António José de Barros Veloso : uma vida, vários mundos

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António José de barros veloso

uma vida, vários mundos Margarida Almeida Bastos


AGRADECIMENTOS

© EDIÇÃO

By the Book, Edições Especiais

Álvaro Carvalho Ana Paula Costa Carlos Reis Francisco Veloso Isabel Almasqué João Moreira dos Santos Joaquim Mendes Luís Veloso Paula Teixeira Paulo Almeida Fernandes Rita Fragoso de Almeida

TÍTULO

António José de Barros Veloso: Uma vida, vários mundos © TEXTO

Margarida Almeida Bastos TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA

Francisco Santos REVISÃO

Isabel Costa | Benedita Rolo © CAPA

António Pedro Ferreira EDIÇÃO DE IMAGEM

Maria João de Moraes Palmeiro DESIGN

Veronique Pipa COORDENAÇÃO EDITORIAL E PRODUÇÃO

Ana de Albuquerque | Maria João de Paiva Brandão IMPRESSÃO

Diário do Minho ISBN

978-989-53093-8-2 DEPÓSITO LEGAL

486653/21

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4 anatomia de uma amizade 8 doutoramento honoris causa 16 Caramulo | Santo Tirso | Viseu | Coimbra 66 lisboa | luanda | lisboa 136 jazz 160 azulejaria 174 história da ciência 200 Sou médico com uma inesgotável curiosidade


anatomia de uma amizade Margarida Almeida Bastos

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É

DIFÍCIL SABER QUANDO COMEÇA UMA AMIZADE, MAS É FÁCIL RECONHECER

um amigo. Os nossos primeiros contactos aconteceram através de um interesse comum: a azulejaria. Na altura sabia apenas que era médico e que com a mulher, Isabel Almasqué, havia publicado vários livros sobre o tema. Disseram-me também que estava ligado à música, que era pianista de jazz. Mas, para além desta multiplicidade de interesses, aparentemente tão díspares, agradava-me a forma como se relacionava com os outros e comigo: calorosamente, sem colocar distância, mas também sem falsas modéstias. No fundo, com a simplicidade dos que realmente sabem. Depois de muitos encontros em colóquios e inaugurações, na sequência da sua participação num documentário meu e de uma ou outra ida ao Hot clube para o ouvir tocar, chegou-me o convite para assistir à cerimónia do seu doutoramento honoris causa na Reitoria da Universidade Nova de Lisboa. Se, de facto, já me tinha apercebido da riqueza da sua dimensão humana, foi enquanto estava a ouvir o seu discurso, de aparente simplicidade, que tomei verdadeira consciência da importância da trajectória profissional e da dimensão cultural e intelectual de António José de Barros Veloso. Quando terminou, lembro-me de ter pensado “mas ninguém escreve um livro ou faz um documentário sobre este homem?” porque, no fundo, apetecia-me continuar a ouvi-lo falar sobre essa vida tão longa, tão plena e tão rica. Queria saber mais sobre alguém que acompanhou cerca de noventa anos da história do país, setenta da história do jazz e sessenta da história da medicina portuguesa não apenas como mero observador, mas, sobretudo, como interveniente e agente de mudança. Antes que alguém se adiantasse por ser uma tarefa aliciante, avancei, com algum receio, mas determinada a contar a sua história. Queria, no entanto, manter o tom coloquial e preservar a vivacidade do discurso, tendo por isso optado, não por uma narrativa tradicional, mas por uma entrevista de vida. Depois de muitas horas de conversa, de troca de ideias, de gargalhadas e de correcções conjuntas, nascia finalmente o livro. Não sei em que fase do processo nasceu a nossa amizade, mas foi certamente ao longo deste período que ela se consolidou, porque esta é, sem dúvida, uma conversa entre amigos. Começámos por falar sobre a infância na Estância Sanatorial do Caramulo, esse microcosmo onde, apesar do confronto diário com a doença e a morte, a vida de uma criança decorria com normalidade. Foi o tempo das primeiras amizades e dos primeiros contactos com a música.

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Conversámos depois sobre a sua entrada, já adolescente, no colégio jesuíta de Santo Tirso, onde a religião, omnipresente e obscurantista, pautava o dia a dia, e cuja dureza era amenizada apenas pela camaradagem entre colegas. Entrevimos o ambiente provinciano de Coimbra em meados do século XX, o ensino atávico da Faculdade de Medicina que não conseguia acompanhar os novos tempos, mas também a agitação da vida académica, a boémia, os primeiros concertos e os primeiros amores. Depois, já em Lisboa, mergulhámos no ambiente dos Hospitais Civis, nos dilemas e dificuldades da vida de médico. Pelo meio, demos um salto a Angola, em plena guerra colonial, e falámos sobre os desafios aí vividos. De novo na capital, acompanhámos a progressão e a consolidação de uma carreira dura e exigente e a evolução das mentalidades e dos costumes ao longo da segunda metade do século XX. Para além da vida e da profissão médica, que avançam aparentemente indissociáveis, ficamos a conhecer os seus hobbies: o jazz, no qual se destacou como pianista; a azulejaria, onde se tornou uma referência; e a História da Ciência, paixão tardiamente concretizada, mas nem por isso com menos sucesso e consistência. O livro constitui uma reflexão sobre este passado, mas também sobre o presente, que Barros Veloso analisa de forma original nas suas múltiplas vertentes, antecipando por vezes o futuro, com uma enorme lucidez e um profundo sentido crítico. E foi esta vida, de certa forma improvável, que percorremos. A vida de alguém fadado para exercer medicina no Caramulo e que se tornou numa referência da Medicina em Portugal; a vida de alguém que nunca aprendeu música e se tornou num importante nome do jazz; a vida de um médico que se destacou no estudo da azulejaria e publicou várias obras sobre História da Ciência. As nossas longas conversas atravessaram o confinamento, dourando esses tempos de enorme estranheza. E foi, confesso, a riqueza dessas mesmas conversas que contribuiu para atrasar a conclusão deste livro, pois não escondo que me apetecia continuar a falar durante mais e mais tempo, e que isso me levou, umas vezes inconscientemente, outras nem tanto, a arranjar novos temas e novas questões, para os quais recolhia sempre respostas estimulantes. Ao editar as várias entrevistas, dei-me conta de duas palavras que surgiam com grande frequência: disponibilidade e empatia. Na Medicina e na Vida. Por tudo isto, pela amizade, por muito mais, obrigada, Doutor Barros Veloso. 6


