Contributo para a História da Pediatria em Portugal

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Contributo para a História da Pediatria em Portugal Dos primórdios ao início do século XXI

MARIA TERESA NETO JOÃO M. VIDEIRA AMARAL

BY T H E

BOOK


© EDIÇÃO By the Book, Edições Especiais TÍTULO Contributo para a História da Pediatria em Portugal © TEXTO Maria Teresa Neto | João M. Videira Amaral REVISÃO By the Book, Edições Especiais IMPRESSÃO Gráfica Manuel Barbosa & Filhos ISBN 978-989-53493-3-3 DEPÓSITO LEGAL 499407/22

BY THE

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Edições Especiais, lda Rua das Pedreiras, 16-4º 1400-271 Lisboa T. + F. (+351) 213 610 997 www.bythebook.pt


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Prefácio

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Palavras prévias

13 A Pediatria como ciência nasceu por causa das crianças 15

Os primeiros Pediatras

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Outras Figuras Marcantes da Pediatria

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O ensino da Pediatria

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O Reconhecimento da Especialidade de Pediatria

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A Cirurgia Pediátrica

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Outras Especialidades Pediátricas

51 Grandes eventos que influenciaram a pediatria portuguesa 55

Associações com impacto especial

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Redes Nacionais

59 Unidade de Vigilância Pediátrica da Sociedade Portuguesa de Pediatria 61

Publicações

69

Congressos e outros grandes eventos científicos

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Impacto nos indicadores de saúde infantil

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Conclusão

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Glossário

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Bibliografia



Prefácio

A

GONÇALO CORDEIRO FERREIRA

história da Pediatria, em Portugal tal como no mundo, não foi um caminho linear, nem um passeio entusiasticamente saudado por decisores políticos e mestres da Medicina quando, no fim do século XIX, começou a dar os primeiros passos. E não foi, pela simples razão de que o seu objetivo de colocar a Criança no centro dos cuidados era uma ideia revolucionária para a época. Na altura, os direitos da criança eram ignorados. As condições de vida de uma grande maioria, assombrosamente más. Nos campos ou nas cidades, não recebiam mais do que um mínimo de educação e o trabalho infantil era considerado uma inevitabilidade, para permitir o sustento das famílias numerosas. Os pais, ou quem os substituía, eram omnipotentes em tudo o que se relacionava com a vida dos seus filhos menores. Acrescia uma mortalidade neonatal e infantil na casa das duas décimas, fruto dos partos domiciliários sem assistência sanitária, das doenças infecciosas e das carências nutricionais. Mesmo os primeiros pioneiros da Pediatria, vindos da medicina de adultos, tinham das crianças e das suas doenças uma perspectiva singular como a de Sir James Goodhart, figura de proa do Evelina Hospital for Children que, no seu tratado de doenças das crianças em 1885, dizia, referindo-se à incapacidade daquelas em expressarem os seus sintomas, no que viria a constituir a metáfora do veterinário: “Yet there is not so very much difference between the student who has to investigate the diseases of children, and one who has to deal with those of the lower animals.” 7


Muito se andou desde aí graças à tenacidade e inquebrantável confiança na justeza da sua luta, de uns poucos – liderados por ilustres Pediatras – que puseram na primeira linha do seu combate a defesa dos interesses da Criança. Mas nada foi oferecido, veja-se o exemplo do Hospital Dona Estefânia imaginado pela generosidade e visão de um casal de príncipes dos afetos D. Pedro V e Dona Estefânia, que, destinado a ser um hospital para crianças, vê na data da sua inauguração ser ocupado com quatro enfermarias de adultos (mulheres) provenientes de um Hospital de São José à beira da rotura, e apenas uma para crianças : “Apenas é criada de novo uma enfermaria para creanças pobres dos dois sexos, em cumprimento da vontade expressa da augusta fundadora” (Decreto de 1877). Só nos anos 80, quase um século depois, com o encerramento das últimas camas de adulto (no Serviço de ORL) o Hospital se torna verdadeiramente pediátrico. Em boa hora os autores, Professora Doutora Maria Teresa Neto estudiosa da história do Hospital Dona Estefânia e do seu património, com vasta atividade bibliográfica no assunto, e o Professor Doutor João Videira Amaral, com os seus conhecimentos da história da Pediatria, nos vêm relembrar os marcos e quem os deixou, deste percurso. Mudaram-se as doenças que afligiam as crianças de então: sarampo, meningites bacterianas, tuberculose, raquitismo, doença da iso-imunização Rh, cardiopatias congénitas, febre reumática. Outras apareceram e algumas daquelas teimam em reaparecer. Em Portugal os eventos desta narrativa trouxeram-nos o Hospital Dona Estefânia, primeiro hospital pediátrico de país em 1887, profundamente remodelado em 1962, onde tem lugar a primeira aula de Pediatria por Jaime Salazar de Sousa e onde em 1957, pela mão de Manuel Cordeiro Ferreira, se inaugura a primeira urgência pediátrica autónoma, a nível nacional, em confronto com os poderes instituídos que a queriam manter integrada com a dos adultos no Hospital de São José. 8


