A mão

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kheirós

a mão χέρι

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kheirós

a mão χέρι

FILIPA D’OLIV EIR A M A RT INS FR A NCISCO D’OLIV EIR A M A RT INS GU ILHER ME D’OLIV EIR A M A RT INS HELENA CA NH ÃO JA I ME CU NH A BR A NCO JOÃO LOBO A N T U NES JOSÉ A N TÓNIO MELO GOMES LÍDI A JORGE M A R I A DO CÉU D’OLIV EIR A M A RT INS


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By the Book, edições especiais

A mão F ilipa d’Oliveira Martins | Francisco d’Oliveira Martins | Guilherme d’Oliveira Martins | Helena Canhão | Jaime Cunha Branco | João Lobo Antunes | José António Melo Gomes | Lídia Jorge | Maria do Céu d’Oliveira Martins

©DESENHOS IMPRESSÃO ISBN

Francisco d’Oliveira Martins | José António Melo Gomes Gráfica Manuel Barbosa & filhos, lda

978-989-53277-6-8

D E P Ó S I T O L E G A L 490754/21

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Edições Especiais Rua das Pedreiras, 16-4º 1400-271 Lisboa T. + F. (+351) 213 610 997 www.bythebook.pt


7 PAL AV R AS PRÉV I AS

Francisco d’Oliveira Martins 11 M ÃOS – A V IDA A DAR-SE À V IDA…

Guilherme d’Oliveira Martins 17 A M ÃO QUE CUIDA A M ÃO DOENTE

Jaime Cunha Branco 31 AS M ÃOS E A SOCIEDA DE PORTUGUESA DE REUM ATOLOGI A

Helena Canhão 35 POEM A PAR A AQUEL A M ÃO SÓ

Francisco d’Oliveira Martins 39 EVOLUÇÃO EMBRIONÁRI A DA M ÃO

Filipa d’Oliveira Martins Francisco d’Oliveira Martins 49 ANATOMI A DA M ÃO DA MORFOLOGI A À FU NÇÃO

Maria do Céu d’Oliveira Martins Francisco d’Oliveira Martins 75 SOBRE A M ÃO

João Lobo Antunes 91 L A M AIN DE L´ÊTRE HUM AIN

José António Melo Gomes 105 AS M ÃOS DE ANTÓNIO CH AINHO

Lídia Jorge 111 KHEIRÓS

Francisco d’Oliveira Martins



PALAVR AS PRÉVIAS Francisco d’Oliveira Martins



A mão a verdadeira origem de tudo o que somos hoje. Sem a oponência do polegar o que seríamos? A mão e a razão, essências da nossa existência. Fazer e perceber. Perceber para ajudar a fazer. A verdadeira execução da vontade, do engenho e também da arte. Este é o primado da essência do ser humano.

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MÃOS – A VIDA A DAR-SE À VIDA… Guilherme d’Oliveira Martins



A mão tem sempre mistério. A humanidade depende da ligação criativa entre o cérebro e as mãos. Nas grutas pré-históricas são as mãos dos nossos antepassados que nos indicam o caminho da História – ora as mãos marcadas na rocha, ora as representações que apenas se tornaram possíveis como resultado da oponência do polegar aos outros dedos e da possibilidade de fixar com um estilete o movimento e a existência dos animais e dos caçadores. Na luta contra o tempo e considerando a fugacidade da vida, a mão pôde realizar o maior dos feitos humanos – tornar o pensamento ação e a memória arte e vida. A mão dos nossos pais amparou-nos desde tenra idade – aconchegou-nos, conduziu-nos, acolheu-nos, protegeu-nos e quando, de mão dada, começamos a caminhar pela vida, sentimos que há uma ligação íntima entre nós. E, a pouco e pouco, a mão que nos conduzia permite que seja cada um a ganhar autonomia – e então as nossas mãos tornam-se, elas mesmas, meios de sermos nós mesmos. E as mãos dos avós representam a história da existência humana. Ora se ocupavam da terra de que somos feitos, do húmus de onde vem a humanidade, ora se dedicavam ao cuidado das flores e das plantas. Uma das minhas avós tinha sucesso de mãos em tudo o que plantava, que se desenvolvia de um modo extraordinariamente belo e gostoso. As mãos de outro avô ocupavam-se, com extremo zelo, da escrita e do complexo relato histórico, do mestre que transmite a alunos e discípulos a explicação sobre os enigmas da existência e da sua evolução. 13


