BGOELDI. Humanas v11n2

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ISSN 2178-2547

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v. 11 n. 2 maio/agosto de 2016



Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas

v. 11, n. 2 maio-agosto 2016


BOLETIM DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. CIÊNCIAS HUMANAS (ISSN 2178-2547) Imagem da capa São José da Coroa Grande, Pernambuco, outubro de 2008. Foto: Cristiano Ramalho

O Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia foi criado por Emílio Goeldi e o primeiro fascículo surgiu em 1894. O atual Boletim é sucedâneo daquele. The Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia was created by Emilio Goeldi, and the first number was issued in 1894. The present one is the successor to this publication.

EditorA CientíficA Jimena Felipe Beltrão Editores Associados Alegria Benchimol - Museu Paraense Emílio Goeldi - Museologia Candida Barros - Museu Paraense Emílio Goeldi - Linguística Claudia López - Museu Paraense Emílio Goeldi - Antropologia Cristiana Barreto - Museu de Arqueologia e Etnologia - Universidade de São Paulo - Arqueologia Flávia de Castro Alves - Universidade de Brasília - Linguística Hein van der Voort - Museu Paraense Emílio Goeldi - Linguística Jorge Eremites de Oliveira - Universidade Federal de Pelotas - Antropologia Martijn van den Bel - Universiteit Leiden - Arqueologia Mily Crevels - Universiteit Leiden - Linguística Priscila Faulhaber Barbosa - Museu de Astronomia e Ciências Afins - Antropologia Richard Pace - Middle Tennessee State University - Antropologia

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO Ângela Domingues - Instituto de Investigação Científica Tropical - Lisboa - Portugal Bruna Franchetto - Museu Nacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil Eduardo Brondizio - Indiana University - Bloomington - USA Eduardo Góes Neves - Museu de Arqueologia e Etnologia - Universidade de São Paulo - São Paulo - Brasil Gustavo Politis - Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires - Tandil - Argentina Janet Marion Chernela - University of Maryland - Maryland - USA Klaus Zimmermann - Universidade de Bremen - Bremen - Alemanha Marcos Chor Maio - Casa de Oswaldo Cruz - FIOCRUZ - Rio de Janeiro - Brasil Maria Filomena Spatti Sândalo - Universidade Estadual de Campinas - Campinas - Brasil Michael J. Heckenberger - University of Florida - Gainesville - USA Michael Kraus - Universidade de Bonn - Bonn - Alemanha Neil Safier - The John Carter Brown Library - Providence - USA Nora C. England - University of Texas at Austin - Austin - USA Rui Sérgio S. Murrieta - Universidade de São Paulo - São Paulo - Brasil Tânia Andrade Lima - Museu Nacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil Walter Neves - Universidade de São Paulo - São Paulo - Brasil William Balée - Tulane University - Louisiana - USA

NÚCLEO EDITORIAL Normatização - Arlene Lopes, Daniele Alencar e Rafaele Lima Revisão ortográfica - Antonio Carlos Fausto da Silva Júnior e Rafaele Lima Editoração, versão eletrônica e capa deste número - Talita do Vale


Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações Museu Paraense Emílio Goeldi

Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas

ISSN 2178-2547 Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi

Cienc. Hum.

Belém

v. 11

n. 2

p. 363-540

maio-agosto 2016


Endereço para correspondência: Museu Paraense Emílio Goeldi Núcleo Editorial - Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Av. Perimetral, 1901 Terra Firme – CEP 66077-830 Belém - PA - Brasil Telefone: 55-91-3075-6186 E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br

INDEXADORES AIO - Anthropological Index Online Anthropological Literature CLASE - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades IBSS - International Bibliography of the Social Sciences LATINDEX - Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, Espanã y Portugal SciELO - Scientific Electronic Library Online SCOPUS

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 2016. – Belém: MPEG, 2016. v. 11, n. 2., v. il. Semestral: 1984-2002 Interrompida: 2003-2004 Quadrimestral a partir do v. 1, 2005. Títulos Anteriores: Boletim Museu Paraense de História Natural e Ethnographia 1894-98; Boletim Museu Paraense de História Natural e Ethnographia (Museu Goeldi) 1902; Boletim do Museu Goeldi (Museu Paraense) de História Natural e Ethnographia 1906-1914; Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi de História Natural e Etnografia 1933; Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, série Antropologia 1949-2002; Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, série Ciências Humanas, em 2005. A partir de 2006, Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. ISSN 2178-2547 1. Ciências Humanas. 2. Antropologia. 3. Arqueologia. 4. Linguística. 5. Sociologia. 6. História. I. Museu Paraense Emílio Goeldi.

