O POVO DO AVENTUREIRO (ILHA GRANDE, RJ) E MODELO LOCAL DETURISMO

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O POVO DO AVENTUREIRO (ILHA GRANDE, RJ) E MODELO LOCAL DE TURISMO: UMA TRANSGRESSÃO AOS NOVOS SISTEMAS DE VALORES IMPOSTOS Teresa Cristina de Miranda Mendonça, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (IM/UFRRJ), teresam@ufrrj.br

Resumo Dois temas interferem em todo o modo de vida da Ilha Grande (Angra dos Reis, RJ), o turismo e a questão ambiental. Busca-se refletir sobre a relação estabelecida entre o processo de criação das unidades de conservação e as populações humanas que vivem em seu interior ou em seu entorno, tendo como foco o modelo de turismo instaurado na Vila do Aventureiro. Palavras-chave: Ilha Grande, Vila do Aventureiro, turismo comunitário, conflito socioambiental, unidades de conservação Abstract Two subjects influence Ilha Grande`s (Angra dos Reis, Rio de Janeiro) way of life, the tourism and the ambiental conflicts. This article intends to reflect on the relation established between the creation of protected areas and the population who lives in its interior. The focus is the model of tourism established in Vila do Aventureiro. Key words: Ilha Grande, Vila do Aventureiro, communitarian tourism, socioambiental conflict, protected areas Resumen Dos factores interfieren en el modo de vida de Ilha Grande (Angra dos Reis, RJ). Se pretende reflexionar sobre la relación que se establece entre el proceso de creación de las unidades de conservación y las poblaciones humanas que viven en su interior o al su rededor, teniendo como foco el modelo de turismo implementado en la Vila do Aventureiro. Palabras -clave: Ilha Grande, Vila do Aventureiro, turismo comunitario, conflicto socioambiental, unidades de conservación

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Introdução O presente trabalho é resultado de um ano pesquisa na região escolhida como estudo de caso para desenvolvimento de minha tese de doutorado, Ilha Grande (Angra dos Reis/RJ). Me aproprio da palavra “região” ao me referir a meu local de pesquisa de campo, tendo como referência, a perspectiva de Tim Ingold (2005, p. 1): “...os lugares não têm posições e sim histórias. Unidos pelos itinerários de seus habitantes, os lugares existem não no espaço, mas como nós, em uma matriz de movimento. Chamarei esta matriz de “região”. Experiência que leva à reflexão sobre os principais temas que interferem em todo o modo de vida do lugar, o turismo e a questão ambiental. Temas que dividem a história da Ilha Grande em antes e depois da chegada do turismo e antes e depois da instauração das leis ambientais com a criação de quatro unidades de conservação da natureza: Reserva Biológica da Praia do Sul (1981), Área de Proteção Ambiental de Tamoios (1982), Parque Estadual da Ilha Grande (1971), com sua ampliação assinada em 02/02/2007 e o Parque Estadual Marinho do Aventureiro (1990). A ascensão do turismo na região de Angra dos Reis se inicia com construção da estrada Rio-Santos - aberta em 1974 - e com sua pavimentação, na década de 1980, o que proporcionou rápido acesso entre a região do Rio de Janeiro e de São Paulo (WUNDER, 2006). Com a desativação do Instituto Penal Cândido Mendes em 1994 na Vila Dois Rios, a Ilha Grande começou a tornar-se gradualmente um destino turístico muito procurado. A partir de

então,

para

atender

ao

crescimento

da

visitação, implementaram-se

inúmeros

empreendimentos turísticos, sem que esse processo tenha sido realizado com qualquer limite ou planejamento. Este fato teve como conseqüência uma expansão urbana realizada de forma desordenada associada à falta de infra-estrutura para atender ao aumento do fluxo de pessoas, principalmente na Vila do Abraão. Com a instauração das unidades e conservação, se estabelecem novas regras que delimitaram a relação da população com o lugar em que vivem. O surgimento de áreas protegidas na Ilha Grande, assim como no no mundo, corresponde à perspectiva de preservar, por meio de legislação, áreas consideradas como de recursos naturais relevantes, resguardando-as de uso econômico intensivo (FERREIRA, 2004). Por esta razão, a criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC (2000) está inserida numa lógica mundial escolhida como o melhor mecanismo para a preservação da biodiversidade. No entanto, raramente os governos avaliam os impactos destas ações sobre o modo de vida dos moradores estabelecidos dentro ou no entorno destas áreas naturais. O estabelecimento de qualquer categoria de unidade de conservação, tem significado para muitas populações um 2