As mãos representam a diversidade da vida humana. Mil textos, mil estudos e mil explicações tentam dar-nos a chave dessas diferenças. Sentimo-lo num aperto de mão ou na letra de uma escrita, mais firme ou mais incerta. Tenho na minha memória bem inscrita a doçura, a sensibilidade, o amor das mãos de minha Mãe e de meu Pai. Nunca os poderei esquecer, até nos gestos que deles continuo. Às tardes de sábado, no inverno, deleitávamo-nos, eu e meus irmãos, em assistir ao ato criador de nosso Pai, como artista, desenhador exímio, fazendo reviver os grandes clássicos, como Giotto ou Rembrandt. E enquanto víamo-lo desenhar, ouvíamos relatos da vida dos pintores. Percebíamos o que era fazer a mão e também sabíamos que não há jeito de mãos que não obrigue a muitas horas, a muitas tentativas, a muita persistência. E, em dias amenos, havia que ir ao encontro da natureza, para dela “tirar ao natural”. A mão tem de se afeiçoar à natureza. E ver a mão que manejava o lápis ou o carvão, ora com intensidade ora com leveza, era presenciar a suprema magia de algo que nascia, de algo que se criava. E quem fala do desenho ou da pintura, com a cor a transformar a tela incolor numa realidade viva, tem de lembrar o oleiro a produzir as peças de cerâmica ou o escultor a dar existência às estátuas ou a um presépio. Sempre o mistério do espírito que dá existência às personagens do teatro do mundo. Sempre a realidade humana que se reproduz interminavelmente: o moleiro que transforma o trigo em farinha, o padeiro que junta os ingredientes do pão ou o cozinheiro que faz as iguarias que consolam os sentidos. É a vida que se exprime pela capacidade transformadora da humanidade em que a mão é protagonista. E o pensamento projeta-se no engenho, através do que a mão permite fazer. Misturar o fármaco cura, dominar a natureza salvaguarda a existência, lidar com os vírus e as bactérias salva, intervir numa mesa de operações para extirpar um 14


mal dá vida, construir a máquina que produz cria valor, conceber um algoritmo e saber lidar com ele abre horizontes de desenvolvimento, regular os conflitos e fazer a paz permite a humanidade avançar. E assim a mão é o prolongamento natural da inteligência e da sabedoria, permitindo que a cultura se desenvolva, fazendo-se e fazendo. E devemos lembrar quem nos antecedeu, quem nos ensinou, as gerações que permitiram chegar onde chegámos, progredindo em permanência, como nenhuma outra espécie conhecida na natureza. Quem nos fez quem somos? A mão que amorosamente nos afaga a face. A mão que escreve uma carta de amor ou a matar saudades. A mão que exprime confiança. A mão que cura. A mão que desenha uma bela paisagem. A mão que toca um trecho musical. A mão que esculpe. A mão que cultiva. A mão que cozinha. A mão que tece. A mão que nos representa. A mão que segura. A mão que defende. A mão que ajuda. A mão que trata. A mão que cuida. É a vida a dar-se à vida.

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A MÃO QUE CUIDA A MÃO DOENTE Jaime Cunha Branco



A MÃO A mão é uma extremidade capaz de agarrar e pegar devido aos seus dedos separados, alongados, móveis e flexíveis. A sua característica principal é a capacidade de opor o primeiro dedo (polegar) a todos os outros, para realizar a preensão de objetos, dos mais pequenos aos maiores. As mãos, devido às outras articulações dos membros superiores – punhos, cotovelos e ombros – são a única porção corporal que, na normalidade, pode alcançar todos os pontos da superfície do corpo. É o órgão humano do gesto e do toque e, sendo assim, do trabalho e da relação, do ter/receber e do dar/oferecer. A mão quando agarra procura simultaneamente agarrar-se e quando toca também espera ser tocada. Com as suas aptidões mede as distâncias e explora as dimensões e, através da pele, pode perceber o mundo que a rodeia. Com a mão se pode chegar ou afastar qualquer coisa ou ser vivo e, com ela, também podemos conhecer a posição e orientar a progressão. Por isso a mão transforma o Homem no mais bem apetrechado dos seres vivos. A anatomia, mobilidade e sensibilidade da mão permite-lhe originar inúmeras formas, variados volumes e combinações morfológicas, capazes de se adaptar, com maior ou menor intimidade, ao alvo desejado. A perceção tátil é um complexo fenómeno biopsicológico, mas o “tocar” é um conceito ainda mais elaborado, que envolve o desejo e a vontade de sondar o que nos separa daquilo que não somos. A mão apresenta uma sensibilidade tátil superior à de qualquer outra região corporal. Como disse Maine de Biran (1766­ ‑1824), filósofo francês, “a mão confere ao tato uma vocação que 19