CDD-21ª.ed. 300 © Direitos de Cópia/Copyright 2016 por/by MCTI/Museu Goeldi


CARTA DA EDITORA

Uma instituição em seus 150 anos mantém há 122 um dos periódicos mais antigos do país, e, certamente, representante histórico da publicação seriada de conteúdo científico na Amazônia. Ao comemorar seu Sesquicentenário, o Museu inaugura fase plenamente eletrônica do seu Boletim. Disponível em página própria e com uma plataforma para submissão eletrônica de originais, o Boletim mais uma vez se apresenta moderno em sua tradição ao mesmo tempo em que renova seu Conselho Científico e o Corpo de Editores Associados. Esses desafios vêm acompanhados de uma troca na condução dos processos editoriais, ora sob a minha responsabilidade em sucessão a Hein van der Voort. Assumir responsabilidade dessa natureza é tarefa trabalhosa, mas, sobretudo, de prazer em conduzir processo editorial, que leva à sociedade informação científica de qualidade, em formato também disponível no Issuu, com o qual o leitor pode ainda “folhear” páginas de um volume que não mais é impresso. Nessa edição, os leitores terão acesso a discussões sobre a relação das populações humanas com os recursos naturais e a intervenção direta no ambiente físico para fins de subsistência e de produção, que revelam formas de convívio e de apropriação do meio ambiente. A problemática está presente em seis dos artigos desta edição, três dos quais tratam da pesca artesanal na Amazônia, mais especificamente no Amapá, e em Sergipe e Pernambuco. Num “irrevogável metabolismo do pescador com a natureza”, segundo estudo de Cristiano Ramalho, a pesca se revela como “alternativa de subsistência, fonte de trabalho e renda para inúmeras famílias”, na discussão de Mary Lourdes Santana Martins e Ronaldo Gomes Alvim. Os autores, ao tratarem a pesca sob a perspectiva feminina, indicam que a atividade ainda padece com “invisibilidade e desvalorização do seu trabalho, entendido, muitas vezes, como extensão das tarefas domésticas”. Para Márcia Dayane Vilhena Daaddy e seus coautores, a importância da atividade de pesca artesanal “não está alinhada somente à produção de alimentos, mas também às diferentes estratégias e aos comportamentos associados ao uso do recurso pesqueiro”. Análise de práticas de cultivo entre os Maroons traz da Guiana Francesa, em estudo de Marie Fleury, o conhecimento sobre a subsistência na fronteira com o Norte brasileiro. O artigo compunha dossiê: “Dinâmicas das agriculturas amazônicas”, mas não pôde ser publicado na edição correspondente. Ainda no tema da subsistência, vem da Arqueologia contribuição com estudo de Arkley Marques Bandeira e coautores, sobre o Sambaqui do Bacanga, no Maranhão. Para os autores, “Os padrões humanos de subsistência e/ou mobilidade podem estar refletidos no registro zooarqueológico dos sambaquis de manguezais estuarinos e outros ecótonos litorâneos” com “a disponibilidade de grande parte dos recursos animais”. O tema da subsistência também se encontra na discussão do urbano e do rural, uma dicotomia histórica, desafiada por estudo de autoria de Julia Corrêa Côrtes e Álvaro de Oliveira D’Antona, sobre fronteira agrícola, desenvolvido BELTRÃO, Jimena Felipe. Carta da Editora. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 2, p. 357-358, maio-ago. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981-81222016000200001.


em área de influência do agronegócio no município de Santarém, no Tapajós, Pará. Presente em estudo de Luciano Demetrius Barbosa Lima, sobre o fascínio que plantas e animais amazônicos exerceram entre viajantes da região no século XIX, a dicotomia também é, assim, expressa: “Muitos estudiosos, seduzidos pela fauna e pela flora existentes no ambiente interno e nas cercanias da capital do Grão-Pará, também se preocuparam em descrever aspectos da natureza presentes no respectivo núcleo urbano ou em suas proximidades”. A produção de adornos entre grupos humanos na região de Carajás, no Pará, em artigo de autoria de Catarina Guzzo Falci e Maria Jacqueline Rodet, e o trabalho de preservação da memória e do patrimônio botânico no Herbário ICN, vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, de Sonia Maria Piccinini são outros dois temas desta edição. Uma resenha de Sabine Reiter, sobre o livro “Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos”, um conjunto de textos em caxinauá, português e espanhol sobre a etnia Caxinauá, habitante da fronteira Brasil - Peru, completa esta edição.