aumento das restrições no uso dos recursos naturais, o que tem inviabilizado, em muitos casos, sua sobrevivência (DIEGUES, 1998). Em 2007, foram instuídos vários fóruns de discussão, para pensar um modelo de desenvolvimento sustentável para a Ilha Grande: a reativação do Conselho Gestor do Parque Estadual da Ilha Grande (Secretaria Estadual do Meio Ambiente – SEA/Fundação Instituto Estadual de Florestas - IEF) e do Conselho Gestor da Área de Proteção Ambiental de Tamoios (SEA/IEF), a criação do Grupo de Trabalho para a Sustentabilidade da Ilha Grande (SEA/IEF) e do Núcleo Gestor do Plano Diretor da Ilha Grande (Prefeitura Municipal de Angra dos ReisPMAR). O foco proposto de discussão nos fóruns leva em consideração que a Ilha Grande é referida por segmentos externos e nos documentos oficiais como um “paraíso ecológico” a ser preservado, ao mesmo tempo em que: é alvo de intensa visitação de turistas - se caracteriza como um turismo de massa - e é imposto aos moradores uma nova relação com a natureza. Constata-se, desta forma, um confronto de saberes e lógicas a partir de uma ruptura com os modos anteriores de vida, que significou a imposição de uma outra dinâmica econômica socioambiental e cultural pela criação das unidades de conservação e pelo aumento do fluxo turístico. No entanto, a Ilha Grande é uma região complexa e diversificada, onde se vivencia uma “Ilha Grande” dividida em diversas “outras ilhas”, identificada pelas várias comunidades distintas (suas vilas e praias) que conformam o chamado “Paraiso ecológico”. Não podendo, desta forma, ser vista como “a Ilha homogênea”, mas sim como várias construções sócioculturais que conformam modelos de turismo tão diversos nesta região. Ao mesmo tempo em que na Vila do Abraão, principal porta de entrada da Ilha, são reconhecidas as traduções da chamada “explosão do turismo”, o que alguns consideram como um Abraão literalmente “detonado” (PRADO, 2005); a Vila do Aventureiro, habitada por uma população tida como “caiçara”, apresenta um modelo de turismo caracterizado como de base comunitária. Exemplos de práticas de turismo como da Vila do Aventureiro (Ilha Grande, Angra dos Reis – RJ), localidade permeada por uma nova lógica econômica, ditada pela introdução do turismo, tido como uma nova alternativa para o desenvolvimento local, se constituem em exemplo de comunidade que, segundo Shalins (1997) se distingue entre si pelos modos específicos de viver (MENDONÇA, 2007). Ou seja, ao se inserir em um processo global que exige novas adaptações aos sistemas impostos, inspirados pela noção de crescimento e mercado, sem resultados visíveis para a melhor distribuição de renda e conseqüente melhoria da qualidade de vida das populações, estas comunidades têm se apropriado, a seu modo, das imposições externas, 3


