em dois países que se destacam nesses setores: a China e a Alemanha. Boa leitura e boas aulas Luiz Carlos Pizarro Marin redacaosciam@duettoeditorial.com.br

PHOTOGRAPHY EDITOR: Monica Bradley PRESIDENT: Steven Inchcoombe EXECUTIVE VICE-PRESIDENT: Michael Florek Scientific AmericAn BrASil é uma publicação mensal da Ediouro Duetto Editorial Ltda., sob licença de Scientific American, Inc. EDIOURO DUETTO EDITORIAL LTDA. Rua Cunha Gago, 412, cj. 33 – Pinheiros São Paulo/SP CEP 05421-001 Tel. (11) 2713-8150 Fax (11) 2713-8197

Aula Aberta no 17, ISSN 2176163-9. Distribuição nacional DINAP S.A. Rua Doutor Kenkiti Shimomoto, 1678. IMPRESSÃO: Edigráfica

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NOTAS O QUE HÁ NA GELADEIRA?

Pragas que adoram produtos frescos Um entomólogo especialista em espécies invasoras mantém seus congeladores cheios de insetos

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les podem ser pequenos, mas são capazes de provocar grandes estragos no meio ambiente ou na economia de um país. Mark Hoddle, diretor do Centro de Pesquisa de Espécies Invasoras da Universidade da Califórnia em Riverside, viaja pelo mundo estudando e combatendo insetos que devoram plantas ecologicamente significativas ou

de importantes culturas de exportação. O cientista armazena amostras em seu laboratório para estudar seus DNAs e doá-los para coleções de pesquisa. Às vezes, Hoddle também captura pragas com antecedência, antes que elas causem problemas, e as conserva para referências futuras. “É difícil prever qual será a próxima praga invasora”, diz ele. “Desse modo, quando

elas aparecem, eu já as identifiquei como um alvo.” [No Brasil, há vários casos de destruição florestal e agrícola por causa da introdução, acidental ou não, de espécies exóticas – um problema que se agrava com a globalização dos mercados. A iniciativa de Hoddle pode inspirar empreendimentos semelhantes em nosso país.] –Anna Kuchment

BESOURO-RINOCERONTE DO COCO

( Oryctes rhinoceros ) Mark Hoddle capturou esse inseto quando ele atacava uma palmeira recém-plantada em Sumatra, na Indonésia. O cientista está preparado: ele tem o DNA do inseto pronto para uma rápida identificação.

BROCA-DO-CARVALHO (GSOB)

( Agrilus auroguttatus ) Nativa do sul do Arizona, a broca-docarvalho invadiu a Califórnia com resultados desastrosos: ela já matou cerca de 80 mil carvalhos na Floresta Nacional de Cleveland, no condado de San Diego. Hoddle acredita que campistas espalharam a praga involuntariamente ao catar lenha no Arizona e levá-la para a Califórnia.

GORGULHO-DO-COQUEIRO

(Rhynchophorus vulneratus)

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BROCA-DO-ABACATE

( Stenoma catenifer ) As lagartas da broca-do-abacate fazem buracos na casca da fruta e transformam seu interior em papa. Quando trabalhavam na Guatemala, no Peru e no México, as áreas nativas das mariposas, Hoddle e seus colegas colheram feromônios sexuais dos insetos, que poderiam servir como sistema de alerta precoce para sinalizar sua chegada. O entomólogo também coletou seus inimigos naturais, que poderão ser libertados futuramente para controlar as pragas se elas se estabelecerem na Califórnia.

FOTOGRAFIA POR SPENCER LOWELL

Esse matador de palmeiras provavelmente chegou a Laguna Beach, na Califórnia, vindo de Bali, na Indonésia, sugere Hoddle, que estudou o DNA dos insetos. Ele suspeita que um viajante levou os besouros aos Estados Unidos como alimento (as pessoas na Indonésia os consomem), tentou reproduzi-los em casa e depois os liberou.


ASTRONOMIA

Mais perto de casa Uma nova missão impulsiona a busca detalhada de exoplanetas

CORTESIA DE MIT KAVLI INSTITUTE FOR ASTROPHYSICS AND SPACE RESEARCH

A

Missão Kepler, da Nasa, foi um sucesso extraordinário. [Por causa da falha apresentada em 15 de maio de 2013, ela permanece em modo de segurança desde então, impossibilitada de continuar a busca de provas que confirmem a existência de planetas extra-solares semelhantes.] A sonda descobriu milhares de prováveis exoplanetas – mundos que orbitam estrelas diferentes do Sol – e mais de 100 deles já foram examinados cuidadosamente e confirmados. Muitos desses planetas estão entre os que têm um tamanho mais aproximado ao da Terra de que se tem conhecimento: dos 25 exoplanetas de

diâmetro menor descobertos até hoje, todos, exceto um, foram descobertos pela sonda Kepler. Só há uma restrição em seu levantamento imensamente produtivo: os planetas estão a centenas ou até milhares de anos-luz de distância, longe demais para serem observados em detalhes. Já o TESS, o Satélite de Pesquisa de Exoplanetas em Trânsito (Transiting Exoplanet Survey Satellite, em inglês), com previsão de lançamento para 2017, examinará uma faixa muito mais ampla do céu que seu antecessor, cerca de meio milhão de estrelas, para descobrir exoplanetas mais próximos, que os cientistas poderão examinar

Concepção artística do satélite

com futuros telescópios. Segundo George R. Ricker, astrofísico do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, milhares dessas estrelas situam-se em um raio de 100 anos-luz do sistema solar. Como a sonda Kepler e o satélite europeu CoRoT antes dela, o TESS procurará trânsitos planetários: breves enfraquecimentos de luzes estelares, que ocorrem em intervalos regulares e acusam a presença de um exoplaneta invisível que as sombreia. Ricker calcula que o TESS descobrirá de 500 a 700 planetas de tamanho semelhante ao da Terra ou um pouco maiores, alguns potencialmente habitáveis. – John Matson

PALEONTOLOGIA

Fóssil redesenha passado geológico no Ceará Bacia sedimentar do Araripe era um corpo de água-doce em contato com água marinha

U

ma criatura de não mais que 1,8 cm de comprimento, um camarão fóssil, está provocando uma completa revisão na ideia que se tinha da bacia sedimentar do Araripe, no Ceará. A descoberta, apresentada em 17 de janeiro passado no Geopark Araripe, no município de Araripe, refere-se ao Kellnerius jamacaruensis, como foi batizado. O espécime fossilizado, do período Cretáceo, datado em 100 milhões de anos, quando os dinossauros ainda viviam na Terra, tem dimensões tridimensionais, bem típicas da região, quando o mais frequente são restos representados em apenas duas dimensões. O fóssil foi descoberto em estratos da Formação Crato (anterior à Formação Romualdo), segundo o paleontólogo e coordenador do projeto, Álamo Feitosa. Há 100 milhões de anos, a chapada do Araripe não existia. O que havia era uma camada de rocha, de 180 km

de comprimento por 50 km de largura, formada no fundo de um lago em contato com águas marinhas. A descoberta de um novo gênero do grupo carídeo, segundo Feitosa, indica que, junto a restos de carófitas (algas de água-doce), a atual bacia sedimentar do Araripe era um corpo de água-doce em contato com água marinha (laguna ou estuário). Ainda na interpretação de Feitosa, “o camarão é um ser de muito difícil fossilização e encontrá-lo individualizado em uma concreção, completo e tridimensional, é uma sorte muito grande. Outros camarões da família Paleomonidae, ligados a camarões de água salgada, foram encontrados no estômago de Rhacolepisbucalis (um peixe fóssil), comum na bacia do Araripe. Com o apoio da Universidade Regional do Cariri (Urca), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Geopark Araripe,

o projeto envolveu alunos, estagiários e pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Entre os participantes está o pesquisador Alexandre Kellner, referido no batismo do fóssil. A região da bacia sedimentar do Araripe é conhecida pela riqueza em materiais geológicos do Cretáceo inferior (145,5 milhões a 65,5 milhões de anos atrás), abrigando uma diversidade de achados bem preservados com datação entre 150 milhões e 90 milhões de anos atrás. O Geopark Araripe, reconhecido como o primeiro das Américas, através da Rede Global de Geoparques, ligada à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), tem área de 3 796 km², e se estende pelas cidades de Juazeiro do Norte, Crato e mais cinco municípios da região do Cariri. − Yara Peres, Fortaleza

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NOTAS Relógio de sol de Areia Preta em Natal, no Rio Grande do Norte

EDUCAÇÃO

Relógios de sol Secretarias de Educação, Cultura e Turismo poderiam desenvolver projetos em todo o país uitas cidades exibem relógios de sol instalados em praças ou parques por onde as pessoas passam e despertam curiosidade. É claro que, hoje, pouca gente usaria um relógio de sol para saber a hora certa ou acertar o relógio digital. Com tantos relógios desde os clássicos de ponteiros, passando pelos digitais, telefones celulares, iPods, iPhones, etc., fica difícil não saber a hora certa. Mas, mais que monumentos artísticos e arquitetônicos (obras de arte e arquitetura), os relógios de sol são verdadeiros monumentos à cultura humana. Quem presta atenção ao formato de um relógio de sol e suas partes se pergunta sobre a direção da haste e para onde ela está apontando. Também indaga sobre as marcas das horas e a maneira como

estão colocadas. Pode-se notar que, como a hora e os minutos dependem da posição do Sol, é o movimento desse astro que vai mostrar o horário para cada local onde o relógio é construído. Diversos tipos de relógios de sol são construídos, dependendo da posição do mostrador das horas e da haste. Entre os mais comuns estão o horizontal, com as horas marcadas em uma mesa, por exemplo, e o vertical, que pode ser feito numa parede ou muro. Também existe o tipo equatorial, orientado na direção norte/sul. Neste

caso, a haste está apontada para o polo celeste e inclinada em um ângulo cujo valor é o mesmo da latitude local. A leitura é feita pela sombra da haste projetada em uma placa em curva, com as graduações das 6 às 18 horas e suas divisões. Como o relógio fornece o tempo solar verdadeiro, obtido pelo movimento do Sol, a hora verdadeira local ou hora legal é traduzida por meio de uma tabela que mostra os minutos que devem ser somados ou subtraídos, conforme o dia do ano. Naturalmente, no horário de verão, devemos adicionar uma hora.

REGULAMENTAÇÃO POLÊMICA

Projeto limita pesquisas em história Projeto no Congresso prevê que toda e qualquer atividade nessa área deverá ser exclusividade de historiador

E

stá tramitando no Congresso Nacional o projeto de lei 4699/2012 que regulamenta a profissão de historiador. Se for aprovado em sua forma atual trará alterações radicais no ensino e pesquisa de muitas áreas de estudo histórico. O projeto dá o nome de “historiador” ao portador de diploma de graduação (licenciatura ou bacharelado), de mestrado ou doutorado em história, e não estabelece qualquer distinção entre eles, afirmando que é atribuição dessa pessoa o magistério da disciplina de história em todos os níveis. Um bacharel em história (sem formação pedagógica) poderá utilizar a lei para exigir o direito de lecionar história para nossas crianças – o que viola 8 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

a distinção tradicional entre licenciados e bacharéis. Além disso, bastará ter graduação em história para poder exercer o magistério de história no nível superior. De acordo com esse projeto, as pessoas com diploma de história serão as únicas que poderão realizar uma grande lista de atividades, incluindo “elaboração de pareceres, relatórios, plano, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos”. O projeto de lei não prevê qualquer exceção para essa regra. Uma consequência curiosa é que os estudantes das escolas ou de graduação em história não poderão elaborar trabalhos sobre temas históricos, já que ainda não têm diploma.

Há outros efeitos radicais dessa norma. Um cientista social não poderá mais elaborar qualquer projeto, relatório ou trabalho sobre temas históricos, sem diploma em história. Muitos excelentes cientistas sociais que se dedicam à história – como os do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas – ficarão impedidos de continuar seus trabalhos. Além disso, um médico, sem diploma de história, não poderá mais elaborar projetos ou trabalhos sobre história da medicina. Um filósofo, sem diploma de história, ficará proibido de elaborar projetos ou trabalhos sobre história da filosofia. O mes-

ALLAN PATRICK

M


Outros tipos podem ser construídos e a hora pode ser conhecida não apenas pela sombra de uma haste, mas por furos feitos em placas onde a luz, ao passar, é projetada em outro local com as marcações das horas. Muitos projetos podem ser feitos com as mais diversas concepções orientadas pela gnomônica, a ciência e a arte de construção de relógios de sol, e com a ajuda de softwares específicos. É possível explorar pela internet um grande número de relógios de sol instalados pelo mundo todo. Desde uma fresta em uma caverna, ou uma simples estaca colocada na vertical, passando por grandes monumentos, relógios de sol foram construídos com a finalidade de marcar o tempo. Muitos tipos desses equipamentos foram desenvolvidos ao longo da história, desde o Egito antigo, há cerca de 1500 anos antes de Cristo ou anteriores a essa época.

A divisão das horas e o conhecimento dos calendários ajudaram a sociedade a se organizar, registrar seus eventos, planejar-se e avaliar suas ações. Os relógios foram úteis, pelo conhecimento dos movimentos do Sol e dos astros de modo geral, até para saber as coordenadas em muitos lugares do planeta. Até a direção das navegações ou limites territoriais dependem da determinação da hora certa. Atividades de construção de relógios de sol nas escolas têm um grande potencial e podem motivar os alunos para o estudo de várias disciplinas, como história, geografia, ciências e matemática. Hoje este conhecimento de orientação não está ultrapassado, como se pode considerar à primeira vista. Ele serve de base para apontarmos antenas e fazermos uso de coordenadas, determinadas pelos GPS que utilizam satélites. Muitas cidades brasileiras ainda não têm um relógio de sol numa praça ou

parque para visitação pública. O projeto de construção desses equipamentos poderia ficar a cargo de secretarias municipais de Educação, Cultura ou Turismo, pois está relacionado a todas essas áreas. O espaço pode ser visitado pelos alunos das escolas da cidade acompanhados pelos professores dos mais diversos níveis escolares em uma atividade diferente, fora da sala de aula. Como opção de cultura e lazer, o relógio de sol é uma forma de atração turística na cidade. É muito agradável fazer um passeio e, no caminho, encontrar algo que nos faça pensar e perguntar sobre assuntos que fazem parte da cultura humana há milhares de anos. Também é importante mostrar aos mais jovens que o conhecimento da humanidade foi formado e desenvolvido durante esse longo tempo, e os relógios de sol são testemunhos dessa história. – Paulo S. Bretones

Paulo S. Bretones é colaborador de Scientific American Brasil, professor da Universidade Federal de São Carlos, coeditor da Revista LatinoAmericana de Educação em Astronomia (RELEA) e autor de Os segredos do Sistema Solar e de Os segredos do Universo, da Atual Editora.

mo se aplica aos pesquisadores de todas as áreas do conhecimento (astronomia, biologia, computação, direito, literatura, arte...). Nenhum deles, sem diploma de história, poderá elaborar trabalhos sobre a história de sua própria área de estudos. Nem poderá elaborar projetos sobre esses temas históricos para pedir bolsas ou auxílios aos órgãos de fomento. Quem não tem diploma de história também ficará proibido de organizar publicações, exposições ou eventos sobre temas nessa área. Os educadores não poderão organizar exposições, revistas ou congressos sobre história da educação; os psicólogos não poderão organizar livros, exposições ou eventos sobre história da psicologia; e assim por diante.

Além disso, o mesmo projeto de lei prevê que apenas os portadores de diploma de história poderão exercer magistério nessa área, no ensino fundamental, médio e superior. Não é prevista qualquer exceção. Os atuais professores de qualquer disciplina de história (por exemplo, história da matemática) que não tenham diploma de história deverão ser substituídos por historiadores. É bem verdade que os currículos de graduação ou pós-graduação em história não incluem história da matemática, psicologia, biologia, literatura, filosofia, música, direito etc. Porém, se o projeto de lei for aprovado, tornará o ensino da história de todos os ramos do conhecimento humano uma prerrogativa exclusiva de quem

tem um diploma na área – mesmo se essa pessoa não tiver qualquer noção sobre o assunto. Não existe legislação restritiva como essa em outros países. A entidade acadêmica que apoia essa proposta é a Associação Nacional de História (ANPUH). Muitas outras se posicionaram claramente contra esse projeto de lei, como a Sociedade Brasileira de História da Ciência, o Comitê Brasileiro de História da Arte e a Sociedade Brasileira de História da Educação. Recentemente, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) também se manifestaram contra a aprovação desse projeto de lei. O que vai acontecer? Ninguém sabe. – Roberto de Andrade Martins

Roberto de Andrade Martins, físico e historidor da ciência, é colaborador de Scientific American Brasil

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NOTAS PALEONTOLOGIA

SAÚDE

Costura das cavernas

O risco da cânabis

Neandertais podem ter usado penas escuras

A maioria dos adolescentes vê a maconha como livre de riscos

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tar encontrou marcas de corte nos ossos das asas, com pouca carne. Exatamente o que os neandertais faziam com as penas não se sabe, mas como eles procuravam especificamente pássaros com plumagens escuras, os pesquisadores suspeitam que nossos primos se enfeitavam com penas esplendorosas. Essa não é a primeira vez que cientistas encontram evidências de que neandertais usavam penas. Em 2011, uma equipe de pesquisadores italianos relatou a existência de ossos de pássaros com marcas de cortes feitos por neandertais na Caverna Fumane, no norte da Itália, que revelavam essa prática. Mesmo assim, alguns pesquisadores consideraram a descoberta como fenômeno isolado. As novas pistas sugerem que, durante milhares de anos, penas foram “trajes a rigor” não apenas para os neandertais de Gibraltar, mas muito possivelmente para os da Eurásia também. Pesquisadores presentes em uma conferência sobre evolução humana conduzida em Gibraltar em setembro de 2012 elogiaram o estudo e concordaram com a interpretação da equipe de que os restos são evidência de que os neandertais se adornavam com as penas, em vez de usá-las para algum propósito estritamente utilitário. De acordo com o paleoantropólogo John Hawks, da Universidade de Wisconsin-Madison: “Um tipo de pessoa puramente utilitária não usa cocares emplumados”. – Kate Wong Adaptado de Observations blog at blogs. ScientificAmerican.com/observations

E

mbora a taxa de adolescentes fumantes esteja em baixa recorde, um número maior deles está fumando maconha, e o número dos que acreditam que ela faz mal é o mais baixo já registrado. Dados divulgados em dezembro passado, parte do projeto Monitoring the Future do Instituto Nacional de Abuso de Drogas, demonstram que apenas 44,1% dos alunos do último ano do ensino médio acreditam que o uso habitual da maconha é nocivo, o menor nível desde 1973. Isso pode explicar por que mais de um terço dos veteranos do ensino médio experimentaram maconha em 2012, e um em cada 15 a fumaram diariamente. A aceitação crescente da maconha medicinal pode estar por trás da mudança na atitude dos adolescentes. Desde 1996, 18 estados americanos mais o Distrito de Colúmbia legalizaram a obtenção de maconha por adultos com prescrição médica [no Brasil uma discussão se arrasta há anos sem conclusão]. E em novembro passado, os estados do Colorado e Washington se tornaram os primeiros a legalizar a maconha para qualquer um acima dos 21 anos. “Essa mudança na percepção do risco pode muito bem ser resultado da aprovação generalizada do uso medicinal da maconha”, diz Lloyd Johns-

MARTIN WILLIS MINDEN PICTURES (Costura das cavernas)

E

specialistas concordam que os neandertais caçavam grandes animais, vestiam a pele deles, controlavam o fogo e faziam ferramentas de pedra. Mas se eles também se engajavam em atividades mais avançadas ainda é assunto de debates acalorados. Alguns pesquisadores argumentaram que neandertais não tinham o know-how para explorar presas pequenas de maneira eficaz, como pássaros, e que não se expressavam rotineiramente pela linguagem e outros comportamentos simbólicos. Essas deficiências os levaram a uma desvantagem clara quando humanos anatomicamente modernos, dotados dessas habilidades, invadiram a Europa – uma fortaleza neandertal por milhares de anos – e presumivelmente começaram a competir com eles. Novas evidências sugerindo que neandertais caçavam pássaros por suas penas decorativas poderiam nos forçar a reconsiderar essa ideia. Em 17 de setembro de 2012, o paleontólogo Clive Finlayson, do Museu de Gibraltar, a zooarqueóloga Jordi Rosell, da Universidade Rovira i Virgili em Tarragona, na Espanha, e seus colegas publicaram suas análises dos restos animais da época do Pleistoceno, provindos de 1 699 sítios de fósseis na Eurásia e no norte da África, na PloS One. Seus resultados mostram que neandertais da Eurásia ocidental eram fortemente associados a corvídeos (corvos e seus parentes) e aves de rapina (águias e seus parentes) – mais ainda do que eram os humanos anatomicamente modernos que os sucederam. Parece improvável que os neandertais tenham caçado esses animais como alimento. As pessoas não comem corvídeos ou aves de rapina atualmente. Além disso, se os neandertais de fato caçavam esses pássaros para se alimentar, seria de esperar sinais de cortes nos ossos ligados às partes carnudas do pássaro, como o peito. Mas o estudo que a equipe fez dos ossos dos pássaros dos sítios de Gibral-


ENERGIA

Deixe o sol entrar Usar a luz do dia para economizar eletricidade parece óbvio, mas poucos edifícios comerciais fazem isso

BRENT LEWIN Getty Images; DIMITRIOS KAMBOURIS Getty images (Deixe o sol entrar)

A

ton, da Universidade de Michigan, líder do projeto Monitoring the Future. Mas a maconha oferece mais riscos para os adolescentes que para os adultos. Em agosto, pesquisadores da Duke University e outras instituições publicaram os resultados de um estudo de 25 anos, sugerindo que o uso pesado entre os adolescentes pode provocar dano cognitivo permanente. Pessoas diagnosticadas com dependência da droga quando adolescentes e adultos sofreram declínio de até oito pontos em seu QI entre a idade de 13 e 38 anos, mesmo após os pesquisadores terem eliminado outros tipos de dependência, esquizofrenia e educação. (O QI de não fumantes apresentou um leve aumento.) Além disso, o QI dos usuários adolescentes não se recuperou mesmo após abandonarem o uso na vida adulta. Quanta maconha é demais? “É difícil descobrir”, explica Madeline Meier, psicóloga clínica da Duke e principal autora do estudo. Não existe maneira exata de medir o consumo de maconha, porque cigarros de maconha raramente são idênticos e sua potência varia. O que está claro é que o cérebro dos adolescentes é especialmente vulnerável aos efeitos da maconha. Eles seriam, assim, inteligentes em evitá-la – e podem permanecer inteligentes por causa disso. – Melinda Wenner Moyer

The New York Times Company economiza energia em sua sede de 52 andares usando a tecnologia de iluminação mais antiga do mundo: o sol. Janelas que vão do chão ao teto deixam a luz do sol inundar o prédio, e sensores diminuem as luzes internas para economizar energia. Comparado a outros prédios na cidade de Nova York, o edifício do Times reduziu seu uso de energia em 24%, aponta um novo relatório do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley (LBNL). A energia usada para iluminar, resfriar e ventilar prédios em cidades ao redor do mundo responde por aproximadamente 40% das emissões de dióxido de carbono da humanidade, o principal gás estufa responsável pela mudança climática. Usar mais luz do sol parece uma solução óbvia, mas isso é mais complexo que se pode pensar. Um prédio moderno em uma cidade como Nova York precisa de janelas específicas para controlar claridade e também de sombra para bloquear pelo menos parte da luz do sol e permitir que funcionários vejam as telas de seus computadores. Um sistema de energia eficaz requer luzes autoajustáveis que devem ser acessíveis, duráveis e fáceis de manter, além do hardware e algoritmos de computador necessários para fazê-lo funcionar. E as pessoas que usam o prédio devem gostar do sistema ou pelo menos operá-lo com facilidade. Cobrir os 20 andares de escritórios do Times com equipamento para luz do dia é “a maior aquisição de iluminação inovadora e tecnologias de sombreamento dos Estados Unidos”, confirma o relatório do LBNL. Nos 35 anos desde que Stephen Sel-kowitz, o guru dos prédios do LBNL, começou a defender o uso de mais luz do dia, a tendência foi na direção oposta. “Ela não foi escalonável”, observa ele, o

que significa que as lições aprendidas em um prédio não foram traduzidas em prédios semelhantes ou outras cidades. O prédio do Times também é um exemplo desses desafios. A empresa em si ocupa pouco menos da metade do prédio de 150 mil metros quadrados, e nem todos os outros ocupantes optaram pela nova tecnologia, que pode custar de US$ 2 a US$ 10 por 9 cm2 de espaço. Apesar de todos esses gastos, há economias. Pela análise de Selkowitz, o investimento do New York Times permite uma economia energética de US$ 13 mil por andar todos os anos. A empresa levou três anos para recuperar o investimento, mas está economizando dinheiro desde então. Isso é “bom demais”, analisa ele. Mas devido aos novos prédios que estão sendo construídos ao norte e ao oeste, o sofisticado sistema tem de ser reprogramado para lidar com a claridade inesperada provocada pelas novas janelas. No fim, apesar de o uso da luz do sol parecer fácil, “você não pode fazer tudo sozinho”, previne Selkowitz. – David Biello

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COMO FUNCIONA VIDRO INTELIGENTE

De fosco a transparente num clique vidro nos isola de outras pessoas e das coisas, deixando, ao mesmo tempo, a luz passar, mas a iluminação pode ser um problema quando se quer ter privacidade ou bloquear o calor do Sol. O vidro inteligente pode ajudar, permitindo que as janelas tenham suas propriedades alteradas conforme a necessidade. Ao toque de um botão, o vidro de cristal líquido fica fosco, transformando o que antes era a parede transparente de uma sala de reuniões, um boxe de banheiro ou o vidro traseiro de uma ambulância em uma barreira visual (ver ilustração à dir.). Não são necessárias venezianas, cortinas ou persianas, que ocupam espaço e acumulam sujeira. É impossível enxergar através desse “vidro privativo” porque ele dispersa os raios incidentes, mas essa difusão preenche o espaço interior com luz natural. No vidro eletrocrômico, a aplicação de certa voltagem por alguns segundos ou minutos escurece os painéis, barrando a luz. Quando usado em janelas de edifícios, produz sombra no interior e reduz os custos de refrigeração. Os moradores podem controlar o grau da opacidade, que se preserva depois que a energia é desligada. Outra opção é o vidro que contém partículas suspensas, cujo funcionamento é parecido com o do cristal líquido. Janelas com gel termocrômico, que se torna branco ou colorido quando o calor ultrapassa uma temperatura limite, também diminuem a necessidade de resfriamento do interior. O vidro privativo só não é mais difundido devido aos custos, cerca de dez vezes maiores que o do o vidro temperado comum. Mas os consumidores estão ficando mais curiosos: “Eles o estão usando não apenas para salas de reunião e paredes de banheiro, mas também em claraboias que bloqueiam raios UV, para isolar cômodos de restaurantes e escritórios, ou em janelas de aviões”, diz Jeff Besse, presidente da LTI Smart Glass, em Lenox, Massachusetts. O preço dos eletrocrômicos para edifícios com projeto de economia de energia pode ser o dobro do preço dos vidros de “baixa emissividade”, com isolamento a gás. Contudo, a durabilidade a longo prazo do produto pode compensar o gasto, diz Roland Pitts, pesquisador do Laboratório Nacional de Energia Renovável dos EUA, em Golden, Colorado. “As janelas devem ficar estáveis por 30 a 40 anos sob temperaturas e condições de radiação solar variadas”, aponta, “ligando e desligando dezenas de milhares de vezes ou mais.” – Mark Fischetti

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LABORATÓRIO NACIONAL LAWRENCE BERKELEY (em cima e no meio, à esq.); SMARTGLASS IRELAND LTD. (em cima e no meio, à dir.); ILUSTRAÇÕES POR GEORGE RETSECK

Revestimento condutor Vidro transparente

➔  A JANELA ELETROCRÔMICA, quando ■ não energizada, transmite luz; todas as camadas ficam transparentes.

Óxido de tungstênio (transparente)

Voltagem desligada Tungstênio-bronze (coloração) Condutor de íons

Armazenamento de íons

➔  A APLICAÇÃO DE VOLTAGEM cria um campo elétrico que ■ conduz íons de lítio armazenados, convertendo o óxido de tungstênio em tungstênio-bronze. Essa camada absorve raios UV, e certos comprimentos de ondas visíveis, o que resulta em uma coloração. Quanto maior o tempo de voltagem, mais escuro o tom. A cor permanece quando a energia é desligada; a voltagem pode ser aplicada depois para conduzir os íons de volta, de modo a clarear o vidro. ➔  LENTES FOTOCRÔMICAS são ■ banhadas com haletos de prata. As moléculas desse material ficam excitadas quando atingidas pelos raios ultravioleta do Sol e então absorvem os comprimentos de onda visíveis reduzindo o brilho e escurecendo o vidro. Em interiores, sem os raios UV, as lentes clareiam.


VOCÊ SABIA?

u CORRIDA AUTOMOBILÍSTICA: O vidro eletrocrômico

é instalado no espelho retrovisor de alguns carros, de forma que pode ser escurecido para diminuir o brilho dos faróis. Se fosse usado nas janelas laterais ou na traseira, o motorista teria condições de regular a cor do vidro quando desejasse privacidade. Contudo, áreas maiores como essas levariam seis minutos ou mais para ser obscurecidas. Fabricantes de cristal líquido e de vidro de partículas suspensas, que se modificam em menos de meio segundo, estão de olho nesse mercado. A coloração escura das janelas de certos carros como as limusines é permanente.

u EM UM DIA CLARO: O vidro duplo da janela de grande parte

das salas de estar transmite apenas 70% da luz solar (mesmo o transparente). A maioria dos vidros inteligentes atinge esse nível

Vidro privativo de cristal líquido

também. Para-brisas de automóvel feitos com uma camada de polímero entre dois painéis de vidro transparente, com proteção antiestilhaçamento, deixam passar um pouco menos do que 70%. u SUSPEITOS IDENTIFICADOS: Um espelho unidirecional consiste em um painel simples de vidro, com uma cobertura em um dos lados que reflete cerca de metade da luz que o atinge. Nas delegacias de polícia, a face reflexiva é voltada para uma “sala de suspeitos”, cuja iluminação intensa se reflete fortemente na superfície, impedindo que os suspeitos enxerguem a sala escura do outro lado. As testemunhas, no escuro, podem ver através do espelho, embora apenas metade dos raios de luz passem. Se as luzes dessa sala fossem ligadas, aumentaria a transmissão para a sala dos suspeitos, que poderiam então ver seus acusadores, embora com dificuldade.

