A Reforma necessária do Sistema de Saúde Português

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A REFORMA NECESSÁRIA DO SISTEMA DE SAÚDE PORTUGUÊS José Fragata



A REFORMA NECESSÁRIA DO SISTEMA DE SAÚDE PORTUGUÊS José Fragata

B Y THE

BOOK


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quem se dirige este livro A e porquê lançá-lo agora

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Tipologia do Sistema de Saúde Português

17 O Retrato do Sistema de Saúde Português –

Indicadores

41 Porque precisamos de Reformar

agora o Sistema de Saúde?

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ue Sistema de Saúde para Portugal – Q Os Pilares da Reforma de Saúde

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PREVENÇÃO E SAÚDE PÚBLICA

58 A PIRÂMIDE ASSISTENCIAL E A INTEGRAÇÃO DE CUIDADOS – DA SAÚDE FAMILIAR AOS CUIDADOS HOSPITALARES 68

QUE TIPO DE HOSPITAIS?

74 FOCO NA PRODUÇÃO, NA EFICIÊNCIA OU NA CRIAÇÃO DE VALOR? 78 A CENTRALIDADE DO DOENTE NO SISTEMA DE SAÚDE E A PROMOÇÃO DO ACESSO 84 A NECESSIDADE DAS COOPERAÇÕES MULTISSECTORIAIS PARA A SAÚDE


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INOVAÇÃO (REVOLUÇÃO) DIGITAL EM SAÚDE

93

O PESSOAL QUE TRABALHA NA SAÚDE

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GESTÃO DA SAÚDE

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FINANCIAMENTO DA SAÚDE

122 CUIDADOS DE PROXIMIDADE, CONTINUADOS E O PAPEL DO SECTOR SOCIAL 124 A SAÚDE ASSISTENCIAL E AS INTERFACES COM AS UNIVERSIDADES 128

AS “SUSTENTABILIDADES” NA SAÚDE

136 SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE PORTUGUÊS – A EXCESSIVA INFLUÊNCIA DA IDEOLOGIA POLÍTICA 142

PRESERVAÇÃO DOS VALORES FUNDAMENTAIS – A ÉTICA PARA A SAÚDE

148 VISÃO, MISSÃO, ESTRATÉGIAS E LIDERANÇA PARA A REFORMA DA SAÚDE

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necessidade de Resiliência A para o Sistema de Saúde Português

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Considerações finais

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



I. A quem se dirige este livro e porquê lançá-lo agora

A saúde é um tema que interessa a todos nós. Do nascimento ao longo da vida e até à morte todos contactaremos com a prestação de cuidados de saúde, seja na prevenção seja no tratamento, todos seremos alternadamente saudáveis e doentes e todos nos relacionaremos com os temas da saúde. Estes, por vezes dramas, outras vezes clamorosas vitórias. O tema da saúde, nas suas vertentes humana, tecnológica, económica, mediática, e até como fonte especulativa, desperta sempre um enorme interesse e é-nos de grande proximidade. Não espanta, por isso, que a saúde se encontre frequentemente na ribalta das discussões sociais e políticas e na ordem do dia das nossas preocupações, sendo mesmo usada como instrumento de promoção, ou arma de arremesso político. Existem, inegavelmente, duas verdades sobre a saúde: ʞ A primeira verdade é que a saúde interessa a todos nós não sendo monopólio de nenhuma individualidade ou grupo político ou social obstinado; por essa razão, as discussões sobre a saúde interessam ao homem comum enquanto cidadão responsável, como um tema seu que deve ser compreendido na sua literacia própria. Só assim poderemos fazer as melhores escolhas, primeiro, sobre a prevenção das doenças e a preservação responsável da nossa saúde, depois sobre os tratamentos de que venhamos a necessitar. Escolhas que se desejam interessadas e participativas, de modo a permitir formar opinião sobre o modelo de sistema de saúde de que usufruiremos, ou seja, sobre as grandes opções “políticas” para a nossa saúde.