transformando-as e fazendo uso delas de acordo com seus valores demarcados culturalmente (SAHLINS, 1992, 1997 apud PRADO, 2003a). O que Sahlins (op. cit.) denomina de “indigienização da modernidade”. Presencia-se, então, uma ruptura com um modo anterior de vida essencialmente pesqueira e agrícola, o que, conforme Prado (op. cit.), impõe uma outra lógica na dinâmica socioambiental e cultural. Objetivo Este trabalho busca, então, refletir sobre a relação estabelecida entre o processo de criação das unidades de conservação da natureza, utilizado como instrumento de política ambiental e as populações humanas que vivem em seu interior ou em seu entorno. Esta reflexão tem como objeto de análise o modelo de turismo instaurado na Vila do Aventureiro, considerado de base comunitária, que a diferencia das demais localidades da Ilha Grande. Metodologia Pesquisa bibliográfica, documental e pesquisa de campo (observação participante e entrevistas semi-estruturadas). A pesquisa de campo na Ilha Grande foi iniciada em fevereiro de 2007, com a participação em vários eventos ocorridos na Ilha Grande e em Angra dos Reis como: evento de ampliação da área do Parque Estadual da Ilha Grande (PEIG); diversas reuniões realizadas nas comunidades para desenvolvimento do Plano Diretor da Ilha Grande (Lei de Diretrizes para a Ilha Grande, complementares ao Plano Diretor de Angra dos Reis) e para elaboração do Plano de Manejo do PEIG e Oficina de Turismo Comunitário da Vila do Aventureiro. Vila do Aventureiro: soluções locais em defesa do local herdado O processo de criação de unidades de conservação é mais do que a criação de um espaço físico distinto. Existe uma nova concepção da relação homem-natureza. Concepção de que a única forma de proteger a natureza é afastá-la do homem. Esta mesma lógica foi absorvida, também, pelos países do Terceiro Mundo, inclusive pelo Brasil, que apresenta realidade sociocultural e ambiental distinta. Nesses países, nas áreas naturais, vivem populações portadores de uma outra cultura, chamada de trabalho tradicional, com seus mitos próprios e de relações com o mundo natural distintas daquelas existentes nas sociedades 4


urbano-industriais (DIEGUES, 2001). No entanto, a legislação brasileira prevê, como nos Estados Unidos a transferência dos moradores destas áreas, que segundo Diegues (op. cit.) vem sendo responsável pelo surgimento de uma série de problemas de caráter ético, social, econômico, político e cultural. Todo este processo está inserido dentro de uma lógica do pensamento ambientalista, que segundo Prado (2003a), fomenta a percepção sobre as populações locais, nativas, como aquelas que apresentam atitudes e ações “não ecológicas”, ao invés de considerá-las portadoras de uma “ecologia nativa”, com uma visão particular e local. Criam-se, desta forma, processos de exclusão, desapropriação, restrição à utilização dos recursos naturais, que significam a garantia de sobrevivência para muitas populações. Processos que levam a crises locais, em alguns casos à pobreza, e a relações conflituosas entre diversos atores sociais. Neste contexto se insere a comunidade da Vila do Aventureiro, localizada na parte sul da Ilha Grande, voltada para o mar aberto com aproximadamente 800 m de praia (COSTA, 2004). Esta região é habitada há cerca de 150 anos por uma população de agricultores pescadores tidos como “caiçaras”, que se auto-denominam “povo do Aventureiro”. As populações caiçaras eram constituídas, por lavradores-pescadores, com raras exceções por comunidades essencialmente pesqueiras. O Gênero da vida caiçara combina, então, a agricultura de subsistência, baseada na mandioca com a pesca (ADAMS, 2000). O nome Aventureiro, conforme relatos, parece ter relação com as difíceis condições de comunicação com o continente e a ausência do conforto urbano. Necessita-se, desta, forma, aventurar-se para atravessar o mar e chegar ao paraíso (FERREIRA, 2004). Este paraíso é formado por uma paisagem constituda de praias, floresta de declive, restinga, duas lagoas, grandes rochas (WUNDER, 2006) que atrai principalmente visitantes jovens, muitos deles surfistas, oriundos principalmente do Rio de Janeiro e de São Paulo, conhecidos como os mochileiros. No Aventureiro foram criadas duas unidades de conservação da natureza pertencentes à categoria de Proteção Integral: a Reserva Biológica da Praia do Sul (1981) e o Parque Estadual Marinho do Aventureiro (1990). A unidade de conservação em questão é uma reserva biológica, portanto, o tipo mais restritivo, na qual não é permitida a presença de moradores e nem de turistas. É importante destacar que a comunidade presente no local não está estabelecida no entorno, mas sim, dentro da área da reserva. Apesar disto, a localidade tem recebido um grande contingente de turistas, que representa, atualmente, sua principal fonte para sobrevivência. Atividades ligadas ao turismo que em alguns momentos são suspensas e impedidas pela fiscalização dos órgãos públicos. Por esta razão Catão (op. cit., p. 6) revela que 5


Esta população tem vivido, na prática, as conseqüências do embate teórico entre questões que mobilizam historicamente o ambientalismo. A visão biocêntrica e a que respeita a permanência da população local. Estas visões têm, entretanto, se atualizado. Paira ainda sobre a comunidade a ameaça de expulsão. Opiniões se dividem sobre quase todos os aspectos de sua vida atual, como se o simples fato de existirem em seu ambiente, herdado dos antepassados, fosse motivo de polêmica.