Vidro transparente Camada interna adesiva Filme fino Revestimento condutor Cristais líquidos

➔  A JANELA DE CRISTAL LÍQUIDO, quando não energizada, fica opaca. Os cristais, ■ confinados em um filme transparente, movem-se aleatoriamente, espalhando os raios de luz em todas as direções, o que torna impossível para o olho focar uma imagem que atravessa o vidro. No entanto, a luz consegue ultrapassar, e então o interior permanece iluminado.

Válvulas de luz

4,75

mm Dimen1,88 mm sões t ípicas 4,75 mm

➔  A APLICAÇÃO DE VOLTAGEM cria um campo magnético que alinha os cristais. ■ As válvulas ou cavidades de luz, incrustadas nos cristais, permitem que os raios de luz passem paralelamente, fazendo com que o vidro pareça transparente, com uma névoa suave. A camada intermediária fixa o filme ao vidro e bloqueia os raios UV. A energia necessária para a parede exibida nesta foto é menor do que a usada em uma lâmpada de 100 W. SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

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FÍSICA NO ESPORTE Energia ou potência? O que os atletas têm que, em geral, nos falta POR LEANDRO MARIANO E OTAVIANO HELENE

À

s vezes, dizemos “estou tão cansado tempo, exercendo a força na mesma que conseguimos realizá-lo, ou seja, a que nem tenho mais forças para fa- direção do deslocamento, por exemplo, potência, é um limitante muito importante para o nosso desempenho físico. zer isso”. Mas será que nessa situações empurrando um carro? Vamos às contas. A resposta é não, pelo menos por de fadiga o que falta mesmo é força? Lembrando que potência é o proum tempo maior do que 10 ou 20 seNossa capacidade de fazer força é um aspecto importante em muitas atividades gundos: quem já empurrou um carro duto da velocidade pela componente do dia a dia e, sobretudo, nas atividades quebrado ou sem bateria para a parti- da força na direção da velocidade, a esportivas. Veja um exemplo. Uma pes- da sabe que não é possível combinar as potência mecânica que produzimos soa adulta, sadia e forte, consegue facil- duas coisas por muito tempo. Confor- quando empurramos um carro com mente carregar um bebê e não terá tam- me o carro ganha velocidade, a força uma força F e o carro se desloca com bém dificuldade para sustentar o peso de que conseguimos fazer se reduz. Por uma velocidade v na mesma direção e sentido da força aplicada, é P = F • v. uma criança pequena. É possível, ainda, que isso acontece? Quando fazemos uma força e desque consiga carregar outro adulto com o Se a força e a velocidade não tivemesmo peso dela, mas à medida que tiver locamos um objeto e ambos, força e rem a mesma orientação, é necessário de sustentar cargas cada vez maiores, cer- deslocamento, têm a mesma direção, multiplicar o lado direito dessa equação tamente chegará um momento em que ela realizamos um trabalho. A taxa com pelo cosseno do ângulo entre ambas. não terá mais forças para a tarefa. Não há dúvida, portanto, que a caF = 300 N pacidade de aplicar força tem um limite e está correto dizer, em certas situações, não tenho mais força. Mas há outras restrições e a força não é, muitas vezes, a limitação mais importante para um atleta ou um trabalhador que executa atividades pesadas.

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Se a força formar um ângulo com o deslocamento, devemos levar em conta a componente horizontal dela para o cálculo da potência

Se uma pessoa empurrar um veículo por uma distância d com uma força F constante e na mesma direção do deslocamento, essa força realiza um trabalho igual a F×d. Se esse trabalho for feito durante um tempo t, a potência mecânica será F×d/t ou, simplesmente, o produto da força pela velocidade, F×v. Quando empurramos um carro conseguimos, inicialmente, aplicar uma força muito intensa, que dependendo do lugar em que é aplicada, pode até provocar o amassamento da lataria. Mas conforme o carro ganha velocidade, a força que conseguimos fazer ao empurrá-lo vai sendo reduzida, pois, de outra forma, a potência mecânica estaria além daquela que conseguimos produzir.

ARTMANNWITTE/SHUTTERSTOCK

FORÇA E VELOCIDADE: POTÊNCIA Considere a seguinte situação: ao empurrar uma parede na direção horizontal, um adulto sadio consegue fazer uma força da ordem de 300 N sem dificuldade. Você pode verificar isso empurrando uma balança de banheiro contra a parede. Um adulto também consegue correr a uma velocidade de alguns metros por segundo, digamos, 3 m/s (pouco mais de 10 km/h), mesmo que não seja um atleta. Mas será que uma pessoa com essas duas habilidades (empurrar alguma coisa com uma força de 300 N e correr com uma velocidade da ordem de 3 m/s) consegue executá-las ao mesmo


LATINSTOCK/ORJAN F. ELLINGVAG/CORBIS

Considerando que a intensidade da força é de 300 N e a velocidade, 3 m/s, resulta uma potência de 900 W, esse é um valor muito elevado para um ser humano “comum”. Apenas atletas bem preparados e pessoas sadias e acostumadas com trabalho pesado conseguem produzir uma potência próxima a essa e, assim mesmo, por não mais do que 10 ou 20 segundos. A potência é, portanto, um dos fatores que limitam nossa capacidade de exercer atividades físicas, sejam as do dia a dia, as esportivas ou de trabalho pesado. Assim, em diversas situações é mais adequado dizer não tenho mais capacidade de produzir potência do que não tenho mais força. E NO CASO DA ENERGIA MECÂNICA? Vimos que a força é um limitante para as atividades, assim como nossa capacidade de produzir potência mecânica. Mas será que a energia é outro fator a nos limitar? Afinal, quantas vezes dizemos “minhas energias acabaram, vou parar e continuo amanhã”? Por mais sensata que pareça essa afirmação, a energia que conseguimos produzir não é, de fato, um limitante. Desde que tenhamos tempo suficientemente longo, podemos produzir enormes quantidades de energia, mas a uma taxa baixa – ou seja, com uma potência pequena. Um jovem sadio consegue subir dez andares de um prédio e rapidamente. Um adulto mais maduro, com o mesmo peso, também consegue, mas mais lentamente. E um idoso também consegue, mas provavelmente demorará muito mais tempo e precisará até parar algumas vezes

Corrida nas escadas do Empire State Building em Nova York, em 2012. O vencedor, um australiano, percorreu os 86 andares em 10 minutos e 12 segundos.

O exemplo a seguir pode dar uma boa ideia de quão intensa é uma potência de 900 W. A diferença de altura entre dois andares de um edifício residencial é da ordem de 3 metros. Se uma pessoa de 75 kg subir escadas a uma taxa de um andar a cada 2,5 segundos, ela estará produzindo uma potência mecânica igual àquela com que varia sua energia potencial, m×g×h/Δt. Isso corresponde a 75 kg×10 m/s2×3 m/2,5 s, ou seja, 900 W. Poucas pessoas conseguem fazer isso por mais do que alguns segundos. Por sinal, há uma competição (não olímpica)

no caminho. Mas no fim da história, todos os três produziram a mesma quantidade de energia mecânica, com a única diferença na taxa com que a produziram, ou seja, a potência. Portanto, a energia total não é um limitante para atividades esportivas ou para trabalho pesado, e a expressão “minhas energias acabaram” não

de subir escadas, no Empire State Building, em Nova York (foto ao lado). Os melhores competidores, atletas com um perfil físico mais próximo dos fundistas (magros e relativamente pouco musculosos) do que dos velocistas (fortes e pesados) conseguem vencer 86 andares dos 102 do edifício, equivalente a cerca de 300 metros de altura, em cerca de 10 minutos, o que, para uma pessoa de 70 kg, corresponde à produção de uma potência mecânica da ordem de 350 W. Portanto, não tenha dúvidas: 900 W é muito para uma pessoa comum!

corresponde à realidade física. Os fatores que mais comumente nos limitam nas atividades esportivas ou nos trabalhos pesados são a capacidade de produzir potência e a força. n OS AUTORES Leandro Mariano é doutorando no Instituto de Física da USP e Otaviano Helene é professor da mesma instituição.

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ÉTICA NA CIÊNCIA

A pesquisa sobre medicamentos é

confiável? A indústria farmacêutica canaliza dinheiro para pesquisas de eminentes cientistas relacionadas a seus produtos, configurando um evidente conflito de interesses POR CHARLES SEIFE

uando Robert Lindsay decidiu se tornar pesquisador médico, no início dos anos 70, não fez isso por dinheiro. Seu campo – o efeito dos hormônios nos ossos – estava estagnado. Era uma oportunidade perfeita para um jovem pesquisador deixar sua marca e ele esperava ajudar milhares de pessoas que sofrem de osteoporose. À medida que o corpo envelhece, os ossos, às vezes, perdem a capacidade de se reconstituir num ritmo capaz de acompanhar o desgaste normal, e o esqueleto se enfraquece. Nem Lindsay nem ninguém entendia muito bem como isso acontece, mas havia razão para pensar que os hormônios tinham um papel nesse processo. Algumas mulheres desenvolvem osteoporose logo depois da menopausa, quando seus níveis de hormônios caem drasticamente, talvez comprometendo o equilíbrio entre a formação e a destruição dos ossos. Se fosse assim, raciocinou Lindsay, substituir os hormônios por uma pílula poderia deter ou mesmo reverter o avanço da doença. Em uma pequena e modesta clínica em Glasgow, na Escócia, ele elaborou um dos primeiros testes clínicos da terapia de reposição de estrogênio para perda de ossos em mulheres na pós-menopausa. A estrela de Lindsay estava subindo. Seu projeto seguinte tinha grandes implicações comerciais e atraiu a atenção da indústria farmacêutica. Tendo se mudado para o Hospital Helen Hayes, um centro de reabilitação ao norte da cidade de Nova York, ele publi-

ILUSTRAÇÃO POR GONI MONTES

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cou, em 1984, um trabalho que estabeleceu a dosagem eficaz mínima de uma droga de estrogênio antiosteoporose chamada Premarin. Como as conclusões sugeriam que o combate à osteoporose equivalia a estimular milhares de mulheres a usarem a droga, Lindsay tornou-se uma pessoa importante aos olhos do fabricante do medicamento, Laboratórios Wyeth-Ayerst. De fato, a empresa deu a ele o papel de autor em seu vídeo informativo Osteoporose: uma tragédia evitável. Em meados dos anos 90, quando a Wyeth foi pega numa batalha pela patente do Premarin, Lindsay foi um fiel aliado do laboratório. Ele se manifestou contra a aprovação de uma versão genérica da droga que reduziria suas vendas, apesar de a medida prometer maior acesso de pacientes de osteoporose ao tratamento. O argumento dele foi que essas versões poderiam não ser precisamente equivalentes ao medicamento de marca, fato que pode ser verdadeiro para algumas drogas, mas também uma posição que ecoava a linha da companhia. “Tudo o que estamos pedindo é que não se aprove agora algo que lamentaremos” depois, ele disse à Associated Press em 1995. A relação entre Lindsay e a Wyeth e outras empresas farmacêuticas continuou por décadas, de formas algumas vezes camufladas. Ele começou a permitir que a Wyeth delineasse artigos de pesquisa e passou a receber milhares de dólares de farmacêuticas que lucravam com sua pesquisa. SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

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também consultoria: uma companhia contrata um pesquisador para prestar assessoria. Pesquisadores “acham que essas companhias estão interessadas no cérebro deles, mas elas estão de fato atrás da sua marca”, garante Marcia Angell, ex-editora-chefe da New England Journal of Medicine. “Comprar um pesquisador acadêmico sênior ilustre – o tipo que faz palestras, escreve livros-texto e artigos de revistas – equivale a 100 mil vendedores.” AMEAÇA À CIÊNCIA Revistas especializadas estão repletas de estudos mostrando como o dinheiro da indústria farmacêutica está minando sutilmente a objetividade científica. Um estudo de 2009 na Cancer mostrou que os participantes de alguma forma sobreviviam por mais tempo quando os autores de um estudo tinham conflitos de interesses que quando os autores estavam limpos. Um estudo de 1998 na New England Journal of Medicine descobriu uma “forte associação” entre as conclusões de pesquisadores sobre a segurança de bloqueadores de canais de cálcio, um tipo de droga usada para reduzir a pressão sanguínea, e suas relações financeiras com empresas que produziam o medicamento. Não se trata apenas de um problema acadêmico. As drogas são aprovadas ou rejeitadas com base em pesquisas supostamente independentes. Quando uma pílula não funciona como anunciado e é retirada do mercado ou rerrotulada como perigosa, verifica-se com frequência uma trilha de pesquisa tendenciosa e dinheiro para cientistas. No início dos anos 2000, por exemplo, quando pacientes começaram a processar a Wyeth por outra droga de estrogênio, Prempro (relacionada ao risco de câncer de mama, derrame e algumas outras doenças), o trabalho de ghostwriting e de autores convidados da farmacêutica se tornou uma peça central do caso. Quando foi a vez do analgésico Vioxx (ligado a ataques cardíacos e derrames), da Merck, o dinheiro da indústria farmacêutica também estava lá. Em um estudo do Vioxx os pesquisadores acadêmicos parecem ter assinado o projeto patrocinado pela Merck depois de a companhia já ter feito toda a análise de dados. Segundo um estudo de 2010 publicado na British Medical Jour-

nal, 87% dos pesquisadores que manifestaram “opiniões favoráveis” sobre a droga para diabetes Avandia, da GlaxoSmithKline, apesar dos indícios de que poderia aumentar o risco de infarto, tinham algum envolvimento financeiro com a fabricante. E quando um comitê da Food and Drug Administration (FDA), a agência que regulamenta alimentos e medicamentos nos EUA, debateu se deveria ou não retirar o Avandia do mercado devido a sua relação com os ataques cardíacos, soube-se que membros do comitê, também, vinham recebendo dinheiro de farmacêuticas. A resposta da comunidade científica ao problema de conflito de interesses é transparência. Revistas, instituições patrocinadoras e organizações profissionais pressionam os pesquisadores a declararem abertamente – para aqueles que são seus objetos de pesquisa, seus colegas e quaisquer outros afetados pelo seu trabalho – se têm qualquer relação que possa comprometer sua objetividade. Dessa forma, a comunidade científica decide se um estudo é ético e, quando o experimento é realizado, se o seu resultado é confiável. É uma questão de honra. Pesquisadores com frequência deixam de informar conflitos de interesses – algumas vezes porque nem mesmo percebem que são um problema (Scientific American também solicita a divulgação voluntária sobre conflitos de interesses aos pesquisadores que escrevem artigos.) Em teoria, há um sistema de segurança. Várias etapas de checagem deveriam garantir que conflitos de interesses fossem pegos e expostos mesmo quando um pesquisador inconsciente ou desonesto não os informa. Quando um cientista deixa de informar o conflito, a universidade ou hospital para o qual trabalha deve, supostamente, descobrir isso e relatar. E, quando uma universidade ou hospital não fizerem seu trabalho, a agência de governo que financia boa parte dessas pesquisas – National Institutes of Health (NIH), no caso americano – deve supostamente agir. Infelizmente, esse sistema de segurança está seriamente avariado. “As instituições frequentemente evitam a questão ou têm políticas bastante fracas”, avalia Adriane Fugh-Berman, professora do departamento de farmacologia e fisiologia da Universidade de Georgetown. Mais chocante

GRÁFICO POR JEN CHRISTIANSEN

REGRA, NÃO EXCEÇÃO O escândalo não é tanto o que Lindsay fez, mas o quanto seu caso é típico. Nos últimos anos, a indústria farmacêutica encontrou muitas formas de injetar grandes quantias de dinheiro – o suficiente às vezes para sustentar uma criança até a faculdade – nos bolsos de pesquisadores médicos independentes que estão fazendo trabalhos com suporte, direto ou indireto, a drogas que essas empresas estão produzindo e comercializando. O problema não é só com as farmacêuticas e os pesquisadores, mas com todo o sistema – instituições patrocinadoras, laboratórios de pesquisa, revistas, sociedades de profissionais e assim por diante. Ninguém está fazendo os controles necessários para evitar conflitos de interesse. Em vez disso, as organizações parecem transferir responsabilidades umas para as outras, deixando brechas nas normas, pelas quais os pesquisadores e as companhias farmacêuticas passam com facilidade, e então encobrem suas deliberações com o sigilo. “Não há um único setor da medicina acadêmica, da pesquisa acadêmica ou da educação médica em que as relações com a indústria não sejam um fator ubíquo”, diz o sociólogo Eric Campbell, professor de medicina da Faculdade de Medicina de Harvard. Nem todos esses relacionamentos são ruins. Afinal, sem a ajuda da indústria farmacêutica, os pesquisadores médicos não seriam capazes de transformar suas ideias em novos medicamentos. Mas, ao mesmo tempo, argumenta Campbell, algumas dessas ligações servem mais para cooptar cientistas a ajudarem a vender remédios que para gerar novos conhecimentos. O enredamento entre pesquisadores e companhias farmacêuticas toma várias formas. Há as agências ou centrais de palestrantes: uma farmacêutica dá dinheiro para um pesquisador viajar – em geral de primeira classe – para fazer conferências pelo país, nas quais o pesquisador algumas vezes apresenta slides e discurso preparados pela empresa. Há ghost writing, ou o trabalho de escritor-fantasma: uma farmacêutica escreve um artigo e paga a um cientista (o “autor convidado”) um honorário para assiná-lo e apresentá-lo a revistas editadas por seus pares. E há


FONTE: “ASSOCIAÇÃO ENTRE AFILIAÇÃO À INDÚSTRIA E POSIÇÃO SOBRE RISCO CARDIOVASCULAR COM ROSIGLATIZONA: ANÁLISE TRANSVERSAL”, POR AMY T. WANG, CHRISTOPHER P. MCCOY, MOHAMMAD HASSAN MURAD E VICTOR M. MONTORI, EM BMJ, VOL. 340, Nº 7750; 10 DE ABRIL DE 2010

ainda: o NIH não só está falhando na aplicação das normas éticas destinadas a frear a influência cada vez maior do dinheiro das farmacêuticas, como também pode estar desrespeitando algumas dessas leis. PREOCUPAÇÃO NO CONGRESSO O congresso americano tem tentado barrar a corrupção da pesquisa médica por meio de legislação. Em 2010, como parte do pacote de reforma do setor de saúde, foi aprovado o Physician Payments Sunshine Act, para tornar transparentes os pagamentos feitos aos médicos. A partir de 2013, a lei obriga todas as companhias farmacêuticas e fabricantes de equipamentos médicos a revelar o dinheiro que estão colocando nos bolsos dos médicos. Como a maioria (mas não todos) dos pesquisadores em medicina é formada por médicos, teoricamente esses dados vão ajudar as universidades, hospitais de pesquisa e o NIH a descobrir se um beneficiário enfrenta um potencial conflito de interesses. A informação, no entanto, será inútil se não for utilizada. O caso de Robert Lindsay mostra como o problema do conflito de interesse na pesquisa médica é profundo e como será difícil resolvê-lo. O esforço das companhias farmacêuticas para influenciar o discurso da ciência costuma começar pela prática do escritor-fantasma. Quando consegue dirigir a forma como um artigo de pesquisa é redigido, a empresa farmacêutica consegue controlar, em grande parte, como um resultado científico é entendido e usado por clínicos e pesquisadores. Um dos mais prestigiosos estudos de Lindsay – um artigo de 2002 demonstrando os efeitos benéficos do Prempro em mulheres na pós-menopausa – foi inicialmente rascunhado pela DesignWrite, uma empresa que havia sido contratada pela Wyeth como ghost writer de artigos para publicação na imprensa especializada. Após se reunir com Lindsay, em meados de abril de 2001 para discutir o desenvolvimento do artigo, a DesignWrite elaborou um esboço e o encaminhou a Lindsay (e à Wyeth). A DesignWrite enviou um rascunho a Lindsay para comentários no início de junho, fez uma análise adicional e revisou o manuscrito. Em agosto, a Jour-

ESTUDO DE CASO, INTERESSES CONFLITANTES Em que medida as conexões financeiras influenciam o julgamento dos cientistas? Para descobrir isso, pesquisadores da Mayo Clinic, em Rochester, Minnesota, se concentraram na droga para diabetes rosiglitazona, relacionada a um aumento de risco de infartos por uma meta-análise. Eles examinaram artigos que citaram a meta-análise e descobriram que cientistas com conflito de interesses tinham mais chances de analisar a droga favoravelmente. “Havia uma clara e forte relação entre a orientação das visões manifestadas pelos autores sobre a polêmica da rosiglitazona e seus conflitos de interesses financeiros com companhias farmacêuticas”, apurou o relatório. 31 autores foram classificados como favoráveis à droga (rosiglitazona não aumenta o risco de ataque cardíaco) 84 autores foram classificados como neutros

65 autores foram classificados como desfavoráveis à droga (rosiglitazona aumenta o risco de ataque cardíaco)

Autor do artigo identificado como tendo conflito de interesse financeiro com fabricantes de rosiglitazona e/ou outros agentes antidiabéticos Sem conflito de interesses financeiros

nal of the American Medical Association (JAMA) o aceitou para publicação. Ainda no mesmo ano, a DesignWrite revisou o original em resposta aos comentários e o artigo foi publicado em maio de 2002. No fim do artigo, Lindsay e seus três coautores agradeceram a Karen Mittleman por sua ajuda editorial, sem identificá-la como funcionária da DesignWrite ou revelar a relação com a Wyeth. JUSTIFICATIVAS FRÁGEIS Lindsay nega que a DesignWrite tenha influência significativa na elaboração do artigo em 2002, ou em quaisquer de seus trabalhos posteriores. A empresa teria apenas “elaborado um rascunho sob nossa direção”, justifica. Ele e os demais coautores citados foram responsáveis pelo projeto e orientação do estudo. Se for assim, Lindsay merece ser apresentado como coautor do artigo e Mittleman não merece nada mais

que um breve reconhecimento, segundo Phil B. Fontanarosa, editor-executivo da JAMA. “Não está claro que as atividades [de Mittleman] incluíssem concepção e projeto (do estudo), obtenção de dados ou análise e interpretação de dados”, escreveu-me ele em um e-mail. O uso de uma empresa externa para escrever trabalhos não é um caso único. Kathleen Ohleth, então redatora da DesignWrite, ajudou Lindsay a elaborar um artigo em 2009 para a revista Fertility and Sterility. (Depois de minha entrevista inicial com Lindsay, ele se recusou a responder a quaisquer novas questões, incluindo sobre quem pagou Ohleth em 2009, e me encaminhou para um assessor de imprensa.) Dois anos mais tarde, num artigo na Osteoporosis International, Lindsay também agradeceu a Ohleth pelo “apoio em redação médica” e reconheceu que era financiado pela Pfizer (que adquiriu a Wyeth em 2009), mas disSCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

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se que ele “era o único contribuinte para a direção de conteúdo e conceito do paper”. Segundo o artigo, uma série de hormônios que estava sendo preparada pela Pfizer apresentava um “novo paradigma para a terapia da menopausa”. Ao mesmo tempo que Lindsay aceitava apoio da Pfizer para a redação de artigos, acumulava alguns acordos financeiros que representavam um potencial conflito de interesses. Segundo um banco de dados compilado pelo grupo de jornalismo investigativo ProPublica, em 2009 e 2010 a Eli Lilly pagou a Lindsay mais de US$ 124 mil, boa parte por palestras. A maioria das revistas especializadas tem normas sobre a divulgação de informações referentes a relações financeiras. O que precisamente um cientista tem de revelar depende do assunto em questão e da revista, portanto é difícil especificar exatamente quando um pesquisador está violando essas normas. Em algumas publicações Lindsay de fato revelou sua relação com a Lilly, mas ele não fez isso devidamente. Por exemplo, num artigo de setembro de 2010 sobre um estudo da osteoporose publicado na Mayo Clinic Proceedings, muitos dos autores declararam que estavam no birô de palestrantes da Lilly ou tinham outros relacionamentos com a empresa, embora Lindsay, também coautor, não evidenciasse isso. Posteriormente ele me garantiu que havia mudado sua forma de pensar sobre declarar esse tipo de relacionamento. “Até bem recentemente, minhas declarações incluíam qualquer companhia farmacêutica cujos produtos estivessem em minha palestra ou artigo”, disse ele. “Eu mudei essa filosofia um pouco porque agora, para garantir que haja realmente clareza, eu declararia todos os contatos.” Mesmo quando o objeto de um estudo era um produto da Lilly, Lindsay nem sempre revelava sua relação financeira com a empresa. Seu estudo de 2008 no Journal of Clinical Endocrinology and Metabolism sobre se a teriparatida, base da droga Forteo, da Lilly, é afetada por outras drogas contra a osteoporose não informava que Lindsay havia atuado como consultor e palestrante da fabricante do Forteo em período recente. “Como todos naquele estudo eram tratados com teriparatida, não 20 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

havia possibilidade de gerar conflito”, diz Lindsay. “E, evidentemente, o estudo não era de forma alguma financiado pela Eli Lilly”, acrescentou ele. A divulgação inconsistente de informações de Lindsay vai além dos artigos de pesquisa. Como um proeminente pesquisador, Lindsay tem sido fundamental na publicação de diretrizes que outros médicos usam para tratar osteoporose. Ele ajudou, por exemplo, a desenvolver e escrever o Clinician´s Guide to Prevention and Treatment of Osteoporosis, de 2008, da National Osteoporosis Foundation. O guia, que tem sido endossado por diversas associações médicas, fala sobre escolhas de tratamento, incluindo teriparatida. (“Teriparatida é em geral bem tolerada, embora alguns pacientes possam experimentar cãibras nas pernas e tonturas”, afirma.) Na seção denominada “Disclosure” [Divulgação], o guia declara que nenhum dos autores, incluindo Lindsay, tem “ relação relevante com qualquer interesse comercial”. Além disso, Lindsay aparentemente deixou de mencionar esses potenciais conflitos quando solicitou verbas federais. Embora Lindsay tenha sido consultor da Lilly pelo menos até 2004, em 2005 ele pediu ao National Institutes of Health (NIH), a agência encarregada da maior parte da pesquisa médica apoiada pelo governo federal americano, financiamento para um estudo do Forteo: Lindsay queria fazer biópsia nos ossos dos pacientes para ver como a droga estava afetando a estrutura do esqueleto. Ele conseguiu a verba. Nos anos seguintes, o NIH deu a Lindsay US$ 3,4 milhões para estudar a droga. Em 2010, ele pediu novos recursos para comparar dois métodos de administração do Forteo. Novamente, ele conseguiu a ajuda, dessa vez de US$ 364 mil e mais US$ 346 mil em 2011. A regulamentação federal sobre potenciais conflitos de interesses em financiamento do NIH estipula que um beneficiário tem de identificar quaisquer conflitos de interesses reais ou aparentes e informar como eles foram administrados, reduzidos ou eliminados. Não fazer isso é uma violar a lei. Parece suficientemente claro, mas, na prática, não é assim. A responsabilidade pela aplicação da lei é transferida de uma instituição para outra numa

amplitude em que os conflitos como os de Lindsay costumam passar pelas brechas. O NIH é responsável por dar aos pesquisadores médicos dezenas de bilhões de dólares todos os anos. Com tanto dinheiro em jogo o potencial para corrupção é tentador. O NIH é pouco eficiente nesse controle porque não é agressivo na detecção de conflitos de interesses no trabalho de seus cientistas. Quando procurados para falar sobre casos de potenciais violações de normas éticas, os funcionários do NIH se recusaram terminantemente. Questionada sobre um possível conflito de interesses nas verbas de Lindsay para estudar a teriparatida, Faye Chen, funcionária do NIH, recusou-se a fornecer cópias das garantias por escrito do Helen Hayes Hospital, empregador de Lindsay – papelada exigida por lei federal – de que conflitos de interesses haviam sido adequadamente combatidos. Ela insistiu que tudo estava em ordem. “O NIH está comprometido com a preservação da confiança pública de que a pesquisa apoiada é conduzida de forma não tendenciosa e dentro dos mais altos padrões científicos e éticos”, disse-me ela num e-mail. “Posso assegurar-lhe que a instituição do dr. Lindsay forneceu a certificação e garantia exigidas antes de receber a verba e eles terão de apresentar esse documento a cada ano antes do recebimento dos recursos”, acrescentou ela. Documentos obtidos por meio de uma solicitação sob a Lei de Liberdade de Informação (Freedom of Information Act, FOIA) não mencionam qualquer potencial conflito de interesses – nada que indique que Lindsay estava recebendo dinheiro da fabricante da droga em estudo. Autoridades do NIH não comentaram se examinaram ou não a questão. As ações do NIH não causam surpresa. Há poucos anos, o Escritório do Inspetor Geral do Departamento de Saúde e Serviços Humanos colocou suas mãos em comunicações internas do NIH e constatou que a administração desestimula investigações sobre conflitos de interesses entre pesquisadores patrocinados. (Em nome da transparência: minha esposa trabalha para o Escritório do Inspetor Geral, mas não tem qualquer relação com esses estudos ou este artigo.) Um memorando declarava, por exemplo: “Não devemos


buscar detalhes adicionais sobre a natureza do conflito ou como esse caso foi tratado, a menos que haja preocupação programática suficiente para fazer isso”. O caso de Lindsay não parece isolado. Cientistas em todo o país estão buscando financiamento de pesquisa pelo governo ao mesmo tempo que recebem dinheiro de laboratórios, o que com frequência representa um potencial conflito de interesses. Para ter uma ideia de quanto dinheiro está fluindo das farmacêuticas para os beneficiários de auxílio à pesquisa do NIH, meus alunos e eu usamos os bancos de dados que contêm todos os financiamentos do NIH de 2009 e 2010, tomando como referência a base de dados do ProPublica sobre os pagamentos das fabricantes de medicamentos para identificar quais estavam nas folhas de pagamento das companhias. Conseguimos identificar US$ 1,8 milhão em pagamentos de umas poucas farmacêuticas para beneficiários do NIH apenas no estado de Nova York – pagamentos para birô de palestrantes, trabalhos de consultoria e outros serviços. (O total dos pagamentos para pesquisadores em Nova York deve ser muito mais alto.) Muitos desses recursos podem não representar conflitos de interesses de fato. Os beneficiários dessas verbas não são os únicos que recebem das farmacêuticas – as pessoas do NIH que ajudam a decidir que pesquisadores terão os recursos também recebem. Assim como usamos os dados do ProPublica para identificar pagamentos da indústria farmacêutica a pesquisadores patrocinados pelo NIH, também os utilizamos para verificar o dinheiro dos laboratórios que flui para membros dos comitês revisor e consultivo do NIH. Encontramos quase 70 membros do comitê consultivo recebendo um total de mais de US$ 1 milhão por participação em palestras, consultoria e outros serviços às companhias farmacêuticas. Alguns desses pagamentos podem estar violando as normas de ética federal. Elas proíbem que membros do comitê consultivo participem de decisões capazes de afetar uma organização da qual estejam recebendo remunerações substanciais. O problema, então, vai muito além dos beneficiários do NIH. O dinheiro das companhias farmacêuticas se infiltrou no

próprio NIH. Se a agência conhecia os potenciais conflitos de interesses de seus funcionários e não fez nada para garantir que não afetassem suas decisões sobre financiamento de pesquisas, está violando a lei. Para descobrir isso, recorri à Lei de Liberdade de Informação para solicitar documentação que indicasse se o NIH tinha consciência dos pagamentos das farmacêuticas aos membros de seu comitê consultivo e, em caso positivo, se permitiu que os beneficiários desempenhassem suas funções, apesar de estarem na folha de pagamentos de uma farmacêutica. O NIH se recusou a entregar esses documentos e recorri à Justiça. Após um processo de nove meses, um juiz federal forçou o NIH a divulgar o que havia tentado ocultar. Alguns dos documentos revelados no processo implicam que a política interna sobre conflito de interesses do NIH é, em grande medida, devotada a encontrar formulários desaparecidos. Além disso, eles mostram que alguns institutos do NIH parecem não ter adotado uma única ação referente à aplicação de normas sobre conflito de interesses contra seus empregados desde 2008. Ainda assim os documentos mais reveladores – os que o NIH lutou para manter sigilosos – estão relacionados aos chamados waivers (dispensas de cláusulas). SITUAÇÃO ESPECÍFICA Sob circunstâncias limitadas, o NIH pode conceder um waiver, isentando um empregado do governo em conflito de interesses (como um membro de um comitê consultivo) de cumprir as leis da ética. Pedi informação sobre waivers concedidos a diversos integrantes de comitês consultores do NIH. Em cada caso eu sabia, com base nos dados do ProPublica e de outras fontes, que haviam recebido milhares de dólares das fabricantes de medicamentos. Eu queria descobrir por que o NIH permitia que essas pessoas integrassem os comitês, apesar do potencial conflito – e, igualmente importante, qual a natureza desses conflitos. A grande maioria dos pagamentos não pode ser encontrada nesses waivers. Louis Ptácek, por exemplo, que estava então no Conselho Consultivo Nacional sobre Distúrbios Neurológicos e Derrame (National Advisory Neurological Disorders and