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CARAMULO, SANTO TIRSO, VISEU, COIMBRA

I

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Caramulo Santo Tirso Viseu Coimbra


CARAMULO [INFÂNCIA]

Quais são as suas recordações mais antigas? Não sei quais são as primeiras recordações da minha vida, mas tenho a impressão de que são muito remotas. Julgo que sou capaz de recuar até quando tinha pouco mais de dois anos, o que talvez esteja relacionado com um acontecimento que Freud poderia explicar: a minha mãe contraiu uma tuberculose e fui separado dela quando tinha onze meses. Fiquei entregue a umas tias, a umas pessoas amigas… Enfim, andei em bolandas sem o calor e o afecto do regaço materno.

E quando é que voltou para junto da sua mãe? Aos três anos fui para o Caramulo [Estância Sanatorial do] onde a minha mãe estava internada. Felizmente, curou-se de maneira espontânea sem chegar a fazer os tratamentos, que, na época, eram, muitas vezes, piores do que a própria doença: medicamentos muito tóxicos, corte de costelas… O meu pai, recém­‑formado, ficou a trabalhar como médico na Estância e acabei por me juntar a eles. Lembro-me muito bem de irmos viver para um pequeno chalet, como na altura se dizia. Uma das imagens mais vivas que tenho dessa época é a do mau clima do Caramulo, o frio e a humidade que escorria pelas paredes forradas a papel. E recordo-me sobretudo da música.

CARAMULO, SANTO TIRSO, VISEU, COIMBRA

Do que é que se lembra, em concreto? Lembro-me de alguns aromas e ruídos dessa época. A certa altura fui parar a Coimbra, a casa de uma pessoa amiga que vivia no Bairro de Santa Clara. Na colina da universidade, que ficava em frente, passava o eléctrico do museu [Machado de Castro]. Fazia um ruído agudo quando começava a subir e acelerava. Não sei que idade teria, seguramente nem três anos, mas, durante toda a vida, a recordação daquele ruído ao final da tarde ficou para mim associada a uma sensação de tristeza. Também me lembro da primeira guerra de que ouvi falar, a Guerra da Abissínia (1935-36), em que Mussolini, para “mostrar que era gente”, invadiu com as suas tropas o país a que hoje se chama Etiópia. Por sinal, saiu-se muito mal! Penso que cada pessoa fica para sempre com uma referência muito forte da primeira guerra de que foi contemporâneo. Para mim, veja lá, foi a Guerra da Abissínia. Faz parte da mim, da minha biografia, das minhas recordações.

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Da música? Estranho, não é? Sim, da música. Eu fui um privilegiado. A minha mãe tinha estudado piano em Coimbra, para onde foi muito pequena, e havia um piano em nossa casa. De onde era natural a sua mãe? A minha família materna era de Trás-os-Montes, de Chanceleiros, ao pé do Pinhão. O meu avô era um proprietário local, produtor de vinho do Porto, “vinho fino”, como se dizia, e foi apanhado na crise provocada pela filoxera, que destruiu as vinhas e levou muitos agricultores à falência. Para poder sustentar a família decidiu partir para Moçambique. Tinha já, nessa altura, cinco filhos. A minha mãe, que era a mais nova, foi entregue, com três anos, à tia Adelaide, uma solteirona muito religiosa e conservadora, com ar de dama antiga, de carrapito no alto da cabeça. Essa figura vitoriana era directora de um colégio na Praça da República, em Coimbra, o Colégio Português. Foi aí que a minha mãe fez o liceu e onde aprendeu aquilo que as meninas naquela época aprendiam: a bordar, a pintar, a desenhar (ainda tenho alguns dos seus desenhos) e, claro, a tocar piano e a falar francês.

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Com quem aprendeu ela a tocar piano? Foi aluna de uma professora de piano muito prestigiada, a Glória Castanheira, que era amiga do Salazar. Existe até um livro com a correspondência trocada entre ambos. Como na altura não existiam gramofones, as telefonias eram raras e o cinema era mudo, só havia música ao vivo. E o Salazar ia muitas vezes aos saraus que a Glória Castanheira organizava em sua casa com as alunas. Entre elas estava a minha mãe e a mãe de um amigo meu que viria a ser mais tarde, tal como eu, pianista amador: o arquitecto José Luís Tinoco.

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A sua mãe era uma boa pianista? A minha mãe era uma pianista extraordinária. Mas viu-se impossibilitada de fazer carreira por ter sido atingida pela tuberculose, o que a afastou dos grandes centros. Passou então a dar concertos caseiros para familiares e amigos. Pouco antes de morrer, com 87 anos, conseguia ainda tocar uma sonata completa de Beethoven ou uma peça de Chopin sem se atrapalhar. Tinha uma técnica impecável, lia música à primeira vista e possuía ouvido absoluto, o que é muito raro. Apenas uma em dez mil pessoas o têm. Pensa-se até que possa ser uma característica herdada através dos raros cruzamentos entre o Homo Neanderthalensis, que comunicava por sons, e o Homo Sapiens.


A minha mãe possuía ainda uma excelente capacidade interpretativa: sabia escolher o andamento correcto para cada música e tinha, o que é muito importante, um excelente touché, ou seja, tirava do piano um som incomparável… Portanto, na minha infância, eu tinha em casa uma pianista, uma grande pianista!