Por esse motivo, no momento de sua criação, foi prevista a retirada da população nativa, fato que não aconteceu, por decisão do próprio órgão gestor, a Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente - FEEMA. Desde 1981, essa população tem tido que conviver com uma situação de “ilegalidade” e a tutela do órgão ambiental. Segundo Costa (2004, p. 30) a tutela se caracteriza “como um mecanismo político de dominação, colocando as populações em estado de ilegalidade, constituído por condutas “anti-sociais”’. O tutelado necessita, então, de alguém que atue e decida em seu lugar. Desta forma, “o povo do Aventureiro” não tem tido autonomia para tomar decisões e traçar seu destino livremente. O atual sistema, também impediu a chegada de serviços públicos como luz elétrica e telefone, além de outros benefícios que se contrapõem à legislação ambiental (COSTA, op. cit.). No entanto, a população luta e resiste com o apoio de um grupo de pesquisadores que têm feito intervenções com a proposta da criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável – RDS, ou outra categoria menos restritiva, no local onde está estabelecida a população. Com a diminuição da atividade agrícola e pesqueira, os moradores perceberam o turismo como uma nova oportunidade de trabalho e renda. O fato do turismo ser realizado de forma “reprimida”, por está localizado em unidade de conservação de proteção integral, a implantação da atividade ocorre de forma diferenciada dos modelos das outras localidades da Ilha Grande. Quase todos os que trabalham com turismo são moradores nativos, exceto alguns caracterizados como novos residentes e de nativos ex-moradores, que retornam na alta estação (CATÃO, op. cit.). No Aventureiro, os únicos meios de hospedagem são os camping. Além das áreas de camping nos terrenos das casas, destacam-se os serviços de transporte de turistas nos barcos e a venda de refeições e bebidas (CATÃO, op. cit. e WUNDER 2006). Na vila, é a própria população nativa que organiza o as atividades relacionadas com o turismo, partindo de sua experiência de vida, diferenciando o modelo local do restante da Ilha. Ou seja, conforme Prado (2005, p. 14) “...é a única praia da Ilha que a comunidade local tomou inteiramente em suas mãos a condução do turismo que a li ocorre, totalmente a seu jeito.” Dentro de uma incompatibilidade entre a lei e as práticas reais, como resultado de várias pressões e em atendimento à demanda local, é consentida à população do Aventureiro a 6


receber turistas. Foi implementado o plano de carga em comum acordo com a Prefeitura de Angra dos Reis, Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, FEEMA e comunidade do Aventureiro, representada pela Associação de Moradores. O termo, com validade a partir do dia 26 de dezembro de 2006, delineia um acordo de capacidade de carga para a área destinada ao camping de 560 pessoas por dia e o número de campings em 18 no máximo (ILHA GRANDE.ORG, 2007). O resultado deste processo é detacado por uma moradora na Oficina de turismo comunitário realizada em 21 de outubro de 2007: “Antigamente era muita bagunça. O pessoal acampava na praia. Aí melhorou. A TURISANGRA1 colocou limite e ficou melhor, mais organizado. Antes de ter este controle, tinha muita gente que ia embora e não pagava o camping, não pagava nada, agora não eles pagam direitinho [...] Agente ganha dinheirinho, todo mundo ganha o seu.” Os moradores percebem que a chegada do turismo foi responsável pela mudança de suas vidas para melhor (VILAÇA; MAIA 2006). Não há duvidas de que a renda advinda do turismo interfere de uma nova forma na economia local comparativamente com as atividades tradicionais ligadas aos recursos florestais, à agricultura doméstica e à pesca. Os resultados econômicos são evidentes: os moradores puderam construir mais quartos para a família e para aluguel; a aquisição de móveis, antenas parabólicas, geradores - que permitiu o uso de máquina de lavar, geladeira, freezer, liquidificador e televisão. (VILAÇA; MAIA, op. cit., Wunder, op. cit., FERREIRA, op. cit.). A renda que chega com as atividades ligadas ao turismo, também, leva alguns moradores a abandonarem suas atividades econômicas. Alguns homens deixaram a pesca de sardinha para ficar mais perto da família, assim como as mulheres mais jovens deixaram de ir para a roça, pois conforme relato: “Não compensa o esforço.” (WUNDER, op. cit., p.176). Segundo Wunder, a introdução do turismo pode ter duplicado ou triplicado a renda média das famílias do Aventureiro. Apesar de ser possível perceber pequenas alterações nas moradias locais, a despeito das proibições de construir ou aumentar as casas, não são constatadas alterações significativas na paisagem. Conforme declaração de Catão (op. cit., p. 10): As casas seguem o padrão de distribuição da vila caiçara, em que a maioria delas é protegida pela vegetação e interligada por uma rede de caminhos. Como os meios de hospedagem existentes não são fixos (barracas de camping), o turismo no Aventureiro assemelha-se a um cenário que se monta e desmonta periodicamente.

