12 minute read

Entrevista do Mês

JOÃO “GARRAS” GARRINHAS É UM LIBERTÁRIO PORTUGUÊS CONHECIDO POR REALIZAR DIVERSOS DOCUMENTÁRIOS DE RELEVO E VIDEOCLIPES DE MÚSICA URBANA NACIONAL, FALÁMOS COM ELE SOBRE A SUA TRAJETÓRIA QUE O LEVOU ATÉ AOS DIAS DE HOJE.

Tens grande experiência no campo do vídeo, desde realização de documentários , à realização de videoclipes, fala-nos um pouco do teu trajecto até chegarmos aos dias de hoje.

Advertisement

O meu percurso começa porque o meu pai estava ligado à música, ele escrevia artigos sobre música nos anos 80 e 90, estando inclusive a retomar essa atividade, e ele ia a muitos concertos, sendo crítico de música, mas também recebia na altura muitos discos e cds para poder trabalhar e eu ia a muitos concertos com os meus pais desde muito pequeno e fascinava-me aquela parte técnica o que tornava possível amplificar aquele som, do elemento técnico do som. Lembro-me dos meus 13, 14 anos, ao começar a pensar o que quero fazer no futuro depois do 9º ano e pensei que isto seria o meu caminho. Então posteriormente entrei para a ETIC, para um curso profissional de audiovisuais de produção e pós-produção e é lá que começo a descobrir a linguagem do vídeo, a realização, o argumento e a edição, sendo aqui que começo a encontrar uma expressão artística válida para mim. Comecei a experimentar coisas que me dão satisfação, como retratar algo num videoclipe e ganhei bastante motivação e inspiração, isto em 2002, tinha eu 16 anos nessa altura. Foi ali que inclusive comecei a construir a minha identidade naquele ambiente muito livre com noções libertárias que me mostrou um todo um novo mundo. É por esta altura que comecei a frequentar as primeiras casas ocupadas em Lisboa e estar ligado a movimentos anarquistas entrando na reforma do ensino profissional e nas lutas contra as mesmas e que o ia tornar elitista. Enquanto como linha de identidade começo a aprender sobre as ideologias anarquistas e usando a linguagem audiovisual, esta foi a minha janela dos meus 16 aos 19 anos. Entretanto o caminho natural de um estudante de audiovisuais é ir trabalhar para a televisão tendo indo eu para o pior dos piores que foi ir para à TVI para um A partir daí nunca mais “ parei, em fazer esse tipo de trabalhos que conjugavam a informação com a ideologia de conteúdos libertários, fazendo documentários sob contextos de manifestos e ” lutas sociais (...)

reality show como técnico de som, tendo percebido rapidamente que aquilo não era para mim ainda que se ganhasse bem e até com a hipótese de ganhar alguma estabilidade, mas infelizmente era de conteúdo completamente vazio e até perverso vendo o que é vendido às pessoas como cultura mainstream de entretenimento. Depois disto consegui uma bolsa de estágio Leonardo DaVinci que me fez ir parar à Alemanha onde estive em contacto com movimentos anarquistas o que teve grande impacto em mim também. Quando voltei ingressei no curso de Som e Imagem nas Caldas da Rainha, sendo este um meio pequeno mas onde se juntavam muitas pessoas criativas, tornando este local numa aldeia universitária em que as pessoas tinham montes de espaço para experimentar coisas diferentes dentro da arte, das relações interpessoais e das linguagens criativas em geral o que me permitiu desenvolver ainda mais as minhas capacidades enquanto criador audiovisual. Posteriormente às Caldas da Rainha, estive pela animação de rua, ganhando dinheiro dessa forma, mas também ia algumas vezes para fora de Portugal apanhar fruta até que em 2011 surgiu uma proposta de fazer um documentário sobre artes e ofícios de trabalhos manuais, sustentabilidade, autonomia e recursos materiais locais. A partir daí nunca mais parei, em fazer esse tipo de trabalhos que conjugavam a informação com a ideologia de conteúdos libertários, fazendo documentários sob contextos de manifestos e lutas sociais. Criei a entidade artística Outros ngulos onde usava o video como forma de luta. Entretanto conheci alguns músicos de protesto com os quais me ligava pela consciência o que começo também a trabalhar nesse contexto mais musical, videoclipes, produção de filmes em bairros sociais, workshops e oficinas de video, para empoderar o lado consciente de retratar as suas próprias narrativas.

Quais as maiores dificuldades que tiveste de ultrapassar neste teu percurso?