E em criança gostava de a ouvir tocar? Sim, muito. E costumava pedir-lhe para tocar as peças do seu repertório de que eu mais gostava. Lembro-me da minha mãe se sentar ao piano e, como quem faz um exercício de aquecimento, começar com a valsa op. 64, n.º 2 de Chopin, que dominava na perfeição. Depois de a aplaudir, eu pedia-lhe geralmente: “Ó mãe, toque aquele scherzo de que eu tanto gosto!” E ela, após uma breve hesitação – “há muito tempo que não o toco” –, seguida de um momento de concentração, atacava os harpejos iniciais do scherzo op. 31 em si bemol, uma peça brilhante e tecnicamente difícil que levava até ao fim. Depois, fazia uma pequena pausa, e, sem aguardar uma sugestão minha, começava a tocar a Fantasia Impromptu em dó sustenido menor de Chopin. Era uma peça de que ela muito gostava. Tocava-a muitas vezes e na perfeição. Aprendeu a tocar com ela? Não, a minha mãe nunca me quis ensinar, não sei porquê. Provavelmente porque não tinha paciência. E eu gostava tanto de música que ia sozinho para o piano e juntava as notas de forma muito incipiente.

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Lembra-se do que a sua mãe tocava? Tocava aquilo que nessa altura estava na moda: o repertório pianístico dos grandes românticos do século XIX. Tocava as sonatas todas de Beethoven: Sonata ao Luar, Patética, Passionata, Aurora… julgo que são 32, as últimas das quais, a opus 110 e 111, contribuíram para revolucionar a música da época. Mas Chopin era talvez o seu repertório mais forte: as baladas, as valsas, as mazurcas, os nocturnos, os estudos, os scherzos. Tocava também Mozart, Brahms, Liszt, um bocadinho de Schubert, etc. Compositores barrocos como Bach, muito raramente e, mais modernos, só um pouco de Debussy. Eram os gostos da altura, que lhe tinham sido transmitidos por um meio cultural muito conservador e pouco dado a “modernices”. Recordo-me de que ela se ria muito de um amigo meu de Lisboa que, anos mais tarde, nos visitava no Caramulo e que tocava umas peças mais modernas. A minha mãe chamava­­‑lhe “Prokofiev”. “Lá vem o Prokofiev”, dizia ela e ria-se. Não levava aquilo a sério!

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Contactou então com música de grande qualidade desde muito cedo. Eu tive essa sorte, que me marcou profundamente: ouvir, desde pequeno, todo o grande repertório pianístico do século XIX. Talvez por isso a minha posição em relação à música seja muito crítica. É difícil, depois desse banho de música de grande qualidade, numa fase da vida em que se formam os gostos, ser capaz de achar graça a tudo o que se ouve por aí. Pode ser muito bem feitinho e muito espectacular, não digo que não, mas são coisas musicalmente muito pobres quando comparadas com o que eu ouvia todos os dias em casa. Andei toda a vida à procura de música de qualidade. A minha juventude foi muito marcada por isso e pelo ambiente da Estância, a Estância de tuberculosos do Caramulo.

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Como era na altura o Sanatório do Caramulo? O Sanatório foi fundado em 1920 pelo Jerónimo Lacerda, que cresceu em Tondela, a cerca de 18 quilómetros do Caramulo, e se formou em medicina. Esteve na Primeira Grande Guerra e, no regresso, decidiu criar uma estância para tuberculosos na serra do Caramulo. Por essa altura havia a ideia arreigada de que os climas de montanha eram bons para curar a doença e já por ali existiam umas pequenas pensões onde os tuberculosos se misturavam com outros doentes: “melancólicos”, deprimidos, convalescentes, cancerosos sem diagnóstico… Mas o Jerónimo Lacerda foi o primeiro a construir de raiz uma “cidadezinha” auto-suficiente, com infra-estruturas, numa serra perdida no meio da Beira Alta, onde apenas existiam, até então, pequenas aldeolas quase medievais, sem água canalizada, electricidade ou acessos. Os habitantes locais moravam em casebres, com o gado no piso térreo que os aquecia no Inverno. Tinham umas vacas, umas galinhas, uns talhões de milho, algumas couves, batatas… Praticavam uma agricultura de subsistência, muito primitiva, e viviam no limiar da pobreza ou mesmo na miséria, mas aparentemente resignados. O complexo sanatorial do Caramulo tornou-se uma espécie de bolha de desenvolvimento naquela região? Sim. Foi como se, por milagre, tivesse aterrado de repente na serra uma espécie de OVNI que nada tinha a ver com o que estava à sua volta. Vias alcatroadas, uns doze ou treze sanatórios bem equipados com as suas galerias de cura, com electricidade, água canalizada, uma barragem para produção de energia, um sistema de incineração de lixos, tratamento de águas, estação meteorológica, cineteatro e, mais tarde, um posto emissor,


a Rádio Pólo Norte, que transmitia todos os dias. E, para além disso, começou a chegar ao Caramulo gente de um outro nível social, tanto médicos como doentes, que contrastava com aqueles serranos de capucha, analfabetos, entre os quais existiam até famílias de leprosos.

A Estância tinha uma escola destinada aos filhos dos funcionários? Foi aí que fez a primária? No Sanatório havia uma escola primária mandada construir pelo Jerónimo Lacerda, onde estávamos todos misturados, tanto os filhos dos funcionários, como os da população local. Era “à molhada”, rapazes e raparigas da primeira à quarta classe. Muitas vezes havia um barulho infernal e a voz da única professora, que era minha tia, sobrepunha-se a tudo ameaçando­‑nos com reguadas. Ali aprendi a ler, a escrever e contar, e a recitar de cor os nomes dos rios, das montanhas e dos reis de Portugal. Era um exercício de memorização que hoje se despreza e que me foi útil para toda a vida. Quais eram os seus amigos nessa altura? Recorda-se de algum em particular? Foi no Caramulo que fiz as minhas primeiras amizades com crianças que ali viviam, tal como eu. Eram filhos de médicos ou de pessoas ligadas a outras actividades do Sanatório. Lembro-me sobretudo da Lena e da Teresa Castro Alves, as minhas amigas de infância, que moravam perto de mim. Quando tinha os meus quatro ou cinco anos passava o dia a perguntar: “Mãe, posso ir a casa da Lena e da Teresa?” Até que a minha mãe, farta de me ouvir, respondia:

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O Sanatório destinava-se ao tratamento de todo o tipo de tuberculoses? Não. Ali tratava-se apenas a tuberculose pulmonar. As tuberculoses ósseas ou renais, ou seja, as tuberculoses “fechadas”, não eram contagiosas. Podiam ser graves para o próprio doente, mas não exigiam internamento em sanatórios. O problema da tuberculose pulmonar era o contágio e a evolução para a tísica. E isso constituía uma grande ameaça social na época. Quando os doentes tossiam ou cuspiam, o bacilo de Koch espalhava-se pelo ar, pelas roupas, pelas louças e, como era muito resistente, sobrevivia e infectava as pessoas. Além disso, as formas pulmonares eram também muito perigosas para os que delas sofriam porque, com a tosse, a infecção espalhava­‑se e levava à disseminação do bacilo, que invadia os dois pulmões. Era a terrível “tísica”, uma palavra assustadora, porque os doentes entravam numa caquexia, um estado orgânico que se ia deteriorando e que conduzia quase sempre à morte. O tratamento, na época, resumia-se, sobretudo, a bons ares, boa alimentação, repouso e… longos períodos de espera.

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“Vai e deixa-me em paz”. Quando me portava mal o maior castigo era dizerem-me que, durante um ou dois dias, ficava proibido de ir a casa da Lena e da Teresa.

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Como é que era para uma criança viver na Estância? Tinha a noção de que a doença e a morte estavam perto? Não era uma coisa que nos assustasse muito. Através do meu pai eu conhecia muitas histórias rocambolescas – umas trágicas, outras quase anedóticas – passadas no micro-universo muito concentrado do Sanatório, fruto da situação e do desespero dos internados. Lembro-me, por exemplo, de o ouvir contar a conversa entre uma filha moribunda e a mãe, acerca dos pormenores do seu próprio funeral: como iria vestida, a cor do caixão, etc. Quando mostrou vontade de ficar no jazigo da família, a mãe respondeu-lhe muito indignada: “Nem penses! E depois onde é que eu meto o teu pai?” Ele gostava imenso de contar estas histórias e ria que se fartava! Mas a minha vida era a de uma criança como as outras, alegre e despreocupada.

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Existem vários mitos associados à tuberculose e aos tuberculosos. Havia muitos romances entre os doentes? A tuberculose pulmonar atingia sobretudo os adultos jovens. Homens e mulheres na força da vida, entre os dezoito e os quarenta anos, que ali ficavam meses ou anos internados. Faziam a sua “cura” de manhã, durante duas horas: deitados, sem ler, sem falar, sem fazer nada. À tarde, mais duas horas de “cura” e depois era o ócio completo. Num sítio onde havia rapazes e raparigas, algumas delas bem bonitas, surgiam com frequência problemas. Desenvolviam-se romances, relações escaldantes, complicadas e era necessário impor uma certa disciplina. Os doentes eram obrigados a horários rigorosos e só lhes era permitido circular numa área demarcada da Estância. Lembro-me de que nos sanatórios os sinais de luzes começavam às onze da noite e que, pouco depois, as luzes apagavam-se de vez e as pessoas recolhiam aos seus quartos de onde não podiam sair. Mas, às vezes, arriscavam e saíam à socapa. Houve muitas paixões e alguns casamentos, por vezes com resultados pouco felizes, porque um dos dois acabava por morrer. Por isso lhes chamavam “noivados do sepulcro”. Convivia com os tuberculosos? Sim, embora com algumas precauções e mantendo uma certa distância. Frequentávamos o mesmo cinema, um pequeno cineteatro com um balcão destinado a médicos, gerentes e respectivas famílias e uma plateia para


os doentes. Íamos à missa na mesma capela, a Capela de Nossa Senhora da Esperança, nome muito apropriado porque só a “esperança” restava a muitos deles. Exibiam filmes na Estância? De início, eram projectados de forma artesanal numa das galerias de “cura” do Sanatório. Mais tarde foi construído um cineteatro com uma cabine de projecção a sério onde, duas vezes por semana, eram exibidas películas que circulavam por todo o país. Lembro-me perfeitamente de ver os grandes êxitos do Walt Disney, como a Branca de Neve e a Fantasia; as versões mais antigas do Ben-Hur; os filmes com a Greta Garbo, com o Charles Boyer, com o Clark Gable… De vez em quando, também se organizavam umas récitas engraçadíssimas.

Acabavam por se misturar de alguma forma com os internados. Andávamos no meio dos tuberculosos e conversávamos com eles. Lembro-me de que traziam consigo pequenos escarradores metálicos de bolso para os quais expectoravam. Estavam proibidos de expectorar para o chão porque os escarros estavam cheios de bacilos. Recordo-me também de almoçar na sala de jantar dos doentes do Grande Sanatório e de sentir um cheiro intenso a um desinfectante, o formol, quando passava na copa. Quem não estava habituado, ficava com os olhos a arder e a chorar. Era desagradável, mas dava-nos a sensação de estarmos protegidos.

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E os doentes participavam nas récitas? Os doentes só assistiam. Quem organizava e participava era um grupo de amadores com jeito para as artes do espectáculo: a Maria Arminda, filha do Jerónimo Lacerda, que era bastante histriónica e interpretava pequenos dramas ou peças musicais extraídas das zarzuelas; o Luís Possolo e a irmã, que recriavam as coreografias da Companhia de Bailado Verde Gaio. O senhor Tudela, um daqueles antigos tuberculosos que ficavam pela Estância a trabalhar, também costumava colaborar. Achava que tinha grande vocação para o teatro e para a declamação e, sempre que podia, representava a solo vários dramalhões que tinham sido grandes sucessos do seu passado e todos o gozavam. Embora eu fosse ainda muito pequeno, entrei em algumas récitas, a cantar e a dançar. O acompanhamento ao piano era feito pela minha mãe e o cineteatro cumpria todos os requisitos: tinha um palco com enormes cortinas, bastidores, buraco para o ponto…