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Fundação de Turismo de Angra dos Reis

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Uma outra mudança provocada pela chegada do turismo é a criação de uma nova sociabilidade no lugar, introduzida pela sociedade urbana em férias (RAMBAUD 1969 apud FERREIRA, op. cit.). Neste sentido, as relações sociais instituidas pelos nativos sofrem mundança. A solidariedade no Aventureiro era representada pelos multirões nas roças e construções das casas, na troca dos produtos agrícolas entre os moradores, no trabalho de puxar a rede de pesca (FERREIRA, op. cit.). Segundo (RAMBAUD 1969 apud FERREIRA, op. cit.), o turismo rompe a homogeneidade das relações no lugar e troca a idéia de solidariedade pelo individualismo. No entanto, no caso do Aventureiro, mesmo que se apresente um modelo de turismo diferenciado, presencia-se uma ruptura entre as formas de relação com a intensificação da atividade. Conforme Ferreira (op. cit., p. 93) tendo com referência relatos de moradores, estabelecem-se relações que “cada um cuida de si e procura se dar bem, quer ser melhor do que o outro”. O que é inevitável pois, conforme introduzido, os lugares não existem no espaço e sim numa matriz em permanente movimento. Tudo se transforma em um mundo que possui sua própria dinâmica. Em 2000, a comunidade recebe um representante oficial com o surgimento da Associação de Moradores e Amigos do Aventureiro – AMAV. Esta associação surgiu devido à instauração de um processo civil público movido pela Associação Permanente de Defesa do Meio Ambiente - APEDEMA que apresenta como um das ações objetivos o remanejamento da população da Praia do Aventureiro. A associação que surge com o objetivo de defender os moradores do possível processo de expulsão, se transforma em um canal de representação e participação da população (COSTA, op. cit.). Apesar do conflito causado pela criação das unidades de conservação, destaca-se a questão levantada por Ferreira (2004) ao imaginar o que seria do Aventureiro, caso a Reserva Biológica deixasse de abrangê-lo, tornando o espaço vulnerável à especulação imobiliária, como acontece no restante da Ilha. Porém a questão destacada por Ferreira, também representa a preocupação da comunidade, conforme relato de uma moradora durante a Oficina de turismo realizada em outubro de 2007: “Acho que a reserva é bom pra gente, se não tiver reserva vai ficar ruim pra nós. Se não tiver reserva tem que ter outra coisa. Porque senão chegam e vão comprando, porque eles acabam vendendo e quando vende uma casa, o outro que tem dinheiro, compra para fazer pousada.Vende a casa aqui e vai lá para a favela de Angra...”