Trouxeram-nos também a primeira Comissão Nacional de Saúde Materno-Infantil que em 1989 traçou o plano estratégico de organização em rede dos cuidados perinatais, que tantos anos depois, ainda nos permite ter taxas de mortalidade peri e neonatal que nos põem na vanguarda da Europa e de que os nossos políticos tanto se orgulham, muitas vezes sem cuidarem de investir nos recursos humanos e materiais para a sua manutenção. Finalmente e recentemente, trouxeram-nos a concretização da grande ambição dos Pediatras do Centro e diria eu de todo o país: a inauguração em 2011 do novo Hospital Pediátrico de Coimbra (justissimamente batizado de Carmona da Mota). A história da Pediatria em Portugal, como veremos, fez-se de Mestres que projetaram a sua influência para lá dos anos em que viveram e como tal iluminados pelos holofotes da História, mas fez-se também de muitos heróis mais ou menos anónimos, que só foram ou são lembrados por aqueles que com eles privaram nas trincheiras do combate contra a doença ou contra as adversas condições de vida das crianças que lhes foram confiadas. Dentro destes gostaria de citar duas pediatras (que me perdoem todos os outros) com as quais tive o privilégio de privar e aprender e que são um paradigma das qualidades das e dos pediatras portugueses ao longo destes tempos: Maria Elisa Sacramento Monteiro pela generosidade totalmente despida de egoísmo e completa dedicação aos seus doentes e Lídia Gama pela sua indefectível defesa da dignidade do ato médico. Quem não sabe do seu passado, dos ombros dos gigantes nos quais se apoia para ver mais longe, não percebe também as ameaças do futuro. Tal como nos ensina a história não devemos dar nada por adquirido. O que se ganhou, e tanto custou a ganhar, pode perder-se por desatenção, ignorância e indolência.

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Novas batalhas teremos de travar pelas crianças. Felizmente já não sozinhos. A começar pelo espectro da destruição desse baluarte da Pediatria portuguesa, o Hospital Dona Estefânia, que querem sacrificar aos interesses conjunturais economicistas, a pretexto de uma serôdia modernidade. Mas isso serão outros capítulos de uma outra história.

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Palavras prévias

N

MARIA TERESA NETO

ão é suposto esgotar a história da Pediatria em Portugal nesta publicação. Não foi esse o objectivo nem tal seria possível. Um pediatra do Norte e um pediatra do Centro do País escreveriam duas outras histórias diferentes. Mas, quanto mais histórias e mais olhares houver, maior será o conhecimento acumulado. Este escrito só foi possível porque, muitos antes de nós, escreveram sobre o que viram e viveram. É uma homenagem aos Mestres que formaram os pediatras, que formaram os pediatras, que formaram os pediatras da minha geração. Muitos destes, que construíram a pediatria e contribuíram para a melhoria da saúde da criança em Portugal, permanecem no anonimato. Em 1989 havia “apenas” 695 pediatras inscritos na Ordem dos Médicos, distribuídos – ainda e só – por Cuidados de Saúde Primários e Hospitais Públicos. Em 2020 eram 2 217, um valor que mais do que triplicou em três décadas. Mas, agora, não só não há pediatras nos cuidados primários do sector público, como eles são poucos nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde. Começamos esta história com eventos ocorridos nos finais do século XIX, porque foi aí que a Pediatria começou e terminamos na primeira década do século XXI, porque é mais difícil ver bem, o que perto se tem. Propositadamente, são ignorados os cuidados de puericultura e de apoio social e escolar prestados à criança em Misericórdias, creches, instituições e asilos, porque esses eram muito mais que cuidados de saúde.

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Algumas afirmações e ideias aqui expressas, foram já divulgadas em textos anteriores da minha autoria, nomeadamente na obra Omnia Sanctorum. Histórias da História do Real Hospital de Todos os Santos e seus Sucessores editado por Jorge Penedo, By the Book, Lisboa, 2012, Médicos e Sociedade editado por A. J. Barros Veloso, By the Book, Lisboa, 2017 e, ainda, na publicação da SPP 100 ANOS. Pediatria e Educação MÉDICA coordenada por Teresa Bandeira, Edição NEWSFARMA Lisboa, 2016. Um agradecimento muito especial ao Professor João M. Videira Amaral, meu Mestre, que aceitou fazer parte deste desafio e cuja coautoria e profundos conhecimentos nesta área, muito enriqueceram a obra.