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Que cuidados tinham para se protegerem? Quando chegávamos a casa desinfectávamos sempre as mãos com álcool a 90º. Não sentíamos o terror de adoecer, mas tínhamos cautelas. E havia um hábito engraçado: uma vez por mês, no fim da missa das onze e meia de domingo, eu e as minhas amigas passávamos pelo Sanatório, onde éramos observados no aparelho de radioscopia para ver se os pulmões estavam impecáveis. Nessa altura o meu pai, que era médico analista e dirigia o laboratório da Estância, mostrava-me os bacilos da tuberculose, que se viam nas lâminas aos milhares por cada campo do microscópio! Talvez o fizesse para me meter medo e me levar a ter cuidado. Mas houve certamente casos trágicos… Houve, sim. O pai daquelas minhas duas amigas, que era cunhado do Jerónimo Lacerda e gerente do Sanatório principal, adoeceu com uma tuberculose pulmonar que evoluiu rapidamente para a tísica e para a morte em pouco mais de seis meses. A mulher contagiou-se maciçamente durante esse período e contraiu uma forma septicémica de tuberculose, a “tuberculose miliar”, acabando por falecer 18 meses depois. Num curto espaço de tempo, essas minhas amigas, no início da adolescência, ficaram órfãs de pai e mãe e foram criadas pela avó materna.

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Fez relações de amizade com alguns doentes? Só com os que se curavam e se mantinham no Caramulo. Muitos dos médicos das estâncias de tuberculosos, tanto em Portugal como no estrangeiro, eram antigos doentes ou familiares de doentes, como no caso do meu pai. Os médicos saudáveis tinham receio do contágio e nem todos gostavam de ir trabalhar para sanatórios. Mas, além de médicos, havia na Estância gerentes de sanatórios, farmacêuticos, enfermeiros e outros profissionais que ali tinham estado internados e por lá ficavam a trabalhar depois de curados.

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O Director Clínico da Estância era o Jerónimo Lacerda? No início, sim. Mas quando chegou o Manuel Tápia, em 1938, as coisas mudaram um pouco. O Tápia era um médico espanhol de grande nível. Pertencia a uma geração que se seguiu às reformas da medicina espanhola de Ramon y Cajal e de que faziam parte Jiménez Diaz e Gregório Marañón. Dirigia o Sanatório de Tuberculosos de Guadarrama, perto de Madrid. Quando começou a Guerra Civil, as coisas complicaram-se na capital espanhola e ele receou pela sua segurança.


O Manuel Tápia estava envolvido de forma activa na política? Pertencia a alguma facção? Penso que era um liberal. Aquilo que poderíamos classificar hoje de centro-direita ou centro-esquerda, mas, tanto quanto sei, não tinha intervenção activa na política. Fugiu então da guerra… Exactamente. A situação em Espanha tornou-se muito confusa, com assassinatos constantes. Segundo parece, no decorrer de uma estadia em Paris, aonde se deslocara para participar num congresso, o Manuel Tápia encontrou casualmente o Alexandre de Almeida, a quem tinha tratado um filho. O Alexandre de Almeida era na altura um importante empresário de hotéis em Portugal: explorava o Metrópole e o Europa em Lisboa; o Astória em Coimbra; o Palace do Buçaco Hotel e o Palace Hotel da Curia. E o Tápia instalou-se no Hotel Europa, onde o Jerónimo Lacerda se hospedava sempre que vinha à capital.

E o governo português não levantou nenhuma questão? Pois… havia um problema. Estávamos em 1938, em plena Guerra Civil de Espanha, e os serviços de informação perguntavam: “Quem é este espanhol e o que vem ele fazer para cá?” O Jerónimo Lacerda, que era amigo do Salazar, disse-lhe logo: “Ó senhor doutor, esteja sossegado que eu assumo a responsabilidade.” E lá o tranquilizou. Este episódio dá-nos uma imagem de como as coisas se passavam e resolviam em Portugal. O Tápia era um homem inteligente, carismático, neurótico – de vez em quando ficava largos períodos calado, sentado de pernas estendidas, a puxar os punhos da camisa e a fungar –, com grande qualidade científica, que todos os seus pares reconheciam sem reservas. Estava muito longe de ser um homem pró-comunista, marxista ou qualquer coisa desse género. No entanto, na altura vivia-se um período muito tenso e tudo era suspeito.

CARAMULO, SANTO TIRSO, VISEU, COIMBRA

E foi aí que se conheceram pessoalmente? O Lacerda já o conhecia porque tinha visitado o Sanatório do Guadarrama, mas deve ter sido nesta altura que o convidou para Director Científico da Estância, uma vez que, por não ter diploma de licenciatura português, o Manuel Tápia não podia ser Director Clínico, nem sequer exercer medicina.

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Ao colo do pai, com ano e meio, na Atouguia da Baleia. Foto enviada à mãe, que estava internada no Sanatório do Caramulo (1932). Primeira foto oficial, c. 1935.

Com as amigas de infância Lena e Teresa Castro Alves no Caramulo (c. 1940). Com a mãe, no terraço da casa do Caramulo, aos doze anos (1942). 62


No Instituto Nun’ Alvres, entre os alunos medalhados. Primeiro à esquerda na primeira fila (1942). Vestido de frade franciscano numa récita do instituto. Quinto a contar da esquerda, na primeira fila (1942).

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Grupo do 7.º ano do Liceu Alves Martins. Primeiro à esquerda, última fila (1948). Com os companheiros de residência em Coimbra (c. 1952).

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Desembarque na Rocha Conde de Óbidos, no regresso da viagem ao Brasil com o Orfeon. Paquete Santa Maria (1954). Acompanhado pelos pais na Queima das Fitas, no ano da sua formatura (1956).