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ʞ

A segunda verdade é que a saúde não é, em parte nenhuma, e de todo, gratuita. Diz-se muitas vezes que a saúde não tem preço, e é verdade, mas tem custos. Esses custos, cada vez mais elevados, serão sempre suportados pelos cidadãos, seja directamente, seja pela via dos impostos, como também por seguros baseados em risco – assim serão sempre os cidadãos que usufruem dos cuidados que pagam. E quem paga deve ter sempre uma palavra a dizer, sobre o acesso, sobre a qualidade, sobre a própria sustentabilidade da prestação de cuidados de saúde e, naturalmente ser um crítico informado sobre o próprio modelo de prestação dos cuidados de saúde.

Resolvi escrever este livro, para permitir ao cidadão comum, a cada um de nós com opinião, ficar a entender melhor o estado da nossa saúde e perceber a necessidade de aí operar uma mudança. Propriamente uma reforma para o sistema de saúde português. Procurei que fosse este um livro bem informado, mas preocupei-me sobretudo que fosse acessível à compreensão de todos: um livro que se demarcasse da discussão habitual, tão comum ao jargão político, entre o “público” e o “privado”, para se centrar antes nos cidadãos, na centralidade própria que lhes deverá caber relativamente às expectativas que legitimamente têm sobre os cuidados que envolvem a sua saúde. E também quanto às responsabilidades que lhes cabem na prevenção e na manutenção da sua própria saúde. Porque será agora oportuno este livro? Porque o sistema de saúde português atravessa hoje uma crise sem precedentes, crise que foi agravada pela mais recente pandemia, que ainda hoje nos fustiga. Crise que já existia muito antes da pandemia, mas que nenhum governo ousou encarar de frente com realismo e plena visão reformista. Talvez por ser difícil, provavelmente por ser politicamente “perigoso”, certamente por nunca ter havido uma maioria de consenso estável sobre a política de saúde. Quero dizer, um entendimento que ultrapassasse a duração das nossas curtas legislaturas.

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Esta visão reformista não só precisava de uma equipa competente, mas também do tempo e da estabilidade política para conduzir essa desejável reforma. Tal não tem sido possível, mas é agora necessário, e a pandemia só veio estabelecer-lhe a premência. No dizer de Winston Churchill we shall never let a crisis go to waste. Efectivamente as crises são colossais oportunidades de reforma e por diversas ordens de razões: primeiro, porque as crises criam momentos de grande necessidade, de necessidade urgente. Depois, porque se aprendem grandes lições com as crises, ainda porque o momento de acção-resposta legitima as roturas sempre necessárias para uma qualquer mudança significativa. Este deveria ser o momento de mudança do sistema de saúde português que só uma reforma profunda lhe poderá aportar. Esta é, sinceramente, a minha visão. Conhecedor profundo que sou do nosso sistema de saúde, no qual trabalho há mais de 44 anos, continuadamente no Serviço Nacional de Saúde, mas também no sector privado e numa especialidade de enorme exigência, a cirurgia cardiotorácica. Percorri todos os graus da hierarquia da carreira hospitalar pública e, nos últimos anos, ocupando cargos hospitalares dirigentes da maior responsabilidade. Mas esta será também a visão do cidadão comum, do espectador activo e sempre crítico daquilo que vou presenciando no sector da saúde ao qual dediquei, afinal, toda uma vida. Esta será uma visão fundamentalmente humanista, por estar orientada para os doentes-pessoas, sem deixar de ser tecnológica, porque a tecnologia é o braço-armado da medicina moderna. Mas esta não será, de todo, uma visão política por se concentrar mais nas policies e menos nas politics que tanto envolvem a saúde nos nossos dias. Talvez seja, por isso, uma visão mais isenta. Pelo seu afastamento da política, muitos terão a tentação radical de classificar a visão aqui apresentada como excessivamente tecnocrata. Poderá ser, mas sem deixar por isso de ser sensível e de responder em cada momento à natureza dominantemente humana e social da saúde – uma visão preocupada com os doentes-pessoas, e por isso, essencialmente humanista. 9