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A Pediatria como ciência nasceu por causa das crianças

J

á anteriormente defendemos que, o que viria mais tarde a ser definido como Pediatria, teria surgido por causa do incómodo que constituía ter crianças internadas em instituições de adultos. Na realidade, era reconhecido que as crianças tinham particularidades que as distinguiam dos adultos, embora essas não fossem as que realmente mais interessavam. A preocupação das administrações hospitalares residia no facto de as crianças terem “o péssimo hábito“ de ficar doentes subitamente, de a mortalidade ser muito elevada – o que influenciava negativamente as taxas de mortalidade hospitalar – mas, também, por serem doentes muito difíceis. Na realidade, as crianças necessitavam de um cuidador – de quem lhes desse comida, água, banho, medicamentos – o que implicava gastos acrescidos com pessoal.1 Além disso, era reconhecido que as doenças infecciosas eram mais frequentes na infância, o que levava ao receio de, ao internar muitas crianças num mesmo local, se estivesse a favorecer o surgimento de epidemias.2 Havia ainda outros dois aspectos relacionados com o internamento de uma criança doente: as famílias abastadas admitiam não internar os filhos num hospital, porque isso significava o abandono da criança num período em que ela mais precisava da mãe; quanto às famílias necessitadas, receava-se que “depositassem” os filhos no hospital e nunca mais os fossem buscar, libertando-se da responsabilidade e dos encargos económicos de os criar.1,2

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Numa conferência na Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa proferida em Maio de 1868, Bernardino António Gomes, na altura elemento da Comissão de Acompanhamento da construção do Hospital da Bemposta, futuro Hospital Dona Estefânia, afirmava que os doentes de menor idade, só em hospitais bem organizados podiam ser tratados. E explica o que queria dizer com hospitais bem organizados, ou seja, o que distingue um hospital de adultos de um hospital para crianças …“que não depende tanto da construção do edifício, que em pouco difere da dos adultos, mas da que deriva das disposições do serviço interno, da escolha e educação do pessoal apropriado e do modo por que elle deve funcionar”. 2 Por outro lado, era admitido que, por não se saber nada sobre as doenças das crianças, o seu internamento separado do dos adultos, condicionaria positivamente a aprendizagem sobre as suas necessidades, as suas doenças e a sua cura – o diagnóstico sem queixas, os sinais e os sintomas, os medicamentos e as doses mais apropriados – e, ainda, a sua alimentação. Enfim, levaria a que se percebesse que “uma criança não é um adulto em miniatura”.3 E foi assim que nasceu a pediatria – a área do conhecimento médico, com especificidades, devotada à criança. Há 100 anos, Jaime Ernesto Salazar d'Eça e Sousa ensinava que a criança tinha várias “épocas críticas”, a primeira das quais começava na concepção e a última na adolescência, onde terminava a pediatria.3 A definição de hoje é apenas ligeiramente diferente – a medicina global de um grupo etário que vai da concepção ao final da adolescência.

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Os primeiros Pediatras

E

m 1878, ano em que o primeiro hospital construído para crianças em Portugal começa a funcionar – o Hospital da Bemposta – as epidemias condicionavam uma enorme falta de camas para adultos em Lisboa. Por isso, este hospital foi ocupado por adultos. Contudo, uma enfermaria com 40 camas, a de Santa Estefânia, seria destinada a crianças dos dois sexos, cumprindo a determinação do Rei Dom Luiz, publicada em Diário do Governo. Sara Benoliel, a primeira pediatra portuguesa, afirma que a enfermaria era dirigida por Francisco José da Cunha Viana que “troca o serviço” com Joaquim Eleutério Gaspar Gomes (1824-1896).4,5 Gaspar Gomes é, por isso, considerado o primeiro director de uma enfermaria para crianças. Doutorado pela Universidade de Bruxelas, promove reformas para adequar a enfermaria à criança, exigindo regulamento autónomo, dietas apropriadas, formulário adequado, pavilhão específico para doenças infecciosas e parque de recreio com pequeno bosque para passeios ao ar livre.4 Exige também que se introduza o ensino primário às crianças hospitalizadas, o que viria a concretizar-se apenas 47 anos depois pelas mãos de Sara Benoliel e Jaime Ernesto Salazar d'Eça e Sousa.4 Contudo, se Eleutério Gaspar Gomes é considerado o Primeiro Director de uma enfermaria para crianças, é consensualmente admitido pelos seus contemporâneos, que a pediatria começou um pouco mais tarde, com Jaime Ernesto Salazar d'Eça e Sousa. A este respeito, Sara Benoliel refere-se a Salazar de Sousa dizendo: “dedicando-se à criação de uma especialidade que antes dele não havia em Portugal… .” 4 Augusto Celestino da Costa, Maria de Lourdes Levy e José Santos Bessa são da mesma opinião.6-8 15