Stroke Council), recebeu permissão para participar de algumas reuniões, apesar de sua numerosa participação acionária em companhias de medicamentos, mas o waiver não menciona que ele recebeu mais de US$ 50 mil como consultor da Pfizer. (Ptácek não respondeu a um pedido de comentário.) Da mesma forma, um waiver para Arul Chinnaiyan, que integra o Conselho de Consultores Científicos do Instituto Nacional do Câncer, não revela que ele recebeu US$ 9 mil da GlaxoSmithKline em 2009 e US$ 21 mil em 2010. Mas Chinnaiyan disse que ele informou sobre esses arranjos ao NIH. Por que então eles não aparecem em seu waiver? O NIH não faz comentários sobre casos individuais. Uma funcionária do instituto concordou em falar sobre política geral, mas apenas sob a condição de não ser identificada. Honorários por consultoria e acordos de agência de palestrantes, disse ela, geralmente não são listados num waiver, mas num documento separado que trata de questões específicas sobre o que membros de comitês precisam recusar. Quando este artigo estava para ser publicado, Susan Cornell, funcionária da FOIA no NIH, confirmou que a agência não havia conseguido entregar determinados documentos de impedimentos em resposta à minha solicitação, como deveria ter feito. A divulgação inconsistente de documentos pelo NIH e o sigilo por trás disso tornam impossível dizer com absoluta certeza o que está acontecendo. No mínimo, o NIH está fazendo um trabalho descuidado para controlar potenciais conflitos de interesses. Se acordos de consultoria pertencem, por exemplo, a um documento de impedimentos, por que os acordos de consultoria de Lawrence R. Stanberry com a GlaxoSmitKline e Starpharma aparecem em seu waiver? (Stanberry, chairman do departamento pediátrico do College of Physicians and Surgeons da Columbia University, integra o Conselho de Consultores Científicos do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas.) E por que o waiver não inclui trabalho de consultoria que ele fez para a Sanofi Pasteur? “Eu não sei por que a consultoria à SanofiPasteur não parece estar no waiver”, disse-me Stanberry num e-mail. Talvez SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

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as autoridades encarregadas de concederem waivers tenham errado. Informação obtida mediante outra solicitação feita sob a Lei de Liberdade de Informação – dessa vez ao Escritório de Ética do Governo (Office of Government Ethics, OGE), a agência encarregada de assegurar que agências do governo como o NIH sigam as normas sobre ética – implica que o NIH não está respeitando a regulamentação federal sobre waivers. Do ponto de vista do governo, conceder um waiver é uma questão séria; é essencialmente dar imunidade para não seguir uma lei e, supostamente, isso só deveria ocorrer raramente e com uma boa dose de supervisão. As regulações federais determinam que o NIH deve fazer uma checagem junto ao OGE antes dessa concessão. O NIH emitiu dezenas de waivers para membros de comitês consultores nos últimos anos, mas desde 2005 o escritório sobre ética mostra que, nas três vezes em que o NIH o consultou conforme o exigido, nenhum dos waivers em questão tinha relação com um membro de um comitê consultor. Quando perguntei a funcionários da agência sobre essa questão, eles insistiram que o NIH cumpre plenamente as regulações federais no que se refere à concessão de waivers, mas não ofereceram qualquer evidência de que a agência estivesse consultando o OGE ao emitir waivers como determina a lei. As instituições que administram bolsas devem supostamente realizar outra checagem sobre conflito de interesses, mas não fazem isso. Historicamente, o NIH não se responsabiliza por policiar conflitos de interesses nas pesquisas que financia. Em 2007, respondendo à queixa do Escritório do Inspetor Geral de que o tratamento de conflitos de interesses financeiros pelo NIH era inadequado, Elias Zerhouni, então diretor da agência, sustentou que não era trabalho do NIH determinar se os beneficiários estavam obedecendo às leis da ética. “Acreditamos que seja vital manter a objetividade na pesquisa”, escreveu ele em uma carta ao Escritório do Inspetor Geral, “no entanto, as responsabilidades por identificar FCOIs [sigla em inglês de conflitos de interesses financeiros] devem ficar com as instituições receptoras.” Autoridades do 22 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

NIH afirmam que a política atual sobre essa questão não mudou. Mas as instituições beneficiárias também têm um histórico de não tratar de questões éticas envolvendo seus pesquisadores. Um relatório de 2009 do Escritório do Inspetor Geral abordou como organizações que recebem verbas do NIH descobrem potenciais conflitos de interesses. Um total de 90% delas deixam a critério do pesquisador a identificação de quaisquer problemas. Mesmo instituições que publicamente assumem uma linha dura contra conflitos de interesses são, com frequência, negligentes na aplicação de suas políticas. No fim de 2010, o ProPublica criou um banco de dados sobre companhias farmacêuticas e começou a checar a Stanford University e várias outras universidades com fortes políticas contra conflito de interesses. Descobriram dezenas de membros da faculdade que também estavam recebendo dinheiro das farmacêuticas em violação às normas dessas instituições. O hospital Helen Hayes, onde Lindsay trabalha, não parece aplicar rigorosamente suas próprias normas. A organização, com certeza, é complexa – é uma unidade estadual, portanto o Departamento de Saúde do Estado de Nova York tem participação, e todos os seus financiamentos são administrados por meio da Health Research, Inc. (HRI), uma organização sem fins lucrativos que ajuda o departamento de saúde estadual a conseguir financiamento externo para pesquisa médica. A HRI administra US$ 0,5 bilhão por ano em auxílio à pesquisa. Com tantos financiamentos e tanto dinheiro em jogo, no entanto, é surpreendente que a HRI não esteja identificando diversos casos de conflito de interesses a cada ano. “Sou diretora de programas patrocinados aqui há 11 anos e tenho trabalhado para a Health Research na administração de financiamentos há 17 anos. E nunca vi um conflito de interesses”, garantiu Terry Dehm, da HRI. “Nem um único caso de conflito de interesses em qualquer bolsa que solicitamos... Nós simplesmente nunca vimos isso.” Quando eu disse a ela que o auxílio do NIH para Lindsay estudar o Forteo recebe recursos da fabricante da droga, Dehm respondeu que o então diretor executivo da HRI, Michael Nazarko, me telefona-

ria naquela tarde ou no dia seguinte. Ele nunca ligou, nem respondeu às repetidas tentativas de dar seguimento ao assunto. Por meio da assessoria de imprensa do Departamento de Saúde do Estado de Nova York, Nazarko por fim se recusou a responder a qualquer pergunta, assim como Val Gray, executivo-chefe do Helen Hayes. Felicia Cosman, diretora de pesquisa clínica do Helen Hayes, também se recusou. Felicia recebeu dinheiro do NIH para estudar o Forteo, embora a Lilly tenha pago a ela mais de US$ 135 mil por palestras e consultoria, segundo o ProPublica. Solicitada a comentar, a HRI enviou por e-mail uma cópia de sua política sobre conflito de interesses e uma declaração insistindo que “os procedimentos traçados considerados nessa política foram seguidos” nos financiamentos de Lindsay e Felicia. Poucos dias depois de eu ter questionado o Helen Hayes sobre o trabalho de Lindsay e os potenciais conflitos de interesses, representantes do hospital pediram uma revisão ética do trabalho de Lindsay. Inicialmente, o hospital tentou encontrar um painel independente para analisar se o trabalho de Lindsay apresentava ou não conflito de interesses devido à relação dele com a Lilly. Sem encontrar um painel independente, no entanto, o hospital pediu que o Conselho de Revisão Institucional do Helen Hayes o examinasse. (Lindsay era então membro do conselho, mas não participou dessas deliberações.) O conselho concluiu que Lindsay havia recebido recursos financeiros significativos da Lilly, mas que os pagamentos não representavam conflito de interesses. Descobri esse processo meses depois, após recorrer à Lei de Liberdade de Informação do Estado de Nova York para obter documentos relacionados aos auxílios à pesquisa. Infelizmente, um Conselho de Revisão Institucional – criado para aprovar protocolos de pesquisa clínica e garantir que pacientes sejam adequadamente tratados – está mal equipado para responder a questões sobre conflitos de interesses financeiros. “A composição de um conselho de revisão institucional nunca foi pensada para lidar com conflitos de interesses no mundo de hoje”, justifica Arthur Caplan, bioético do Langone Medical Cen-


ter da New York University (e membro do comitê consultor da Scientific American). “Está muito claro para mim que esta pessoa do Helen Hayes tem um conflito bastante sério”, afirma Caplan. Carl Elliott, um bioético da University of Minnesota, concorda. “O Conselho de Revisão Institucional não era o órgão para pedir uma opinião”, disse-me ele num e-mail. CORRIGINDO O SISTEMA Pesquisadores não podem acabar com a influência do dinheiro das farmacêuticas. Hospitais e universidade não vão fazer isso. O NIH também se recusa a isso. E, como resultado, milhões de dólares dos contribuintes financiam pesquisas cuja objetividade está sendo solapada. O Congresso, que detém a chave do cofre, está furioso. Boa parte de sua ira é dirigida ao NIH, que foi censurado por não seguir diretrizes éticas. “Estou bem familiarizado, de meus anos como chairman deste subcomitê, com a atitude encontrada com frequência no NIH: as normas não se aplicam a nós”, disse o deputado Joe Barton, do Texas, então presidente do Comitê de Energia e Comércio da Câmara, numa audiência em 2004 sobre os lapsos éticos do NIH. “É de perguntar: se o NIH pode ser tão permissivo sobre as normas éticas mais básicas no governo federal, o que dizer sobre a capacidade de administrar os dólares dos contribuintes e, mais importante, garantir que a pesquisa sustentada pelo contribuinte seja traduzida em curas?”, questionou ele. Mas a atitude persiste mesmo depois de o Congresso ter aumentado a pressão para que o NIH melhore sua conduta. Desde 2008 o senador Charles Grassley, de Iowa, lidera uma série de inquéritos parlamentares sobre vários incidentes nos quais beneficiários de auxílios do NIH deixaram de revelar pagamentos das farmacêuticas e universidades negligenciaram em disciplinar adequadamente os pesquisadores envolvidos. O exemplo de maior destaque foi o caso de Charles Nemeroff, que, até recentemente, era presidente do departamento de psiquiatria da Emory University. Documentos da Emory mostraram que desde 2000 havia dúvidas sobre a correção dos laços de Nemeroff com as empresas – como o dinheiro que ele estava recebendo da SmithKline Beecham,

que depois se tornou GlaxoSmithKline. (A companhia também doou dinheiro para dotar uma vaga no departamento de Nemeroff.) Em 2003, pesquisadores acusaram Nemeroff de não informar suas ligações com fabricantes de remédios utilizados nos três tratamentos analisados num artigo na Nature Neuroscience (Scientific American é parte do Nature Publishing Group.) A resposta da Emory foi abrir uma investigação. Em 2004, a universidade reconheceu que Nemeroff havia, de fato, cometido “muitas violações de conflito de interesses, consultoria e outras políticas”. Confrontado com essas conclusões ele concordou em limitar sua consultora à GlaxoSmithKline devido às implicações que isso poderia ter para um financiamento do NIH em que ele estava trabalhando, assim como em reduzir seu envolvimento com várias outras empresas. Depois que uma investigação parlamentar em 2008 revelou numerosos pagamentos não informados, Nemeroff renunciou à presidência do departamento de psiquiatria da Emory e a instituição o proibiu de solicitar recursos patrocinados pelo NIH por dois anos. Desde então, Nemeroff trocou a Emory pela University of Miami, onde é agora presidente do departamento de psiquiatria e ciências comportamentais e principal pesquisador de um novo financiamento de US$ 400 mil do NIH. Após essas investigações parlamentares o NIH revisou e adotou regras exigindo que os beneficiários revelem todas as conexões financeiras acima de US$ 5 mil para suas instituições. Além disso, as normas obrigam essas instituições a prestar conta publicamente, em termos amplos, de quaisquer conflitos de interesses de pessoal envolvido em pesquisa patrocinada pelo NIH. Essas mudanças significam que o público terá acesso a mais informações sobre os alvos do dinheiro da indústria farmacêutica. O diretor do NIH, Francis Collins, propagandeou as novas regras como “uma clara mensagem de que o NIH está comprometido em promover a objetividade na pesquisa que financia”. Mas, na nova regulamentação, não há uma só palavra que mude o responsável por identificar esses conflitos ou explique como

os problemas éticos serão resolvidos. “Como as próprias instituições conhecem o contexto em que seus empregados trabalham e como eles são empregados da instituição e não empregados do governo federal, a responsabilidade de gestão é delas”, diz Sally Rockey, vice-diretora de pesquisa não universitária do NIH. “As instituições estão na melhor posição para lidar com os interesses financeiros de seus próprios empregados.” A única esperança de resolver o problema do conflito de interesses na ciência está nos próprios pesquisadores. A cultura da ciência pode mudar. Por meio das revistas editadas pelos pares (cuja reputação sofre como resultado de pesquisa tendenciosa) e via comunidade científica (que determina os padrões éticos que os cientistas supostamente devem seguir), os cientistas podem pressionar seus pares a prescindir do dinheiro das companhias farmacêuticas. No mínimo, podem convencer seus colegas cientistas que é de seu interesse de longo prazo serem completamente abertos sobre os pagamentos recebidos das farmacêuticas. A maior esperança de fornecer diretrizes éticas e exercer pressão dos pares está nas organizações profissionais e revistas especializadas editadas pelos pares. No campo de Lindsay, seriam a National Osteoporosis Foundation e Osteoporosis International. Mas essas organizações desejariam e estariam aptas a liderar a extirpação dos conflitos de interesses? Uma pessoa a ser questionada neste caso seria o ex-presidente da National Osteoporosis Foundation e atual editor-chefe da Osteoporosis International. n O AUTOR Charles Seife é professor de jornalismo da New York University e autor de Proofiness: the dark arts of mathematical deception (Viking, 2010). PARA CONHECER MAIS Dados do Propublica citados neste artigo: http://projects.propublica.org/docdollars Banco de dados de documentos da indústria farmacêutica da University of California, São Francisco: http://dida.library.ucsf.edu Base de dados de auxílios para pesquisa do NIH: http://projectreporter.nih.gov/reporter.cfm?icde= Documentos sobre a audiência Grassley-Baucus no Senado: www.finance.senate.gov/hearings/hear ing/ ?id=dc6efa3a-e47a-86db-2281-bf16970558e6 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

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Halley, primeiro cometa a ter 贸rbita determinada, fotografado na 煤ltima passagem pelas proximidades do Sol em 1985/86

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FÍSICA

Um cometa que pode surpreender Ison, que terá máxima aproximação da Terra em dezembro de 2013, seria um dos mais brilhantes já observados*. Será? *Ver referência a este artigo no Editorial (pág.5)

POR ENOS PICAZZIO e as estimativas preliminares se confirmarem, o co- MAGNITUDE APARENTE meta Ison, descoberto em setembro de 2012, será Definida mais adiante, a magnitude aparente um dos mais brilhantes já observados. Sua magni- é uma escala inversa: quanto mais brilhante o astro, menor a magnitude. Assim, valores tude aparente poderá atingir –10. Isso significa que equi- negativos correspondem às estrelas mais brivalerá a um décimo do brilho da lua cheia. Ainda assim, lhantes. Sua relação com o brilho aparente da será bem mais brilhante que Vênus, o segundo objeto estrela é logarítmica. Uma diferença entre magnitudes Dm (considerando os sinais) mais brilhante do céu noturno (o primeiro é a Lua, e o representa uma variação de aproximadamente 2,512Dm no brilho. segundo Sirius, alfa da constelação do Cão Maior). Ison é o nome com que foi batizado o cometa C/2012 S1. Usualmente todo cometa tem duas denominações, ou seja, um nome e uma sigla oficial. Esse astro foi descoberto pelos russos Vitali Nevski e Artyom Novichonok, em 21 de setembro de 2012. Nessa data estava no interior da constelação de Câncer, a 1 bilhão de km da Terra e 939 milhões de km do Sol, com brilho cerca de 100 mil vezes menor que o da estrela mais débil vista a olho nu. Normalmente esse cometa receberia o nome Nevski-Novichonok, mas ele foi batizado como Ison, sigla de Internacional Scientific Optical Network (Rede Internacional de Ciência Óptica), um projeto internacional não governamental para coleta e processamento de

JAMES BALOG Getty Images

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não seguem uma lei física rígida informações sobre objetos espaciais débil que o olho hu- INSTRUMENTOS ÓPTICOS para aplicações diversas utilizado por mano consegue perce- O Telescópio espacial que permita estimativas seguras Nevski-Novichonok. C/2012 S1 é uma ber tem magnitude 6. Hubble pode registrar a respeito do brilho aparente identificação composta de um primei- Com a introdução de astros com magnitude ao longo de sua trajetória e nas aparente 30, ou seja, 4 ro número (2012) que indica o ano da instrumentos ópticos, bilhões de vezes mais fra- sucessivas passagens pelas vizidescoberta, seguido de uma letra (S) essa escala foi expan- cos que a estrela mais nhanças do Sol. Fisicamente, cometas são corque localiza a quinzena do ano e de um dida para valores bem débil percebida a olho nu (magnitude aparente 6). pos de pequena massa, composnúmero (1) que representa a ordem de mais elevados que 6, e tos essencialmente de gases congelados descoberta. Ou seja, o Ison foi o primei- bem menores que 1. ro cometa a ser descoberto na 18a quinA órbita preliminar do Ison indica como água (80%), monóxido de carboque ele atingirá o periélio (ponto de no (10%), dióxido de carbono (3,5%), zena do ano de 2012. Pelo menos por enquanto o Ison está maior aproximação do Sol) em 28 de compostos orgânicos ricos em carbono seleto grupo dos membros mais bri- novembro de 2013, a uma distância no, CHONs (grãos ricos em carbono, lhantes dessa família de astros um tanto aproximada de 1,2 milhão de km da hidrogênio, oxigênio, e nitrogênio) e imprevisíveis. Em Grandes cometas na fotosfera solar, considerada a superfície grãos de silicatos. Essa estrutura forma história (http://ssd.jpl.nasa.gov/?great_ do Sol. Talvez ele possa ser visto mesmo o “núcleo” desses astros com tamanho comets), o astrônomo americano Do- durante o dia. Cometas que passam as- inferior a algumas dezenas de quilômenald Yeomans faz uma relação dos sim tão próximos do Sol são classifica- tros e massa típica entre 100 e 1 000 cometas mais famosos. Um deles foi dos como rasantes solares, e muitos de- bilhões de toneladas. Quando o cometa se aproxima do o 1P/Halley, conhecido simplesmente les não sobrevivem a essa aproximação. A órbita preliminar do Ison é quase Sol, a temperatura superficial do seu por Cometa Halley, em homenagem ao astrônomo Edmund Halley (1656- parabólica, o que sugere que se trata núcleo aumenta e o material volátil é 1742), que determinou a periodicida- de um astro proveniente da nuvem que sublimado, ou seja, passa da fase sólida de dos cometas. Halley percebeu que circunda o Sol a uma distância média diretamente para a gasosa. O gás expeos cometas que apareceram em 1531, 50 mil vezes maior que a distância lido na forma de jato arrasta os grãos 1607 e 1682 eram na realidade o mes- entre a Terra e o Sol. Essa nuvem foi impregnados nessa massa congelada mo. Calculando o período desse astro proposta pelo astrônomo holandês Jan formando a “coma”, invólucro aproem aproximadamente 76 anos, previu Hendrik Oort (1900-1992) e é conhe- ximadamente esférico de 100 mil km que ele voltaria em 1758, como de fato cida como Nuvem de Oort. Se de fato de diâmetro que envolve o núcleo, e as se confirmar que a órbita é parabólica, “caudas”. Núcleo e coma formam a caaconteceu. Em 837 d.C. o cometa Halley atin- portanto aberta, esta será a última pas- beça de um cometa. giu magnitude aparente -3. Outros sagem do Ison pelas proximidades do cometas também atingiram brilho Sol: ele está sendo gravitacionalmente PORTE E BRILHO DE UM COMETA Porte e brilho aparentes de cometas elevado. É o caso, por exemplo, dos expulso do Sistema Solar. Pelos cálculos preliminares, em 1o de dependem essencialmente das distâncometas 1402 D1 (março de 1402), 1471 Y1 (em janeiro de 1472), 1577 outubro de 2013 o Ison deveria passar cias. Quanto mais próximo do Sol V1 (em novembro de 1577) e 1744 X1 a apenas 10 milhões de km de Marte e, estiver um cometa, maiores serão bri(em fevereiro de 1744). em 26 de dezembro, a 60 milhões de km lho e tamanho. Quanto mais próximo Os cometas 1843 D1 (março de da Terra. [Essa previsão foi confirmada estiver um observador de um cometa, 1843) e 1882 R1 (setembro de 1882) na data.] A órbita do Ison se parece um mais brilhante e maior ele parecerá. foram mais brilhantes ainda. Mas ne- pouco com a do grande cometa de 1680 Um hipotético observador em Marte, nhum deles se equiparou ao McNaught (1680 V1). Isso significa que pode haver por exemplo, veria o Ison com enor(2006 P1). Em janeiro de 2007, ele atin- uma ligação entre ambos. Embora ainda me destaque no céu. Portanto, brilho e giu magnitude aparente -6, o que signi- seja cedo para tirar conclusões confiá- tamanho aparentes dependerão dessas fica que foi 15 vezes mais brilhante que veis, não se deve descartar a possibilida- duas condições. Quando elas ocorrem o Halley em 887 d.C. de de que ambos sejam o mesmo corpo, simultaneamente, brilho e tamanho ou que possam ter se originado da frag- aparentes atingem um máximo. Mas UNIDADE DE BRILHO mentação de outro cometa que existiu essa condição é difícil de ser alcançada. Magnitude aparente é uma escala numé- no passado. Fragmentos se comportam Por isso cometas periódicos brilhantes, rica para comparação do brilho das es- como cometas. O caso mais impressio- como o Halley, aparentemente mudam trelas desenvolvida pelo astrônomo gre- nante foi o do Shoemaker-Levy 9 (1993 muito a cada passagem. Em 1910 a go Hiparco (190 a.C.–120 a.C.). Nessa F2), que se despedaçou em 21 fragmen- aparência do cometa Halley foi magnífica, mas em 1985 foi uma decepção escala, as estrelas mais brilhantes têm tos antes de colidir com Júpiter. magnitude 1, as segundas mais brilhanCometas não são astros “bem-com- para o grande público que esperava tes 2 e assim por diante. A estrela mais portados”. Ao contrário de planetas, uma reedição de 1910. 26 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA


LIGUSTRI ROLANDO Nasa

Quando foi descoberto, por dois astrônomos russos, em 24 de setembro de 2012, o Ison estava a 1 bilhão de km da Terra com brilho 100 mil vezes menor que o da estrela mais débil observada a olho nu

A dependência do brilho às distân- metia ser extremamente brilhante, mas talhes. Por isso, cometas aparecem com cias geocêntricas (em relação à Terra) isso não ocorreu, para decepção geral. comas extensas e caudas exuberantes. e heliocêntrica (em relação ao Sol) é O cometa Ison deverá ficar cada vez Cometas são objetos difusos e nebuloinversa. Quanto menores essas distân- mais brilhante a partir do início do ano sos. Vistos com auxílio de instrumentos cias, maior o brilho. Com relação à que vem. Ele será melhor observado no ópticos parecem fora de foco. A olho Terra a dependência varia com o inver- hemisfério norte, mas poderá ser visto nu, se mostram pequenos e pálidos. Não é possível garantir como se so da distância ao quadrado (1/d2), mas também no hemisfério sul entre setemcom relação ao Sol a dependência se dá bro (em Câncer), outubro (em Leão) e apresentará o cometa Ison, mas é mecom o inverso da distância elevada a novembro (em Leão e Virgem), pouco lhor estar preparado para uma possíum índice, digamos “n”, que não é ne- antes do amanhecer. Pelas previsões, será vel desilusão. n cessariamente 2 (1/rn). Valores razoá- visível a olho nu entre meados de novemveis para “n” podem estar entre 1 e 6. bro e dezembro. Uma boa referência é O AUTOR Conhecido como “índice fotométrico”, procurá-lo nas proximidades de Marte, Enos Picazzio, astrônomo do IAGUSP, é especialista “n” pode variar ao longo da trajetória entre os meses de setembro e outubro. em astrofísica do sistema solar e dedica-se também do cometa e não é necessariamente o Entre 13 e 17 de outubro, o cometa Ison, ao ensino de astronomia e à divulgação científica. o planeta Marte, e a estrela Regulus (alfa mesmo nas suas sucessivas passagens. PARA CONHECER MAIS Levando em conta os dados citados, de Leão) estarão bem próximos. ABCD da astronomia e astrofísica. Jorge E. É bom enfatizar que imagens vei- Horvath. Editora Livraria da Fisica, 2008. as previsões de brilho são feitas adotando-se um valor médio. Mas é bom culadas pela mídia mostram cometas Astronomia e astrofísica. Kepler de Souza lembrar que o “valor médio” represen- exuberantes, com detalhes que o olho Oliveira e Maria de Fátima Oliveira Saraiva. ta o mais provável, não o valor exa- desarmado não registra. Essas imagens http://astro.if.ufrgs.br/ to. Um exemplo de erro de previsão, são obtidas com câmeras fotográficas e O céu que nos envolve. Enos Picazzio (coord.). http://astroweb.iag.usp.br/~apt/livro/ devido à adoção de um valor médio longas exposições, na maioria das veOCeuQueNosEnvolve.pdf para o índice fotométrico, foi o cometa zes com auxílio de telescópios. Quanto Cometas: do mito à ciência. Oscar T. MatKohoutek (C/1973 E1). Descoberto em maior a exposição, maior será a energia suura, Editora Ìcone. 1985. 7 de março de 1973, à distância apro- (luz) acumulada no sensor da câmera. É http://stereo-ssc.nascom.nasa.gov/coximada de 79 milhões de km, ele pro- esse acúmulo de luz que revela os de- met_ison/ SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA 27


QUÍMICA

A descoberta do elemento 117 preencheu a última lacuna dessa sistematização. Mas mesmo completa ela parece perder sua eficiência POR ERIC SCERRI 28 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