a pele só por si seria incapaz de assumir”. Por isso parece ser o órgão mais característico do Homem. Não há tocar sem a intenção de o fazer, pelo que, além da função tátil, o toque é um “sentido de presença” porque é o único sentido recíproco, pois tocar é ser tocado. Mas claro que a ação e interação da mão tem limites, próprios e alheios. Se os primeiros se referem sobretudo aos níveis de minúcia, volume e potência de que a mão é capaz, já as suas limitações extrínsecas advêm mais da origem material das coisas. As entidades naturais têm um princípio interior de organização enquanto os objetos manufaturados/fabricados possuem um preceito exterior de artificialidade. A mão pode aceder a todas as partes das construções mas a “profundidade” dos seres e das coisas naturais é-lhe inacessível. Isto é, não pode tocar aquilo que a move. Faz assim parte de uma lei, mais ampla, que nos sujeita à Natureza apesar de todas as interferências, boas e más, que sobre ela possamos exercer. “Não é por ser provido de mãos que o Homem é mais inteligente, como pretende Anaxágoras, mas sim por ser mais inteligente que ele possui mãos, como diz Aristóteles”. A frase é de Galeno (128-200), mas é minha convicção que neste provérbio ele não estaria completamente certo. De facto penso que ambos, Anaxágoras (500-428 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), tinham razão. Acredito, como Aristóteles, que a filogénese da mão decorreu em todos os aspetos – anátomo-funcionais, potência e destreza – em paralelo com o crescimento cognitivo da espécie humana. Contudo, como Anaxágoras, creio também que o intelecto humano evoluiu, em reciprocidade, devido à utilização continuada da sua mão. Não parece difícil perceber os mecanismos e interações de aperfeiçoamento mútuo entre o cérebro e a mão, enquanto expoentes máximos do desenvolvimento humano. A mão, enquanto 20


executora, apresenta atividades motoras quase infinitas, e como guia de conduta oferece um repertório imenso de gestos exploratórios. A mão, ao integrar e harmonizar estes dois fenómenos – motor e sensitivo – é geradora de ação mas também de conhecimento, depois também utilizado no desenvolvimento orgânico global. A ação da mão baseia-se no “gesto”, expressão de um conceito cuja execução obedece a uma fórmula motora definida pelo Sistema Nervoso Central. A grande destreza da mão advém da longa aprendizagem da espécie e da intensidade e especificidade do treino individual. Enquanto os outros órgãos dos sentidos são sensibilizados pelos seus estímulos específicos – luz, sons, odores, sabores – a mão oferece ao tato a capacidade de procurar e encontrar o objeto desejado. De facto a mão que realiza e constrói é a mesma que afaga, abraça, conforta, autoriza, castiga, aprova, sinaliza, briga, condena, reprova, ajuda, auxilia, aplaude, agride, aponta, dirige, mostra, esconde, acena, pesa, mede, avalia, cria, classifica, aprecia, cumprimenta, abraça, alimenta, destrói, discorda, rejeita, contraria e muito mais. Faz tudo isto, porque a mão é um importante instrumento de força e precisão, que efetua os movimentos, gestos e toques necessários para o cumprimento das ações, atitudes e procedimentos decididos pelo cérebro e, em boa medida, guiados pelos olhos. Mas sendo verdadeiramente “o instrumento”, muito devido à sua capacidade única de pinçar, é ainda, devido a esta aptidão, capaz de desenhar, desenvolver, manobrar e controlar outros instrumentos e aparelhos, mais poderosos ou mais finos, que ajudam, melhoram ou facilitam as suas obras e ações.

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POEMA PAR A AQUELA MÃO SÓ Francisco d’Oliveira Martins



Com cinco dedos a mão se abre. Com cinco dedos a mão se fecha. Magra, delicada, sensível. Ou grosseira, desajeitada e áspera. Ela é a nossa mão, a mão da diferença que nos rege, que nos guia. Mão que agarra, que prende, que suporta ou larga. Mão que faz e desfaz. Que constrói e destrói. Mão que toca, sente, abraça, mas também se crispa e agride. Aquela mão protectora, que, quando sentido-nos perdidos, nos dizem em voz baixa: “Vais estar em Boas Mãos”. Na origem de tudo, o primado da oponência, essencial ao Fazer. Depois a Razão. É o “Esse Percipit”. Fazer percebendo, é o Fazer e a Razão. A racionalização do gesto. Eu Faço; Faço bem; Tento Fazer melhor; mas será que valeu a pena Fazer. Porventura é aquela “Mão Boa” que, além de fazer Bem, nos Ajuda, nos dá Confiança, nos Protege. Se calhar aquela “Boa Mão” um pouco à imagem daquela “Mão Suprema”. Essa sim a verdadeira “Mão de Deus”.

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