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Atualmente a comunidade se reune em fóruns locais para discutir a proposta da recategorização da unidade de conservação, a princípio a transformação em Reserva de Desenvolvimento Sustentável - RDS. Para um morador, reunído no fórum realizado em 16 de fevereiro de 2008, a RDS que ele deseja é aquela em que: “Nós nativos temos o direito ao nosso pedaço de chão”. Pedaço de chão que lhes dará o direito de plantar: “Eu quero direito à roça. Meu direito à terra que eu vivi ”. Um outro morador tem como foco central a manutenção da comunidade no local e a apropriação pelos moradores da cadeia produtiva local que tem como principal atividade o turismo, contra a entradada de agentes externos. Pois, por mais que a criação da reserva tenha provocado conflitos pelas restrições impostas, a retirada da comunidade de dentro dela pode ser sinônimo de perigo, ao permitir a ocupação do lugar por pessoas de fora: “...para tomar aquela terra toda, tudo aquilo ali, pra construir pousada e hotel, ou seja, tomar a vista mais bonita do Aventureiro, aquele coqueiro, cheio de bichos andando lá, pra dar direito ao seu Oscar, lá de São Paulo botar pousada lá em cima.” [...] Então agente tem que botar na cabeça é isso: vamos tirar da reserva? Então vamos tirar. Se for tirar pra vir uma coisa que não dê direito a virem os empresários. É agente tirar pra dar direito aos moradores, aqueles que nasceram no Aventureiro, que estão aqui envolvidos com o turismo no Aventureiro. Agora, se for pra tirar da reserva e dar direito às pessoas de fora virem aqui e construir, avançar e tomar o Aventureiro da gente, é preferível que fique na reserva e a gente fica nesse empurra-empurra.

Desta forma, paira ainda no ar, a dúvida: -Qual seria melhor alternativa para a comunidade como forma de protegê-la e prover mais liberdade para continuarem com as atividades ligadas ao turismo ou outras alternativas que surjam? Resultados e Conclusões A luta pela posse da terra e contra a expulsão da população do local herdado, foi fundamental para o surgimento de um núcleo comunitário de famílias que estabeleceu um novo olhar sobre a questão do espaço em que vive. Esses núcleos familiares foram os responsáveis pelo aparecimento das associações comunitárias, que hoje se apresentam como núcleos legítimos de diversas comunidades. Se inicia, então, o processo de organização, do povo do Aventureiro. As famílias tiveram um papel fundamental na construção da história de organização, luta e resistência. A atuação das famílias e da associação de moradores

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contribuiu, para o fortalecimento do sentimento de “pertencimento” à terra e para a perspectiva de futuro (MENDONCA, op. cit.). Este exemplo destaca as declarações de Tonnies (1973), no que se refere na formação das comunidades territoriais. Para ele, é a partir das famílias que se formam, com suas devidas especificações, os complexos determinados pelo solo distinguidos como: o país; a região; a aldeia. O autor (op. cit., p.106) declara, também, que todas essas diferentes formações “estão contidas ou provém da idéia de família, enquanto expressão geral da realidade comunitária.” A comunidade da Vila do Aventureiro, que vive em contexto de conflitos e lutas permanentes, apresenta um modelo de turismo que é o resultado local na busca de alternativas contra um sistema caracterizado pela crise da pesca, processo de criação de Unidades de Conservação, pela ameaça de expulsão dos nativos de suas terras, pela falta de participação efetiva dos moradores na tomada de decisão em instâncias diversas (MENDONÇA, op. cit.). Sob esta perspectiva, o modelo de turismo comunitário é, aqui, considerado, conforme declaração de Prado (2005, p. 13), como uma prática “vista como “transgressões” mediante novos sistemas de valores que ali aportaram.Turismo comunitário que surge em contraponto aos modelos de desenvolvimento caracterizados por ações de exclusão e a promoção do crescimento das desigualdades sociais. Estes modelos locais de turismo foram construídos em um cenário de lutas permanentes contra agentes externos (grileiros, agentes imobiliários, empresários, poder público, poder judiciário, entre outros) (MENDONCA op. cit.). No caso do Aventureiro, seu maior inimigo é o Governo do Estado do Rio de Janeiro, responsável pela criação e gestão da Reserva Biológica da Praia do Sul. O turismo comunitário, então, é um exemplo de “indigienização da modernidade” (SAHLINS, op. cit.). Pois este modelo de turismo representa a forma pela qual as comunidades, em sua região, se apropriam das imposições externas regidas por uma lógica mundial e as transformam a favor de seus próprios intresses e objetivos. Construindo, a seu modo, um projeto em que a população local se torna sujeito e participante ativos de seu próprio desenvolvivimento, não apenas meros espectadores. A reflexão aqui apresentada, infere-se que a real incorporação destas comunidade no processo de criação e implantação de unidades de conservação e também de projetos turísticos é elemento fundamental tanto para a melhoria da qualidade de vida e do bem-estar das comunidades como para a preservação dos recursos naturais. Um processo de tomada de decisão partilhada e a co-gestão de projetos é uma das formas de garantir a proteção da dignidade, pois não há razão pela qual as comunidades não devam decidir que grau de mudanças e limites estão dispostas aceitar e tolerar. Certamente um modelo que se caracterize 10