FOTOGRAFIA POR HOLLY LINDEM

As (surpreendentes) alterações da tabela periódica


SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA 29


m 2010 pesquisadores russos anunciaram que haviam sintetizado os primeiros núcleos do elemento 117. Esse novo tipo de átomo ainda não tem nome, porque a comunidade científica tradicionalmente espera por uma confirmação independente antes de batizar um elemento. Mas, salvo surpresas, o 117 já tomou seu lugar permanente na tabela periódica dos elementos. Todos os elementos até o 116, além do elemento 118, haviam sido descobertos previamente e o 117 preencheu a última lacuna, na última linha da tabela. Essa conquista marca um momento único na história. Quando Dmitri Mendeleiev, também russo, e outros criaram a tabela periódica em 1860, ela foi o primeiro grande esquema para organizar os elementos conhecidos pela ciência da época. Mendeleiev deixou vários espaços em branco em sua tabela, prevendo descobertas de novos elementos que preencheriam esses espaços. Inúmeras revisões se seguiram, mas todas ficaram com lacunas – até agora. Com o elemento 117, a tabela periódica se completa pela primeira vez. O fantasma de Mendeleiev provavelmente saborearia o triunfo de sua visão, pelo menos até que químicos e físicos nucleares sintetizem os próximos elementos, o que pediria a adição de novas linhas à tabela, possivelmente, novas lacunas. Apesar do aparente encaixe das últimas peças de um quebra-cabeça, algo fundamental estava começando a parecer errado. E isso poderia minar a lógica subjacente a essa sistematização: os padrões recorrentes que dão à tabela periódica seu nome. Mendeleiev não apenas previu a existência de elementos ainda a serem descobertos. O que foi mais notável é que ele presumiu corretamente suas propriedades químicas, com base em padrões recorrentes. Mas, conforme o número atômico – o número de prótons no núcleo – aumenta, alguns dos elementos adicionados já não se comportam de acordo com as leis periódicas propostas, isto é, suas interações químicas, como os tipos de ligações que formam com outros átomos, não

E

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se assemelham às de outros elementos na mesma coluna da tabela. As diferenças são possivelmente associadas à velocidade dos elétrons que orbitam núcleos mais pesados – e alcançam velocidades que representam fração substancial da velocidade da luz. Tornam-se, na linguagem da física, “relativísticos”, o que faz com que os átomos se comportem de modo diferente do esperado por sua posição na tabela. Além disso, prever a estrutura orbital exata de cada átomo é uma tarefa desafiadora. Assim, mesmo que a criação de Mendeleiev tenha sido preenchida e tido sucesso, ela pode ter começado a perder seu poder tanto explicativo como preditivo. UM SUCESSO COMPLETO Apesar das mais de 1 000 versões da tabela periódica publicadas até agora, com variações tanto na composição quanto na disposição dos elementos, todas partilham uma característica essencial. Quando os elementos estão dispostos sequencialmente, com base no seu número atômico (as primeiras versões usavam o peso atômico), suas propriedades químicas tendem a se repetir depois de uma sequência particular de elementos. Se começarmos, por exemplo, com o lítio e nos movermos oito posições à frente, chegaremos ao sódio, que tem muitas características semelhantes ao lítio – ambos são metais macios o suficiente para ser cortados com faca, e ambos reagem vigorosamente com água. Se, então, nos movermos mais oito posições à frente, chegaremos ao potássio, que também é macio e reativo com a água, e assim por diante. Nas primeiras tabelas periódicas, incluindo as que foram concebidas por Mendeleiev, mas também por outros, a extensão de cada período e, portanto, o comprimento de cada linha da tabela, era sempre 8. Logo, porém, tornou-se evidente que o quarto e quinto períodos se repetiam não após oito elementos, mas só depois de 18. Assim, a quarta e quinta linhas da tabela eram mais largas que as anteriores para acomodar o bloco adicional de elementos, os metais de transição

que, na visão familiar da tabela periódica, ficam no meio. O sexto período mostrou-se ainda mais longo, com 32 elementos, em virtude da inclusão de um conjunto de 14 elementos chamados lantanídeos, mais recentemente renomeados como lantanoides. Em 1937 físicos nucleares passaram a sintetizar novos elementos, começando com o tecnécio, que preencheu uma das quatro lacunas então conhecidas na tabela que se estendia do 1 (hidrogênio) ao 92 (urânio). As outras três lacunas logo foram preenchidas, duas delas com elementos sintetizados (astato e promécio) e a terceira com um elemento encontrado na Natureza (frâncio). Ao mesmo tempo que as lacunas eram preenchidas, outras descobertas foram adicionadas à tabela além do urânio, deixando novos intervalos. O químico americano Glenn Seaborg percebeu que o actínio, o tório e o protactínio, juntamente com o urânio e os 10 elementos seguintes, faziam parte de uma nova série, que, como os lantanoides, tinha 14 elementos, conhecidos como os actinídeos, ou actinoides. (Os elementos adicionais nestas duas séries tornariam a tabela ainda maior, por isso as tabelas periódicas padrão exibem as duas séries de 14 elementos em um bloco separado, na parte inferior.) Na primeira metade do século 20, cientistas perceberam que a periodicidade dos elementos está enraizada na física quântica, em particular na física dos elétrons orbitando o núcleo. As órbitas dos elétrons têm uma gama discreta de formas e tamanhos. Átomos com números atômicos maiores – além dos tipos de órbita, ou “orbitais” dos elementos de número atômico mais baixos – têm novos orbitais. O primeiro período tem apenas um tipo, denominado s, que pode ser ocupado por um ou dois elétrons (um para o hidrogênio, dois para o hélio). O segundo e terceiro períodos adicionam, cada um deles, mais um orbital tipo s, além de três orbitais de um novo tipo, p. Novamente, cada um desses quatro novos orbitais pode ser ocupado por um ou dois elétrons, para um


A estante sempre crescente de maravilhas químicas A tabela periódica organiza os elementos de acordo com padrões recorrentes nas suas propriedades químicas. Essas propriedades são determinadas pelas órbitas dos elétrons de um átomo em torno de seu núcleo, ou “orbitais”, e especificamente pelos orbitais mais periféricos. Indo dos menores números atômicos para os maiores, a estrutura dos orbitais exteriores muda em um padrão recorrente ou periódico. Os elementos de 5 a 10, por exemplo, têm orbitais exteriores de uma família chamada p, que se repetem novamente nos elementos 13 a 18 – todos esses elementos, portanto, pertencem ao mesmo “bloco p” (em azul).

Exemplo de estruturas: o lítio (Li) tem dois orbitais s, contendo três elétrons (não mostrados) no total. O boro (B) tem dois orbitais s, com quatro elétrons no total, e um orbital p exterior, com um elétron.

Novo elemento, novo bloco Essa forma da tabela periódica é conhecida como tabela periódica de Janet (em inglês, Janet left-step table), de Charles Janet. A última linha será completada com a descoberta dos elementos 119 e 120, cujos orbitais exteriores são do tipo s. O elemento 121 será o primeiro a ter orbitais de uma nova família, do tipo g e, portanto, tomará seu lugar em um bloco totalmente novo (canto inferior esquerdo).

La 57 Ac 89

Ce 58 Th 90

Pr 59 Pa 91

Nd 60 U 92

Pm 61 Np 93

Sm 62 Pu 94

Eu 63 Am 95

Gd 64 Cm 96

Tb 65 Bk 97

Dy 66 Cf 98

Ho 67 Es 99

Er 68 Fm 100

Tm 69 Md 101

Yb 70 No 102

Sc 21 Y 39 Lu 71 Lr 103

Ti 22 Zr 40 Hf 72 Rf 104

V 23 Nb 41 Ta 73 Db 105

Cr 24 Mo 42 W 74 Sg 106

Mn 25 Tc 43 Re 75 Bh 107

Fe 26 Ru 44 Os 76 Hs 108

Co 27 Rh 45 Ir 77 Mt 109

Ni 28 Pd 46 Pt 78 Ds 110

Cu 29 Ag 47 Au 79 Rg 111

Zn 30 Cd 48 Hg 80 Cn 112

B 5 Al 13 Ga 31 In 49 Tl 81 Uut 113

C 6 Si 14 Ge 32 Sn 50 Pb 82 Fl 114

N 7 P 15 As 33 Sb 51 Bi 83 Uup 115

O 8 S 16 Se 34 Te 52 Po 84 Lv 116

H 1 Li 3 Na 11 K 19 Rb 37 Cs 55 Fr 87

F Ne 9 10 Cl Ar 17 18 Br Kr 35 36 I Xe 53 54 At Rn 85 86 Uus Uuo 117 118 119 120

121 122

2 Bloco G

A cada dois períodos, e assim a cada duas linhas na tabela, uma nova família de orbitais eletrônicos aparece. Mostrados à direita estão exemplos das formas dos orbitais, uma para cada família.

ILUSTRAÇÃO POR JEN CHRISTIANSEN

He 2 Be 4 Mg 12 Ca 20 Sr 38 Ba 56 Ra 88

Bloco F

Orbital G

potencial total de oito elétrons – que dá origem à periodicidade de oito nas versões originais da tabela. O quarto e quinto períodos têm, além dos tipos s e p, um terceiro tipo, d, que adiciona 10 posições possíveis para os elétrons e, portanto, estende os períodos para 18. Finalmente, os dois últimos ciclos têm orbitais de tipos s, p, d e f e uma extensão de 32 elementos (18 + 14). Quando Yuri Oganessian e colaboradores, do Instituto Unificado de Pesquisa Nuclear (Joint Institute), próximo a Moscou, anunciaram a síntese do elusivo elemento 117, colocaram no lugar todos os elementos da última fileira da tabela periódica. A íntima conexão entre a estrutura da tabela e a dos átomos significa que completar a a tabela não foi uma questão simples ou de organização da informação em papel. O elemento 118 é o único que tem todos os seus orbitais s, p, d e f preenchidos com elétrons.

Bloco D

Orbital F

Orbital D

Se forem sintetizados novos elementos eles terão lugar em uma linha inteiramente nova da tabela. O elemento 119, o mais provável de surgir em seguida (ver quadro acima), iniciará um novo ciclo – novamente com o tipo mais simples de orbital, o orbital s. O elemento 119 e o seguinte, 120, ocupariam as duas primeiras vagas no novo período, o oitavo. Mas com o elemento 121 teria início um bloco novo, ao menos em princípio, com orbitais não encontrados até agora: os orbitais g. Como antes, novos tipos de orbitais adicionarão novas possibilidades para os elétrons e, assim, prolongarão a periodicidade, aumentando o número das colunas. Esse bloco de elementos ampliaria a tabela em cerca de 50 colunas (embora os químicos já tenham divisado formas mais compactas para organizar essa tabela expandida). Uma tabela completa – com todas as suas linhas preenchidas – parecia

Bloco P

Orbital P

Bloco2S

Orbital S

ser o sonho de Mendeleiev. E teria sido mesmo, não fosse por Albert Einstein e sua teoria da relatividade especial. RUPTURA? À medida que avançamos para números atômicos mais altos, aumenta a carga nuclear em decorrência dos prótons adicionais. Com a elevação da carga nuclear, aumenta a velocidade dos elétrons dos orbitais interiores – até o ponto em que a teoria da relatividade especial passa a desempenhar um papel mais importante na explicação de seu comportamento. Esse efeito provoca uma contração no tamanho dos orbitais interiores tornando-os mais estáveis. Essa contração tem um efeito em cadeia sobre os outros orbitais s e p, que também se contraem, incluindo os orbitais de “valência”, mais periféricos, que regem as propriedades químicas. Todos esses fenômenos estão agrupados como efeitos relativísticos diSCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

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32 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

Yuri Oganessian liderou a equipe que criou o elemento 117 e agora tenta sintetizar o próximo novo elemento, o 119.

uma série de efeitos da relatividade sobre o ouro, incluindo o fato de poder ligar-se a outros átomos em surpreendentes novas formas. Os compostos que eles esperavam que resultassem dessas interações foram sendo descobertos, de certa forma analogamente às façanhas de Mendeleiev em antecipar novos elementos. Previsões bem-sucedidas de Pyykkö incluem ligações entre o ouro e o gás nobre xenônio – que em geral é extremamente inerte – e ligações triplas entre ouro e carbono. Outro sucesso foi uma molécula esférica envolvendo um átomo de tungstênio e 12 átomos de ouro em uma configuração que se assemelha aos fulerenos (que contêm apenas carbono), mais conhecidos como buckyballs. Esse “fulereno de ouro” se forma espontaneamente quando tungstênio e ouro são vaporizados na presença de hélio. Cálculos mecânico-quânticos relativísticos também se mostraram indispensáveis para estudar o fato de aglomerações de ouro atuarem como catalisadores – por exemplo, para quebrar os produtos químicos tóxicos típicos do escape dos carros – apesar de o ouro em massa ser notoriamente inerte.

SURPRESAS SUPERPESADAS Mesmo com o aparecimento de efeitos relativísticos, elementos como o ouro ainda não se desviam muito do que seria esperado. Até recentemente, novos elementos mostravam em grande parte as propriedades previstas com base na sua posição na tabela periódica. Mas surpresas piores (ou talvez mais interessantes) ainda estavam por vir. Alguns testes com a química dos últimos elementos ACELERADORES DE PARTÍCULAS descobertos começaram Dispositivos capa­ a mostrar o que pode- zes de energizar riam ser fissuras graves partículas por meio de campos eletro­ na lei periódica. magnéticos, os Usando aceleradores aceleradores de de partículas para fazer partículas são utili­ zadospara diver­ núcleos pesados colidi- sos fins além da rem, físicos nucleares pesquisa nuclear. são capazes de produzir elementos “superpesados” – além do número atômico 103. Os primeiros experimentos na década de 90 com o rutherfórdio (104) e dúbnio (105) sugeriam que esses elementos não têm as propriedades esperadas para eles de acordo com suas posições na tabela periódica. Ken Czerwinski e seus colegas da Universidade da Califórnia em

CORTESIA DO FLEROV LABORATORY

retos, que, de modo geral, aumentam com a carga no núcleo de cada átomo. Alguns efeitos concorrentes, no entanto, tornam as coisas mais complexas. Considerando que os efeitos relativísticos diretos estabilizam certos orbitais, outros, “indiretos”, desestabilizam os orbitais d e f. É uma espécie de blindagem eletrostática pelos elétrons s e p, cuja carga negativa neutraliza parcialmente a atração da carga positiva exercida pelo núcleo. Assim, para elétrons distantes, o núcleo parece ter menos, não mais, carga eletrostática total. Alguns efeitos relativísticos sobre elementos são aparentes no cotidiano. Eles explicam, por exemplo, a cor do ouro, que o separa dos elementos incolores que o envolvem no bloco dos orbitais d da tabela periódica, como a prata, que se encontra diretamente acima. Um átomo de um metal do bloco d, quando atingido por um fóton de determinado comprimento de onda, sofre uma transição. Absorve o fóton, cuja energia faz com que um elétron salte do orbital d para o orbital s diretamente acima. Na prata, a diferença de energia entre esses orbitais é significativa, o que exige um fóton na região REGIÃO ultravioleta do espectro ULTRAVIOLETA Na escala de fre­ para disparar a transiquências, a região ultravioleta está ção. Mas os fótons na logo acima do região visível do especespectro luminoso tro, com energia inferior e corresponde a fótons de maior à dos raios ultravioleta, energia, capazes apenas resvalam nos eléde transferir a ener­ trons, de modo que, aos gia necessária para o salto orbital nossos olhos, o material parece atuar como um mencionado. espelho quase perfeito. No ouro, a contração relativística reduz a energia dos orbitais s ao mesmo tempo que aumenta a energia dos orbitais d, diminuindo assim a diferença entre os dois níveis de energia. Agora, a transição requer menos energia – exatamente a quantidade transportada por um fóton na parte azul do espectro. Fótons de todas as outras cores apenas resvalam nos elétrons, sem serem absorvidos, o que produz a cor amarelodourada característica do ouro. Pekka Pyykkö, da Universidade de Helsinque, e outros previram ainda


Berkeley, por exemplo, descobriram que, em solução, o rutherfórdio reagia de modo semelhante ao plutônio, elemento distante na tabela periódica. Da mesma forma, o dúbnio estava mostrando sinais de se comportar mais como o elemento protactínio, que também está distante na tabela periódica. Segundo a lei periódica, esses dois elementos deveriam ter se comportado como aqueles diretamente acima deles, o háfnio e o tântalo. Em trabalhos mais recentes cientistas têm sido capazes de sintetizar novos elementos superpesados apenas em números extremamente pequenos: a descoberta do elemento 117 foi baseada na observação de apenas seis átomos. Elementos superpesados também tendem a ser muito instáveis, decaindo em elementos leves em frações de segundo. Especialistas, na maior parte das vezes, observam apenas os resíduos desse decaimento nuclear, o que gera informações sobre a física e a química dos núcleos. Nessa situação, investigar propriedades químicas por meio da tradicional química “molhada” – colocar o material em um frasco e observá-lo reagir com outros produtos químicos – está fora de questão. E ainda assim os cientistas dispõem de técnicas engenhosas para estudar a química desses elementos com um átomo a cada vez. Experiências químicas efetuadas com os dois elementos seguintes foram, em comparação com os elementos 104 e 105, decepcionantes. Seabórgio (106) e bório (107) pareciam agir da forma como Mendeleiev teria previsto, inspirando os pesquisadores a chamar esses elementos de “oddly ordinary seaborgium” (seabórgio estranhamente convencional) e “boring bohrium” (bório chato) em seus trabalhos acadêmicos. A lei periódica parecia estar de volta às tabelas. No caso do elemento 112, químicos e físicos estão tentando avaliar se o elemento se comporta mais como mercúrio, diretamente acima dele na tabela periódica, ou como o gás nobre radônio, como alguns cálculos relativísticos previam. Nesses experimentos os grupos sintetizam átomos de 112,

juntamente com alguns isótopos pesados de mercúrio e de radônio. (Embora mercúrio e radônio ocorram naturalmente em quantidades substanciais, os pesquisadores usam as versões sintéticas, porque podem produzi-los em condições idênticas às que dão origem aos elementos mais pesados, em vez de confiar em dados que se aplicam às propriedades macroscópicas dos mais abundantes elementos mais leves.) Os pesquisadores experimentais, em seguida, fazem com que todos esses átomos se depositem sobre uma superfície mantida a uma temperatura muito baixa e revestida parte com ouro e parte com gelo. Se o elemento 112 realmente comportar-se como um

AINDA NÃO ESTÁ CLARO SE O PRINCÍPIO DE QUE OS ELEMENTOS NA MESMA COLUNA DA TABELA PERIÓDICA SE COMPORTAM DE MODO SEMELHANTE PERMANECE VÁLIDO PARA ÁTOMOS MUITO PESADOS metal, ele se ligará ao ouro. Se for mais parecido com o gás nobre radônio tenderá a depositar-se sobre o gelo. Até o momento, os laboratórios têm obtido diferentes resultados e a situação parece longe de resolvida. Os efeitos da relatividade no elemento 114 também ainda não foram vistos. Resultados iniciais relatados por Robert Eichler e seu grupo, no Instituto Paul Scherrer, na Suíça, indicam algumas surpresas genuínas, uma vez que a discordância com a teoria é bastante pronunciada. Novas adições à tabela periódica certamente surgirão e a pesquisa sobre a química desses elementos ajudará a esclarecer o dilema. A questão mais geral é saber se existe um fim da tabela periódica. O consenso é que, quando o número de prótons se torna muito gran-

de, núcleos não se formam, nem mesmo por um instante fugaz. Mas as opiniões diferem quanto ao número atômico máximo dos novos elementos. Em cálculos que admitem que o núcleo é pontual, o limite parece ser o elemento 137. Outros especialistas, no entanto, que levam em conta o volume do núcleo estimam que o elemento final tem um número atômico de 172 ou 173. Na verdade, não está claro se o princípio de que os elementos da mesma coluna da tabela periódica se comportam de forma semelhante permanece válido para átomos muito pesados. Essa pergunta não tem grande consequência prática, pelo menos no futuro previsível. A perda de poder preditivo no reino dos elementos superpesados não afetará a utilidade do restante da tabela. E o químico típico nunca interagirá com qualquer um dos elementos de maior número atômico: esses núcleos são muito instáveis, o que significa que eles decaem em elementos mais leves poucos instantes depois de terem sido criados. Ainda assim a questão do efeito da relatividade especial atinge o cerne da química como disciplina. Se a lei periódica perder seu poder, então a química será, em certo sentido, mais dependente da física, enquanto uma lei periódica amplamente válida ajudaria o campo a manter certo nível de independência. Nesse meio-tempo, talvez, o fantasma de Mendeleiev devesse apenas relaxar e admirar o sucesso de sua criação favorita. n O AUTOR Eric Scerri é historiador e filósofo da química da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Ele obteve seu Ph.D. do King’s College, University of London, e é um comprometido guitarrista de blues. Seu último livro é A tale of seven elements (Oxford University Press, 2013). PARA CONHECER MAIS A very short introduction to the periodic table. Eric Scerri. Oxford University Press, 2011. A suggested periodic table up to Z ≤ 172, based on Dirac–Fock calculations on atoms and ions. Pekka Pyykkö em Physical Chemistry Chemical Physics, vol. 13, no 1, págs. 161-168, 2011. The periodic table, its story and its significance. Eric Scerri. Oxford University Press, 2007.

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BIOLOGIA

Quando anımais incorporam o luto Evidências crescentes em espécies tão diversas como gorilas, gatos e golfinhos indicam que seres humanos não são os únicos que lamentam a perda de entes queridos POR BARBARA J. KING bordo de um navio de pesquisas nas águas do golfo de Amvrakikos, na Grécia, Joan Gonzalvo observou uma fêmea de golfinho-comum (ou golfinho-nariz-de-garrafa) que estava obviamente aflita. Com seu focinho e nadadeiras peitorais ela não parava de empurrar um filhote recém-nascido, quase certamente o seu, para longe do barco e contra a corrente do mar. Era como se ela quisesse cutucar seu bebê para que ele se movesse − em vão. Ele estava morto. Boiando sob a luz solar direta, em um dia quente, seu corpo começou a se decompor rapidamente; de vez em quando, a mãe removia pedaços de pele e tecidos soltos do cadáver. Quando a fêmea continuou a se comportar dessa maneira, no segundo dia, Gonzalvo e seus colegas no barco ficaram preocupados: além de não parar de mexer com a cria, ela não estava se alimentando normalmente, o que podia ser arriscado para sua saúde considerando o alto metabolismo desses animais. Três outros golfinhos da população de cerca de 150 do golfo de Amvrakikos se aproximaram da dupla, mas nenhum deles interferiu na conduta da mãe ou seguiu seu exemplo. Enquanto observava a cena, em 2007, Gonzalvo, biólogo marinho do Instituto de Pesquisa Tethys, em Milão, na Itália, decidiu não recolher o corpo do filhote para necropsia, como teria feito normalmente para fins de pesquisa. “O que me levou a não interferir foi respeito”, ele me contou. “Foi um privilégio podermos testemunhar uma prova tão clara do vínculo entre mãe

A

e filhote em golfinhos-comuns, uma espécie que estudo há mais de uma década. Eu estava mais interessado em observar o comportamento natural que interferir abruptamente e perturbar a mãe, que já estava claramente angustiada. Eu definiria o que observei como luto.” Mas a mãe estava realmente lamentando a morte de seu filhote? Há dez anos eu diria que não. Como bioantropó- BIOANTROPOLOGIA loga que estuda a cognição e as Essa disciplina é um de emoções de animais eu teria reco- desenvolvimento sua raiz original, a nhecido o comportamento aflito antropologia física, que da mãe, mas não o interpretaria se dedicou metodoloà morfolocomo luto. Como a maioria dos gicamente gia, morfometria e ao cientistas que estudam o com- estudo de fósseis. Seu portamento animal fui treinada objeto central de invesé a descrição e para descrever reações desse tipo tigação compreensão da históem termos neutros, como “com- ria e do processo de portamento alterado em resposta nossa hominização/ assim à morte de outro”. Afinal, a mãe humanização, como a diversidade poderia ter ficado agitada só por- biológica de nossa que o estranho estado inerte de espécie. A bioantropoincorpora métoseu filhote a deixou confusa. A logia dos da neurobiologia, tradição dita que projetar emo- genética e ecologia ções humanas, como pesar, em evolutiva. Assim como desenvolvioutros animais é sentimentalis- preende mento de um universo mo anticientífico cultural como mais Agora, porém, especialmente uma característica a após dois anos de pesquisas para ser abordada. SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

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DEFININDO LUTO Desde a época de Charles Darwin, há dois séculos, os cientistas têm debatido se alguns animais manifestam emoções além das associadas aos cuidados dos pais ou a outros aspectos da sobrevivência e reprodução. Darwin acreditava que dada a ligação evolutiva entre os humanos e outros animais muitas emoções deviam ser semelhantes entre as espécies. Aos macacos, por exemplo, atribuiu a capacidade de sentir tristeza e ciúme, prazer e vergonha; mas características emocionais como essas foram cada vez mais desconsideradas pela corrente científica dominante. No início do século BEHAVIORISMO 20, o paradigma Também chamado de behaviorista precomportamentalismo, essa abordagem surge valeceu ao insistir com John Broadus que só o comportaWatson em um artigo de mento observável 1913, em que defende uma visão mais funcionados animais, e não lista do comportamento as suas emoções que “deveria ser estudado internas, poderia como função de certas variáveis do meio”. Ela ser estudado com rompe com uma visão filorigor. Aos poucos a sófica do comportamento aceitação científica e procura alinhar-se com uma ciência experimental. da emoção animal O Behaviorismo dedicarenasceu; em parte, -se ao estudo das interagraças aos primeições entre o indivíduo e o ambiente, entre as ações ros relatos de estude resposta do indivíduo dos de campo de e os estímulos ambientais. longo prazo envol36 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

vendo mamíferos de cérebro grande. Da Tanzânia, Jane Goodall contou em detalhes comoventes o declínio e a morte por tristeza do jovem chimpanzé Flint, poucas semanas depois que sua mãe, Flo, morreu. Do Quênia, Cynthia Moss relatou que os elefantes cuidam de companheiros moribundos e acariciam os ossos de parentes mortos. Biólogos e antropólogos de campo começaram a indagar se, e como, os animais sentem pesar. Para estudar e entender o luto entre os animais os cientistas precisam de uma definição que diferencie esse sentimento de outras emoções. Enquanto a “reação animal à morte” abrange qualquer comportamento de um indivíduo após a morte de um companheiro, os pesquisadores só podem suspeitar de luto mediante determinadas condições: Dois (ou mais) animais passam a conviver de modo mais intenso que o esperado de comportamentos típicos da sobrevivência em grupo, como procurar alimentos ou acasalar. Quando um animal morre, o sobrevivente altera sua rotina de conduta normal – talvez reduza o tempo dedicado a comer e dormir, adote uma postura corporal ou expressão facial que indique depressão ou agitação, ou então deixe de se desenvolver de modo geral. Darwin não distinguia o luto da tristeza, mas essas emoções diferem, principalmente em intensidade: o animal enlutado fica muito mais angustiado e possivelmente permanece assim por um período mais prolongado. Essa definição em dois blocos é imperfeita. Por um lado, os cientistas não têm um sistema de medição, ou escala, para avaliar com precisão o que é estar “muito mais angustiado”. Os critérios para definir o luto deveriam ser diferentes conforme as espécies, e a tristeza de outros animais assume formas sutis e difíceis para os humanos reconhecerem como pesar? Ainda não há dados suficientes sobre essas questões. Além disso, não se pode afirmar que as mães ou outros animais cuidadores encarregados de alimentar ou proteger constantemente os filhotes tenham atendido ao primeiro critério depois que eles morrem (comportamentos além dos que dizem respeito à

sobrevivência). Ainda assim, eles estão entre os candidatos mais prováveis de sofrer a dor dos sobreviventes. Estudos futuros do luto animal ajudarão a refinar essa definição. Por enquanto ela favorece nossa avaliação crítica das reações animais quando outros a sua volta morrem. Babuínos e chimpanzés mães em populações selvagens africanas, por exemplo, às vezes carregam o corpo de seus filhotes mortos durante dias, semanas ou até meses – comportamento que, superficialmente, pode parecer sinal de luto. No entanto, elas podem não apresentar qualquer indicador externo significativo de agitação ou sofrimento. Quando os animais não desviam de seus comportamentos de rotina, como acasalar-se, não atendem aos critérios de luto. ZOOLÓGICO DE ENLUTADOS Uma ampla gama de espécies, no entanto, exibe reações que se encaixam na definição dupla de pesar, entre elas os elefantes. Um exemplo particularmente convincente do luto dos paquidermes vem de Iain Douglas-Hamilton, da Save the Elephants. Em 2003, ele e sua equipe da Reserva Nacional de Samburu, no Quênia, monitoraram as reações que os animais manifestaram diante do lento falecimento da matriarca, chamada Eleanor. Quando ela caiu prostrada, Grace, a matriarca de outra família de elefantes, veio imediatamente em seu auxílio e, usando suas presas, apoiou Eleanor e a ajudou a se levantar novamente. Quando Eleanor voltou a cair, Grace ficou com ela e cutucou seu corpo durante pelo menos uma hora, apesar de sua própria família seguir em frente. Então Eleanor morreu. No decorrer da semana seguinte, fêmeas de cinco famílias de elefantes, incluindo a da própria Eleanor, demonstraram um grande interesse pelo cadáver. Algumas delas pareciam desconcertadas. Elas puxavam e cutucavam o corpo com a tromba e as patas, ou ficavam se balançando para lá e para cá enquanto estavam de pé em cima dele. Com base nas reações das fêmeas (em nenhum momento durante esse período um macho visitou a carcaça), Douglas-Hamilton concluiu que os elefantes manifestam uma “reação generalizada” ao processo de morrer e à

PÁGINAS ANTERIORES: TIM FLACH GETTY IMAGES

o meu livro How animals grieve (Como os animais sentem pesar, não traduzido para o português), acredito que Gonzalvo estava correto ao julgar que a mãe golfinho estava de luto. Nos últimos anos uma massa crítica de novas observações de reações de animais à morte veio à tona e me levou a uma conclusão surpreendente: dependendo das circunstâncias e de personalidades individuais, cetáceos, grandes primatas, elefantes e muitas outras espécies que vão de animais de fazenda aos bichos de estimação domésticos ficam tristes quando um parente ou companheiro próximo morre. O fato de uma gama tão ampla de espécies, inclusive algumas bem distantes dos humanos, lamentar a morte de seres queridos, indica que as raízes da nossa própria capacidade de sentir pesar realmente são muito profundas.