Todos os equipamentos de vídeo são relativamente caros e essa qualidade que pretendes naturalmente vem sempre com um preço atrás. Eu não tive sequer a opção de ambicionar muito e não criando muitas expectativas e desde sempre quis usar o vídeo de forma simples e retratar as coisas à minha forma, o que nunca foi o meu lema ter as melhores cameras. Naturalmente tive de fazer um upgrade no meu material porque até aí então para me profissionalizar e que me sustentasse a nível financeiro. Foi um desafio ter de conseguir os meios para comprar material que me servisse, desde estabilizadores a microfones para captar som. para conseguir comprar material novo foi complicado, até porque tinha sido pai no meio do processo de juntar dinheiro mas consegui no ano seguinte via um inesperado IRS, de outra forma seria muito complicado. Mas foi uma escolha que tive de fazer em prol do upgrade profissional.

O vídeo tem a grande característica de ser bastante reveladora da visão pessoal de quem opera a câmara. Achas que esse factor é o que mais define uma obra, ou pensas que depende sempre do aspecto técnico ou material?

Penso que acima de tudo é a tua visão como indivíduo querendo transmitir algo, é a tua própria linguagem. Há pessoal que tem grande material, depois não sabe fazer o enquadramento, se não sabe transmitir a narrativa que se quer transmitir esta linguagem do audiovisual por melhor que seja a câmera, isto não resulta. Alguém que tenha uma boa câmera tem de saber o que fazer com ela, saber por um lado a parte técnica, o que é uma exposição correta, a entrada de luz, a velocidade, do movimento, etc, mas também esta parte conceptual de que estás a criar uma linguagem que te representa. Porque na verdade é só isso, o vídeo é só uma linguagem e se não sabes o como comunicar, não vais criar frases e serão apenas palavras soltas, o que assim te obriga a teres de dominar um pouco a gramática ou a técnica. Basicamente é mesmo este paralelismo, tens de saber falar a língua, pois isso só vai potenciar as possibilidades, teres grande material sem saberes as coisas básicas de exposição não vai valer de nada na minha opinião. A dada altura do meu caminho e processo senti necessidade de fazer um upgrade no meu material.

Sentes que a formação académica na área do vídeo é uma exigência crucial ou antes uma forte motivação desejo de aprender e experimentar no campo é o maior fator para singrar no meio.

Hoje em dia, penso que não seja crucial porque podemos ser autodidatas, existindo tantas ferramentas ao nosso dispor. Não penso ser necessário ter formação académica ou cursos, ainda que no meu caso o fato de estar rodeados de pessoas unidas por projetos e ações criativas ajudam a criar químicas e para nós isso é muito válido. O partilhar dentro de um colectivo é brutal e é o maior potenciador de outra experiência e para mim ter estudado e ter estado a conviver com pessoas da mesma área fez-me crescer imenso. Apesar de eu não ser um geek e estudar a fundo na Internet à procura de coisas, eu tendo a parte activista no meu core, penso que consegui aprofundar tecnicamente apenas no que necessitava para a minha linha ideológica e autodidata.

O ambiente onde crescemos faz parte da nossa identidade, então lógico que tem sempre um papel na forma como vês o mundo ou como te expressas”

Tens já uma lista considerável de vídeos musicais realizados, maioritariamente na grande Lisboa e Vale do Tejo. Conta-nos o processo, recebes a música do artista, desenvolves o conceito criativo sozinho e sugeres a ideia ou guião ou é um trabalho de conjunto e parceria e que pode ir mudando ou alterando conforme o desenrolar?

Não tenho um padrão para o fazer, mas sempre discuto com o músico(a) sobre o tema. Até agora só trabalhei com música de intervenção, com algum foco sobre uma área social e de luta e então faz-me sempre sentido que os vídeos me representam ideologicamente e também ao músico. Até porque muitas vezes para mim a música pode não estar sincronizada com as ideias de imagem que penso que fariam sentido e então aí sim é mesmo necessário sentar-me com o artista e encontrar um consenso para haver satisfação entre ambas as partes. Há casos em que os autores cedem completamente a parte criativa do vídeo para as suas músicas e nesse sentido acabo por desenvolver toda a linha de conceito perante a letra e teor de músico. O meu papel primordial é sempre de enaltecer o conceito do artista e da música

Movimentos de resposta alternativa a várias problemáticas criando estruturas autónomas

acima de tudo ”

sendo um papel de ilustração na maioria das vezes.

O teu trabalho está fortemente ligado ao meio social e directamente relacionado com o conceito urbano lisboeta, pensas que essa localização geográfica tem um peso na tua forma de expressão e criação?