pela voz e demanda dos atores locais, pois não há direito maior de um indivíduo do que a oportunidade de escolher seu próprio destino. É necessário, desta forma, restituir às pessoas e às comunidades o papel, não apenas de atores, mas sim de sujeitos de seu próprio mundo. Este papel é reivindicado pelo “povo do Aventureiro”, conforme declaração de uma moradora participante do fórum realizado em 16 de fevereiro de 2008: Que futuro nós queremos para o Aventureiro? É o pensamento de muitos moradores: nós queremos o direito a permanência na terra, o direito à sobrevivência na Praia do Aventureiro com meios, com o direito à roça, à pesca, ao turismo e ao artesanato. O direito de poder viver com soberania e ter autoridade para decidir sobre a praia do Aventureiro, decidir que praia nós queremos, que comunidade que nós queremos. Agora desta vez tudo vai depender de nós, esse é o momento de juntar forças e decidir que Aventureiro nós queremos. Queremos também o título da terra e meios dignos de sobrevivência, meios de trabalho. Nós queremos trabalhar, não queremos esmolas, nós não queremos bolsa família, nós queremos trabalho com dignidade...

Exemplos como da Vila do Aventureiro comprovam que eles não são apenas atores sociais, eles são sujeitos sociais, que atuam também como autores de seu destino, pois criam, roteirizam e atuam na sua história. No entanto, compactuo com Velho (1994, p. 45), ao levar em consideração que os moradores do Aventureiro não são “atores-sujeitos” na sua plenitude, pois estes “São empurrados por forças e circunstâncias que têm que enfrentar e procurar dar conta”. Forças e circunstâncias provocadas pela criação da Reserva Biológica que obrigaram o “povo do Aventureiro” a se organizar, dentro de um cenário de tutela e “ilegalidade”. As mudanças provocadas pela criação da unidade de conservação, certamente criaram momentos de crise na Vila do Aventureiro. Para Park (1979), esta palavra não pode ser entendida como um fato violento. Porém, certamente, na perspectiva do povo do Aventureiro, as mudanças exigidas, a crise, significam ações de grande violência para aqueles que moram na região, que são obrigados a se adaptar às exigências de um dia para o outro, sem que tenham tido a oportunidade de tomar decisão ou influenciar em su destino. Alguns moradores se adaptaram, outros tentam se adaptar às exigências atuais, porém resistem e sobrevivem. Lutam através de manifestações, de protestos, negociações e, até mesmo, burlando as leis. Lei que está sendo revista no caso do Aventureiro, população que tem sobrevivido de forma bem sucedida com o turismo. As respostas dadas pelos moradores do Aventureiro representam a capacidade de adaptar-se às circunstâncias e garantir a permanência na Ilha Grande com melhor qualidade de vida e com a conquista de seus direitos. 11