CORTESIA DO CAPTAIN DAVE’S DOLPHIN AND WHALE WATCHING SAFARI, DANA POINT, CALIFÓRNIA WWW.DOLPHINSAFARI.COM

morte – não lamentando apenas a perda de parentes próximos, mas também de membros de outras famílias. Cetáceos selvagens também parecem ter uma reação generalizada de tristeza. Em 2001, Fabian Ritter, da Mammal Encounters Education Research, observou nas Ilhas Canárias como uma mãe de golfinho-de-dentes-rugosos empurrava e resgatava o corpo de seu filhote morto, da mesma forma que a mãe golfinho de Amvrakikos havia feito com o cadáver de seu bebê. Ela não estava sozinha: dois acompanhantes adultos nadavam em sincronia com ela durante certos períodos; em outros momentos, um grupo de pelo menos 15 golfinhos alterava seu ritmo de locomoção para incluir a mãe e o filhote morto. A persistência da mãe foi notável. Quando, no quinto dia, ela começou a desistir, seus acompanhantes se aproximaram e sustentaram no próprio dorso o cadáver. As girafas também parecem sentir pesar. Em 2010, no santuário de vida selvagem Soysambu Conservancy, no Quênia, uma girafa-de-rothschild pariu um filhote com um pé deformado. A pequena girafa andava menos e ficava mais parada que a maioria dos outros filhotes. Durante as quatro semanas de vida do animal, a bióloga da vida selvagem Zoe Muller, do Projeto Girafa-de-Rothschild, baseado no Quênia, nunca viu a mãe a mais de 20 m de distância do filhote. Embora os membros de um rebanho de girafas muitas vezes sincronizem suas atividades, alimentando-se juntos, por exemplo, a mãe da girafinha se desviou desse padrão, preferindo ficar junto ao bebê. Como a mãe golfinho no golfo de Amvrakikos, ela pode ter arriscado sua saúde ao fazer isso, embora, nesse caso, fosse por uma cria viva. Certo dia, Zoe descobriu o rebanho em um comportamento altamente atípico: 17 fêmeas, incluindo a mãe da pequena girafa, estavam vigilantes e inquietas enquanto olhavam fixamente para uma área de mato. O filhote havia morrido naquele local cerca de uma hora antes. Naquela manhã, todas as 17 fêmeas mostraram intenso interesse pelo corpo, aproximando-se dele para depois se afastar novamente. À tarde, o grupo

MÃE GOLFINHO carrega o cadáver de seu filhote em sua nadadeira dorsal nas águas ao largo de Dana Point, na Califórnia.

aumentou para 23 fêmeas e quatro animais jovens, e alguns deles cutucavam o cadáver com o focinho. Naquela noite, 15 fêmeas adultas se agruparam em torno do corpo – bem mais perto que durante o dia. No decorrer do dia seguinte, numerosas girafas adultas cuidaram do cadáver. Alguns machos adultos se aproximaram pela primeira vez, embora não manifestassem interesse no corpo, concentrando-se em vez disso em alimentar ou inspecionar o estado reprodutivo das fêmeas. No terceiro dia, Muller observou a girafa mãe sozinha, sob uma árvore, a uns 50 metros de onde o filhote havia morrido; mas o cadáver já não estava lá. Após uma busca, Muller o localizou parcialmente devorado sob a árvore onde a mãe havia estado antes. No dia seguinte, o corpo desapareceu, levado por hienas. Girafas são animais altamente sociáveis. Depois de esconderem um recémnascido durante suas primeiras quatro semanas de vida mais ou menos, as mães às vezes adotam um sistema de creche, em que uma cuida dos filhotes enquanto as outras se alimentam. Zoe não emprega as palavras “luto” ou “pesar” ao descrever o incidente que testemunhou. Mas esse caso é especialmente instrutivo porque não só o comportamento da mãe, mas também o de muitas das outras fêmeas do rebanho, mudou acentuadamente após a morte do filhote. Embora seja impossível descartar uma explicação alternativa, o fato de as fêmeas terem reagido de forma tão protetora para impedir

que predadores levassem o corpo torna extremamente provável que houvesse algum nível de tristeza envolvido no caso. Observações detalhadas de populações de animais selvagens, como as relatadas por Zoe, ainda são raras por várias razões. Cientistas podem não estar no lugar certo na hora certa para testemunhar as reações pós-morte dos sobreviventes, e, mesmo que estejam presentes, pode ser que não ocorram comportamentos notáveis de pesar. Especialmente nessa fase inicial da pesquisa do luto animal observações feitas em reservas, jardins zoológicos e até em nossas casas podem fornecer pistas necessárias. Não consigo imaginar como descrever o comportamento de Willa, o gato siamês, sem utilizar a palavra “luto”. Durante 14 anos Willa viveu com sua irmã Carson na casa de Karen e Ron Flowe, na Virgínia. As irmãs felinas se penteavam e se limpavam mutuamente, se espreguiçavam juntas em partes favoritas da casa e dormiam com seus corpos entrelaçados. Quando Carson era levada ao veterinário, Willa ficava levemente agitada até ser reunida novamente com a irmã. Em 2011 os problemas médicos crônicos de Carson pioraram e os Flowe a levaram mais uma vez ao veterinário, onde ela morreu dormindo. Primeiro, Willa reagiu como de costume quando sua irmã se ausentava por um período breve; mas em dois ou três dias começou a emitir um som não comum, uma espécie de miado de lamentação, e vasculhou os lugares preferidos por ela SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

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O LAMENTO CONTÍNUO É lógico pensar que espécies de vida longa, cujos membros formam parcerias mais próximas, uns com os outros, em pares, grupos familiares ou comunidades, podem lamentar mais facilmente a morte de companheiros queridos que outras espécies; mas os pesquisadores ainda não sabem o suficiente sobre o pesar animal para fazer essa afirmação. Precisamos testar essa hipótese ao compararmos sistematicamente as reações à morte em diversos sistemas sociais animais, dos mais gregários àqueles em que os membros só se reúnem sazonalmente para se alimentar ou acasalar. 38 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

Ainda assim, a diferença de intensidade do luto das diferentes espécies não é tudo, porque a variação dos contextos sociais imediatos e da personalidade de sobreviventes individuais torna a situação mais complexa. A prática de permitir que um animal observe o corpo de seu companheiro morto, como Harper fez com Kohl, por exemplo, às vezes parece evitar ou reduzir um período de busca e vocalização angustiada por parte do sobrevivente; outras vezes isso não parece ajudar – o que confirma diferenças individuais nas reações à morte dentro das diversas espécies. Do mesmo modo, até agora as evidências de pesar em macacos selvagens, que vivem em grupos sociais coesos, são surpreendentemente limitadas; enquanto espécies mais solitárias, como GORILA FÊMEA segura seu filhote morto em um zoológico, os gatos domésticos, po- em Münster, na Alemanha. Embora esse comportamento seja insuficiente para demonstrar luto, as mães que dem desenvolver laços perdem suas crias estão entre as candidatas mais de amizade entre dois ou evidentes para sentir a tristeza do sobrevivente. mais parentes ou amigos, fazendo com que as reações de tristeza praticamente se igualem às de diversos níveis de empatia, deve haver animais muito mais sociáveis. Eu diria diferentes níveis de compreensão quanque as observações de campo mostrarão do os animais sentem pesar. Alguns deque alguns macacos dos diversos siste- les entendem que a morte é irreversível mas sociais visivelmente lamentam uma e final, ou têm um conceito mental de perda tanto quanto alguns gatos domés- morte? Simplesmente não sabemos. ticos. No livro How animals grieve, relato Não há qualquer evidência de que um exemplos de gatos, cães, coelhos, cavalos animal seja capaz de antecipar a morte, e aves, entre outros animais citados aqui. uma capacidade tão subjacente à nossa Em cada uma das espécies constatei um literatura, música, arte e teatro – e que luto contínuo, ou sequencial, e alguns custa tanto em termos de sofrimento membros do grupo parecem indiferentes emocional à nossa espécie. De fato, a capacidade de lamentar à morte de um companheiro enquanto outros se mostram abalados e entristeci- uma perda pode custar muito para qualquer animal em termos físicos e dos com a perda. As diferenças cognitivas também emocionais, especialmente na natureinfluem no pesar dos animais. Assim za selvagem, onde um comportamento como diferentes espécies e até indiví- alerta, com alta demanda energética, duos de uma mesma espécie expressam é fundamental para alimentação, evi-

OLIVER WERNER Getty Images

e Carson. Mesmo quando esse comportamento cessou, Willa permaneceu apática durante meses. De todos os casos de luto animal que compilei, o mais notável ocorreu em um santuário de animais de fazenda. Em 2006, três patos Mulard chegaram ao Farm Sanctuary, em Watkins Glen, Nova York. Eles sofriam de lipidose hepática, uma doença do fígado provocada pela alimentação forçada das aves em uma fazenda de produção de patê de fígado. Dois dos patos resgatados, Kohl e Harper, estavam em péssimo estado físico e emocional. Eles demonstravam muito medo de pessoas Kohl tinha pernas deformadas e Harper era cego de um olho. Durante quatro anos os dois desenvolveram um relacionamento de apoio mútuo. Patos são aves sociáveis, ainda assim a intensidade do vínculo desses dois era incomum. Quando a dor nas pernas de Kohl aumentou, e ele não conseguiu mais andar, foi sacrificado. Harper observou o procedimento eutanásico e depois teve permissão para se aproximar do corpo de seu amigo. Depois de empurrar um pouco o corpo inerte, Harper se deitou e colocou sua cabeça e o pescoço sobre o de Kohl e ali permaneceu durante algumas horas. Na realidade, Harper nunca se recuperou de sua perda. Dia após dia, ele rejeitou outros patos que poderiam ser amigos em potencial, preferindo ficar sentado perto de um pequeno lago que costumava frequentar com Kohl. Dois meses mais tarde, Harper também morreu.


tar predadores e acasalar. Então, por que o luto evoluiu em primeiro lugar? Talvez, se não for levado a extremos, o isolamento social que muitas vezes acompanha o sofrimento de um animal lhe dê tempo para descansar e, assim, recuperar-se emocionalmente, o que resultaria em um sucesso maior na formação de um novo vínculo próximo. Ou, como escreve John Archer em The nature of grief, pode ser que “os custos envolvidos no luto sejam vistos como uma espécie de troca com os benefícios gerais resultantes das reações de separação”, observadas quando dois indivíduos muito próximos são forçosamente afastados um do outro. Nessas circunstâncias os parceiros ausentes podem se procurar mutuamente e se reencontrar para viver mais um dia juntos. Portanto, o que é adaptável talvez não seja o pesar em si, mas as fortes emoções positivas compartilhadas por dois ou mais animais cujo nível de cooperação nos cuidados ou outras tarefas é intensificado por esses sentimentos, antes que a tristeza entre em cena. O PREÇO DO AMOR Entendido dessa maneira podemos vincular luto e amor. Em outras palavras: o pesar resulta da perda de amor. Pesquisador de emoções em diversas espécies, o ecologista e etólogo Marc Bekoff, da Universidade do Colorado, em Boulder, defende a ideia de que muitos animais sentem “amor” e “tristeza”, embora admita que esses conceitos sejam difíceis de definir com precisão. Segundo ele, nós, humanos, não compreendemos plenamente o amor, mas não negamos a sua existência, nem seu poder de moldar nossas respostas emocionais. Em seu livro Animals matter, Bekoff relata a história de uma coiote chamada Mom que observou por anos durante estudos comportamentais no Parque Nacional Grand Teton, em Wyoming. Em determinado momento Mom começou a fazer breves excursões por conta própria, longe de sua matilha. Quando voltava, sua prole se alegrava visivelmente: eles lambiam Mom e rolavam de costas aos seus pés. Certo dia, Mom partiu para sempre. Alguns coiotes de sua matilha

andaram inquietos; outros procuraram por ela, indo na direção em que havia partido. “Durante mais de uma semana certa vivacidade parecia ter desaparecido”, escreve Bekoff. “Sua família sentia falta dela.” Ao discutir a emoção animal comigo, no início deste ano, Bekoff atri-

AMOR E PESAR NO MUNDO ANIMAL MUITAS VEZES SE ENTRELAÇAM EM INTENSA RECIPROCIDADE buiu a reação da família ao amor que ela sentia por Mom. Em geral, o potencial de amor é forte em espécies como coiotes, lobos e muitas aves, inclusive gansos, porque parceiros machos e fêmeas defendem territórios, alimentam e criam seus filhotes juntos e sentem falta um do outro quando estão separados. O amor no mundo animal muitas vezes se mescla ao pesar de maneira mútua e intensa. Talvez até mais que o grau de coesão social dentro de uma espécie, é o amor entre os membros que dita quando eles manifestarão tristeza. Pode realmente haver qualquer dúvida de que Willa, representante de uma espécie (o gato doméstico) desconhecida por sua natureza social, amava sua irmã Carson ou que, como única irmã sobrevivente, ela tenha sofrido pesar após sua perda? Em nossa espécie, o pesar começou a ser manifestado por rituais ricos em simbolismo. Há cerca de 100 mil anos nossos ancestrais Homo sapiens decoravam o corpo dos mortos com ocre vermelho, comportamento que os arqueólogos interpretaram como um tipo de ornamentação simbólica (em vez de funcional). Em um sítio arqueológico na Rússia chamado Sunghir, duas crianças menores de 13 anos, um menino e uma menina, foram enterrados há 24 mil anos com elaborados presentes funerários, como presas de mamutes e animais esculpidos em marfim. Mais surpreendentes foram os milhares de

contas de marfim encontradas no túmulo. Provavelmente elas tinham sido costuradas nas roupas (desintegradas há muito tempo) com que as crianças foram sepultadas. Uma boa parcela dessa comunidade humana primitiva de Sunghir deve ter se reunido para preparar esse ritual fúnebre – cada conta deve ter levado uma hora ou mais para ser confeccionada. Embora seja arriscado projetar emoções modernas em populações passadas, os exemplos de tristeza e pesar animal relatados aqui fortalecem uma interpretação das evidências arqueológicas baseada em emoções: há milhares de anos nossos ancestrais velavam e lamentavam suas crianças mortas. No mundo contemporâneo o luto não está mais inevitavelmente confinado a parentes, parceiros sociais próximos ou membros diretos de nossa própria comunidade. As comemorações públicas no Parque Memorial da Paz, em Hiroshima; no Centro Memorial do Genocídio, em Kigali, Ruanda; no Memorial aos Judeus Assassinados da Europa, em Berlim; ou no local das Torres Gêmeas, em Manhattan, ou na Sandy Hook Elementary School, em Newtown, Connecticut, transmitem visivelmente o poder de um profundo pesar global. Nossa capacidade exclusivaSUBSTRATO mente humana de sen- EVOLUTIVO tir tristeza pela morte Expressão que associa de pessoas que nos são um comportamento ou característica de um estranhas está assen- organismo a um contada em um substra- texto evolutivo. Conferir to evolutivo. Nossas uma significação evolutiva a uma caracterísformas de expressar o tica biológica. luto podem ser únicas, mas a capacidade humana de lamentar profundamente é algo que compartilhamos com outros animais. n A AUTORA Barbara J. King é professora de antropologia da College of William and Mary. Suas pesquisas sobre símios e primatas levaram-na a estudar a emoção e a inteligência em uma ampla gama de espécies animais. PARA CONHECER MAIS How animals grieve. Barbara J. King. University of Chicago Press, 2013. Animals matter: a biologist explains why we should treat animals with compassion and respect. Mark Bekoff. Shambhala, 2007. SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

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RETRATO DE GIOVANNI ARNOLFINI E SUA ESPOSA, JAN VAN EYCK, 1434 © GALERIA NACIONAL, LONDRES, (NESTA PÁGINA); DE “REFLEXOS DE REALIDADE EM JAN VAN EYCK E ROBERT CAMPIN”, POR A. CRIMINISI, M. KEMP E S. B. KANG EM PROC. MEASURING ART: A SCIENTIFIC REVOLUTION IN ART HISTORY, PARIS, MAIO-JUNHO 2003, E EM HISTORICAL METHODS, VOL. 36, NO. 3; MEADOS DE 2004 (REFLEXO CORRIGIDO NO ESPELHO PINTADO DE VAN EYCK); © GALERIA NACIONAL, LONDRES (REFLEXOGRAMA INFRAVERMELHO DA MÃO); ELIZA JEWETT (LINHAS DE PERSPECTIVA)

O CASAMENTO DE ARNOLFINI (página oposta), pintado em óleo sobre madeira por Jan Van Eyck em 1434, é citado pelo artista David Hockney como prova de que pintores do início do Renascimento alcançavam realismo surpreendente utilizando a técnica de traçar os contornos de imagens projetadas por lentes ou espelhos e preenchê-los com tinta. Nas próximas páginas, o autor levanta questões técnicas sobre essa teoria examinando vários detalhes do quadro (acima, em destaque) 40 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA


MATEMÁTICA

Óptica e realismo na arte renascentista Uma teoria muito divulgada afirma que pintores do século 15 atingiram novo nível de realismo com a ajuda de lentes e espelhos. Mas descobertas recentes levantam dúvidas sobre essa hipótese POR DAVID G. STORK uando pensamos na grandiosa trajetória da pintura ocidental, observamos um fenômeno muito interessante no despertar do Renascimento. Até cerca do ano de 1425, a maioria das imagens era bastante estilizada, até mesmo esquemática; mas, a partir de então, podem ser vistas pinturas que apresentam um realismo quase fotográfico. Por exemplo, O casamento de Arnolfini, pintado pelo mestre do início do Renascimento Jan Van Eyck (1390?1441), revela tridimensionalidade, presença, individualidade e profundidade psicológica não encontradas em obras anteriores. Pela primeira vez, os retratos realmente se parecem com as pessoas reais. O que teria ocorrido? Procurando explicar o surgimento dessa extraordinária nova forma de arte, ou ars nova, como era chamada, o celebrado artista contemporâneo David Hockney propôs uma teoria corajosa e controversa. Ele afirmou que as pinturas renascentistas causam a impressão de realidade – possuindo o que ele chama de “imagem óptica” – porque os artistas usavam lentes e espelhos para projetar imagens sobre telas ou superfícies similares, traçando contornos a partir dessas projeções. Essa teoria é apresentada de maneira mais completa no livro escrito por Hockney, Secret knowledge: Rediscovering the lost techniques of the old masters, de 2001. É fato conhecido que nos séculos 18 e 19 alguns pintores faziam uso de projeções ópticas sobre tela. Porém, a teoria de Hockney adianta o início dessa técnica em 250 anos. E tal é a importância desses instrumentos e técnicas ópticos para sua teoria que o artista afirma que a história da arte a partir daquela época está intimamente ligada à própria história da óptica. A fim de examinar essa teoria, outros acadêmicos e eu utilizamos técnicas ópticas e de imagem computadorizada para estudar dois quadros de Van Eyck que Hockney e seu colabo-

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Um espelho côncavo projeta uma imagem de um objeto de cabeça para baixo sobre um anteparo colocado a certa distância do espelho (abaixo, à esquerda). Espelhos côncavos podem ser considerados como cortes de uma esfera (abaixo, à direita). A distância focal de um espelho cortado de uma esfera é metade de seu raio. A distância

Objeto

Espelho côncavo

focal é a distância entre o espelho e o ponto focal – ponto em que os raios de luz refletidos pelo espelho se encontram. Uma equação faz a relação das distâncias entre o objeto, o espelho e a imagem projetada, o que permite precisar detalhes tais como o posicionamento do espelho e sua distância focal.

Raio de luz

Distância focal

Espelho côncavo Imagem invertida projetada

rador, Charles Falco, físico da Universidade do Arizona, citam como evidência. PROJEÇÃO E ESPELHOS Segundo Hockney, por volta de 1425 alguns artistas utilizavam uma câmara escura rudimentar. A tradicional, que funcionava com lentes, é a precursora da máquina fotográfica moderna sem o filme. Ela consiste em uma lente convergente que projeta uma imagem real invertida sobre a tela. (A imagem projetada é chamada de “real” porque a luz realmente atinge a tela, de um modo muito parecido com que a imagem expõe o filme de uma câmera. O outro tipo, chamado imagem “virtual”, ocorre quando a luz apenas parece partir da imagem, como por exemplo no caso do reflexo no espelho.) Por várias razões históricas e técnicas, Hockney imagina que a base da câmara obscura não seja uma lente, mas um espelho côncavo que também pode projetar imagens sobre a tela. O artista iluminaria o objeto desejado à luz do sol e apontaria o espelho para ele, projetando uma imagem real invertida sobre uma tela ou painel de madeira – chamado de anteparo. Então, traçaria os contornos da imagem e aplicaria tinta, ou 42 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

Centro da esfera

Ponto focal

até mesmo pintaria diretamente sobre a imagem projetada, embora, como Hockney reconhece, pintar sobre projeções ópticas seja extremamente difícil. Essa câmara escura com espelho é simples para os padrões atuais, mas na época de Van Eyck representaria o sistema óptico mais sofisticado do planeta, exigindo maior precisão na forma e no posicionamento do espelho e maior rigor na iluminação do que qualquer outro. Nenhum documento escrito por cientistas, artistas, mecenas, clérigos ou fabricantes de espelhos da época, segundo pesquisei, indica que alguém alguma vez tenha visto a imagem de um objeto projetada sobre a tela por espelho ou lente. Diante dos registros existentes de todas as formas de outros sistemas ópticos e aparelhos mecânicos de desenho, é difícil explicar a falta de evidências sobre o projetor de Hockney. Estudei três propriedades técnicaschave desse projetor de espelho côncavo proposto. Primeiro, a distância focal. Um espelho côncavo reflete os raios de luz incidentes paralelos em um ponto focal. (Se um espelho desse tipo for utilizado para produzir fogo a partir da luz do Sol, o pavio deve ser colocado no ponto focal.) A distância entre

o espelho e o ponto focal é a distância focal. Uma fórmula matemática – a equação de Gauss – define as distâncias entre o objeto, o espelho e o anteparo necessárias para produzir uma imagem nítida. Essas distâncias, por sua vez, estabelecem o tamanho da imagem projetada. Por exemplo, durante um jogo no estádio, o fotógrafo escolherá uma lente com distância de foco longa, ou telefoto, para aproximar o foco de um jogador, e uma lente com distância de foco curta para afastar o foco e mostrar a torcida. A segunda propriedade diz respeito ao brilho de uma imagem projetada, que depende da distância focal e da área, ou superfície, facial do espelho utilizado. A terceira é a perspectiva geométrica: uma imagem projetada por um espelho obedece às leis da perspectiva, do mesmo modo que a imagem projetada de uma fotografia. O casamento de Arnolfini, de Van Eyck (1434) – uma das primeiras obras-primas do Renascimento do norte da Europa –, é uma peça-chave da teoria de Hockney. Muito pode ser dito sobre o simbolismo e o significado desse quadro extraordinário, mas me concentrarei em alguns centímetros quadrados de sua parte central. Enquanto os historiadores da arte discutirão exaustivamente o simbolismo de capturar o mundo visual no espelho convexo destacado na parede dos fundos, eu examinarei suas propriedades ópticas, tais como a distância focal e o poder de concentração de luz. Enquanto os historiadores da arte discutirão como o esplêndido lustre representa a riqueza e estatura do negociante italiano Arnolfini, na época em visita aos Países Baixos, mostrarei como esse trabalho em metal revela muito sobre perspectiva geométrica e projeções. Os historiadores da arte fazem alertas para que o retrato de Arnolfini, ou qualquer outra pintura da época, não seja julgado muito literalmente. Mas, se o objetivo é refletir sobre a teoria da projeção, devemos nos juntar a Hockney, pelo menos temporariamente, e assumir que a pintura é, de alguma maneira, baseada na cópia fiel de uma imagem projetada.

ELIZA JEWETT E TOMMY MOORMAN

COMO FUNCIONA A PROJEÇÃO COM USO DE ESPELHOS


O ESPELHO NO QUARTO DE ARNOLFINI A teoria da projeção óptica de Hockney sugere que o espelho convexo no retrato de Arnolfini pintado por Van Eyck teria sido reprateado, virado ao contrário e usado como espelho de projeção côncavo. Para testar essa possibilidade, o autor calculou o tamanho e a disposição dos objetos no quarto. Em seguida, usou regras de óptica geométrica para estabelecer a localização do espelho de projeção e do cavalete que produziriam os tamanhos das imagens na pintura de Van Eyck. Abaixo, vemos um modelo do quarto feito por computador baseado nessa análise, com o espelho côncavo hipotético no canto direito. Finalmente, ele aplicou a equação do espelho para determinar a distância focal do espelho de projeção.

Os resultados indicam uma distância focal de cerca de 61 cm. Se fosse cortado de uma esfera, esta teria 2,4 metros de diâmetro (esfera vermelha). Análise das imagens no espelho representado na parede dos fundos (abaixo, à esquerda) mostra que sua distância focal é de aproximadamente 18 cm, o que indica que teria sido cortado de uma esfera com 0,7 metro de diâmetro (esfera azul). Portanto, o espelho convexo na pintura não poderia ter sido invertido e servido como espelho de projeção côncavo. Outros cálculos e experiências mostram que a iluminação indireta no quarto de Arnolfini era muito fraca para projetar uma imagem passível de ser traçada e, além disso, que qualquer imagem projetada seria demasiado turva para mostrar detalhes minuciosos (abaixo, à direita).

Espelho convexo na pintura

Posição téorica do espelho côncavo

Esfera de 0,7 metro de diâmetro

Esfera de 2,4 metros de diâmetro

JAMES SCHOENBERG E DAVID G. STORK (DESENHO EM 3-D DO QUARTO DE ARNOLFINI); ANTONIO CRIMINISI ET AL. (REFLEXO CORRIGIDO DO ESPELHO PINTADO); ELIZA JEWETT E TOMMY MOORMAN (DESENHO)

Imagem invertida projetada sobre o painel de madeira Modelo do quarto feito por computador

Ponto mínimo Raio de luz projetado

Painel

Espelho côncavo

Imagem no espelho com distorção corrigida Raio de luz Para descobrir a distância focal do espelho de Van Eyck, o autor usou um método computadorizado desenvolvido por Antonio Criminisi, da Microsoft Research em Cambridge, Inglaterra, Martin Kemp, da Universidade de Oxford, e Sing-Bing Kang, da Microsoft Research em Redmond, Washington. Com isso, o autor foi capaz de ajustar o raio de curvatura, ou convexidade, do espelho para “desempenar” a imagem pintada – isto é, para fazer vigas e batentes parecerem retos. O raio de curvatura encontrado nesse procedimento mostra que a distância focal do espelho na pintura é de aproximadamente 18 cm.

Se o espelho convexo na pintura de Van Eyck tivesse sido virado ao contrário para projeção, o ponto mínimo – o menor ponto de luz no anteparo produzido a partir de um ponto do objeto – teria aproximadamente 1 cm de diâmetro, grande demais para projetar os detalhes minuciosos encontrados na pintura. SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

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O CANDELABRO De acordo com a teoria da projeção óptica, caso tivesse sido baseado em imagem projetada, o magnífico lustre no retrato de Arnolfini estaria representado em perfeita perspectiva. A fim de verificar essa afirmação, foram feitas análises da perspectiva do candelabro. Na vista aérea, ou plano, mostrada à esquerda, assume-se que o lustre de seis braços seja um hexágono simétrico. Estruturas correspondentes (pontos coloridos) de qualquer par de braços definem linhas paralelas ao chão cortadas por linhas perpendiculares ao plano vertical Vista aérea do lustre

Modelo gerado por computador com perspectiva perfeita

Ponto de fuga

Observemos em primeiro lugar o espelho convexo, talvez o mais famoso de toda a arte. Atualmente, tais espelhos são comuns em lojas de conveniência ou garagens, porque proporcionam um amplo ângulo de visão. Ao contrário dos espelhos côncavos, os convexos refletem imagens virtuais de cabeça para cima, menores do que os objetos originais, que não podem ser projetados sobre uma tela. Entretanto, Hockney infere que esse espelho convexo poderia ter sido virado ao contrário para ser utilizado como um espelho de projeção côncavo: “Se a parte prateada fosse invertida e o espelho virado ao contrário, ele seria todo o equipamento óptico necessário para produzir os detalhes minuciosos e o aspecto natural da pintura”. Para testar essa hipótese, calculei a distância focal do espelho supostamente utilizado para projeção e a do espelho côncavo que teria sido criado invertendo-se o convexo, e comparei então essas duas distâncias. Descobri que a projeção no espelho teria distância focal de 61 +- 8 cm, sendo a imprecisão resultante de meu conhecimento inexato dos tamanhos e da disposição dos objetos na sala. A distância focal do espelho côncavo obtido pela reversão do espelho convexo é de 18 +- 4 cm. A distância focal do espelho 44 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

retratado (invertido) difere daquela do suposto espelho de projeção em aproximadamente 43 cm. O espelho retratado, virado ao contrário, não poderia ter sido usado como espelho de projeção para toda a pintura. De fato, fabricar um espelho a partir de uma esfera de vidro soprado que poderia ter sido utilizada neste caso estaria além das habilidades da tecnologia renascentista. O diâmetro de uma esfera é quatro vezes a distância focal do espelho côncavo cortado dela. Uma distância focal de projeção de 61 cm exige uma esfera de vidro com extraordinários 2,4 metros de diâmetro. Além disso, o espelho proveniente do corte de uma esfera perfeita produzirá uma imagem turva de cada ponto na sala de Arnolfini. Cada ponto, espalhado como “borrão” sobre o anteparo, seria várias vezes maior do que o detalhe minucioso da pintura. Qualquer desvio, inevitável na fabricação, pioraria ainda mais a qualidade da imagem. Ademais, os artesãos do Renascimento teriam enfrentado grandes desafios técnicos quanto à prateação e selagem de um espelho côncavo, o que exigiria a aplicação de breu e piche quentes no lado externo do vidro. Até onde sei, não há exemplares de espe-

O candelabro pintado por Van Eyck não apresenta ponto de fuga

lhos côncavos produzidos pela reversão de esferas de vidro na coleção de nenhum museu; também não existem documentos da época que indiquem que espelhos côncavos tenham sido produzidos a partir da reversão de esferas de vidro soprado. Minha descoberta sobre a improvável distância focal do suposto espelho de projeção tem uma segunda implicação, que impõe restrições ainda maiores à teoria de Hockney. Se excluirmos os grandes espelhos esféricos de vidro soprado, sobram apenas pequenos espelhos de metal polido, conhecidos no século 15 e até mesmo anteriormente. Contudo, o poder de concentração de luz desses espelhos é pequeno. Calculei e verifiquei por meio de experiências que espelhos com distância focal adequada exigem que o objeto seja iluminado pela luz direta do Sol a fim de produzir uma imagem no anteparo. É difícil conciliar essa exigência com a iluminação interna indireta no retrato de Arnolfini, bem como em muitas pinturas do Renascimento citadas por Hockney como comprovação de sua teoria. PERSPECTIVA DIFERENTE Outro indício coloca em dúvida a sugestão de que Van Eyck teria pintado

DA ESQUERDA PARA A DIREITA: ELIZA JEWETT (desenho e linhas de perspectiva); JAMES SCHOENBERG E DAVID G. STORK (desenho em 3-D do candelabro); JAN VAN EYCK, 1434 © GALERIA NACIONAL, LONDRES (detalhe do candelabro do retrato de Arnolfini); ANTONIO CRIMINISI (simulação de computador dos braços de candelabro)

Observador está aqui

que divide essas linhas; portanto, todas essas linhas são mutuamente paralelas no espaço. Se o candelabro da pintura fosse simétrico – ou quase – e tivesse sido pintado em perspectiva perfeita, as linhas paralelas se encontrariam num ponto de fuga (centro). No entanto, essas linhas aplicadas da mesma maneira em relação ao lustre do quadro (à direita) apresentam desvios consideráveis. Claramente, ou o candelabro não foi desenhado sobre uma imagem projetada ou estava longe de ser simétrico.