Jimena Felipe Beltrão Editora Científica


CARTA DO EDITOR EDITOR’S NOTE ARTIGOS ARTICLES Pesca do apaiari, Astronotus ocellatus (Agassiz, 1831), e perfil socioeconômico dos pescadores artesanais de uma região da Amazônia brasileira Apaiari fishing, Astronotus ocellatus (Agassiz, 1831), and socioeconomic profile of artisanal fishermen in a region of the Brazilian Amazon Márcia Dayane Vilhena Daaddy, Cesar Santos, Rúbia Maielli Lima Brandão, Renan Diego Amanajás, Ana Beatriz Nunes Ribeiro................................................................................................................................................................363

Perspectivas do trabalho feminino na pesca artesanal: particularidades da comunidade Ilha do Beto, Sergipe, Brasil Female labor in artisanal fishing: the community of Ilha do Beto, Sergipe, Brazil Mary Lourdes Santana Martins, Ronaldo Gomes Alvim......................................................................................................................379

Pescados, pescarias e pescadores: notas etnográficas sobre processos ecossociais Fish, fisheries and fishermen: ethnographic notes about ecosocial processes Cristiano Wellington Noberto Ramalho............................................................................................................................................. 391

Fronteira agrícola na Amazônia contemporânea: repensando o paradigma a partir da mobilidade da população de Santarém-PA Agricultural frontier in contemporary Amazonia: rethinking the paradigm on the basis of population mobility in Santarém, Pará Julia Corrêa Côrtes, Álvaro de Oliveira D’Antona.............................................................................................................................. 415

Agriculture itinérante sur brûlis (AIB) et plantes cultivées sur le haut Maroni: étude comparée chez les Aluku et les Wayana en Guyane française Slash and burn agriculture and plant cultivated on upper Maroni: comparative study among Aluku and Wayana peoples in French Guiana Marie Fleury..................................................................................................................................................................................... 431

Mobilidade, subsistência e apropriação do ambiente: contribuições da zooarqueologia sobre o Sambaqui do Bacanga, São Luís, Maranhão Mobility, subsistence and appropriation of the environment: zooarchaelogical contributions on the Sambaqui do Bacanga, São Luís, Maranhão Arkley Marques Bandeira, Artur Chahud, Isabela Cristina Padovani Ferreira, Mírian Liza Alves Forancelli Pacheco................................467


Adornos corporais em Carajás: a produção de contas líticas em uma perspectiva regional Body ornaments from the Carajás region: stone bead production in a regional perspective Catarina Guzzo Falci, Maria Jacqueline Rodet..................................................................................................................................... 481

Belém e o mundo natural: olhares de viajantes sobre plantas e animais na urbe amazônica (1840-1860) Belém and the natural world: views of travelers about plants and animals in the amazon urban areas (1840-1860) Luciano Demetrius Barbosa Lima......................................................................................................................................................505

Memória social e patrimônio cultural: a transmissão de práticas científicas em um herbário brasileiro Social memory and cultural heritage: scientific practices transmission in a Brazilian herbarium Sonia Maria Piccinini, Lucas Graeff, Patrícia Kayser Vargas Mangan....................................................................................................... 521

RESENHA BOOK REVIEW


ARTIGOS



Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 2, p. 363-378, maio-ago. 2016

Pesca do apaiari, Astronotus ocellatus (Agassiz, 1831), e perfil socioeconômico dos pescadores artesanais de uma região da Amazônia brasileira Apaiari fishing, Astronotus ocellatus (Agassiz, 1831), and socioeconomic profile of artisanal fishermen in a region of the Brazilian Amazon Márcia Dayane Vilhena DaaddyI, Cesar SantosII, Rúbia Maielli Lima BrandãoIII, Renan Diego AmanajásIII, Ana Beatriz Nunes RibeiroIV I II III

Universidade Federal do Amapá. Macapá, Amapá, Brasil

Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Macapá, Amapá, Brasil

Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Manaus, Amazonas, Brasil IV

Universidade do Estado do Amapá. Macapá, Amapá, Brasil

Resumo: A pesca artesanal é uma importante atividade econômica e de subsistência para as populações tradicionais da região amazônica. O objetivo deste estudo foi caracterizar a pesca do apaiari, Astronotus ocellatus (Agassiz, 1831), e o perfil socioeconômico dos pescadores artesanais da região dos lagos de Pracuúba, Amapá. De maio a agosto de 2011, foram realizadas entrevistas, através de formulários padronizados, com pescadores selecionados por meio do método ‘bola de neve’, com idade acima de 18 anos. Dos 68 pescadores selecionados, 55 eram do sexo masculino e 13 do feminino. A partir dos resultados, observou-se que os pescadores possuem um amplo conhecimento da atividade na região, incluindo a pesca do apaiari. Tanto a vida social quanto a econômica desta população dependem totalmente da pesca artesanal. Palavras-chave: Pesca artesanal. Socioeconomia. Etnobiologia. Conhecimento tradicional. Abstract: The artisanal fishery is an important economic and subsistence activity among traditional populations in the Amazon Region. Therefore, the aim of this study was to characterize the fishery of apaiari, Astronotus ocellatus (Agassiz, 1831), and to present a socioeconomic profile of artisanal fishermen in the region lakes of Pracuúba, Amapá, Brazil. From May to August 2011 interviews were conducted using standardized forms with fishermen selected by “snowball” method and aged above 18 years old. A total of 68 fishing workers were interviewed, of which 55 were men and 13 women. It was possible to observe that fishing workers have a wide knowledge of fishery in the Region, including apaiari fishery, and that social and economic lives of the Pracuúba population depend totally of the artisanal fishery. Keywords: Artisanal fishery. Socioeconomics. Ethnobiology. Traditional knowledge.

