livro venenoso

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livro venenoso Eduardo Arimateia prefácio Filipa Martins ilustrações Alice Geirinhas



Eduardo Arimateia

livro venenoso

prefácio de Filipa Martins ilustrações de Alice Geirinhas


Edição: By the Book Título: Livro Venenso Autor: Eduardo Arimateia Paginação e capa: Paula Azevedo Ilustrações: Alice Geirinhas 1ª Edição Lisboa, 2019 Impressão e acabamento: Real Base ISBN: 978-989-8614-84-1 Depósito Legal:

Agradecimentos ao camarada Zut! Nuno Gandra, à Alice Geirinhas pelas ilustrações, à Filipa Martins pelo prefácio e incentivo, à Paula Fernandes, ao Delfim Sardo e José Alberto Carvalho pelas palavras de estímulo. À Margarida Oliveira pela paciência e interesse.


Para a Patuxa e a Constanรงa



PREFÁCIO

É na vertigem da responsabilidade e do agradecimento que escrevo estas palavras. É sempre um ato de nudez escrever. Publicar será exibicionismo? Será, na certa, um ato de coragem, um deixar cair o corpo nos braços de outros sem cuidar de olhar para trás para confirmar a sua presença ou a solidez do esqueleto que nos receberá. As páginas que se seguem são exatamente isto: um ato de liberdade e inocência dos sonhadores envelhecidos. A recusa do autor de se manter enclausurado na cela infinita dos dias, pontes de tédio tão bem construídas no dessossego de Pessoa. Os versos caminham entre a cal dos dias e os umbrais da noite. Ferrugem, sangue, sémen, suor, saliva. Tudo aquilo que não podemos arrancar ao organismo para que ele subsista, mesmo se insistimos ser fantoches livres de sentimentos, aqui poderá ser encontrado. São versos que não perdoam. Que não nos perdoam.

Filipa Martins


Dito e feito . . . .. .. ..


.. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . . .Quando meteu a cabeça dentro do carro apertei-lhe o pescoço com o vidro.

Ficou ali na guilhotina com os olhos cheios de lágrimas, a esbracejar como um moinho de vento. Foi um prazer bater-lhe. Baixei o vidro. Soltou-se com força enquanto eu arrancava. Fiquei com a ideia que ele ficou estendido no chão, junto a um charco ou mergulhado no cinzento. Tanto fazia, a tarde estava quase noite fria como eu gosto. Liguei as escovas do pára-brisas. O dia ia ser outro.

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Beira

Do granito parecia que se fechavam os punhos. A chuva ia caindo e pintando as luzes da cidade de amarelo. Frio está o coração embora o condicionado esteja on. Procuramos que as palavras façam sentido que pode ser proibido, quase obrigatório, ou a conjugação de sinais contraditórios. Estamos no tempo dos sentimentos em regime de aluguer, da delicadeza das flores, das máquinas que nos fazem correr. Queremos ir, mas sabemos que o caminho pode ser duro. Onde termina a estrada é o lugar onde, supostamente, reorganizamos a vida.

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Final

SĂŁo quase sete horas da tarde. HĂĄ o sol. O fim. E o dia. Deitei sal no arroz esperando a vida mais abstracta.

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Moldura

Meteu na cabeรงa que o passado era a realidade. A preto e branco, formato gigante como o Molder. Descansou nas paredes. Deixou de correr e saltar. Esteve assim um ano. Quando voltou, perguntou: - Por que me deixas assim pendurado?

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Domingo igual Domingo igual Domingo igual Domingo i

Desculpou-se do lacónico telefonema, do rádio expressivamente alto e da voz irreconhecível. A ansiedade permanente, o copo plástico que fingiu beber, a espuma afastada, atirada para a mesa. Julgava que se tratava de um rapto. Esqueceu-se da meia de vidro na cabeça e da caçadeira de canos serrados. Estava pronto para fugir. Ficou ouvindo histórias, conversa de disparates. O espelho defronte, o tempo que passa, o rosto estilhaçado dum adolescente, lâminas de vidro rasgando os belos pulmões cinzentos das radiografias. Não consegue escutar o ritmo das estações. Por ele tem os factos e os pontos de vista. São estes os argumentos que murmuram o nome dentro do corpo desgastado, à força dos escritos na noite vigiada por sílabas impossíveis. Agora, cintila naquela região, um rápido abraço na chuva da noite, a dor fugidia no canto do sofá. Um jantar de palavras privadas no hotel de vidraças e romances de uma vez na vida. Quando estes dias acabarem, Teerão é uma saída para o domingo.


Timidez Perguntou-lhe se ia ao cinema. Ela acendeu o cigarro, desviou o olhar do rosto dele. Respondeu-lhe que o filme era muito inocente.


Nostalgia a cores

É Levis o blusão. Tive assim um, faz alguns anos. Gostava muito daqueles bolsos interiores e do azul. De despir e vestir como as calças e aquele fecho-éclair. Tocava ao contrário “come on baby light my fire”, naquela noite que cheirava a tília e o calor fazia que as luzes se apagassem na janela. Por outras palavras, a cidade ia ficar às escuras porque não suportava a luz. Vezes e vezes julgamos que temos razão. Enganado, corre a rua abaixo entre os corações abandonados e mosquitos que fogem do fogo que os devora. Apenas e só. Estava protegido pelo blusão.

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Lua cheia

NĂŁo deste conta que acabou o sangue nas tuas veias. Pudera bebemos atĂŠ cair.

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