A fim de investigar a possibilidade de o candelabro real ser bastante assimétrico, o autor e Antonio Criminisi usaram uma simulação computadorizada do lustre retratado no quadro (abaixo), giraram os braços, colocando-os uns sobre os outros, como mostrado no exemplo ao lado com dois deles. A análise revelou desvios de até 10 cm. É improvável que houvesse esse grau de descuido no lustre real, de acordo com medições feitas em outros candelabros da época em museus e análises computadorizadas das fotos deles.

Braço 1

Braço 2

o retrato de Arnolfini com projeção em um painel de madeira. Uma imagem projetada obedece necessariamente às leis da perspectiva. No entanto, as linhas de perspectiva do chão, do batente da janela e de outros objetos não se encontram em um ponto de fuga, como deveriam. A perspectiva é consistentemente inconsistente. Além disso, uma técnica chamada reflectografia infravermelha revela que foram feitos vários desenhos preliminares com tinta e muitas revisões em toda a pintura, particularmente nas mãos, nos pés e na cabeça de Arnolfini – dificilmente uma indicação de que os traços teriam seguido uma imagem projetada. O suntuoso lustre, ou lichtkroon (em holandês, “coroa de luz”), não tem traçado inferior. Talvez essa seção desafiadora tenha sido desenhada de acordo com uma projeção, ao ar livre, com o lustre iluminado pela luz direta do sol. Segundo Hockney, o lustre “está em perspectiva perfeita”, como deveria estar caso tivesse sido feito sob projeção. A imagem parece estar em perspectiva. Será isso mesmo? Para comprovar essa questão, desenhei linhas ligando as estruturas correspondentes na estrutura do lustre pintado (ver quadro acima). As leis da

compatível com a teoria da projeção. Descobrimos que, enquanto algumas Aproximadamente 10 cm partes se alinhavam perfeitamente, no geral a variação entre os braços era de fato bastante grande – cerca de 10 cm. A maioria dos acadêmicos acredita Braço 1 que os trabalhos em metal, com liga de bronze e cobre, feitos pelos europeus na época de Van Eyck, eram fundidos Braço 2 como peças inteiras em um único mol(virado e com de; os ornamentos não eram soldados perspectiva ou rebitados. Assim, todos os braços corrigida) deveriam ter mais ou menos a mesma forma. Criminisi e eu confirmamos a simetria desse trabalho em metal com a aplicação de nossa análise de perspectiva sobre projeção real (uma fotografia moderna) de uma imagem direta de uma luminária de quatro braços do séEssas estruturas culo 15. Os braços em perspectiva corcorrespondentes rigida se equiparam, com discrepância se alinhariam se os braços máxima de cerca de 1 mm. Nossos fossem perfeitamente simétricos testes de perspectiva com vários candeperspectiva geométrica garantem que, labros e lustres ornamentados dos muna projeção de um lustre simétrico a seus de arte e história de Bruxelas mospartir de um espelho côncavo sobre o tram que todos são significativamente mais simétricos do que apontaria anteparo de Van Eyck, a teoria de Hockney em relação todas as linhas paralePONTO DE FUGA las se encontrariam no Ponto situado na linha ao de Arnolfini. Sob a teoria da projeção esponto de fuga, do mes- de horizonte (linha mo modo que trilhos de imaginária no plano de conde-se a crença de que Van Eyck desenho paralela aos trem se encontram no olhos do observador) não poderia ter atingido tal precihorizonte nas fotogra- para o qual conver- são em perspectiva trabalhando fias. Todavia, as linhas gem as retas horizon- a olho nu, ou seja, sem projeções tais do desenho. ópticas. Contudo, qual nível de desenhadas a partir do exatidão é possível atingir desse lustre estão desorganizadas – como varetas jogadas a esmo modo? Atendendo a um pedido meu, o sobre o chão – e não há sinal de um artista britânico Nicholas Williams pintou vários lustres ornamentados sem o ponto de fuga coerente. Esse resultado por si não exclui a auxílio de fotografias, recursos ópticos possibilidade de que um candelabro ou perspectiva. Suas pinturas têm exceassimétrico possa ter sido a fonte da lente perspectiva – melhor do que a do imagem projetada. Mas quais as chan- lustre de Arnolfini –, o que demonstra ces de que o de Van Eyck fosse radical- que um artista habilidoso não precisa de projeções para isso. mente assimétrico? Antonio Criminisi, da Microsoft Research em Cambridge, Inglaterra, e O CARDEAL ALBERGATI eu usamos algoritmos precisos de ima- Nosso próximo passo foi analisar o gem computadorizada para “desfazer” Retrato do Cardeal Niccolò Albergaa perspectiva em cada braço, sobrepon- ti. Primeiro, Van Eyck fez um desenho do em seguida as imagens corrigidas. do Cardeal Albergati em três dias, em Qualquer diferença entre esses braços 1431, usando estilete de metal sobre com perspectiva corrigida demonstra papel com preparação especial. Baso “descuido” que seria necessário na tante preciso, o desenho claramente fabricação do lustre para que ele fosse constitui um estudo preparatório para SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

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CÓPIA DO CARDEAL ALBERGATI Segundo a teoria de Hockney, Van Eyck copiou e ampliou um estudo que havia feito do Cardeal Niccolò Albergati utilizando um epidiascópio, equipamento rudimentar que projeta uma imagem de uma superfície plana sobre outra. O retrato em papel (à esquerda no diagrama) teria sido colocado sobre um cavalete e iluminado por luz intensa, provavelmente a do Sol. O painel de madeira estaria em outro cavalete à sombra (à direita no diagrama), de maneira que a imagem invertida turva projetada pelo espelho côncavo fosse visível. Van Eyck teria então traçado a lápis a imagem projetada, depois virado o painel de cabeça para cima pintando-o com tinta.

Retrato em papel

Óleo sobre madeira

Parte anterior do espelho côncavo

Richard Taylor, da Universidade do Oregon, usou um Reductionszirkel para copiar o estudo em papel (foto mais à esquerda). Quando a cópia que fez (desenho à esquerda) foi escaneada e sobreposta ao original, revelou grande fidelidade, a não ser pela região da orelha. O Reductionszirkel pode fornecer uma explicação para o deslocamento e a ampliação adicional: Van Eyck teria começado a copiar o lado esquerdo do rosto, usando o instrumento para marcar as distâncias entre a boca e a ponta do nariz, entre os dois olhos e assim por diante. Mas, devido à amplitude limitada do Reductionszirkel, Van Eyck não teria conseguido abertura suficiente para marcar a distância entre o queixo e a orelha. Portanto, ele teria movido o instrumento a olho nu para o lado da cabeça perto da orelha e começado novamente; esse processo teria causado o deslocamento da orelha em relação à parte do rosto já desenhada.

um trabalho mais formal. No ano seguinte, o artista fez uma cópia maior do retrato em óleo sobre madeira, que envolvia cópia e ampliação da imagem de uma superfície plana para outra superfície igualmente plana. Falco, o colaborador de Hockney, sugeriu que Van Eyck usou projetor óptico para fazer a pintura a óleo – um 46 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

epidiascópio rudimentar, ou projetor opaco, que consistia em dois cavaletes, um com o desenho original sob iluminação intensa (provavelmente luz solar direta), e o outro com o painel de madeira à sombra, provavelmente num ambiente interior ou sob algum tipo de tenda. Uma imagem real invertida do desenho teria sido projetada por

um espelho côncavo no painel, sobre a qual Van Eyck teria traçado os contornos. Hockney e Falco baseiam essa alegação em duas características notórias dos retratos: a alta fidelidade das formas (em escala) e a discrepância residual na disposição de partes da imagem, particularmente da orelha (ver ilustração na página oposta).

NO ALTO À ESQUERDA E NO CENTRO: STAATLICHE KUNSTSAMMLUNGEN DRESDEN, KUPFERSTICH-KABINETT; DIREITA E EMBAIXO: KARDINAL ALBERGATI, JAN VAN EYCK, 1435, KUNSTHISTORISCHES MUSEUM, VIENA; TOMMY MOORMAN (gráficos no alto, à direita); EMBAIXO: MICHELE TAYLOR (à esquerda); RICHARD TAYLOR (direita)

Quando o retrato a óleo de Albergati é reduzido em cerca de 40% e sobreposto ao retrato em papel (esquerda), os contornos se ajustam quase que milimetricamente, o que demonstra a alta fidelidade da técnica de cópia. Todavia, a orelha na pintura a óleo sofreu deslocamento para a direita e ampliação de 30%. Hockney sugere que Van Eyck tenha acidentalmente derrubado o estudo, o quadro ou o espelho, tendo então traçado o resto da imagem deslocada. O autor considera pouco provável que Van Eyck não tivesse notado diferença tão grande e sugere que talvez o recurso utilizado para a ampliação do desenho tenha sido um compasso ou um Reductionszirkel, par de varetas cruzadas e rebitadas em um ponto fora do centro. Para utilizar um Reductionszirkel, colocam-se suas duas pontas sobre o original, marcando distâncias no desenho, e em seguida vira-se o instrumento de cabeça para baixo para marcar a distância ampliada sobre a cópia.


A orelha foi deslocada 30 graus para a direita na pintura a óleo e também é 30% maior (além dos cerca de 40% da ampliação geral da pintura). Hockney e Falco explicam esse deslocamento da seguinte maneira: Van Eyck havia traçado parte da imagem projetada pelo epidiascópio quando acidentalmente derrubou o desenho, a tinta ou o espelho, e depois traçou o resto da imagem com a alteração causada pelo acidente. Mas essa explicação tem problemas. Se Van Eyck derrubou o material no meio do trabalho, certamente teria notado a discrepância entre a imagem deslocada e as linhas que já haviam sido traçadas no anteparo. Copiei a reprodução do desenho utilizando um epidiascópio caseiro feito com um pequeno espelho côncavo circular e iluminação com luz solar direta e, quando deliberadamente derrubei meu equipamento, achei a discrepância bastante evidente. É improvável que Van Eyck, trabalhando encomenda importante, não tivesse notado tal desvio. O desenho poderia ter sido copiado com o uso de um instrumento muito mais simples, tal como um compasso ou um Reductionszirkel – par de varetas cruzadas, rebitadas em um ponto fora do centro. O artista coloca as duas pontas no original e vira o instrumento de cabeça para baixo para marcar a distância medida na cópia. Pedi a Richard Taylor, da Universidade de Oxford, para fabricar um Reductionszirkel e usá-lo para copiar e ampliar o desenho de Albergati. A precisão é excelente: menos de 1 mm na maior parte da imagem. Curiosamente, a parte da orelha ficou um pouco fora de lugar, talvez porque o artista tenha começado pela parte esquerda inferior e a amplitude limitada do instrumento tenha levado ao erro. QUAL SERIA A FONTE? Então, se, ao que parece, Jan Van Eyck não usou recursos ópticos na execução de seus trabalhos, a questão inicial permanece sem resposta. O que teria levado ao avanço do realismo na pintura renascentista por volta de 1425, da qual Van Eyck talvez seja o maior representante? Há uma série de propo-

sições, algumas técnicas, outras cultu- São Francisco, sugeriu uma razão “óptirais. Pode até haver uma razão óptica. ca” para o surgimento do realismo, basO início do Renascimento coincide tante divergente da teoria de Hockney: o precisamente com o início da pintura uso crescente de óculos. É possível que a óleo, e de fato Van Eyck é frequen- artistas que necessitassem – e usassem temente denominado – óculos simplesmente enxergassem pai da pintura a óleo. TÊMPERA com mais clareza, especialmente em Na pintura a têmpera Técnica de pintura em seu minucioso trabalho de pintura. que as cores são produmedieval, é quase im- zidas pela mistura de pig- De fato, a Madona com o Cônego possível atingir a ma- mentos com substâncias van der Paele, de Van Eyck (1436), tização que produz o aglutinantes, como clara mostra o doador segurando óculos de ovo e cola. efeito de tridimensioe suponho, a julgar pelo ponto brinalidade. Já a tinta a lhante refletido pelas lentes deles, que óleo permite matização contínua, bem fossem convergentes, como as usadas como técnicas singulares de enverniza- para ajudar hipermétropes a ler de permento e aplicação de camadas, além de to – ou artistas hipermétropes a pintar maior opção de cores, inclusive aquelas detalhes. Certa ocasião Hockney disse vívidas e saturadas. Mas a característica informalmente que era como se a pinmais importante da pintura a óleo tal- tura ocidental tivesse usado óculos pela vez seja a secagem muito mais lenta do primeira vez na alvorada do Renascique a da técnica anterior, o que permite mento. Talvez esteja mais próximo da ao artista retrabalhar e desenvolver a verdade do que imagina. n mesma imagem por meses ou anos. Aproximadamente nessa mesma O AUTOR época, artistas italianos inventaram a David G. Stork é cientista-chefe da Ricoh Inperspectiva linear. Baseado na linha do novations, professor-consultor de engenharia horizonte, um ponto de fuga e linhas elétrica da Universidade Stanford e ex-professor do departamento de artes e história da perpendiculares, ou “raios visuais”, que mesma instituição Com bacharelado pelo Insconduzem o olhar do observador ao tituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) ponto de fuga, esse sistema matemático e doutorado pela Universidade de Maryland, ambos em física, Stork estudou história da criava a ilusão de espaço e distância em arte no Wellesley College e recebeu uma boluma superfície plana e permitia que o sa do Conselho de Artes do Estado de Nova artista retratasse cenas de forma muito York. Ele é detentor de mais de 15 patentes e tem cinco livros publicados. Seu maior intemais natural. Outra inovação técnica do resse é reconhecimento de padrões de adapperíodo é o fato de que os artistas co- tação por máquinas e pessoas. meçaram a estudar cadáveres, o que lhes proporcionou maior entendimento das PARA CONHECER MAIS estruturas dos músculos e do esqueleto. Did the great masters use optical projections Muitos fatores culturais abriram while painting? Perspective comparison of caminho para a nova arte. O Renas- paintings and photographs of Renaissance chandeliers. Antonio Criminisi e David G. cimento trouxe a Stork. International Conference on Pattern SECULARISMO ascensão do secula- O secularismo Recognition, Cambridge, Inglaterra, 23 a 26 de agosto de 2004. Disponível no site rismo e dos ideais defende a não de David G. Stork: www-psych.stanford. clássicos, com foco interferência de edu/~stork /FAQs.html questões religiono humano aqui e sas em assuntos Optics at the dawn of the Renaissance. David agora. O crescimento do Estado. Hockney e Charles M. Falco. Proceedings of the Annual Meeting, Optical Society of Amedo mecenato também rica, Tucson, Ariz., 2003. foi importante: os pintores renascentisSecret knowledge: Rediscovering the lost tetas precisavam representar indivíduos chniques of the old masters. David Hockney. e suas posses. Se o retrato de Arnolfini Viking Studio, 2001. pintado por Van Eyck não fosse fiel ou Reflections of reality in Jan Van Eyck and Rolisonjeiro, esse poderoso mecenas não bert Campin. Antonio Criminisi, Martin Kemp e Sing-Bing Kang em Historical Methods. teria apoiado o artista. Pesquisa sobre as teorias de David HockChristopher W. Tyler, do Instituto ney podem ser encontradas em webexhibits. de Pesquisa Ocular Smith-Kettlewell, de org/hockneyoptics/ SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

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GEOGRAFIA

ALEMANHA 20,4 CHINA 19,8

GRテ:ICO POR ARNO GHELFI

ESTADOS UNIDOS EST 100

48 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA


As razões do avanço da China e da Alemanha JAPÃO 18,4 CINGAPURA 2,6

ISRAEL 2,6

SUÉCIA 2,5

TAIWAN 3,1

BÉLGICA 1,9

ÍNDIA

REINO UNIDO 16,9

3,2

DINAMARCA 1,5

FINLÂNDIA 1,0

ÁUSTRIA

4,0

1,2 FEDERAÇÃO RUSSA 1,3

FRANÇA 11,7

HOLANDA

BRASIL

1,4

HONG KONG 1,3

AUSTRÁLIA 4,4

SUÍÇA

CANADÁ

4,9

FONTES: DIGITAL SCIENCE (TRABALHOS CIENTÍFICOS); U.S. PATENT AND TRADEMARK OFFICE (PATENTES); TABELA DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INDÚSTRIA DA OCDE , 2011 (P & D E DOUTORADOS);

8,3

COREIA DO SUL 6,7

ESPANHA 5,5

ITÁLIA 6,1

que torna um país melhor que o outro em ciência? Não é fácil mensurar. A publicação de pesquisas é um bom método de obter um padrão de pesquisa básica, mas não revela realmente se um país aproveita essas boas ideias. Para isso, outras medidas entram em jogo. As patentes dão uma pista sobre a eficiência com que um país explora suas ideias para ganho comercial. O que um país gasta em pesquisa e desenvolvimento (P&D) capta não apenas as ações de universidades e programas de pesquisa do governo, mas também a contribuição da indústria. Quantos alunos um país educa em disciplinas de ciência e tecnologia é uma medida essencial, mas há poucos dados disponíveis.

O

Nas páginas a seguir, são apresentados dois modelos bem diferentes de desenvolvimento econômico e tecnológico, o da Alemanha e o da China, dois países que figuram entre os primeiros no ranking das 25 principais nações que serpenteiam nestas duas páginas. Esse ranking é baseado em dados preliminares da Digital Science, empresa-irmã do Nature Publishing Group (que detém a Scientific American). Ela reuniu um banco de dados de trabalhos científicos publicados em periódicos de prestígio e revisados por pares de todo o mundo e os organizou por país de origem. A tabela à esquerda mostra os rankings por esta medida e outras: patentes, gastos em P&D e doutorados produzidos. SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

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GEOGRAFIA

A China pode continuar avançando? Padrão mundial de excelência em pesquisa vem com uma nova série de desafios POR PHILIP G. ALTBACH E QI WANG

á duas décadas a China atua como a locomotiva da Ásia. O país edifica cidades inteiras a partir do zero, lidera o mundo em construção no setor de energia e expandiu sua economia quase 10% ao ano. O crescimento vertiginoso não esteve confinado à economia – a China se tornou uma potência mundial em pesquisa científica num período admiravelmente curto. As universidades da ChiCHINA na continental passaram por CONTINENTAL Território admi­ uma expansão espetacular. nistrado pela República Popu­ Em 1978, o país tinha apelar da China, que nas 860 mil alunos no ensino não inclui Taiwan superior – somente 1,6% dos (ou República da adultos em idade escolar. O China). número disparou para mais de 23 milhões de estudantes, ou cerca de 27%, até 2011. Esse crescimento tornou o sistema acadêmico da nação o número 1 do mundo em termos de alunos matriculados. A China agora tem mais de 100 universidades de pesquisas atuando em todos os campos, muitas delas com ênfase em ciência e engenharia. O número de matrículas de pós-graduandos também deu um salto, de 280 mil em 2000 para 1,6 milhão em 2011. Os líderes da China reconhecem que a pesquisa científica e o ensino superior são essenciais para a liderança global. Apesar de suas impressionantes conquistas, no entanto, o caminho para a excelência acadêmica e o status de classe

H

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mundial de forma alguma estão garantidos. Por 40 anos a China tentou expandir rapidamente seu sistema de ensino e pesquisa em geral, ao mesmo tempo que infundia excelência em alguns poucos centros. Até agora, a China buscou dosar esses dois objetivos ao deixar a base com fome para alimentar o topo. Existe um enorme fosso entre as instituições de elite como a Universidade de Pequim e a Universidade de Tsinghua e as instituições de ensino em massa. Por mais que a China tenha conseguido, será difícil fazer avanços significativos. Os líderes da nação vão descobrir na próxima década que simplesmente injetar mais recursos nas universidades de pesquisa de elite não será suficiente para atingir a verdadeira condição de classe internacional para seu sistema acadêmico. Eles também terão de decidir sobre mudanças significativas na liderança, administração e cultura acadêmica. O progresso adicional envolverá modificações em como as universidades funcionam e como a cultura da academia é percebida na China. Antes que o país se abrisse, no fim dos anos 70, o sistema de ciência e tecnologia da China empregava um modelo soviético: instituições especializadas conduziam a pesquisa e universidades com foco mais restrito se encarregavam da educação e do treinamento. Esse modelo fracassou porque a pesquisa era separa-

da do ensino, o trabalho interdisciplinar era impossível, os recursos eram escassos e os rígidos controles políticos e a ideologia dominavam. A revolução cultural de 1966 a 1976 fechou todo o ensino superior por uma década e destruiu muito do que havia sido construído anteriormente. Nos anos 90, a China expandiu e reestruturou o ensino superior para concretizar suas ambições econômicas. O governo, no entanto, logo percebeu que o país apresentava desempenho fraco em criação de conhecimento e inovação de acordo com vários rankings e relatórios de competitividade global. Em 1995, a China deu início ao Projeto 211 para desenvolver 100 universidades e várias disciplinas científicas-chave até o início do século 21. Três anos depois, lançou o Projeto 985, centrado em 39 universidades com excelência em pesquisas-chave. Os governos nacional e regionais e umas poucas universidades investiram US$ 15 bilhões em recursos adicionais nessas seletas instituições. Esses esforços permitiram recursos significativos para um pequeno número de universidades chinesas e ampliaram a capacidade para a pesquisa científica, tecnológica e inovação. Com o apoio de financiamento especial para uns poucos projetos nacionais as universidades conseguiram atrair acadêmicos e pesquisadores de elite do exterior, principalmente da diáspora interna,


Instituições Inovação

FONTE: “THE GLOBAL COMPETITIVENESS REPORT 2011-2012”, EDITADO POR KLAUS SCHWAB. FÓRUM ECONÔMICO MUNDIAL, 2011; GRÁFICO POR ARNO GHELFI

para trabalhar na China. O orçamento das universidades líderes de pesquisa se aproxima do exibido por seus pares em outras partes PAPERS Pequenos arti­ do mundo. Em termos de pagos elaborados pers de pesquisa, a produção para a divulga­ ção de pesqui­ cresceu a um nível próximo sas científicas. do das universidades americanas. Em 2008, as universidades do Projeto 985 produziram 6 073 patentes (domésticas e internacionais), em comparação com apenas 346 em 1999. Segundo o Patent and Trademark Office (Escritório de Marcas e Patentes) americano, o número de patentes chinesas registradas no país aumentou de 41 em 1992 para 1 874 em 2008. Um emergente setor privado (minban) atende em grande medida à base do sistema. A qualidade é baixa – e o ensino é principalmente vocacional – em campos como tecnologia da informação e administração. Embora algumas das melhores instituições privadas produzam competentes trabalhadores de nível médio, muitos dos diplomados não têm aptidões funcionais para o desenvolvimento da China na economia do conhecimento global. Umas poucas instituições oferecem programas de grau universitário. Estudantes com menor capacidade de arcar com altas mensalidades recebem cursos de valor questionável ou pagam uma relativa fortuna por preparação vocacional de baixa qualidade e pouco prestígio. No centro do problema de qualidade da China está o sistema de professores. Em termos nacionais, um terço do pessoal acadêmico tem apenas grau de bacharel (a proporção chega a 60% no novo setor privado), o que indica que o nível de competência de muitos membros da faculdade é bastante baixo. O número de acadêmicos com doutorado, tanto em instituições privadas quanto públicas, cresceu recentemente, mas ainda representa apenas 14% dos professores, ante 70% nas faculdades chinesas renomadas. Os salários acadêmicos são baixos, com a exceção de uma pequena parcela de acadêmicos altamente produtivos nas melhores universidades. Acadêmicos chineses não costumam ganhar o sufi-

Sofisticação corporativa

Infraestrutura

CHINA

4,3

3,9 ,9 4,4 Tamanho do mercado

Ambiente macroeconômico

4,6

6,2 Ponntuaç ntuaçã ççãoo m média dia iaa p ra pa par países ísess noo m moo está mesmo estágioo de desenvo voolvim ment ntto

6,8

A Ch hinaa é o 58º 58º China entre 142 países

3,6

Agilidade tecnológica Desenvolvimento do mercado financeiro

4,4

4,4 4,7

6,2

Saúde e ensino básico

4,3 Ensino superior e treinamento

Eficiência do mercado de bens Eficiência do mercado de trabalho

POTENCIAL: O imenso mercado faz a China se destacar dos demais países no Índice de Competitividade Global.

ciente para sustentar um estilo de vida de classe média e precisam fazer trabalhos extras. Num recente estudo sobre salários acadêmicos em 28 países, que incluía Brasil, Rússia e Índia, os da China ficaram entre os mais baixos quando medidos pela paridade do poder de compra. Esse ambiente não é bom o suficiente para sustentar uma cultura acadêmica de padrão internacional. Universidades eficazes precisam de um comprometimento com a pesquisa básica que não esteja ligado de perto ao ganho monetário. Elas precisam estimular o trabalho multidisciplinar, acomodar a governança partilhada e estabelecer normas claramente entendidas. Os professores precisam de liberdade acadêmica, acesso a todas as fontes de informação e análise e espaço para publicar seus trabalhos. Em todas as suas funções, a universidade precisa ser meritocrática e razoavelmente transparente, o que significa que conexões institucionais, políticas e pessoais não podem influenciar decisões referentes a pessoal, pesquisa e outras questões acadêmicas. Essas considerações que, em geral, são indiscutíveis no mundo desenvolvido, continuam sendo um desafio nas universidades chinesas. Mesmo universidades de prestígio temem que seus currículos e métodos de ensino estejam ultrapassados e inadequados para o mundo moderno e que estimulem a aprendizagem mecânica em vez da

criatividade e do pensamento crítico. O governo chinês, que tem centralizado o poder administrativo sobre bolsas de estudo e recursos acadêmicos, pode restringir o crescimento de jovens acadêmicos e prejudicar a imparcialidade da competição por excelência em pesquisa. O ambiente acadêmico também é conhecido por estar repleto de plágios, fraudes em exames e outros elementos de corrupção. Há ainda uso considerável de guanxi (redes e relações pessoais). A cultura universitária é com frequência hierárquica e burocrática. Muitas das principais universidades estão considerando um inovador e liberal currículo de graduação orientado para as artes e começando a se concentrar em métodos de ensino que estimulem os estudantes a serem mais ativos. Também estão cada vez mais contratando jovens acadêmicos com doutorado das melhores universidades no exterior e adotando avaliações internas mais rigorosas. n OS AUTORES Philip G. Altbach é professor da J. Donald Monan, da S.J. University e diretor do Center for International Higher Education do Boston College. Qi Wang é pro­ fessora assistente da Graduate School of Education da Shanghai Jiao Tong University na China. PARA CONHECER MAIS The road to academic excellence: The making of world-class research universities. Editado por Philip G. Altbach e Jamil Salmi. Banco Mundial, 2011. Leadership for world-class universities: challenges for developing countries. Edi­ tado por Philip G. Altbach. Routledge, 2010.