Jaime Ernesto Salazar d'Eça e Sousa (1871-1940), formou-se na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e especializou-se em Boston, regressando a Lisboa em 1897 como ortopedista e pediatra de medicina e cirurgia.4,7,8 Por esta altura, o ensino da pediatria no curso de medicina ainda não existia nem em Portugal nem em muitos outros países, mesmo mais desenvolvidos. Na realidade, no XV Congresso Internacional de Medicina, que teve lugar em Lisboa em Abril de 1906, na VI Secção – a de Pediatria, de que Salazar de Sousa era Secretário – foram aprovados três votos, dois dos quais propostos por Salazar de Sousa.7 • “criação de uma comissão internacional para inquirir das condições da produção de raquitismo” e • “que o ensino cirúrgico e médico da Pediatria seja oficial em todas as Faculdades e Escolas de Medicina”. Ora, tratando-se de um congresso internacional, considera-se que a palavra “todas” significaria escolas de todo o mundo. Joaquim Eleutério Gaspar Gomes falece aos 72 anos em 1896, ano em que Salazar de Sousa vai para os EUA. Não sabemos o que se passou até 1902. Sabemos que nesse ano Salazar de Sousa inicia as consultas de pediatria no Hospital de São José onde foi autorizado “a dirigir a consulta de doenças das crianças que o Dr. Joaquim Evaristo d’Almeida, como director da consulta dessa especialidade se vê obrigado a abandonar… e que funcionou durante muito tempo”.4 Na realidade, Rita Garnel refere que, em 1860, já funcionava no Hospital de São José uma enfermaria infantil.9 Em 1903 essa consulta foi desdobrada para o Hospital Dona Estefânia, passando a haver duas consultas de pediatria. Na opinião de Leonardo Castro Freire, o “herdeiro” de Salazar de Sousa “a consulta de pediatria e puericultura do Hospital de S. José foi o berço da pediatria portuguesa”.10 Patrocinada por António José de Almeida, médico e Ministro do Interior, a reforma do ensino de 1911, cria as Universidades de Lisboa e do Porto e eleva as Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto a Faculdades de Medicina. Na mesma Reforma, foram criadas as 16


especialidades, tendo sido instituído o ensino da Pediatria como disciplina independente7 inserida no 4.º ano do curso de Medicina. O Professor Catedrático Jaime Ernesto Salazar d’Eça e Sousa foi convidado para reger a cadeira de Pediatria e Orthopedia. Em 1913, a Enfermaria de Santa Estefânia, dirigida por Salazar de Sousa é dividida em duas, por Ordem de Serviço dos Hospitais Civis de Lisboa (HCL) de 13 de Novembro, emanada pelo Enfermeiro-Mor dos HCL Francisco Gentil. Deste modo, passa a haver duas enfermarias no Hospital Dona Estefânia: • uma de Medicina, a de Santa Estefânia, que se mantém no mesmo local e passa a ser dirigida por José Júlio Leite Lage de que mais à frente falaremos; • e, outra, de Cirurgia, localizada na Enfermaria de St.ª Ana, dirigida por Salazar de Sousa, cargo que ocupa aquando da morte de Jacinta Marto (1920), cuja Papeleta é por ele assinada como Director de Serviço e por Leonardo Castro Freire como “Operador”. Aumenta, assim, a lotação de camas destinadas à criança o que, contudo, como adiante se verá, não irão ser suficientes. Salazar de Sousa sempre deu aulas no Hospital Dona Estefânia. A primeira lição viria a ter lugar em 1916, em plena I Grande Guerra.4,8 Quando morre, em 1940, um ano antes do seu Jubileu, o seu seguidor no ensino pré-graduado, é Leonardo de Castro Freire. Castro Freire, que viria a ser o Presidente do 1.º Congresso de Protecção à Infância realizado em 1952, era formado “em Medicina e Cirurgia Pediátricas num dos melhores centros alemães,” 7 tocava violino e violeta, por vezes com Wohlwill (1981-1958), o patologista alemão fugido dos nazis que fez escola em Portugal.7, 11 -13 Contudo, Leonardo de Castro Freire não era Director de Serviço dos Hospitais Civis de Lisboa (HCL), pelo que não podia continuar a ensinar no Hospital Dona Estefânia.4,7 Por isso, o ensino da “Medicina da Criança” foi transferido para o Hospital Escolar de Santa Marta, onde a disciplina foi leccionada entre 1940 e 1954. 17


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