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LISBOA, ANGOLA, LISBOA

II

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lisboa luanda lisboa


LISBOA [PRIMEIROS TEMPOS]

Estava entusiasmado com a perspectiva de vir para Lisboa? Sempre desejei vir para Lisboa. Os médicos do Caramulo com quem eu convivia eram, na sua maioria, lisboetas, marcados pela influência de uma faculdade que estava numa fase áurea com homens como Pulido Valente, Reynaldo dos Santos ou Augusto Celestino da Costa. Diziam-me sempre: “Tens de ir para Lisboa.” E eu segui os conselhos: entrei no internato e fiz toda a minha carreira nos Hospitais Civis (HCL). Adaptou-se bem à capital nesses primeiros tempos? Sim, adaptei-me rapidamente. Tal como eu, vieram nessa altura para Lisboa alguns colegas de curso e também a minha namorada, a Teresa Fauvelet. O Zé Luís Tinoco já cá estava a fazer arquitectura e tinha os amigos do jazz à minha espera: o Duarte Mendonça, o Luís Sangareau, o Luís Villas-Boas. Depressa o meu círculo de amizades se alargou nas áreas da música e da medicina. Quanto tempo namorou ainda com a Teresa Fauvelet? Continuámos a namorar durante cerca de um ano, mas os nossos feitios eram incompatíveis e estávamos sempre a discutir. Até que nos fartámos os dois. Era muito cansativo.

E ele ajudou-o, de alguma forma, a integrar-se no meio dos HCL? O Mendes Ferreira era Assistente dos HCL e uma figura muito conhecida na alta sociedade lisboeta e no meio médico. Tinha estado a estagiar na Mayo Clinic em cirurgia anorretal. Sentia-se preparado para fazer todo o tipo de cirurgia, embora nem sempre obtivesse bons resultados. Era um homem bem-disposto, activo, simpático, que gostava de jantaradas e de beber o seu brandy. Foi ele que me apresentou ao Fernando Nogueira, de quem era amigo.

LISBOA, LUANDA, LISBOA

Quando chegou fez logo o concurso para o internato geral? Não. Comecei a trabalhar como voluntário nos HCL em Setembro de 1956, enquanto esperava pelo concurso para o internato geral, que só se iria realizar em Fevereiro do ano seguinte. O meu pai veio de propósito a Lisboa apresentar-me a um colega seu de curso, o António Mendes Ferreira, que era cirurgião e trabalhava no serviço de cirurgia do Hospital D. Estefânia, dirigido pelo Mário Carmona.

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Quem era o Fernando Nogueira? O Fernando Nogueira era na altura Assistente de medicina dos HCL e professor de Patologia Geral na faculdade, e trabalhava em São José. E foi no Hospital de São José que fiz os estágios de medicina que eram parte do internato.

LISBOA, ANGOLA, LISBOA

De que forma é que o ensino da medicina em Lisboa era diferente do de Coimbra na mesma época? Em Coimbra havia pouca ou nenhuma investigação, a faculdade permanecia ligada a uma medicina muito influenciada pela escola francesa. Em Lisboa era completamente diferente. Depois da Geração de 1911, a Faculdade de Medicina adquiriu uma enorme dinâmica e, mais tarde, a influência de Pulido Valente e de Reynaldo dos Santos levaram-na a viver uma fase absolutamente brilhante. Esse período áureo prolongou-se até aos saneamentos de 1947, que afastaram Pulido Valente e Fernando Fonseca do ensino, a que se seguiu a jubilação de Reynaldo dos Santos em 1950 e a transferência da faculdade para o Hospital de Santa Maria em 1953. Esta transferência foi acidentada e muito lenta porque nada estava ainda preparado e o novo hospital foi inaugurado sem condições para funcionar em pleno. Mas, nessa altura, os conhecimentos e a prática médica estavam também a sofrer grandes mudanças.

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Que mudanças? Depois da fase da medicina anátomo-clínica, em que prevalecia a anatomia patológica na fundamentação e verificação clínica, estava a impor-se um novo paradigma, a fisiopatologia, resultado das novas técnicas introduzidas no pós-guerra. Tudo estava a mudar. À observação clínica e à confirmação anátomo-patológica, vinha agora acrescentar-se o estudo fisiopatológico no vivo. Em Portugal, tudo começou com a Cardiologia: os cateterismos, a medição de pressões intracavitárias e intravasculares e as angiografias cardíacas que iriam permitir avançar para soluções cirúrgicas das lesões valvulares do coração e das cardiopatias congénitas. Essa viragem deslocou o centro da medicina para os países anglo-saxónicos que tinham saído vitoriosos da Segunda Guerra Mundial e que fizeram uma autêntica “pilhagem” científica no país derrotado, a Alemanha. O que quer dizer com “pilhagem”? No final da guerra, alguns cientistas norte-americanos foram enviados para a Alemanha a fim de se apoderarem das investigações que estavam a ser realizadas por alguns laboratórios que, por isso mesmo, tinham sido


intencionalmente poupados pelos bombardeamentos. Foi o caso da Bayer, que se encontrava a desenvolver as pesquisas sobre a tiossemicarbazona no tratamento da tuberculose, e que se manteve intacta com ruínas à sua volta até ao fim da guerra. De que forma essas transformações ao nível dos conhecimentos médicos se repercutiram em Lisboa? Aqui em Lisboa esta mudança começou ainda em Santa Marta e desenvolveu­ ‑se depois no Hospital de Santa Maria. O líder desta transformação foi claramente Eduardo Coelho. Mas caiu-se num certo exagero, porque, em Santa Maria, a Medicina Interna, à maneira do Pulido Valente, praticamente desapareceu e, com ela, desapareceu também a observação global do doente, tão importante para o ensino e exercício da Clínica Médica. A faculdade sofreu então um fenómeno de “cardiologização”. Grande parte dos professores eram cardiologistas e atrás disso surgiram outras áreas especializadas. Penso que a partir daí, em termos globais, o nível da Faculdade de Medicina de Lisboa começou a decair, apesar de ter progredido nalgumas áreas especializadas. Quando entrou no internato ainda se vivia esse período áureo da medicina promovido por Pulido Valente e por Reynaldo dos Santos? Eu entrei em 1957. Nessa altura o Pulido Valente e alguns dos seus discípulos tinham sido já saneados, mas a sua influência continuava muito grande nos HCL. Ainda senti isso.