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GEOGRAFIA

Por que a Alemanha ainda produz tanto? O país desenvolveu um modo flexível e eficiente de pôr em prática suas melhores ideias, do laboratório das universidades ao chão de fábrica POR STEFAN THEIL

elix Michl e Philipp Stahl travam uma discussão sobre sobre um novo robô reluzente de três braços no espaçoso laboratório da Universidade Técnica de Munique (TUM, na sigla em alemão). O robô apanha minúsculos pedaços de fibra de carbono, cada um com menos de um décimo de milímetro de espessura mas contendo 24 mil filamentos, e rapidamente os reúne numa forma triangular. A tarefa mais complicada segundo os investigadores é escrever o software que traduz o modelo 3D de computador de cada parte, nesse caso um selim de bicicleta, mas poderia ser também uma prótese médica ou um componente de automóvel em instruções para os complexos movimentos do robô, incluindo a posição exata em que as fibras terão força e durabilidade máximas. Quando o projeto estiver pronto será usado na tese de doutorado de Michl e no trabalho de fim de curso de graduação de Stahl. Mas o projeto terá uma segunda vida nas fábricas alemãs, incluindo uma unidade de produção de última geração da BMW com 7 600 m2 a 50 km de distância, seguindo pela estrada que passa perto da cidade medieval de Landshut, onde os engenheiros estão produzindo as novas gerações de automóveis, uma das quais é o BMW i3, o primeiro carro de produção em massa totalmente elétrico,

F

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construído com componentes leves, lançado em setembro de 2013 no Salão de Frankfurt. O carro foi inteiramente construído com compostos de carbono, que pesquisadores e estudantes como Michl e Stahl estão desenvolvendo nos laboratórios de Munique. A principal inovação é uma nova tecnologia que reduz o tempo de produção de partes complexas, como a estrutura lateral do carro, a pouco mais de dois minutos, tornando esses componentes de alta tecnologia disponíveis, pela primeira vez, para produção em massa de carros. Três prensas gigantescas, pesando 320 toneladas cada uma, injetam resina nas peças pré-moldadas de fibra de carbono, tornando-as rígidas. A BMW se considera líder na tecnologia de produção desses compostos, à frente de concorrentes como a Toyota e a General Motors. “Nosso conhecimento para reunir todos esses elementos não é uma coisa que nossos concorrentes podem copiar facilmente”, observa Andreas Reinhardt, gerente de projetos da BMW. Pode ser. As correntes de inovação que fluem dos laboratórios de pesquisa das universidades e do governo para produtores como a BMW são um dos segredos da explosão da economia alemã. Há muito tempo desvalorizada como uma modesta modeladora de metais, a produção singrou os mares da crise financeira

simplesmente reduzindo lucros e empregos; mesmo assim, os trabalhadores alemães estão entre os mais bem pagos do mundo: ganham 10 vezes mais que os chineses. As exportações alemãs mantiveram sua fatia do mercado global, disputada contra a China e outros países emergentes, mesmo quando a participação dos Estados Unidos caiu vertiginosamente. De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o aumento do número de empregos na indústria é uma das razões por que a Alemanha, desde maio, tem taxa de desemprego de apenas 5,6% em comparação com os 8,2% dos Estados Unidos. A indústria alemã permaneceu competitiva globalmente porque seus produtos como o BMW i3 se baseiam totalmente em ciência e inovação. Um fator importante do sucesso da Alemanha é que ela conseguiu aproveitar a experiência, o conhecimento e a pesquisa científica desenvolvidos nacionalmente para ascender na escala tecnológica, concentrando-se em produtos e processos inovadores que não podem ser copiados facilmente ou barateados com salários mais baixos. A indústria têxtil é um caso típico. Como os Estados Unidos, a Alemanha há muito tempo perdeu boa parte do mercado de vestuário e tecidos para países com mão de


SOFI STI NEG CAÇÃ ÓC O N IOS O S

5,4 4 3 ESTADOS ESTA S UNIDO DOS

5,7

5,4

2 ALEMANHA

1 6,3

5,6

Pontua uação ão méd média mé de paíse paísse ses no mes est mesmo mes me estágio dee desenvolvi d olvim mento 4,5

5,7 4,4

4,8

EN S E T INO RE SUP INA ER ME IOR NTO

6,0

SAÚDE E ENSINO FUNDAMENTAL

EXTENSÃO DO MERCADO

6 5,3

INFR AES TR UT UR A 6,4

ICO NTE BIE NÔM AM OECO CR MA

FONTE: “RELATÓRIO GLOBAL DE COMPETITIVIDADE 2011–2012”, EDITADO POR KLAUS SCHWAB. FÓRUM MUNDIAL DE ECONOMIA, 2011; GRÁFICO POR ARNO GHELFI

O ÇÃ VA O IN

O IDÃ ICA APT OLÓG N TEC

obra mais barata como China, Índia e Turquia. No entanto, as indústrias alemãs mantiveram uma fatia dominante do mercado global apesar das máquinas cada vez mais complexas que tecem, trançam e entrelaçam fios, que sustentaram a explosão de investimentos em países com salários mais baixos. Nesse ínterim, muitos dos ex-produtores de tecidos da Alemanha também passaram a adotar a alta tecnologia, transferindo seu conhecimento na indústria têxtil para os setores automotivo e aeroespacial. Atualmente a indústria têxtil alemã está na vanguarda da pesquisa de compostos, colaborando com centros de tecnologia de universidades e do governo para desenvolver máquinas de precisão que trançam fibras de carbono – como fibras de lã e algodão, exceto que em escala microscópica. Se a Alemanha tivesse desistido dessa indústria, teria perdido a base para a produção desses compostos de última geração que atualmente estão sendo desenvolvidos no laboratório da TUM e em outros laboratórios. A principal razão para essa pesquisa ser transferida do laboratório para o mercado é a estreita parceria CHÃO DE entre a pesquisa das univerFÁBRICA Expressão que sidades e o atual chão de fádesigna o cor­ brica altamente tecnológico. po produtivo de Muitos produtores alemães uma indústria. dispõem de orçamentos polpudos para a pesquisa, que geralmente é terceirizada. Ao contrário de muitas empresas americanas, que podem bancar uma cadeira na universidade ou fazer doações vultosas para um departamento da universidade, as empresas alemãs geralmente levam para as universidades problemas específicos que precisam resolver. Na TUM, por exemplo, os departamentos de compostos são financiados pela SGL Carbon, empresa alemã que produz fibras de carbono porque precisa saber que tipos de materiais são mais adequados para a próxima geração de processos de produção. A BMW tem cerca de uma dúzia de alunos de doutorado do departamento em sua folha de pagamento; seus projetos de pós-graduação fazem parte da pesquisa de pré-produção do i3. Produtores de equipamentos como a Kuka (robôs) e a Manz (prensas para compostos) tam-

INSTITUIÇÕES 7

D S ME ESEN DE UTO RC VO A I D L AD VIM C IÊN PRO O F EN INA TO D EFIC O DE O NCE O EFIC IÊNCIA DE MERCAD MERCAD IRO DE TRABALHO

Destaque: No Índice Global de Competitividade, a pontuação da Alemanha é mais alta que a dos Estados Unidos em vários itens, incluindo qualidade de suas instituições e infraestrutura. (Ver detalhes sobre a pontuação no relatório relacionado em “Para conhecer mais”.)

bém estão profundamente integrados na pesquisa das universidades. Multiplique essa rede intensa por dezenas de universidades especializadas em tecnologia e engenharia. Na Universidade RWTH de Aachen, mais de 20 institutos de universidades concentram-se no estado da arte de técnicas de produção, cooperando com produtores de máquinas, empresas que produzem robôs e desenvolvedores de softwares para tornar processos de produção mais eficientes e permitir que um país que oferece altos salários como a Alemanha possa competir com outros como a China. A RWTH de Aachen está construindo um parque industrial de US$ 2,5 bilhões para empresas parceiras nessa pesquisa. O Instituto de Tecnologia Karlsruhe, especializado em nanotecnologia e ciências dos materiais, está trabalhando com indústrias químicas alemãs líderes do mercado como a Basf para criar novos materiais que permitirão construir baterias para armazenar energia renovável com maior eficiência e custo mais baixo. Na Universidade Técnica de Dresden, pesquisa-

dores parceiros de empresas produtoras de chips e de tecnologia da informática estão desenvolvendo circuitos integrados que consomem um centésimo da energia dos produtos eletrônicos atuais. O governo alemão também tem papel nesse contexto. Enquanto o país financia excelentes laboratórios para ciência básica, como a rede Max Planck, com 80 institutos que oferecem disciplinas tão díspares como física de partículas e biologia evolucionária, a instituição de pesquisa alemã economicamente mais bem-sucedida é a Sociedade Fraunhofer. Sua rede de 60 centros de tecnologia é cofinanciada pelo governo alemão e por empresas comerciais, e por isso é estritamente voltada para o mercado. Ao seu orçamento anual de US$ 2,5 bilhões ainda se somam os lucros gerados por patentes, principalmente pela invenção do formato de dados MP3 nos anos 80. Por manter uma estreita parceria com universidades vizinhas, cada centro Fraunhofer atua como um cinturão de transmissão para um conglomerado inteiro de empresas em rede, com os SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

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centros e entre si por meio de pesquisa colaborativa que prioriza processos e produtos. Esses centros funcionam em todos os setores da indústria que se possa imaginar, incluindo pesquisa com polímeros para a indústria química, óptica de precisão para a produção de sensores e laseres, e nanoeletrônica para produzir a próxima geração de componentes de tecnologia da informação. Vários centros, como o Instituto Fraunhofer para Produção Tecnológica em Aachen, concentram-se no desenvolvimento de técnicas de produção com custo reduzido para manter a competitividade da Alemanha frente à China. E para a pesquisa de compostos há um grupo de projeto do Fraunhofer em Augsburgo, perto de Munique, que surgiu do laboratório de propulsão de foguetes da era da Guerra Fria. Em parceria com a TUM e mais de 50 empresas, incluindo BMW, Audi e a Empresa Europeia de Defesa Aeronáutica e Espaço (EADS, na sigla em inglês), proprietária da Airbus, o centro de Augsburgo já está trabalhando na próxima geração de fibras compostas derivadas não de petróleo, mas de lignina, subproduto inexaurível da madeira e das indústrias de papel. O que também acelera a transmissão dessas tecnologias é a rotatividade de empregos de pesquisadores e engenheiros. O cientista médio do Instituto Fraunhofer, por exemplo, se transfere para uma indústria depois de cinco a dez anos, e muitos dos melhores engenheiros que trabalham em empresas também atuam, por períodos predeterminados, como professores ou diretores do Fraunhofer. Klaus Drechsler, professor e chefe do Instituto de Compostos de Carbono da TUM, passou parte da carreira em EADS desenvolvendo produtos para a Airbus. Atualmente está envolvido na instalação do novo centro Fraunhofer para compostos em Augsburgo. Esse tipo de troca frequente de emprego, crucial para a difusão do conhecimento e tecnologia, é muito raro nos Estados Unidos, onde pesquisadores do governo geralmente permanecem no mesmo emprego a vida toda. Essa colaboração intensa e complexa é típica da inovação alemã. Boa parte 54 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

dessa inovação desenvolveu-se ao longo de décadas em pequenas e grandes empresas que agora estão tão acostumadas a trabalhar juntas que já conhecem instintivamente que tipo de informação pode ser partilhado e o que é melhor manter sob sigilo. “Esse truste entre empresas e instituições que cooperam, mas também competem, é único, não se vê isso em muitos países”, comenta Beñat Bilbao, economista do Fórum Mundial de Economia, em Genebra, e coautor do último “Relatório Global de Competitividade”, que todos os anos coloca a Alemanha na frente dos Estados Unidos em inovação industrial. A maioria desses conglomerados empresariais e seus fornecedores cresceu organicamente ao longo de décadas (em alguns casos, ao longo de séculos como os ex-fabricantes de relógios na Floresta Negra, que atualmente são líderes mundiais na produção de instrumentos cirúrgicos de precisão), tornando-se modelo não muito fáceis de copiar. CRIAÇÃO DE REDES Apesar disso, os alemães continuam a criar essas redes em novas indústrias emergentes. Uma das últimas é o Aglomerado de Bioeconomia, perto de Leipzig, onde uma rede de mais de 60 empresas e institutos de pesquisa está desenvolvendo formas de produzir produtos químicos e plásticos a partir de biomassa, substituindo o petróleo caro e emissor de CO2, não apenas para fornecer energia, mas para produzir outros produtos refinados do petróleo. Quando o Fraunhofer instala novos centros de tecnologia, identifica empresas e instituições já estabilizadas em suas áreas de atuação em vez de tentar criar alguma coisa a partir do zero. “Nossa filosofia é produzir alguma coisa que já esteja funcionado e regá-la para que cresça”, observa Hans-Jörg Bullinger, presidente da Sociedade Fraunhofer. Ao montar o novo conglomerado de compostos de carbono, por exemplo, o Instituto Fraunhofer identificou que existem empresas e departamentos de universidades que precisam de fundos, recursos humanos e instalações para desenvolver pesquisa em parceria. A segunda lição, acrescenta Bullinger, é comprometer-se com a nova cor-

rente. Novos centros Fraunhofer tiveram seus recursos financeiros assegurados indefinidamente e puderam trabalhar por conta própria, sem serem avaliados nos cinco anos seguintes desde que dobrassem os investimentos aplicados por empresas privadas. As empresas também recebem investimentos de longo prazo; muitas das indústrias alemãs mais inovadoras e baseadas em tecnologia são empresas familiares que não se preocupam com relatórios quadrimestrais. Um exemplo de empresa tecnológica típica alemã é a Trumpf, uma firma familiar, quase invisível, que foi líder mundial na tecnologia de laser industrial por pelo menos uma geração e atualmente chegou aos US$ 3 bilhões em vendas anuais. O Fraunhofer também contratou 3 mil novos pesquisadores na pior fase da crise financeira. “Muitos países tentaram nos copiar”, comenta Bullinger. “Mas seus esforços fracassaram porque eles planejam para o curto prazo.” Esse pode ter sido o pior erro da proposta do presidente Barack Obama, revelada em março, para a formação de uma Rede Nacional para Inovação na Produção de US$ 1 bilhão, nos mesmos moldes do Fraunhofer da Alemanha. Se for aprovada a rede será uma parceria público-privada em cooperação com indústrias para criar até 15 centros de tecnologia de produção por todo o país. Até aqui, tudo bem. Mas os recursos só foram alocados para os primeiros quatro anos. Na visão de Bullinger isso é muito pouco para que as melhores empresas e pesquisadores se comprometam com projetos sérios. “O resultado mais provável será uma disputa por verbas para os projetos em vez de algum resultado sustentável”, avalia Bullinger. No entanto, ele acrescenta, será um passo na direção certa. n O AUTOR Stefan Theil é jornalista e ex­editor de economia da Newsweek. PARA CONHECER MAIS The Global Competitiveness Report 2011– 2012. Editado por Klaus Schwab. Fórum Mun­ dial de Economia, 2011. http://reports.weforum.org/global-competitiveness-2011-2012


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Física Química Biologia Matemática Geografia

ROTEIROS ELABORADOS POR PROFESSORES ESPECIALISTAS COM SUGESTÕES DE ATIVIDADES PARA SALA DE AULA

SCIENTIFIC SCIENTIFIC AMERICAN AMERICAN BRASIL BRASIL AULA AULA ABERTA ABERTA 55


PARA OPROFESSOR PROFESSOR FÍSICA

Um cometa que pode surpreender PROPOSTA PEDAGÓGICA CONTEXTUALIZAÇÃO

O

s cometas estão entre os corpos celestes que mais chamam nossa atenção. Seu brilho, sua cauda e seu movimento no céu, relativamente mais rápido que o dos demais astros, fazem deles elementos únicos do sistema solar. O termo cometa tem origem na palavra grega komē, que significa “cabeleira”, em alusão a sua enorme cauda, como se fosse um metaleiro, exibindo sua cabeleira nos shows do céu. O artigo referente à passagem do cometa Ison pode ser problematizado para ajudar os alunos a se apropriarem dos códigos da física e desenvolver, além das competências leitora e escritora, competências e habilidades específicas das ciências naturais, particularmente no que se refere a brilho e órbitas planetárias. COMPETÊNCIAS DE CIÊNCIAS DA NATUREZA E SUAS TECNOLOGIAS n Competência de área 1 H1 – Reconhecer características ou propriedades de fenômenos ondulatórios ou oscilatórios, relacionando-os a seus usos em diferentes contextos. H3 – Confrontar interpretações científicas com interpretações baseadas no senso comum, ao longo do tempo ou em diferentes culturas. n Competência de área 4 H16 – Relacionar informações apresentadas em diferentes formas de linguagem e representação usadas nas ciências, como texto discursivo, gráficos, tabelas, relações matemáticas ou linguagem simbólica. n Competência de área 6 H20 – Utilizar leis físicas para interpretar processos naturais e tecnológicos que envolvem trocas de calor, mudanças de pressão e densidade ou interações físicas que provoquem movimentos de objetos. 56 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

PROPOSTA DE ATIVIDADES AULAS 1 E 2: BRILHO E LUMINOSIDADE Inicie perguntando aos alunos: O Sol é tão brilhante quanto parece ser? Existem estrelas mais brilhantes que ele? Como é possível comparar o brilho das estrelas? De que depende o brilho delas? Será da distância delas à Terra, da quantidade de energia que elas emitem, da direção em que se encontram no espaço? De sua cor? Converse com a turma assinalando que, de certa forma, brilho e cor estão ligados à temperatura superficial das estrelas – as mais frias (com cerca de 4 000 K) são mais avermelhadas, enquanto as que têm temperatura da ordem de 30 000 K são mais azuladas – e também seu brilho, ou magnitude, como dizem os astrônomos. A magnitude das estrelas depende de algumas características intrínsecas delas, como a quantidade total de energia liberada (sua luminosidade) mas também de sua distância até nós. Dessa forma, as informações que obtemos sobre uma estrela, seja por simples observação a olho nu, seja com instrumentos sofisticados – telescópios, placas fotográficas ou sensores de luz e outras radiações –, são sempre uma mistura de características próprias dela e outras que dependem da sua distância à Terra e do meio interestelar entre ela e nós. Esse brilho observado sem considerar as características extrínsecas à estrela é o que chamamos de magnitude aparente. É a essa magnitude aparente à qual os cientistas e a mídia em geral – e o artigo em particular – se referem. A escala de magnitudes aparentes foi utilizada até a invenção e aprimoramento de instrumentos de observação

astronômica no século 17. Com o início dos estudos em psicofísica no século 19, os cientistas Gustav Theodor Fechner e Erns Heinrich Weber identificaram que a maioria dos nossos sentidos, como audição e visão, não reage aos estímulos de forma linear e sim logarítmica. Esse modelo foi adotado pelo astrônomo inglês Norman Pogson que criou outro mais preciso para determinação de brilhos estelares. Utilizando suas medidas e as de Herschel, Pogson concluiu que uma estrela de 1a magnitude brilhava cerca de 100 vezes mais do que uma estrela de 6a magnitude. Então, definiu que uma diferença de 5 magnitudes representava uma razão de brilho de 100 para 1, o que permite relacionar a magnitude a uma diferença de brilho correspondente à raiz quinta de 100, algo próximo de 2,5. Com isso, conclui-se que a diferença entre os números que expressam a magnitude de duas estrelas é proporcional ao logaritmo do quociente de suas respectivas luminosidades L1 e L2, podendo ser calculado pela expressão: L M2 – M1 = 2,5 log10 —2 L1 Com essa fórmula é possível comparar o brilho (luminosidade) de várias estrelas ou qualquer corpo celeste. A escala de magnitude resultante é logarítmica, de acordo com os estudos de Fechner e Weber. Essa “coincidência”, ou melhor, coerência com os demais conhecimentos científicos desenvolvidos na época, conferia à escala maior credibilidade no meio científico. Converse com a turma sobre a importância de uma teoria estar de acordo com as outras teorias científicas de


Nome da estrela Magnitude aparente

Objeto

sua época para que seja aceita. Comente sobre as dificuldades encontradas por Einstein, Copérnico e Galileu. Transponha o assunto para o mundo moderno: pergunte aos alunos se eles ouviram falar de hipóteses que consideram o aquecimento global um fenômeno natural, cíclico, e não um produto da emissão acentuada de gás carbônico, como em geral é propagado pela mídia.

No entanto, para comparar a luminosidade das estrelas e responder à questão inicial – o Sol é tão brilhante quanto parece ser? –, precisamos considerar a magnitude absoluta, que corresponde à magnitude (e, portanto, à luminosidade) que as estrelas teriam se estivessem todas à mesma distância da Terra. Comente que a potência luminosa ou luminosidade (L) de uma estrela (ou de uma fonte luminosa qualquer) pode ser definida pela relação entre a energia luminosa (E) que ela irradia e o tempo (Dt) gasto para irradiar tal energia.

E L =— , medida em lúmen(lm) ∆t Por ser absoluta, essa grandeza é mais importante que sua magnitude aparente. Já o fluxo luminoso (ϕ) ou intensidade luminosa de uma estrela (ou qualquer fonte de luz) é definido como a quantidade de radiação que ela emite na unidade de tempo e que atravessa perpendicularmente uma área unitária. O fluxo é medido em W/m2 ou lux (lx). Se assumirmos que a es-

Sol

- 26,72

4,80

Distância da Terra (em anos-luz) 0,000016

Sol

- 26

Sírius

- 1,46

1,40

Cometas

- 18

Canopus

- 0,72

- 2,50

Lua cheia

- 12

Rigel Kentaurus

- 0,27

4,40

Quarto crescente

- 10

Arturus

- 0,04

0,20

34

Vênus no máximo

- 4

Vega

+ 0,03

0,60

25

Júpiter no máximo

- 4

Capella

+ 0,08

0,40

41

Sirius

- 1

Rigel

+ 0,12

- 8,10

900

Vega

0

Betelgeuse

+ 0,70

- 7,20

1 500

Altair

+ 0,77

2,30

16

Polaris

+ 2

8,60 74 4,30

TABELA 2 – FONTE: OBSERVATÓRIO NACIONAL

TABELA 1

Peça, então, que a turma utilize a tabela 1 e a equação para determinar quantas vezes Júpiter (no máximo de brilho) e a estrela Polaris são mais luminosas que Vega, a estrela tomada como padrão. (Note que a magnitude dessa estrela é zero, o que não significa que ela não tenha brilho!). Qual brilha mais, Polaris ou Júpiter? (ver tabela 1)

Magnitude Magnitude aparente absoluta

trela emite energia de forma homogênea em todas as direções com simetria esférica, ou seja, a luz atravessa a superfície de uma esfera, então, o fluxo será dado por:

ϕ=

L 4. π.r 2

Pode-se concluir, assim, que o brilho de uma estrela decai com o quadrado da distância ao observador. Assim, ao comparar duas estrelas idênticas, desprezando efeitos de absorção interestelar, uma estrela duas vezes mais distante que outra terá seu brilho quatro vezes menor. Definindo-se uma distância padrão de 10 parsecs, podemos escrever que a luminosodade absoluta seria L= ϕ . 4 . π . 10 2 (A unidade de medida parsec (pc) é a contração das palavras inglesas “paralax” e “second”, definida como a distância de um objeto cuja paralaxe anual média vale um segundo de arco (1”) e equivale a 3,26 anos luz.) Substituindo o valor da luminosidade absoluta na equação da luminosidade aparente podemos escrever que: m – M = 5 . log10 r – 5, em que m é a magnitude aparente da estrela, M é sua magnitude absoluta e r é a distância dela até nós. Dessa forma é possível determinar a magnitude absoluta de uma estrela e compará-la, finalmente, com as outras. E uma vez determinada de alguma forma a magnitude absoluta de uma estrela, é possível calcular sua distância até nós.

Utilizando a lei de Stefan-Boltzmann (I = σ . T4 , em que σ = 5,7.10 –8 W/m2.K4 é a constante de Boltzmann) que relaciona a intensidade luminosa de uma fonte com a temperatura da mesma é possível, também, calcular a temperatura superficial da estrela. Peça, então, à turma que determine qual estrela é mais luminosa: O Sol, Sirius, Vega ou Polaris? Para tanto, assuma que as distâncias são, respectivamente, 8,6; 25 e 34 anos-luz. (lembre a turma de que é necessário converter as distâncias em parsecs!). Com base na tabela 2, discuta com a turma quais estrelas emitem mais ou menos luz. Compare a luminosidade do cometa com a das estrelas. Será que alguém da turma consegue estimar qual seria a magnitude absoluta do cometa? (ver tabela 2) Para finalizar a atividade, pensando aqui na Terra, em nosso dia a dia, como se compara o brilho ou a luminosidade das lâmpadas e de que ela depende? Aproveite para discutir as vantagens e desvantagens dos diferentes tipos de lâmpadas (o documento tipos de lâmpadas, disponível em http://www.iar. unicamp.br/lab/luz/ld/L%E2mpadas/ Fontes_Lumin.pdf, pode ajudar) e das comparações que são feitas. Como uma lâmpada de 45 W pode equivaler a outra de 75 W ou mais?

Roteiro sugerido por Gustavo Isaac Killner, professor de física do Colégio Santa Cruz, de São Paulo SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

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PARA OPROFESSOR PROFESSOR QUÍMICA

As (surpreendentes) alterações da tabela periódica PROPOSTAS PEDAGÓGICAS CONTEXTUALIZAÇÃO

O

artigo discute a descoberta de novos elementos produzidos em fusões nucleares realizadas em aceleradores de partículas. As propriedades relativas à periodicidade dos elementos superpesados que se formam em tais reações são estudadas a fim de confirmar um modelo de tabela idealizado há quase dois séculos. Por que e para que os cientistas “forçam” a descoberta de novos elementos? A resposta a tais questões está na história da química, em que homens como Döbe-

COMPETÊNCIAS E HABILIDADES SEGUNDO A MATRIZ DE REFERÊNCIA DO ENEM Ciências da natureza e suas tecnologias n Competência de área 1 H3 – Confrontar interpretações científicas com interpretações baseadas no senso comum, ao longo do tempo ou em diferentes culturas. n Competência de área 5 H17 – Relacionar informações apresentadas em diferentes formas de linguagem e representação usadas nas ciências físicas, químicas e biológicas, como texto discursivo, gráficos, tabelas, relações matemáticas ou linguagem simbólica. H19 – Avaliar métodos, processos ou procedimentos das ciências naturais que contribuam para diagnosticar ou solucionar problemas de ordem social, econômica ou ambiental. n Competência de área 7 H24 – Utilizar códigos e nomenclatura da química para caracterizar materiais, substâncias ou transformações químicas. H26 – Avaliar implicações sociais, ambientais e/ou econômicas na produção ou no consumo de recursos energéticos ou minerais, identificando transformações químicas ou de energia envolvidas nesses processos.

58 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

reiner, Chancourtois, Newlands, Meyer e Mendeleiev, que, cada um a sua maneira, confirmaram que nada na ciência está perfeitamente explicado ou acabado. O tema enseja uma pesquisa histórica por parte dos alunos e uma atividade lúdica referente à tabela periódica.

PROPOSTA DE ATIVIDADES

1

Oriente os alunos na leitura do artigo, assinalando os trechos mais importantes. Reserve um tempo para discutir as dúvidas que surgirem. Depois encarregue-os de uma pesquisa histórica de cada um dos nomes listados, o que pode ser feito em grupos, para apresentação em um breve seminário, em que serão apresentadas as principais ideias de cada cientista. Para tanto, ofereça alguns subsídios: Johann Wolfgang Döbereiner visualizou, a partir das propriedades comuns dos elementos, até então conhecidos, que a massa do elemento central era média aritmética dos elementos das extremidades. Ele organizou os elementos em tríades, que passaram praticamente despercebidas. Seu mérito foi ter sido o primeiro a mostrar um modelo para organizar os elementos, que seria a primeira tabela periódica. A ineficiência das Tríades de Döbereiner para explicar um grande número de elementos alimentou o francês Alexandre-Émile Béguyer de Chancourtois, que su-

geriu um novo modelo. Um cilindro pelo qual “corria” uma raia, traçada sob um angulo de 45º com a face superior do cilindro. Os elementos eram dispostos segundo a ordem crescente de suas massas atômicas e aqueles que possuíssem propriedades semelhantes ficariam sob uma mesma linha vertical imaginária. O parafuso telúrico de Chancourtois foi sucedido, por sua vez, pelo modelo criado pelo inglês John Alexander Reina Newlands, um conceituado cientista amante da música. Newlands visualizou a repetição de propriedades a cada conjunto de sete elementos, como ocorria com as notas musicais – na época ainda não se conheciam os gases nobres. Porém, não viu seu trabalho valorizado; ao contrário, foi ridicularizado pela comparação. No entanto, com as “Oitavas de Newlands” foi introduzido de forma definitiva o conceito de periodicidade. O maior passo em direção à tabela atual foi dado pelo alemão Julius Lothar Meyer


e pelo russo Dimitri Ivanovitch Mendeleiev, que, em trabalhos independentes, entenderam a mensagem deixada pelo músico antecessor e modelaram uma nova ideia de classificação periódica. O russo, porém, estava um pouco à frente do seu tempo: visualizou a possibilidade de expansão e novas descobertas, deixando espaços vazios no interior de sua tabela e nas partes terminais, afirmando que estes elementos, cedo ou tarde, seriam descobertos. Organizou os elementos até então conhecidos, em ordem crescente de massas atômicas e ainda em vida viu algumas de suas sugestões serem confirmadas. A organização em ordem crescente de números atômicos (identidade dos átomos), como é a lei periódica atual, veio com o trabalho do Inglês Henry Gwyn Jeffreys Moseley, e daí para a frente promoveram-se diversas atualizações, modificações e modelos mais modernos – como o sugerido por Paul Giguère, que além de relacionar as propriedades e respeitar a periodicidade, mostra também os orbitais preenchidos pelos elétrons no subnível mais energético – ou a tabela em espiral, como proposta por Philip Stewart. Os alunos devem perceber que todos os modelos apresentam em comum o respeito pelo grupo (família periódica), que é também a preocupação maior dos cientistas atuais sobre os novos elementos descobertos. Isso se deve ao fato de que esses grupos permitem a organização dos elementos químicos e orientam a variação de diversas propriedades deles.

ALHOVIK/SHUTTERSTOCK

2

Proponha uma atividade para aula dupla (cerca de 90 minutos).

Trata-se de construir uma tabela na forma de quebra-cabeça, com dimensões de aproximadamente 1,20 m x 2,00 m e com 80 peças no mínimo

Separe a turma em equipes com quatro pessoas no máximo; cada equipe terá 60 minutos para desenvolver seu trabalho, ou seja, construir sua tabela. a) Providencie o seguinte material: O modelo de tabela, papel-madeira (as escolas costumam ter esse material em rolo na sala de artes), caixa de lápis de cor (ou giz de cera), caixa de lápis hidrocor (ou semelhante), cola, régua grande, folha de isopor e estilete. b) Oriente os grupos a montar uma legenda para fazer os seguintes destaques na tabela:

Em primeiro lugar, devem desenhar a tabela no papel-madeira, pintar, destacar e colar no isopor (a ordem pode interferir no desempenho).

Escrever os símbolos dos elementos do mesmo grupo da tabela com a mesma cor

Fazer o molde de encaixe (“chave-fechadura”) para as peças.

Pintar cada quadro destacando o grande grupo (metal, ametal, semimetal, hidrogênio e gás nobre).

Cortar as peças.

Colocar, no mínimo, número de massa e número atômico em cada elemento. Evitar peças em branco para facilitar a montagem. c) Acompanhe a confecção do quebracabeça.

d) Conclua sugerindo que os grupos troquem as tabelas e determinando 20 minutos para a montagem. Ao final discuta com a turma o aproveitamento que tiveram com o trabalho, ressaltando que a construção do conhecimento, em lugar da “decoreba”, é e sempre será a melhor forma de aprender.