Com este livro pretendo que os meus doentes, os meus concidadãos, os meus pares de profissão, entendam o que está mal no nosso sistema de saúde e percebam a necessidade de o fazermos reformar. Essa responsabilidade terá de ser mediada pelos políticos no exercício da política, mas recai também sobre os cidadãos, cidadãos que se querem hoje bem interventivos nas grandes causas sociais que lhes dizem respeito. Esta é uma forma de empoderamento e uma genuína manifestação do exercício pleno da democracia. É que só quem está esclarecido poderá exercer esse mandato, o de motivar e contribuir para a reforma do sistema de saúde português. Não me limitando a enumerar o que está bem e a criticar o que está mal no nosso sistema de saúde, pretendo ainda que fiquem a conhecer, de modo simples, as determinantes técnicas e os pilares fundacionais para essa reforma, bem como a hierarquia dos princípios de ética social a que terá necessariamente de obedecer. Peço-vos que me perdoem por não ser este, desta vez, um livro dirigido aos eruditos da saúde, mas antes um livro simples que pretende sobretudo contribuir para a literacia dos cidadãos sobre a sua própria saúde, estimulando a sua intervenção e ajudando a que formem a sua própria opinião.

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II. Tipologia do Sistema de Saúde Português

Portugal tem um Sistema de Saúde assente no serviço público, o Serviço Nacional de Saúde (SNS), que foi introduzido há mais de 40 anos no advento da era democrática, para prestar cuidados com carácter universal e inicialmente gratuito. Era então um sistema de natureza Beveridgiana1, inspirado no modelo inglês em que o Estado se constituía como prestador, como financiador e como gestor de todos os cuidados de saúde. Cuidados financiados pelos impostos que os cidadãos pagam. É importante saber que o Reino Unido adoptou este sistema logo após a segunda guerra mundial, quando o país se achava na miséria e a população estava pobre, doente e desempregada, precisando desesperadamente de cuidados de saúde mas não menos de uma competente protecção social. Era um sistema gratuito destinado a cobrir as carências básicas e uma enorme necessidade social, um sistema para responder a uma crise e dar resposta à pobreza extrema, em contexto da maior vulnerabilidade, de saúde, económica e social.

1. Foi um ambiente socioeconómico de extrema e urgente necessidade que motivou no Reino Unido do pós-guerra um modelo de saúde Beveridgiano (William Beveridge 1942) levando à criação do Serviço Nacional de Saúde Britânico em 1948. Este Serviço pretendia dar resposta a uma sociedade britânica totalmente fragilizada, acabada de sair da Segunda Guerra Mundial, fornecendo cuidados de saúde para todos, não só para os nobres, daí que o seu objectivo seria abranger a saúde e a cobertura social de todos os cidadãos. Este modelo acabaria por ser adaptado por outros países europeus, sobretudo da periferia e menos abastados, como Portugal e Espanha, mas também e por razões diversas, do norte da Europa, como a Noruega ou a Suécia. 11


Em Portugal, o SNS foi criado segundo a mesma filosofia, não necessariamente para o mesmo nível de necessidades, mas no virar do regime ditatorial e na ausência flagrante de um sistema de saúde de ampla cobertura. Passados agora mais de 40 anos, verificaram-se profundas mudanças na medicina e na sociedade, mas o SNS português, ao invés de outros na Europa também com tipologia Beveridgiana, permaneceu largamente inalterado na sua estrutura. Independentemente de ter havido uma enorme alternância e muita inconsistência nos modelos de gestão que foram sendo sucessivamente aplicados e que foram variando de acordo e ao sabor das alternâncias políticas que se sucederam. A uma maior demanda tecnológica, a uma crescente exigência social, não corresponderam nem o necessário financiamento, nem a adequação do modelo de prestação, tão pouco a adaptação-modernização da gestão. O Sistema de Saúde Português evoluiu assim, por necessidade e face às insuficiências progressivas do SNS, para um sistema de saúde que é hoje misto: onde o modelo Beveridgiano se manteve como inspirador, mas onde o modelo Bismarckiano se foi instalando progressivamente, nomeadamente assegurado pelo crescimento do sector privado da saúde, pelo que coexistem hoje em Portugal ambos os modelos. O modelo Bismarckiano2 , usado presentemente na Europa por dezassete países, baseia-se no pagamento de taxas pelos cidadãos em fase activa de trabalho, criando, por esse contributo, fundos destinados a contratar a prestação dos seus cuidados de Saúde. Cuidados que lhes são prestados por organizações não estatais e não governamentais.

