Paisagens de Ambos os Mundos

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O autor

© Thesaurus Editora – 2007

Camilo Mota nasceu em 24/08/1965 em São João Nepomuceno-MG. Estudou Letras na Universidade Federal de Juiz de Fora, cidade em que participou do conselho editorial do folheto literário Abre Alas na década de 1980. Fundador e editor do jornal Poiésis – Literatura, Pensamento & Arte (www.jornalpoiesis.com), em circulação desde 1993. Membro fundador da Academia de Letras e Artes da Região dos Lagos (Aleart). Membro honorífico da International Writers and Artists Association (IWA). Alguns de seus poemas já foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol, grego e russo. Publicou os livros de poesia Cântico (1992), Bálsamo (1994), Tríade (1998) e Século Algum (2001). Reside atualmente em Saquarema-RJ. Contatos: Caixa Postal 110912 – Bacaxá – Saquarema/RJ – CEP 28993-970. E-mail: camilo.mota@gmail.com

Arte, impressão e acabamento: Thesaurus Editora de Brasília SIG Quadra 8 Lote 2356, Brasília – DF – 70610-480 – Tel: (61) 3344-3738 Fax: (61) 3344-2353 ou End. eletrônico: editor@thesaurus.com.br Editor: Victor Alegria Os direitos autorais da presente obra estão liberados para sua difusão desde que sem fins comerciais e se citada a fonte. THESAURUS EDITORA DE BRASÍLIA LTDA. SIG Quadra 8, lote 2356 – CEP 70610-480 - Brasília, DF. Fone: (61) 3344-3738 – Fax: (61) 3344-2353 *End. Eletrônico: editor@thesaurus.com.br *Página na Internet: www.thesaurus.com.br – Composto e impresso no Brasil – Printed in Brazil

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PALAVRAS SIMPLES O que vale são as palavras simples, os gestos de amor, a canção romântica. Meu coração contempla os mistérios da lua e suas fases, a conjetura dos astros em suas órbitas. O peito aberto para sorver o sofrimento do mundo e sua cura ante o toque do olhar de afeto queimam rancores e mágoas. O que vale são as palavras singelas, como saindo desavisadas em língua fraterna quase silentes, quase não ouvidas por humanos ouvidos. A música no rádio fala do amor que espera, da alma que anseia, do infinito que penetra cada poro do corpo do amante. O que vale são as palavras calmas, o ritmo evidente do toque das mãos na face em êxtase da amada mulher, do homem querido, do filho presente. O que vale são as palavras íntimas, a confissão do ausente, a melodia nua dos pássaros em manhãs de sol. O que vale são as palavras e seus gestos.

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CAMILO MOTA

POEMA PARA ABRAÇAR O AMIGO ao Sylvio Adalberto

Digerir o sol a cada manhã. Repousar os olhos e viver a sombra que aquece. Saber que o silêncio silencia mesmo que o maior ruído seja o do coração lembrando a infância. Curtir o canto sertanejo, a viola caipira, o peixe no anzol, as árvores que escurecem com a noite. Pensar nos amigos que foram : o regresso ficou para até quando. O verso fere o conforto dos alienados. Eu te abraço infantil como o sopro no dente-de-leão.

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PAISAGENS

DE

AMBOS

OS

MUNDOS

VALPARAÍSO Meu bairro tem becos aonde nunca fui: escadas e portais para o velho mundo. Contornos de tardes alemãs, cheiros portugueses, alianças de Minas e o mistério de seus habitantes se inserem nos sentidos. Tão velhas pedras!... Tintas descascam janelas cansadas onde a luz morna das lâmpadas abriga casais e sonhos. É Petrópolis ou Lisboa, São João ou Bonn? A cidade tem idiomas que nunca aprenderei, e viagens — leve balançar em trilhos de trem, leve lembrança de fuga para o imaginário, e o caderno em que desenhei países cujas fronteiras inventavam geografias da cor. O morro próximo à escola se insinua: casebres, tijolos, lama, cachorros, e um pedacinho de verde nas encostas. O avião de papel, lançado inocente pela janela, custou-nos um curto castigo. Pensei que os pássaros fossem mais felizes em seu destino. Quando fiz primeira comunhão, ganhei terço, vela e outra razão de ser. Compreendi o corpo como canto órfico de luz e asas. Só então fui sozinho à padaria e trouxe dez pães e um litro de leite. Minha mãe me confortava e ria de minha ingenuidade: ela sabe que sobrevôo nuvens e que as palavras estão por nascer.

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CAMILO MOTA

APARECIDA SENHORA Para minha mãe

Nossa Senhora acode: é filha e mãe, mulher e vida. Dela sorve o fiel a centelha extinta, vigor de quem não tem para onde mais fugir. Nossa Senhora acode: minha mãe sofreu dores, e o pai, os filhos, tios e tias. Dores, Senhora, como aquela de ver seu filho partir. Acode, Nossa Senhora, porque é simples abraçar a terra, deixá-la passar entre os dedos, e sentir-lhe arranhando, de leve, os pedacinhos da alma que nela vivem.

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PAISAGENS

DE

AMBOS

OS

MUNDOS

LUAR DE SAQUAREMA ao amigo Gerson Valle

A lua tem júbilos de quem a retém sem a morte pensar. Breve companheira do céu, onde foram os namorados? — Para a noite longa passear, fazer carícias, esconder os prantos. Lua entre ondas de branco desenhada em vago mar, corre notícia de pescadores assombrados, de noites sem afago, de prantos sem namorados. — Noite dessas vou armar rede à espera de todos os barcos que sumiram em vagas brancas de meu luar. Corre, lua, corre, para dizer do outro lado do mundo que o dia nasceu do lado de cá. Volta, lua, volta, que eu também quero namorar.