Como era feita a selecção dos candidatos ao internato geral? Tínhamos que ficar aprovados em termos relativos num concurso muito difícil: vinte pontos para preparar em vinte dias e uma prova clínica com dois doentes, um de medicina e outro de cirurgia. O problema é que eram só trinta e duas vagas para cerca de cem concorrentes. Para alguém que não conhecia o meio, como era o meu caso, tudo aquilo se tornava ainda mais difícil. Mas consegui ficar entre os trinta e dois primeiros: em décimo quarto lugar.

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De que forma? Falava-se muito de “discípulos do Pulido” e, quando havia concursos, apareciam sempre “candidatos do Pulido” que lançavam a confusão. Nessa altura os HCL tinham grandes clínicos e uma carreira com concursos muito exigentes. Era uma preocupação que vinha de trás: criar elites médicas.

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Entre os colegas que ocuparam as vagas do concurso de internato geral de 1957 havia alguma mulher? Havia cinco mulheres, entre as quais se destacou a Fernanda Sampaio, que foi estagiar depois para os EUA. Mais tarde foi a fundadora da Cardiologia Pediátrica em Portugal. O internato era de quantos anos? O internato geral durava dois anos e incluía a passagem por serviços de medicina, cirurgia e infecto-contagiosas. Fazíamos também serviço de urgência no Banco por períodos de vinte e quatro horas semanais, sem direito a folga ou a remuneração suplementar. Depois de um internato intermédio num serviço de especialidade que durava um ano, havia um novo concurso para entrar no internato complementar, habitualmente com oito vagas para dez ou doze candidatos: constava de duas provas clínicas, uma com relatório, outra de caras. Nesta última, o exame do doente era feito na presença do júri, logo seguido de uma exposição oral que terminava com o diagnóstico e a terapêutica, sem nos darem qualquer intervalo para respirar. Quem entrasse nas vagas, iniciava um período de dois a três anos nas especialidades.

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Quando é que começou a sentir-se médico? Quando tive de tomar sozinho decisões sobre os doentes a meu cargo.

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Onde fez o internato geral de Medicina Interna? O meu internato geral de Medicina Interna foi feito em São José, num enorme serviço, que ocupava toda a ala esquerda do edifício. As enfermarias eram salas não tabicadas, com camas a toda a volta, sem qualquer privacidade. O director era o Oliveira Machado, um homem muito ligado ao Pulido Valente, que tinha falhado no concurso para professor. Pequenino, careca, empertigado, atravessava as enfermarias sem nos cumprimentar e dizia para o enfermeiro-chefe, enquanto vestia a bata no gabinete: “Ó Baltazar, aparelha-me aí um interno para eu passar visita!” E ria-se imenso… Os três assistentes eram grandes senhores da medicina: o Fernando Nogueira, o D. José de Mello e Castro, com enorme clientela entre a aristocracia lisboeta, e o Adolfo Coelho, grande clínico, um espírito muito fino, com grande sentido de humor. Já era funcionário do Estado nessa fase? Ainda não. Ao fim do internato da especialidade íamos para a rua ou trabalhávamos como voluntários. Quem quisesse podia então fazer novo


concurso com provas clínicas e vagas limitadas, que dava acesso ao internato graduado e ingressava num quadro de especialistas sem os quais os HCL já não podiam funcionar. Mas o lugar não tinha garantias e estava sujeito a renovação de contrato ao fim de dois anos. Finalmente, havia um último concurso, esse sim, para um lugar permanente, o de Assistente dos hospitais. Era uma carreira muito longa. Longa e exigente. Internato geral, dois anos; internato intermédio, um ano; internato complementar, dois anos; internato graduado, dois anos, renováveis. Finalmente, os que se dispunham a concorrer e conseguiam obter o lugar eram “ungidos” com o título de Assistente Hospitalar. De que outros médicos dessa época se recorda? No serviço de cirurgia da Estefânia, onde fiz parte do internato, recordo-me do director, o Mário Carmona, que tinha ar de burgesso e não nos ligava nenhuma.

Que personagem! No serviço havia duas grandes salas ligadas por uma escada situada no átrio: no rés-do-chão ficava a das mulheres e no primeiro andar a dos homens. Não existia elevador. A sala de operações era logo à entrada, em frente ao gabinete do director. Tinha dois compartimentos: um primeiro para desinfecção e outro com a mesa operatória, onde se operava à luz de um pantof muito velho de latão. Lembro-me de uma vez ter faltado a luz eléctrica

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O autor do livro sobre o Hospital Real de Todos-os-Santos? Esse mesmo! Quando mais tarde li o livro, nem queria acreditar que era ele o autor: não dava a cara com a careta. Para mim constituiu uma verdadeira surpresa, pois foi o que de melhor se publicou até hoje sobre o assunto. O Mário Carmona entrava no serviço, gordo, impante, aí pelas onze horas. Não nos cumprimentava, não vestia a bata e sentava-se à secretária numa daquelas cadeiras rotativas de director, já muito desengonçada, para assinar papelada. Se o telefone (um daqueles telefones pretos com marcador rotativo) tocava uma vez, não atendia. Se voltava a tocar atirava-o para o cesto dos papéis. Era uma personagem curiosa, que tinha tido a sua época como cirurgião mas, nessa altura, pouco ou nada operava. Sabia muito de touros e ganadarias e era médico da praça de touros do Campo Pequeno. Anos depois foi Enfermeiro-Mor, cargo máximo dos HCL, de nomeação governamental, que era habitualmente ocupado por um médico.

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e serem chamados dois auxiliares, que, por baixo dos panos esterilizados, empurraram a mesa operatória até perto da janela. A cirurgia terminou com luz natural. Outra vez estava a ajudar a operar e ouvi o enfermeiro aos gritos na sala da desinfecção: “Vai-te embora gato!” Tinha entrado um gato? Isso mesmo: à porta da sala de desinfecção estava um gato! Era assim em 1957! Telefones no cesto dos papéis, cirurgia à luz da janela, gatos com vocação cirúrgica… Podia contar cenas muito semelhantes a estas, passadas no Banco.