2. Na Alemanha, Otto Von Bismarck introduziria em 1883 o modelo dito Bismarkiano ou do “estado providência,” tendo com ele criado os primeiros seguros sociais obrigatórios, seguros que cobriam a doença, os acidentes de trabalho, a invalidez e até as carências da velhice. Uma das grandes diferenças para o modelo inglês que seria instituído cem anos depois é que, para beneficiar destes serviços não bastava ser um cidadão nacional, mas além disso, teria de se contribuir para o sistema, ou seja, ser um qualquer trabalhador activo na sociedade. Modernamente, os estados cobrem também os cidadãos de rendimento insuficiente, na melhor tradição dos estados sociais europeus. 12


Mantém-se, naturalmente, a cobertura para os indigentes e para quem não tem trabalho, assegurando-se desse modo uma estrutura universal de saúde, para todos os cidadãos e para a esmagadora maioria dos serviços. Face à incapacidade progressiva do SNS, a componente privada (privada pura – out of pocket) e a de pagamento por sistemas (subsistemas e seguros de vária ordem) permitiram a procura a um florescente sector privado da saúde, suportado já não pelo Estado (mediante os impostos), mas pelo esforço económico directo dos cidadãos e das suas famílias. De notar que em acumulação com as deduções fiscais (que são a fonte do financiamento do SNS pelo estado), deduções a que se acham obrigados fazer. Deste modo, actualmente em Portugal, a saúde é financiada pelos impostos em cerca de 59%, estando os restantes 41% a cargo do esforço individual dos cidadãos e das famílias, cobrindo seguros facultativos e o gasto directo. O Sistema de Saúde Português gastou em 2020 com a saúde, 10,1% do nosso PIB, valor que será mesmo superior ao da média da OCDE que é de 8,8%. No entanto, o dispêndio português per capita com a saúde foi de 3 347 USD, um valor que é inferior à média da OCDE, que é de 4 087 USD e, certamente, muito inferior ao da Alemanha que é de 6 518 USD. No esforço financeiro privado com a saúde incluem-se os esquemas de seguro (em expansão rápida nos últimos anos, hoje com cerca de 1/3 da população coberta), e o denominado dispêndio out of pocket. Este último tem vindo a crescer, tendo atingido já 30% do gasto total com a saúde e achando-se entre os maiores da OCDE e da Europa, dado que a média europeia é de não mais de 14%! Assim, do dispêndio total com a saúde, que é de 10,1% do PIB português, só 59% provêm directamente dos impostos. Deste modo o estado financia a Saúde, que reclama como bandeira ser de cobertura universal e tendencialmente gratuita, com não mais de 6% do seu PIB – valor que é semelhante ao que o México despende (6,2%).