SUGESTÕES DE SITES E LIVROS A tabela periódica. Primo Levi. Editora Relume Dumara, 2003. Os elementos – Uma exploração visual os átomos conhecidos do universo. Theodore Gray. Editora Blucher, 2011. www.iupac.org www.tabelaperiodicacompleta.com/‎

Roteiro elaborado por Otavio Santos Jr, mestre em tecnologia ambiental pelo instituto de Tecnologia de Pernambuco ITEP/OS, professor do curso de licenciatura em química do IFPE – Campus Vitória de Santo Antão.

SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

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PARA OPROFESSOR PROFESSOR BIOLOGIA

Quando os animais incorporam o luto PROPOSTAS PEDAGÓGICAS CONTEXTUALIZAÇÃO

O

tema pode ser contextualizado em dois campos da biologia. No âmbito das aulas sobre evolução quando se discutem adaptações comportamentais e no âmbito da neurofisiologia quando se aborda a evolução do cérebro. Abordagem evolutiva liga os dois contextos e será o fio condutor desta proposta pedagógica. O comportamento animal pode ser estudado como uma característica biológica como qualquer outra. A investigação do comportamento remonta ao século 19 nos estudos de Charles Darwin, como no livro A expressão das emoções nos homens e nos animais, de 1872. No século 20, a tradição do estudo do comportamento ganhou vários seguidores, dentre os quais Konrad Lorenz, Niko Timbergen e outros, reunidos em uma nova disciplina das ciências biológicas chamada etologia. Esse campo da biologia aborda o comportamento no âmbito evolutivo e assim procura interpretá-lo do ponto de vista adaptativo. O comportamento seria resultado, em última análise, de processos evolutivos – uma estratégia de sobrevivência sujeita à seleção natural. Dessa forma há um interesse na

abordagem filogenética do comportamento. Por exemplo, nos mamíferos e nas aves, o cuidado com a prole. Qual seria um padrão tipicamente mamífero e quais seriam os órgãos e mecanismos envolvidos? E nas aves? Quais são os padrões? Existem analogias, convergências entre os dois grupos? Como ter certeza de que o comportamento, embora seja semelhante, não seria produzido por estruturas físicas diferentes tendo em vista o cérebro desses animais? No artigo Como os animais incorporam o luto, a autora trata de uma reação emotiva em relação a uma perda. Para isso lança mão de uma série de exemplos, todos eles dentro do grupo dos mamíferos, e trata o comportamento de luto como uma característica comum a vários mamíferos. Ela assume que é possível comparar o luto entre os animais com o luto observado nos humanos. Esse artigo nos coloca diante de questões metodológicas e conceituais envolvendo o estudo do comportamento que podem ser exploradas nas propostas pedagógicas.

COMPETÊNCIAS E HABILIDADES SEGUNDO A MATRIZ DE REFERÊNCIA DO ENEM n Competência de área 4 H14 – Identificar padrões em fenômenos e processos vitais dos organismos, como manutenção do equilíbrio interno, defesa, relações com o ambiente, sexualidade, entre outros. H15 – Interpretar modelos e experimentos para explicar fenômenos ou processos biológicos em qualquer nível de organização dos sistemas biológicos. 60 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

H16 – Compreender o papel da evolução na produção de padrões, processos biológicos ou na organização taxonômica dos seres vivos. n Competência de área 8 H28 – Associar características adaptativas dos organismos com seu modo de vida ou com seus limites de distribuição em diferentes ambientes, em especial em ambientes brasileiros.

PROPOSTA DE ATIVIDADES

1

Uma das questões suscitadas no texto seria como avaliar de maneira objetiva se de fato o animal está sentindo algo semelhante ao ser humano. Habitualmente chega-se a essa conclusão pela observação do comportamento, o que tem suas limitações, pois a linguagem do animais não é facilmente decifrável. Alguns cientistas investigaram o substrato neural das emoções. A ideia é comparar o substrato neural das emoções do cérebro humano com o dos animais. Foi o que fez o neurocientista Gregory Berns. Ele treinou cães para submetê-los a uma ressonância magnética e mapeou-lhes o cérebro sem nenhuma interferência de drogas ou algum condicionamento negativo que os mantivessem quietos durante o procedimento. Os cães mantinham-se na máquina quietos porque queriam. Assim Berns obteve vários mapas de atividade cerebral canina. Apesar da dificuldade decorrente da enorme complexidade da forma como as diferentes partes do cérebro estão ligadas umas às outras difi-


cultando associar cognição/emoção a uma única área determinada do cérebro, o neurocientista obteve resultados muito promissores em uma região do sistema límbico chamada núcleo caudado (ver figura). Partes específicas se destacam por sua ativação consistente para muitas coisas que dizem respeito a várias emoções humanas. Seus

resultados mostraram, de modo similar, uma grande atividade do núcleo caudado em cães para diversos estímulos tidos como emocionantes para eles. Encomende um trabalho para os alunos no qual eles devem pesquisar imagens do cérebro em vários mamíferos, particularmente o sistema límbico, procurando evidenciar o núcleo caudado. A ideia é ter uma noção de um bom número de mamíferos que seria capaz de sentir emoções. Oriente-os a pesquisar por ordens, como roedores, primatas carnívoros. Uma parte dos alunos poderia fazer a mesma pesquisa em cérebro de aves. A ideia é discutir a capacidade dos animais de sentir emoções tomando como base a existência de equipamento neural para isso.

2

A observação do comportamento animal ainda é uma ferramen-

Esquema do cérebro humano mostra em detalhe estruturas do sistema límbico, em particular o núcleo caudado (em roxo)

Putâmen

Globo pálido (parte lateral)

Núcleo caudado,

Tálamo

Núcleo subtalâmico

ta importante. Comente que a questão do luto nos animais pode ser abordada do ponto de vista da observação de animais que vivem em grupos. Parte-se do princípio de que as ligações geradas pela convivência podem desempenhar papel relevante na manutenção da integridade do grupo. Ao mesmo tempo, podem-se pesquisar espécies que não são necessariamente sociais mas apresentam fortes associações entre os parceiros sexuais; por fim, situações em que o cuidado com a prole é significativo. Esclareça que, objetivamente, são situações em que há laços de convivência expressivos. Entretanto, qualificar esses casos como ligações emocionais é um passo seguinte, que é o da interpretação do comportamento. O que esse forte laço suscita? O que a linguagem conhecida do animal nos mostra? Feita essa introdução, divida a classe em três grandes grupos de trabalho: espécies sociais, casais e cuidado com a prole. Cada grupo poderá ser dividido em grupos menores dedicados a diferentes espécies de vertebrados. Peça-lhes que colham dados na literatura sobre o comportamento desses animais. Os dados serão organizados e trazidos para uma exposição de resultados e um debate. O debate terá como objetivo a discussão sobre até que ponto os dados de observação de comportamento nos permitem interpretá-los como nitidamente emocionais.

Globo pálido (parte medial)

ERIKA ONODERA

Substância negra

SUGESTÃO DE LEITURAS Emoções nos animais: uma ponte para a ética. Tânia Regina Vizachri. 2010. http://www.ime.usp.br/~chico/ tania_quandooselefantes.pdf Revista de Etologia. Sociedade Brasileira de Etologia. http:// pepsic.bvsalud.org/scielo. php?script=sci_serial&pid=1517-2805&lng=pt&nrm=iso

Roteiro sugerido por Ricardo Paiva, professor de biologia do Colégio Santa Cruz, São Paulo. SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

61


PARA OPROFESSOR PROFESSOR MATEMÁTICA

Óptica e realismo na arte renascentista PROPOSTAS PEDAGÓGICAS CONTEXTUALIZAÇÃO

O

artigo de David G. Stork discorre sobre conceitos e procedimentos do Renascimento que permitem um trabalho unindo a matemática com a arte, a história e as ciências. Os humanistas desse período defendiam a ideia de que

o homem podia ter conhecimento sobre tudo. Diversos artistas nessa época utilizaram em seus trabalhos conhecimentos de matemática, artes, ciências, filosofia e física, o que se adapta ao que hoje chamamos de interdisciplinaridade.

PROPOSTA DE ATIVIDADES As atividades práticas aqui sugeridas têm por objetivo desenvolver os conceitos que permeiam o artigo. Distribua cópias do texto aos alunos para que leiam e apontem suas dúvidas. Sugira que após a leitura pesquisem sobre o Renascimento, o que pode ser feito em grupos, cada um incumbido de diferentes áreas do conhecimento: matemática, física, biologia, artes, filosofia, história. O objetivo inicial dessa pesquisa é fazer os alunos perceberem a ligação entre as áreas do conhecimento e como

elas, em especial a matemática, se fundem em uma obra de arte. As atividades práticas potencializam o ensino, pois em geral, ao vivenciar um experimento, eles compreendem melhor os conceitos, e sua aprendizagem será significativa. Ressalte que, no Renascimento, os pintores perceberam o importante papel da geometria como ferramenta para obter a perspectiva óptica, que confere a ilusão de profundidade. A perspectiva permitiu a elaboração de figuras

COMPETÊNCIAS E HABILIDADES SEGUNDO A MATRIZ DE REFERÊNCIA DO ENEM HABILIDADES ENVOLVIDAS – Matemática e suas tecnologias. n Competência de área 1 H3 – Resolver situação-problema envolvendo conhecimentos numéricos. n Competência de área 2 H6 – Interpretar a localização e a movimentação de pessoas/objetos no espaço tridimensional e sua representação no espaço bidimensional. H7 – Identificar características de figuras planas e espaciais. H8 – Resolver situação-problema que envolva conhecimentos geométricos de espaço e forma. H9 – Utilizar conhecimentos geométricos de espaço e forma na seleção de argumentos propostos como solução de problemas do cotidiano. n Competência de área 3 H11 – Utilizar a noção de escalas na leitura de representação de situação do cotidiano. H12 – Resolver situação-problema que envolva medidas de grandezas.

62 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

H13 – Avaliar o resultado de uma medição na construção de um argumento consistente. H14 – Avaliar proposta de intervenção na realidade utilizando conhecimentos geométricos relacionados a grandezas e medidas. n Competência de área 4 H15 – Identificar a relação de dependência entre grandezas. H16 – Resolver situação-problema envolvendo a variação de grandezas, direta ou inversamente proporcionais. H17 – Analisar informações envolvendo a variação de grandezas como recurso para a construção de argumentação. n Competência de área 5 H22 – Utilizar conhecimentos algébricos/ geométricos como recurso para a construção de argumentação. H23 – Avaliar propostas de intervenção na realidade utilizando conhecimentos algébricos.

mais sólidas e humanas, em cenários mais definidos e concretos. As obras de Jan van Eyck, do inicio do Renascimento, baseiam-se na observação fiel da realidade e na experiência. Eram impregnadas de cores vivas e caracterizadas por precisão na textura e representação tridimensional, ou seja, em perspectiva. Com as tintas a óleo de secagem rápida, de sua própria criação, ele realçava a profundidade e as sombras mesmo nas zonas onde mais incidia a luz, o que pode ser considerado uma iniciação ao realismo. Trabalho com projeção. Por meio de um espelho côncavo, os alunos podem tentar reproduzir a ideia que levou Hockney a fazer tal pesquisa, ou seja, iluminar um objeto à luz do sol (no pátio da escola) e apontar o espelho para ele projetando uma imagem real invertida sobre uma tela ou um painel de madeira. Oriente os alunos a registrar fotograficamente todo o processo e desenhaar a situação real apresentando os cálculos das distâncias focal e do objeto ao espelho e a partir do


ras geométricas regulares e irregulares – e também algumas figuras não geométricas – para analisar as linhas de simetria. • régua • transferidor • compasso • dois espelhos pequenos Após a observação das figuras com o espelho, os alunos devem desenhar, em cada uma, as linhas de simetria que encontrarem.

espelho determinar o raio da esfera da qual ele foi formado (seguir o esquema apresentado no artigo). Explorando os espelhos Peça aos alunos que, em grupos, façam pesquisas sobre espelhos planos, côncavos e convexos e explorem suas diferenças e aplicações. Por exemplo: o espelho plano reflete a imagem no tamanho real, o espelho côncavo serve para ampliar a visão e o espelho convexo amplia o campo de visão. Ao falar em espelhos nos referimos a conceitos como plano, côncavo, convexo, reflexão, simetria, ângulos, imagem virtual, distância focal. Simetrias. O objetivo é estudar linhas de simetria e polígonos regulares. Explique que o eixo de simetria de uma figura plana é a reta que corta a figura de tal modo que cada parte é exatamente igual à outra. Esse conceito, bastante presente na natureza, é utilizado na física, na biologia, na arte, na literatura. Material necessário para o experimento: • quadrados de cartolina com figu-

Pesquisa de obras A análise de obras de arte permite a familiarização dos estudantes com o artista e sua obra ao mesmo tempo que examinam os conceitos matemáticos envolvidos na sua produção. Nas obras abaixo apresentadas pode-se trabalhar óptica geométrica nos desenhos de Escher, perspectiva na obra de Dürer e proporção no quadro de Da Vinci. Além da análise, eles podem tentar reproduzir as obras dos autores de maneira prática, ou seja, segurando uma esfera que reflita sua imagem e a do ambiente. Oriente-os a elaborar o desenho mostrando o olho do observador, o raio, a linha de terra, a linha do horizonte e o ponto de fuga principal, ou seja, usando perspectiva. E ainda a fazer a reprodução do Homem Vitruviano tendo como base os colegas – para isso terão de medi-los. a) Mão com esfera refletora, de Escher: Mão real, sua imagem e o espaço refletidos numa esfera se tocam. Disponível em: http://www.educ.fc.ul. pt/docentes/opombo/seminario/escher/ esfera.html b) Sportello, de Dürer: a xilografia mostra como é criado um desenho em perspectiva por meio de uma projeção. Quando observamos uma linha de

trem, temos a impressão de que as duas linhas do trilho se unem no final e se tocam, onde nossa vista alcança. A esse efeito chamamos de perspectiva (ver através de): a percepção visual de um espaço por meio de linhas paralelas que convergem a um ponto, o ponto de fuga. Disponível em: http://www.macchinematematiche.org/cataoghi/occhioemano/catalogoweb/approfondimenti/ Sportello.pdf c) O Homem Vitruviano de Da Vinci: este desenho é baseado em escritos do arquiteto romano Marcus Vitruvius Pollio nos quais ele descreve as proporções do corpo masculino. Leonardo da Vinci fencaixou perfeitamente seu desenho dentro de um quadrado e de um círculo que têm a mesma área. Nestas proporções é possível encontrar o número irracional w (aproximadamente 1,618). Usando conceitos estudados. Para finalizar, proponha algumas questões do Enem e de vestibular que envolvam geometria (incluindo óptica geométrica) e proporções a fim de observar o aproveitamento da turma. SUGESTÕES DE LEITURA Uma história da simetria na Matemática. Ian Stewart. Zahar, 2012. A matemática e a Mona Lisa: a confluência da arte com a ciência. Bulent Atalay. Mercuryo, 2007. Matemática – A ciência dos padrões. Keith Devlin. Porto editora, 2002. Os números da natureza. Ian Stewart. Rocco, 1996. História da matemática. Carl B. Boyer. Edgard Blücher, 1996 O poder dos limites: harmonias e proporções na natureza, arte e arquitetura. György Doczi. Mercuryo, 1990.

Roteiro sugerido por Mercedes Matte da Silva, professora da Universidade Feevale em Novo Hamburgo, – RS. É licenciada em matemática e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática pela PUCRS. SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

63


PARA OPROFESSOR PROFESSOR GEOGRAFIA

Os melhores países do mundo em ciência PROPOSTAS PEDAGÓGICAS CONTEXTUALIZAÇÃO

PROPOSTA DE ATIVIDADES

E

Temos como suposto que o poderio econômico de ambos os países está vinculado ao comércio mundial; por isso, vale a pena não só compará-los entre si (e também com outros países) para identificar seus diferenciais em contexto, como também recuperar o velho conceito originário da economia clássica (David Ricardo), o de vantagens comparativas.

m um contexto em que a economia em escala mundial está crescendo, os bens produzidos, tanto em países que têm vantagens comparativas como nos que não as têm tanto, terminam sendo escoados no fluxo do comércio mundial. O crescimento econômico pode ser mais ou menos geral. Porém, se o contexto se inverte, aqueles países que têm diferenciais favoráveis podem ainda se manter crescendo, enquanto a crise afeta mais duramente os menos eficientes. Mesmo assim, se a crise é grave, como a atual, o crescimento que ainda resiste em alguns países pode encontrar seus limites. Daí o peso das questões que intitulam os dois artigos da Aula Aberta referentes à Alemanha e à China. CINGAPURA 2,6

ISRAEL 2,6

SUÉCIA 2,5

TAIWAN 3,1

BÉLGICA 1,9

ÍNDIA

DO

3,2

DINAMARCA 1,5

HOLANDA

BRASIL

1,4

4,0

1,2 FEDERAÇÃO RUSSA 1,3

HONG KONG 1,3

AUSTRÁLIA 4,4

SUÍÇA

CANADÁ

4,9

8,3

COREIA DO SUL

A Alemanha mantém-se como pujança econômica em razão de seu produto industrial ser caracterizado por alta tecnologia, portanto seu diferencial é a produtividade. Por sua vez, a China tem como diferencial a possibilidade de usar muito trabalho humano direto de baixo custo, muita imitação, atingindo uma escala produtiva enorme, mas que vem se preocupando muito com o aumento da produtividade, com investimentos em ciência e tecnologia.

FINLÂNDIA 1,0

ÁUSTRIA

NÇA 7

Vantagens comparativas

A questão nova para a China é buscar aumentar sua produtividade para continuar avançando. Pelo teor dos artigos, os dois países estão sendo bem-sucedidos nos caminhos que estão trilhando, embora a China deva ainda melhorar

ESPANHA 5,5

COMPETÊNCIAS E HABILIDADES SEGUNDO A MATRIZ DE REFERÊNCIA DO ENEM 6,7

ITÁLIA 6,1

n Competência de área 2 H7 – Identificar os significados histórico-geográficos das relações de poder entre as nações.

H18 – Analisar diferentes processos de produção ou circulação de riquezas e suas implicações socioespaciais.

n Competência de área 3 H14 – Comparar diferentes pontos de vista, presentes em textos analíticos e interpretativos, sobre situação ou fatos de natureza histórico-geográfica acerca das instituições sociais, políticas e econômicas.

H20 – Selecionar argumentos favoráveis ou contrários às modificações impostas pelas novas tecnologias à vida social e ao mundo do trabalho.

n Competência de área 4 H16 – Identificar registros sobre o papel das técnicas e tecnologias na organização do trabalho e/ou da vida social.

n Competência de área 6 H28 – Relacionar o uso das tecnologias com os impactos sociombientais em diferentes contextos histórico-geográficos.

64 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

n Competência de área 5 H23 – Analisar a importância dos valores éticos na estruturação política das sociedades.

muito no que diz respeito à associação da pesquisa com o sistema universitário. A questão que vale a pena explorar nesse item é a discussão das vantagens comparativas em si. Até que ponto no quadro do comércio mundial as vantagens comparativas podem ser exercidas? O mercado mundial não é uma entidade que simplesmente responde à eficiência de alguns produtores e abandona outros. É óbvio, mas é preciso lembrar: todos precisam vender para poder comprar. Isso quer dizer que vantagens comparativas excessivas de alguns países podem sufocar a economia dos outros e desequilibrar o próprio mercado. A sugestão aqui é pensar no caso da crise europeia atual (especialmente na chamada zona do euro) e pesar qual a responsabilidade dessa força produtiva incrível da Alemanha. Países como Espanha, Portugal, Grécia, Itália e até mesmo a França vivem uma situação de baixíssimo crescimento (até crescimento negativo), com muito desemprego, rebaixamento de salários etc. Ora, o crescimento alemão recente foi obtido sobretudo no mercado da União Europeia. A questão é que a produtividade dos países da UE era inferior à da Alemanha, pois com menores aportes tecnológicos e condições trabalhistas generosas eles não podiam competir com o poderio alemão. Duas coisas têm de ser destacadas: 1. Esses países acumularam déficits comerciais grandes com a Alemanha; 2. Suas empresas declinaram e o desemprego cresceu. Ruim para esses países, mas também para Alemanha, afinal eles escoavam parte da produção alemã. E se não “fossem irresponsáveis” antes, não teriam sustentado o crescimento alemão. Por enquanto os empregos ainda crescem na Alemanha,


graças à demanda global das exportações, mas até quando? O raciocínio sobre esse encadeamento pode ser aplicado, em outra escala, à presença da China no mercado mundial. Uma proposta interessante seria verificar quantos ramos industriais no Brasil, além de calçados e brinquedos, foram sufocados pelas “vantagens comparativas” da China. Como superar as vantagens comparativas da China? E como a China vai permanecer crescendo se suas vantagens comparativas continuarem a sufocar outras economias? A vantagem da China (assim como dos EUA e mesmo do Brasil) é ter potencial de mercado próprio bem maior que a Alemanha, o que vai fazê-la depender cada vez mais do mundo e dos vizinhos diretamente. Comparação com o Brasil A força alemã na economia global pode servir para demonstrar a importância da criação de um sistema próprio de produção e desenvolvimento. E também de inserção no quadro mais geral. O investimento é em criação, em produtividade, cuidando até para que suas conquistas não sejam facilmente imitadas. E como a Alemanha pôs em práticas ideias que funcionaram? Criando um sistema que integra de maneira jamais vista (com intercâmbios constantes) as universidades, os institutos nacionais de pesquisa e as empresas. Há inclusive ações que visam organizar geograficamente, estimulando as empresas regionais dos países a se especializarem. Interessante, criativo e inteligente, mas pouco praticado em outros países do mundo. E aqui valem algumas comparações para refletirmos sobre as possibilidades de esse sistema ser repetido (mesmo que parcialmente) na China ou no Brasil. No caso da China, o artigo já faz algumas comparações entre o sistema universitário chinês e o mode-

lo ocidental, que atinge seu auge na Alemanha, mas há outros elementos interessantes. Por exemplo: o sistema industrial chinês é uma combinação de empresas chinesas vinculadas ao Estado e outras da iniciativa privada, mas há uma avalanche de empresas ocidentais ingressando nesse sistema para aproveitar as vantagens comparativas da China, que não são propriamente as tecnológicas. Transnacionais no campo da informática, do equipamento esportivo que produzem na China produzem autonomamente sua própria tecnologia. Essa não é uma questão importante que devemos considerar? O papel das transnacionais e seu controle das tecnologias, com sua capacidade própria de produzir pesquisa? Afinal elas compõem o que nós chamamos de sistema produtivo dos países. No caso do Brasil, isso é mais flagrante: como poderíamos associar pesquisa das universidades com uma estrutura industrial, cuja vanguarda é predominantemente transnacional? Se isso fosse feito estaríamos gastando capital e pesquisa em empresas poderosas sem “compromisso” nacional; se, por outro lado, investíssemos apenas nas empresas nacionais, isso seria visto como contraproducente. Voltemos a olhar o sistema alemão: as empresas envolvidas no processo descrito de desenvolvimento tecnológico são de origem alemã, muitas são transnacionais, mas daquelas que guardam compromissos com suas origens. Ao menos, parece coerente associar essas empresas e o sistema industrial na escala nacional, para depois pensar nas relações com o global. No caso da China, isso é possível em alguma medida, mas e no do Brasil: nosso sistema industrial é nacional, ou parte de um sistema mundial que se instala por aqui segundo seus interesses? Seria possível pensar num sistema próprio que reúna nossos recursos num projeto coerente de escala nacional? Afinal, a Alemanha (e a China nalguma medida) está ou não envolvi-

da num projeto nacional, nesse mundo global? O estranho é que muitas análises correntes no Brasil desprezam, por ser superada, qualquer discussão nessa direção. Ao contrário, propõem adequações ao mercado, à dinâmica mundial. Enquanto ficamos preocupados em adaptar nossas universidades a rankings internacionais a Alemanha está bem colocada nesses rankings, porque seu sistema próprio ajuda a impor mudanças nos critérios de rankings. Em suma as atividades sugeridas aqui podem ser descritas como: 1. Refletir sobre a questão das vantagens comparativas de alguns países no mercado mundial contemporâneo, seus motivos e a importância de elas não desequilibrarem outros mercados. Alemanha e China, com o sucesso obtido, estão protagonizando também insucessos e desequilíbrio nos mercados, algo que poderá se voltar contra esses países, embora o mundo e as relações econômicas sejam muito complexas para prever tudo o que pode acontecer. Mas, nesse assunto, vale a pena manter essas preocupações e análises. 2. Refletir sobre e analisar as condições próprias de cada país e as possibilidades para construir sistemas próprios e eficientes é crucial, para dar solo mais real às discussões quando o assunto é o desenvolvimento e o bem-estar das diversas populações mundiais.

SUGESTÕES DE SITE Centro de Tecnologia Mineral do MCTecnologia – Halita www.cetem.gov.br/ publicacao/CTs/CT2008-177-00.pdf Sal para consumo humano – www.inmetro.gov.br/consumidor/produtos/sal2.asp SUGESTÕES DE VÍDEO Como tudo funciona – Sal www.youtube.com/watch?v=pQAdYA4ABa0 Carne-seca www.youtube.com/ watch?v=QnUNHRs9JxY

Atividades sugeridas por: Jaime Tadeu Oliva, geógrafo, professor e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo. SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

65


LIVROS FICÇÃO CIENTÍFICA

P

ara começo de conversa faz sentido dizer que esta edição de Dick pela Aleph é uma justiça que se faz com o autor se comparada à edição anterior, de 1986, pela Brasiliense, com o título óbvio e injustificado de Identidade perdida. Até porque Fluam, minhas lágrimas, disse o policial (Flow my tears, the policeman said), além de mais enigmático e, neste sentido, corresponder inteiramente à história, é o que o autor escolheu. Identidade perdida, como preferiu a edição anterior, é uma adaptação arbitrária e facilitadora que não reflete a complexidade de Dick. O que temos aqui é um escritor absolutamente fascinante que transpôs para a literatura seu próprio universo pessoal, possivelmente como forma de expiação, o que em nada compromete seu enorme talento. Talvez se possa dizer que essa transposição seja mesmo uma “função” da literatura. Quando nada mais faz sentido a literatura ilumina as trevas, desvenda os labirintos, devolve um sentido de estética e oferece uma razão misteriosa e profunda para a vida. Publicar esta distopia de Philip Kindred Dick (16/12/1928, Chicago – 2/3/1982, Santa Ana, Califórnia) com o título original talvez seja também uma evidência da respeitabilidade que o gênero ficção científica começa a reconquistar no Brasil, depois de uma rarefação desalentadora que, de certa maneira, corresponde ao período de obscurantismo político deflagrado pelo golpe militar de 1964. Por que a rarefação do gênero ficção científica perderia alento em um regime autoritário? pode-se questionar. Porque a literatura em si é subversiva e a ficção científica é uma via poderosa de denúncia de absurdos que, em determinados contextos, podem ser socialmente interpretados como a normalidade mais banal. O bordão fascista “ame ou deixe-o” colado no 66 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL AULA ABERTA

para-brisa de automóveis é um eco perturbador desse tempo terrível. A literatura é subversiva, sim, mas não no sentido terrorista interpretado pelo regime dos generais. Ela subverte enquanto criação e crítica, como ocorre com outras formas de arte, mas com a sonoridade da palavra, musicalidade produzida pelo corpo humano. Em uma sociedade marcada pelo legado escravista ainda longe de extirpado, como se referiu Joaquim Nabuco em O abolicionismo, o que ainda faz o gosto dominante, com direito a influenciar as soap operas, de consumo de massa, as quase sempre odiosas telenovelas, é o romanção social. Certamente não é por acaso que sociedades conservadoras, distanciadas da produção de ciência, historicamente tenham permanecido alheias à ficção científica. De qualquer maneira, em Philip K. Dick, o foco da narrativa invariavelmente tenta iluminar o “real” e por isso mesmo reflete o que costumamos nos referir como identidade pessoal. Talvez a maior parte das pessoas viva inteiramente suas vidas sem, um único dia, refletir sobre esse poderoso estranhamento: o real ou, como quase sempre nos referimos, à realidade. Confinados a um mínimo de possibilidade crítica acabamos vítimas de toda sorte de impostura e alienação, entre elas a sensação de que, mesmo assim, podemos ser felizes. Podemos? Em Fluam, minhas lágrimas, disse o policial, Dick vai às últimas consequências na exploração da realidade/identidade pessoal numa sociedade policialesca. Tudo começa quando um certo Jason Taverner, famoso apresentador de televisão, acorda, sem qualquer explicação, sozinho num quarto de hotel. O que aconteceu? Bem, esse é o núcleo da trama.

FLUAM, MINHAS LÁGRIMAS, DISSE O POLICIAL Philip K. Dick. Aleph. 255 págs. 2012. R$ 46,00.

Ele pede então à recepcionista que aponte alguém capaz de lhe fornecer documentos falsos sem o que não pode ter trânsito numa sociedade que sabe ser vigiada nos mínimos movimentos. Kathy Nelson, a falsificadora de documentos, é, não por acaso, uma informante policial, um “ganso” como se diz na linguagem policial. Em troca de uma duvidosa promessa policial de que um dia libertarão seu marido, confinado a um campo de trabalhos forçados, ela entrega à polícia foragidos que não lhe são simpáticos. No livro, que saiu em 1974, críticos identificam na obra a leitura de Dick de que a democracia começava a falhar nos Estados Unidos (o então ex-ator Ronald Reagan e George W. Bush ocuparão a presidência de 1981 a 1993) e o país passa a ser conduzido por uma elite policial. Se tivesse passado pela experiência de uma revista agora rotineira em aeroportos americanos, o que Philip K. Dick escreveria? Fluam, minhas lágrimas, disse o policial é uma obra sedutora e imprevisível, como de certa forma foi seu autor. Em uma entrevista publicada pelo jornal italiano Corriere della Sera em fevereiro de 2011 a terceira esposa de Dick, Anne R. Dick, relata parte do inferno que compartilhou com ele: “Éramos um casal pobre”, conta ela entre outras revelações, “e Dick precisava escrever ao menos dois romances ao ano para sobreviver”. O homem que não apenas antecipou a clonagem humana, mas demonstrou que clones são humanos em Androides sonham com ovelhas elétricas?, levado ao cinema como Blade runner, teve vida curta e dura. – (U.C.)

DIVULGAÇÃO (capa do livro)

Uma obra sedutora e imprevisível



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