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CAMILO MOTA

ORAÇÃO Deus é óbvio, mas só enxergamos labirintos. Quanto a noite assalta o dia, para casa corremos: são muitos os lobos que atravessam os jardins. Os anjos colhem flores em silêncio. Nossos corações, em sobressalto, vêem o medo além das cortinas e temem o abandono e a solidão dentro da própria casa. O que fazer, meu Deus, o que fazer? Onde buscar, meu Deus, onde buscar? Uma pétala e um cheiro de almíscar e um raio de sol e um bocado de sândalo desprendem-se no ar e sobre a fronte se espelham. A casa está mais segura. O medo (onde?) perdeu-se entre os móveis e paredes vazias. Os anjos colhem esperanças. Deus permanece.

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PAISAGENS

DE

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OS

MUNDOS

QUATRO PAISAGENS DE AMBOS OS MUNDOS O silêncio faz simetria com os girassóis. O silêncio é risco, trégua e plano. Réguas, pipetas, balanças, métrica alguma o alcança. Na rua o menino dorme sob rotos jornais: não sabe ler os próprios sonhos. Galos dormem o mesmo sonho dos homens: guardam sob si os pés de prata e ouro.

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CAMILO MOTA

LIÇÃO INFINITIVA É preciso guardar silêncio, deixar o tempo em seu resguardo de ilusões: os véus se erguem para o porém das coisas. Nesse dia de lagos sob o sol poente, cuidar do semblante como quem rega flores no conhecido jardim da casa do Amigo. Depois voltar-se para o sublime recanto da noite para do orvalho extrair a seiva dos olhos límpidos de criança que aprende a ver o mundo como o melhor dos brinquedos. Inocente como a ave que retorna ao ninho, ocultar suas asas por um momento, para num instante saltar para a vida como se o fizesse pela primeira vez.

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PAISAGENS

DE

AMBOS

OS

MUNDOS

ANIVERSÁRIO MÍTICO Açucenas margeiam o lago interior. São elas que conduzem o Velho em seus passos lentos de um a outro cômodo da casa nesta madrugada de pensamentos longos. A terra mítica de Ba1 se estende além das fronteiras que inventaram entre o Egito e o corredor da velha fazenda no interior das Gerais. Ali o velho homem passeia sem limites com livros à mão, mesmo sem os ler – Pound, Eliot, Pessoa e Neruda tingem-lhe os dedos como arco-íris de uma vida conhecida apenas pelos pássaros e árvores do jardim liberto, entre metáforas de som e cor. O riso do Velho é de quem sabe o caminho, mesmo sem nunca tê-lo percorrido. É dele o brilho do lago, e dele o reflexo das flores. De longe, um eco lhe devolve o primeiro suspiro ao ver de súbito a essência da vida num dia de sol.

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referência a Beirute, no Líbano. 11


CAMILO MOTA

MÃOS DE LUZ Há um tempo que se renova além do tempo que se perdeu... Nas mãos um raio de luz derrama sobre cachos dourados a carícia de um Deus construído na aurora do mundo. Dias de derradeiro encanto, sem vítimas ou pranto, mistério desnudo.

VERDADES Nunca a ninguém perguntei sobre as verdades da vida. Fiquei na mais completa ignorância sobre a correta maneira de se usar o papel higiênico: afinal, em que sentido deve ele deslizar, de cima para baixo, de baixo para cima, longitudinalmente? E os sapatos, como amarrar? E de que maneira devemos dar de comer a quem nada tem, e de que maneira viver em paz tendo por companhia a dor de uma doença grave?

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PAISAGENS

DE

AMBOS

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MUNDOS

Somente a mim questiono, a mim retorno devorando pensamentos, e passo os dias como um ser comum, que trabalha, sonha, permanece e ama. Quando atravessar a rua receberei na face um beijo invisível e o afago do planeta que me acolhe. Ignorante das coisas reais, terei ainda tempo de visitar estrelas?

EXÍLIO a João de Deus, meu pai

A memória do pai está além de todo o tempo. Ele conhece o mistério dos fantasmas, os fantasmas habitam a roça. Ele sabe a mensagem dos santos padroeiros, houve muitas procissões, e seus pés tocaram pedras e lama. Foi ele o velho patriarca que recebeu à porta a folia, e todas as bandeiras o saudaram — é da memória ancestral que ele capta os signos de seu [ dia, e domina a terra, a terra que o levou para longe da terra... 13


CAMILO MOTA

O pai não conhece os limites do exílio. A memória prossegue com a vida, muito além do que se vive e percebe. O pai não lamenta os destinos — senta, descansa e renova. A memória do pai é uma multidão de dias não contados.

LÍRICA Nº 1 a Regina Mota

a mulher que me anima se aninha a meu lado pedindo passagem ao desejo e ao sonho. será eva ou ninfa, cantora de sortilégios? ela se despe como um soneto ao sol. mistério de olhos límpidos

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PAISAGENS

DE

AMBOS

OS

MUNDOS

CANÇÃO DO EXÍLIO este poema é atlântida : óbvio e místico — todas as origens. traz um céu azul celeste e tem árvores onde cantam sabiás. os pássaros passaram — as nuvens encobrem pântanos. ao final do dia derretemos de paixão. dormimos após : leitura obrigatória de lautréamont

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