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Acresce ainda o facto do PIB português ser muito inferior, por exemplo, ao PIB alemão e que o país tem de importar quase todos os materiais de consumo que gasta para a prestação de cuidados de saúde (importação feita do estrangeiro e a preços invariavelmente elevados...). Existe assim, documentadamente, um subfinanciamento grave e crónico do SNS português. Simultaneamente, é-nos apregoado que a cobertura de saúde é universal e tendencialmente gratuita, enquanto a taxa de esforço das famílias com a saúde não pára de crescer e, com ela, a necessidade de recorrerem a coberturas suplementares, nomeadamente por seguros privados, que atingem hoje mais de 30% da população. Ademais, fruto da insatisfação, é frequente a cobertura múltipla, por exemplo: pelo SNS (para toda a população), adicionalmente pela ADSE (para os servidores do Estado) e, por vezes ainda, cumulativamente, através de um qualquer seguro privado de saúde. Ora o SNS é-nos tradicionalmente apresentado e tem sido reconhecido como um veículo promotor da equidade social ao permitir, quer a ricos quer a pobres, o acesso a cuidados de saúde, em condições de plena igualdade. Neste caso a equalização e a justiça na distribuição é conceptualmente feita pela proporcionalidade progressiva da taxação dos impostos, estes indexados, como é sabido, aos rendimentos declarados por cada um de nós. Este é um tema com impactos que transcendem a mera dimensão económica e o esforço das famílias, impactos que são éticos e sociais e se prendem com o exercício da boa justiça distributiva. Ora o SNS, que se reclama de cobertura universal – que é exercida com plena equidade, no que respeita ao acesso atempado aos serviços, ao pacote de serviços disponíveis, à ausência de segregação por género, raça ou religião, ou mesmo por nível económico – é, enquanto tal, um promotor da equidade social. Quando o SNS não consegue, realisticamente, garantir o acesso a cuidados de saúde em tempo adequado e útil (vejam-se as longas listas de espera, estas agora agravadas pela pandemia mais recente), os cidadãos não têm alternativa senão recorrer aos sectores complementares, tipicamente o sector social e o sector privado da saúde. 14


Quando esta necessidade surge, o SNS vai-se transformando, irónica e paradoxalmente, num mecanismo gerador de iniquidades e promotor de agravamento da injustiça social, ao forçar, na mesma medida, as famílias – sejam pobres ou sejam ricas – a dispêndios de esforço financeiro semelhantes com a sua saúde, quando recorrem por extrema necessidade ao sector privado, sistema que pratica preços iguais independentemente da capacidade económica. Por enquanto as famílias vão tentando, por esforço assimétrico e injusto, assegurar a cobertura de que precisam, mas se assim continuarmos, não duvido, iremos ter uma saúde para ricos e outra, bem pior, para os pobres. Uma realidade que não queremos experimentar. Se formos rigorosos poderemos, talvez, concluir que a saúde em Portugal se acha insuficientemente financiada e que a parte que se acha em défice será a contribuição que o Estado para ela retira a partir dos nossos impostos. Esta dotação pelos impostos não é mais suficiente para assegurar a apregoada cobertura universal, e para a assegurar com acesso suficiente, a desejável qualidade e a imprescindível equidade. Os portugueses já despendem suficientemente com a sua saúde, pelos impostos que têm de pagar como também directamente, pelo que deveriam ter um sistema de saúde com níveis de resposta bem mais satisfatórios do que os actuais. Lembremos mais uma vez que quem paga a sua saúde são os cidadãos, e que os portugueses já a financiam de forma suficiente em proporção do PIB, pese embora o gasto português per capita com a saúde ser inferior ao médio despendido pelos países da OCDE, e bem inferior ao despendido pelos países com quem gostaríamos de nos fazer comparar. Tradicionalmente indexamos o dispêndio com a saúde ao PIB absoluto de cada país, mediante uma percentagem, que é para nós de 10,1%. Se a percentagem está para nós correcta, é bom que tenhamos consciência da assimetria marcada dos PIBs entre os países europeus. Efectivamente, contas feitas, o dispêndio real com a saúde em Portugal é cerca de metade do dos países da OCDE e, logo, manifestamente insuficiente. Lembremo-nos de que tendemos a comprar ao estrangeiro a maior parte do material que precisamos para a saúde, sendo que o nível

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de prestação de cuidados terá de ser absolutamente comparável aos dos restantes países. Mas os modelos são reais e os povos só podem mesmo almejar gastar com a sua saúde na medida dos PIBs que geram, daí não podermos ter uma dotação maior do que a que temos. Por isso teremos que estudar modelos mais adequados para fazer financiar a saúde; como alguém dizia, por não sermos ricos... teremos mesmo é de ser mais inteligentes.