O ambiente onde crescemos faz parte da nossa identidade, então lógico que tem sempre um papel na forma como vês o mundo ou como te expressas. Bebes disso tudo naturalmente, onde isso é fonte de inspiração e também a forma que te oprime. É aqui que tu mais absorves e cresces como pessoa. Perante mim este quadro social e todas as lutas que envolvem constrói-me como pessoa, então todo o trabalho que eu faço e projetos onde participo tem sempre um cunho identitário de quem eu sou acima de tudo. O fato de eu ter crescido na margem sul e ter crescido e moldado desta forma politicamente e ideologicamente faz com que a minha relação com o vídeo rode à volta deste universo.

No teu trabalho de realização de documentários sobre vários conteúdos surge em que moldes, contar uma história ou apelar a uma intenção de intervenção?

Os documentários que fui fazendo há sempre uma intenção de contar uma história, mas também essencialmente servem para despertar as pessoas para os temas que vou retratando e estando esses documentários sempre à volta de processos de autonomia, autogestão com lutas contra qualquer forma de opressão ou luta. Comecei por fazer um ou dois documentários sobre processos artísticos ou ofícios manuais, mas anda à volta deste universo. Movimentos de resposta alternativa a várias problemáticas criando estruturas autónoma acima de tudo.

És requisitado pelos

mais jovens para ensinares sobre realização de vídeo? Já tiveste essa experiência com workshops ou é algo sempre mais informal?

Já dei formações e na verdade tudo começou com filme e juntamente com o meu mano BOSS, realizamos no Bairro Fim do Mundo em formato de oficina participativa, passando pela oficina escrita e adaptando essas narrativas ao vídeo. Resultou num processo espectacular ainda que com poucas condições técnicas, com boa participação o que foi muito rico e levou-me a criar mais oficinas deste tipo. Desde oficinas criativas e workshops técnicos. No entanto há sempre pessoas que me vêm perguntar coisas específicas de vídeo de uma forma informal mas sempre numa relação horizontal e em conjunto.

Nos dias que correm, achas que as camadas mais jovens têm interesse em aprender sobre vídeo e realização comparando com a altura em que iniciaste?

Penso que interesse há, até porque é uma linguagem cada vez mais usada, seja por empresas, associações, projetos, movimentos formais e não formais há esta necessidade da comunicação de vídeo ser uma necessidade. Quando comecei ainda não havia este boom dos smartphones e hoje toda a gente usa os smartphones no dia a dia, com as redes sociais, as stories etc. Ou seja, o vídeo e a sua utilização mudou um pouco a dinâmica a vários níveis, havendo #17

muita gente que faz a comunicação apenas dessa forma sem necessário recursos a edição de vídeo, tratamento de cor e por aí fora. No entanto, há sempre quem queira aprender essa linguagem de cinema e aplicada à televisão. Há sem dúvida uma maior facilidade em aprender com tanta informação extra escola ou espaço educacional com a quantidade de tutoriais na Internet. Penso que é um pouco por aí que o paradigma do interesse e aprendizagem se vai alterando.

Sentes que o vídeo pode e deve envolver a própria comunidade e o nosso meio ambiente social? De que forma o fazes?

Acho que uma das várias utilidades do vídeo é servir o nosso meio ambiente em redor. O vídeo é uma linguagem que deve servir toda a gente e para determinados registos devem ser contados de dentro para fora. Por exemplo, se eu moro em Setúbal e vou ao Bairro Jamaica para fazer um documento de vídeo sobre o realojamento das pessoas, então tudo o que eu farei será sempre de um ponto de vista de alguém de fora, o que esse trabalho se for feito em conjunto com alguém que lá mora no bairro pois vai documentar uma realidade de alguém que conheça o ambiente a fundo. É esta a forma que deve

ser para ser considerada uma forma justa.

De momento, que tens desenvolvido dentro do trabalho de vídeo que possas revelar e o que tens preparado para o futuro nível pessoal?

Neste momento estou a realizar um documentário sobre a agroecologia e sobre AMAPs, (Associações de Manutenção da Agricultura de Proximidade e Campesina), ou seja formas de organização de comunidade à volta do alimento. Estou a fazer vários registos em Portugal, que pretende captar outras formas de agricultura e outras formas de relação e organização de comunidade na forma como comemos e relacionamos com a agricultura e pessoas que nela trabalham. São projetos que são novos em Portugal, com origem na França. Fazendo este documentário contribuo também para a minha própria AMAP e servindo também como ferramenta que potencia e incentiva o despertar da consciência das pessoas numa agricultura não nociva para o meio ambiente e de forma justa acima de tudo.