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De quem se lembra mais? Lembro-me também do Jaime Celestino da Costa como chefe de equipa do Banco de São José. Na altura, as equipas de Banco eram constituídas por trinta e tal médicos que estavam de serviço vinte e quatro horas e eram chefiadas por um cirurgião. Em 1957, ano em que iniciei o internato, a transferência da faculdade para o Hospital de Santa Maria estava em curso e alguns professores ainda andavam pelos HCL. Além do Jaime Celestino da Costa, recordo-me do Cândido da Silva, a cuja equipa ainda pertenci durante algum tempo.

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São José era então o único hospital do país com um Banco de urgência? Exactamente. São José tinha um Banco com médicos de várias especialidades: cirurgiões, anestesistas, analistas, internistas, entre outros. No Porto e em Coimbra não existiam serviços de urgência convenientemente organizados. Havia uma pequena área do hospital onde os doentes eram atendidos por um ou dois médicos internos e por médicos “de chamada”, que compareciam quando convocados. Para nós era uma sensação estranha atendermos pessoas que tinham sido recusadas em todo o lado, de Trás-os-Montes ao Algarve e para quem o Banco de São José era o último recurso: ali nunca eram mandadas para trás, era o fim da linha. Lembro-me perfeitamente de estar de serviço e chegarem doentes de todo o lado, sobretudo durante a noite. Era uma coisa impressionante. Só em 1961 abriu uma segunda urgência no Hospital de Santa Maria, que foi organizada à imagem da de São José. Para os médicos devia ser esgotante. Tal como nos dias de hoje. Aquilo era uma balbúrdia terrível, mas havia hierarquia e espírito de equipa. Tínhamos muitos doentes em macas que enchiam o corredor porque não havia vagas. Lembro-me de estar de Banco


na altura do surto de gripe asiática em 1957. Foi uma invasão de doentes a quem dizíamos “abra a boca” para ver a garganta. Eles engasgavam­‑se, cuspiam-nos na cara, mas eu escapei à epidemia sem máscara e sem cuidados especiais. O Banco de São José funcionava como uma escola? Sem dúvida. O Banco de São José era uma escola e uma experiência clínica que nos revelava uma variedade absolutamente impensável de patologias. Aprendia-se imenso. Era insubstituível na nossa formação. Vi lá casos raros e exóticos que nunca mais voltei a encontrar. Mas, já naquela altura, muita gente recorria ao Banco para resolver situações que nada tinham de urgente. Havia quem dissesse: “Passei por aqui, e lembrei-me de vir medir a tensão” ou “pedir um atestado”. O problema das falsas urgências não é de agora, mas nunca foi resolvido.

Que meios auxiliares de diagnóstico tinham à mão? Na altura em que entrei no internato, muito poucos. Resumiam-se praticamente às análises, que, na base e no essencial, não eram muito diferentes das que se realizam hoje em dia: hematológicas (hemograma, velocidade de sedimentação), bioquímicas (ureia, glicémia, creatinina, urina, colesterol), bacteriológicas (do sangue, da urina e de outros líquidos orgânicos e imunológicos). Além disso, electrocardiogramas, com ou sem prova de esforço, e radiografias simples ou com contraste. Eram estas as ajudas que tínhamos para, no fundo, responder a uma pergunta básica: que doença é esta? O resto era a clínica: a observação do doente, o interrogatório. E, muitas vezes, conseguíamos resolver a questão. O nosso treino nessa altura era muito orientado para o diagnóstico clínico. A medicina em Lisboa correspondeu às suas expectativas? Não tanto como eu esperava, porque se vivia já um fim de ciclo.

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Aprendia-se mais nos serviços ou no Banco de São José? Nos serviços aprendíamos a fazer a observação sistemática dos doentes, a colheita de dados e a discussão exaustiva dos diagnósticos. No Banco de São José tínhamos contacto, sobretudo, com situações graves e treinávamo­ ‑nos a tomar decisões rápidas perante casos que não podiam esperar porque havia vidas em risco iminente.

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III

JAZZ

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Como é que foram os primeiros contactos com o jazz? Aconteceu muito cedo, teria eu os meus dez ou onze anos. Foi por intermédio do Luís Possolo, filho do Guilherme Possolo, de que já falei. O Luís era quatro anos mais velho do que eu e viveu alguns períodos no Caramulo, perto de minha casa. Tanto ele como a mãe tiveram uma tuberculose pouco grave da qual se curaram. Encontravam-se os dois para ouvir música? E não só. Fazíamos toda a casta de disparates. O Luís gostava muito de música e tinha em casa um gramofone de corda, último modelo, que reproduzia aqueles discos de 78 rotações que demoravam só três minutos e que se quebravam com facilidade. Se os deixássemos cair ao chão ficavam em fanicos! Tínhamos de dar corda ao gramofone e havia um braço com uma agulha que se substituía de três em três discos. Era tudo mecânico e acústico. Nada de electrónicas. E o som era bom? O som era péssimo, roufenho, e só reproduzia algumas frequências, mas estes gramofones fizeram os encantos da minha infância.

E era realmente jazz? Sem dúvida. Era jazz e da melhor qualidade, embora domesticado, suave, soft. Era música para consumo dos brancos americanos que frequentavam restaurantes de luxo numa América racista em crescimento económico e que ficou abundantemente retratada nos filmes da época. Mas já lá estava tudo o que é jazz: os instrumentos de sopro, a bateria, o beat, os efeitos sonoros “uá-uá”…

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Que músicas ouviam nessa altura? No gramofone do Luís Possolo comecei a ouvir os discos do Glenn Miller, do Tommy Dorsey e outras orquestras americanas dos anos 1930-40 com grandes músicos que tocavam excelentes arranjos. Lembro-me bem do In The Mood, do Chattanooga Choo Choo, do Kalamazoo e da Serenade in Blue do Glenn Miller. Senti uma atracção natural por aquela música. Na altura só conhecia este jazz mais comercial: não sabia ainda quem era o Louis Armstrong ou o Duke Ellington. Mais tarde lembro-me de perguntar se a música daquelas orquestras americanas de dança era ou não era jazz? Os puristas torciam o nariz.

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