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III. O Retrato do Sistema de Saúde Português – Indicadores

Será o nosso sistema de saúde apropriado às nossas necessidades? Sobre a adequação do nosso sistema de saúde, há três perguntas simples que deveremos sempre fazer: ʞ ʞ ʞ

Têm os portugueses a saúde de que precisam? Estarão os portugueses satisfeitos (satisfação em acesso e qualidade) com os cuidados de saúde de que dispõem? Será que o nível do que presentemente dispomos, ou gostaríamos de vir a dispor, é plenamente sustentável?

As respostas a estas perguntas não são fáceis, não são sequer simples, havendo que considerar diversos parâmetros de resultados em saúde, indicadores que a OCDE[1] ou a União Europeia – UE[2] têm bem definidos e que regularmente publicam para classificar, relativamente à sua saúde, os diversos países que as compõem. Esses relatórios tornam a nossa análise mais simples e bem mais objectiva: Relativamente a indicadores de saúde, a OCDE (vide Relatório OCDE 2021 - 1) cita habitualmente as seguintes categorias: 1. Resultados (outcomes) – health status, tais como a duração de vida, as causas de morte, a mortalidade por idade, as prevalências da doença mental, da diabetes, ou do cancro. 2. Factores de Risco para o desenvolvimento de certas doenças, tais como o consumo de álcool e os desvios da nutrição.

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3. Gastos e Financiamento com a Saúde, através dos montantes e, comparativamente, face à natureza dos serviços prestados. 4. Qualidade dos Cuidados de Saúde e Experiência dos Doentes, tais como a mortalidade evitável e a sobrevida para as diferentes patologias, mas ainda a vacinação, a prevalência de infecções em cuidados de saúde, etc. 5. Acessibilidade, medida pelos tempos para acesso a cuidados (listas de espera) pela disponibilidade em camas e em pessoal, pelo esforço financeiro das famílias, etc.

RESULTADOS (OUTCOMES) Há que referir que os outcomes de saúde dos portugueses têm, globalmente, sido bons e não nos deixam mal colocados na comparação com os restantes países, seja da UE, seja da OCDE. Vejamos:

Expectativa de Vida à Nascença No que respeita à expectativa de vida à nascença a média europeia é de 81 anos, sendo esta média para Portugal de 81,5 anos. Este valor só é ultrapassado, por exemplo, pela Suíça e pela Noruega, países com expectativas de 82,5 anos. Mas mais importante será considerar a qualidade que existe nesses mesmos anos de vida, expressa pelo indicador “expectativa de vida saudável”, ou seja, livre de incapacidades. Este valor é para a UE de 78,2 anos no caso dos homens e de 83,7 anos no caso das mulheres. No entanto, para cerca de 20% destes sobreviventes haverá limitações físicas significativas, limitações que comprometem muito a sua qualidade de vida. Se é certo que os valores da sobrevida não são muito diferentes para Portugal, o que é mesmo diferente é o nível de limitação física nos anos finais da vida, facto que compromete muita qualidade desses anos e a qualidade percepcionada dessa vida. Para os homens essa limitação cifra-se entre nós em 24% e para as mulheres em 32%. Ou seja, 1/4 a 1/3 dos nossos cidadãos seniores apresentam limitações físicas que comprometem significativamente a sua qualidade de vida. 18


Causas de Morte As principais causas de morte nos países da UE são as doenças cardiovasculares (37%), o cancro (26%), as doenças respiratórias (8%) e outras causas externas diversas (5%). Estes valores não diferem para Portugal, país que por sinal apresenta uma das mais baixas taxas de incidência esperada e de mortalidade para os diversos tipos de cancro. Uma outra dimensão em que estamos bem em linha, ou mesmo melhor posicionados que a UE é na taxa de mortalidade infantil, que é de 3,3 por mil nados vivos, só batida pela da Islândia ou da Noruega com valores entre 1 e 2 por mil.