Lutam por um modelo de turismo que se contrapõe ao modelo instaurado na Vila do Abraão e em outras praias da Ilha Grande. Eles têm vivenciado a experiência de serem empreendedores e gestores de seus próprios negócios. Destaco que o modelo de turismo da Vila do Aventureiro representa, conforme Coriolano e Silva (2007, p. 51), uma estratégia de sobrevivência e inserção daqueles que possuem poucos recursos econômicos para atuarem nas atividades ligadas ao turismo. Certamente é um modelo de turismo que “...pensa o lugar, a conservação ambiental e a ressignificação cultural.” O turismo foi uma escolha legítima, movida pela aspiração do “povo do Aventureiro” de melhorar a qualidade de vida local, em oposição à situação de pobreza imposta pelas restrições ambientais. O “povo do Aventureiro”, possuidor de consciência própria, de uma dinâmica continuamente em processo de formatar e desenhar seu destino, cria e recria a essência de seu ser. Referências Bibliográficas ADAMS, Cristina. As populações caiçaras e o mito do bom selvagem: a necessidade de uma nova abordagem interdisciplinar. In Revista de Antropologia v. 43 n. 1. São Paulo:USP, 2000. CATÃO, Helena & Carneiro, Maria José. Conservação ambiental, turismo e população local. I Congresso Acadêmico de Meio Ambiente e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: CADMA EBAPE/Fundação Getúlio Vargas, 2004. CORIOLANO, Luzia Neide M. T. 2 ed. Do local ao Global: o turismo litorâneo cearense. Campinas: Papirus, 2001. CORIOLANO, Luzia Neide M. T.; SILVA, Sylvio B. de M. e. Turismo: prática social de apropriação e dominação de territórios. In: CORIOLANO, Luzia Neide M. T.; VASCONCELOS, P. F. (org.). O Turismo e a relação sociedade-natureza: realidades, conflitos e resistências. Fortaleza: EdUECE, 2007. p. 44-56. COSTA, Gustavo Villela Lima. A população do Aventureiro e a Reserva Biológica Estadual da Praia do Sul: conflitos e disputas sob tutela ambiental. Dissertação de mestrado: Rio de Janeiro: UFRRJ/Museu Nacional/Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, 2004. DIEGUES, Antonio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 1998. ______. Ecologia Humana e Planejamento em Áreas Costeiras. 2 ed. São Paulo: Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Costeiras, USP, 2001. 12


FERREIRA,

Helena

Catão

Henriques.

Redefinindo

Territórios:

preservação

e

transformação no Aventureiro – Ilha Grande (RJ). Dissertação de mestrado: Rio de Janeiro: UFRRJ/ICHS/CPDA, 2004. ILHA GRANDE.ORG. Aventureiro. Disponível em: http://ilhagrande.org/sys/s.ig?a=42. Acesso em: 02/mar/2007. INGOLD, Tim. Jornada ao Longo de um Caminho de Vida – Mapas, descobridor-caminho e navegação” In: Religião e Sociedade. 2005. V. 25, n 1, (p. 76–110) MENDONÇA, Teresa Cristina de Miranda. Turismo de base comunitária: soluções locais em defesa do local herdado. Estudos de caso: Prainha Do Canto Verde (Beberibe/CE) e Vila do Aventureiro (Ilha Grande, Angra dos Reis/RJ). In: X Encontro Nacional de Turismo de Base Comunitária. João Pessoa: UFPB, 2007. CD-ROOM. PARK, R. E. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In: VELHO. O. (org). O Fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979 (p. 26-67) PRADO, Rosane. As espécies exóticas somos nós: Reflexão a propósito do ecoturismo na Ilha Grande. Horizontes Antropológicos – Turismo, nº 20 ano 9, Porto Alegre: UFRGS, 2003a. ______. De praias que viram morros e do valor da natureza. XIX Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu-MG: 2005. SAHLINS, Marshall. O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um “objeto” em via de extinção - Parte I. Mana 3/2 (Estudos de Antropologia Social), abril/1997. Rio de Janeiro: PPGAS, Museu Nacional, UFRJ/Ed. Contracapa, 1997 . 93131997000200004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 15/jan/2007. TÖNNIES, Ferdinand. "Comunidade e sociedade como entidades típico-ideais", in F. Fernandes (org.), Comunidade e sociedade: leituras sobre problemas conceituais, metodológicos e de aplicação. SP: Nacional/Edusp, 1973. VELHO, Gilberto. Projeto e Metamorfose: Antropologia das Sociedades Complexas. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1994. VILAÇA, Aparecida; MAIA, Ângela de Azevedo. O povo do Aventureiro In: PRADO, Rosane (org.). Ilha Grande: do sambaqui ao turismo. Rio de Janeiro: Garamond/EDUERJ, 2006. p. 59-104.. WUNDER, Seven. Modelos de Turismo, florestas e rendas locais. In: PRADO, Rosane (org.). Ilha Grande: do sambaqui ao turismo. Rio de Janeiro: Garamond/EDUERJ, 2006. p. 133-190.

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