Doenças Crónicas A doença mental e o stress psicológico nos adultos é prevalente em cerca de 12% da população europeia, valor que para Portugal é de 25% – o mais alto na Europa (apesar destas percepções poderem ser influenciadas por diferentes determinantes culturais). No entanto Portugal apresenta, mesmo assim e comparativamente, uma baixa taxa de suicídios. Já relativamente às doenças crónicas em geral, de forma esperada dado o aumento da longevidade, o seu número aumentou muito e o impacto faz-se agora sentir. Assim, pelos 65 anos, 37% dos homens e 41% das mulheres na Europa declaram sofrer de, pelo menos, duas enfermidades crónicas, valores que aos 80 anos ascendem a 47% e a 56%, respectivamente. Entre estas doenças crónicas, a diabetes assume uma expressão bem significativa e vem em crescendo, com uma prevalência actual média na UE de 6,2% da população (32 milhões de europeus), valor que para Portugal se estima em cerca de 10%. A diabetes, dita de tipo II (não dependente de insulina), está associada a comportamentos de risco, tais como a obesidade, a pouca literacia sobre saúde e a inactividade física, comportamentos que são mais prevalentes nos níveis educacionais mais baixos da população, como acontece ainda entre nós. Neste aspecto estamos menos bem.

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Em conclusão: ʞ ʞ

ʞ ʞ

Os portugueses têm uma expectativa de vida à nascença de cerca de 81 anos, valores em linha com a média europeia. Para os portugueses, a expectativa de vida saudável é de 78,2 anos, sendo que entre 20 e 30% apresentarão limitações de ordem física. Estes valores estão também dentro da média europeia. Relativamente à mortalidade infantil e às causas de mortalidade nos adultos, Portugal está igualmente em linha com a UE. Em Portugal a prevalência de doenças crónicas é claramente superior à média europeia, com predomínio para a diabetes tipo II e para a doença mental, factores que muito penalizam todo o sistema de saúde e a vida das populações.

FACTORES DE RISCO PARA A SAÚDE Entre os denominados factores de risco para a saúde, acham-se os desvios da nutrição (predominantemente a obesidade) a par com a inactividade física, o tabagismo, os hábitos alcoólicos tóxicos e o consumo de drogas aditivas. Relativamente ao consumo de álcool, de tabaco e de drogas leves (como a canábis), entre os adolescentes, Portugal acha-se bem colocado, com percentagens inferiores a 10%, representando mesmo metade da média europeia. Já para a população adulta o consumo regular de tabaco era em 2018 de 21% para a UE e de 17% para Portugal, valor que relativamente a Portugal tem vindo a decrescer. O consumo de álcool é em Portugal de 10,4 litros por ano e por cidadão, um valor que se acha ligeiramente superior ao da média europeia que é de 10 litros por ano e por cidadão. Deixei para último os desvios da nutrição, por serem os que mais impacto têm, nomeadamente os excessos no consumo de sal, de açúcar e de bebidas com açúcar (denominadas soft drinks). Estes desvios associam-se frequentemente a uma menor ingestão de fruta e de vegetais frescos, sobretudo nos jovens. 20


Em Portugal, em linha com toda a UE, o consumo diário de fruta fresca entre os jovens não ultrapassa os 50%, sendo as soft drinks consumidas em média por 16% dos adolescentes. No que diz respeito à actividade física, a esmagadora maioria da população europeia, como a portuguesa, não cumpre as recomendações de actividade física pela OMS, (a prática de pelo menos, 60 minutos diários de actividade enérgica); na verdade, só menos de 20% da população as cumpre. Talvez como consequência, e contribuindo também os desvios nutricionais, a prevalência de excesso de peso, ou mesmo de obesidade na UE atinge cerca de 18% na população jovem. Esta tendência tem vindo sempre em crescendo, particularmente entre nós. Assim, para Portugal, esse valor é de 23% nos jovens, sendo para os adultos cerca de 30%. Na UE 22% da população tem excesso de peso.

Conclusões: ʞ

ʞ

Portugal tem padrões de risco não muito diferentes dos da UE no que respeita ao consumo de álcool e de drogas aditivas, e nalguns casos estes padrões são mesmo inferiores aos da média europeia, particularmente entre os jovens. No que concerne aos desvios da nutrição, Portugal apresenta níveis de obesidade jovem e adulta significativamente superiores aos da média europeia, o que é motivo de grande preocupação, dado os impactos da obesidade sobre a saúde das populações.

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