DAADDY, Márcia Dayane Vilhena; SANTOS, Cesar; BRANDÃO, Rúbia Maielli Lima; AMANAJÁS, Renan Diego; RIBEIRO, Ana Beatriz Nunes. Pesca do apaiari, Astronotus ocellatus (Agassiz, 1831), e perfil socioeconômico dos pescadores artesanais de uma região da Amazônia brasileira. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 2, p. 363-378, maio-ago. 2016. DOI: http://dx.doi. org/10.1590/1981.81222016000200002. Autora para correspondência: Márcia Dayane Vilhena Daaddy. Universidade Federal do Amapá. Rodovia Juscelino Kubtscheck, s/n, km 02 – Jardim Marco Zero. Macapá, AP, Brasil. CEP 68903-419 (mdayvilhena@gmail.com). Recebido em 09/12/2014 Aprovado em 01/06/2016

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Pesca do apaiari, Astronotus ocellatus (Agassiz, 1831), e perfil socioeconômico dos pescadores artesanais de uma região da Amazônia brasileira

INTRODUÇÃO A pesca artesanal na Amazônia constitui uma tradição arraigada ao hábito de vida das populações ribeirinhas (Santos, G.; Santos, A., 2005, p. 167). Sua importância, entre outros motivos, não está alinhada somente à produção de alimentos, mas também às diferentes estratégias e aos comportamentos associados ao uso do recurso pesqueiro (Freitas; Rivas, 2006, p. 30). Assim, mais de 300 mil pescadores têm sua fonte de renda na atividade, o que culminou na produção aproximada de 137 mil toneladas de pescados, e 55% de toda a produção em águas continentais do país no ano de 2011 (MPA, 2010, p. 35; 2011, p. 22-29). A compreensão dos modos de operação, da detecção dos peixes e das formas de captura, da interação da sazonalidade ambiental com a dinâmica populacional das espécies, e a relação destas com os pescadores, ditam certa complexidade na análise da atividade por toda a região, visto que a ligação entre o homem e a natureza demonstra que as comunidades pesqueiras desenvolveram modos de vida específicos, visando à adaptação às variações do ecossistema e buscando formas de transmissão dos conhecimentos adquiridos ao longo das gerações, específicos de cada comunidade pesqueira (Mérona, 1993, p. 164; Berkes et al., 2000, p. 1252; Barthem; Fabré, 2004, p. 48). De acordo com Ramires et al. (2012, p. 232), a busca por informações junto a estas comunidades fornece importantes dados para a composição da estatística da pesca no país, tanto em relação à biologia pesqueira quanto à socioeconomia, muito embora sejam difusas. Para que medidas para o manejo pesqueiro possam efetivamente ser implementadas, contemplando os recursos pesqueiros e as comunidades que deles dependem, é necessário conhecer as características da atividade ao longo do território, como quais são as espécies mais exploradas, as estratégias de pesca empregadas e a realidade socioeconômica dos pescadores, tendo como um dos pilares básicos a percepção desses atores sociais (Silvano, 2004, p. 189; Begossi, 2010, p. 17). Para a região amazônica, apesar de a

pesca ter forte expressão alimentar, cultural e econômica, a carência de informações dessa natureza tem impossibilitado a execução adequada da gestão da atividade (Inomata; Freitas, 2015, p. 80). O estado do Amapá, localizado na região geográfica da bacia amazônica, tem na pesca de caráter artesanal, praticada nas águas interiores, pouca competitividade, se comparada àquela praticada na região costeira e estuarina por embarcações de outros estados (Silva; Dias, 2010, p. 44). A região lacustre do município do Pracuúba, importante polo pesqueiro amapaense, tem na exploração de espécies como o aracu (Schizodon fasciatus), o tucunaré (Cichla sp.), a traíra (Hoplias malabaricus) e o apaiari (Astronotus ocellatus) uma significante fonte de renda (Silva, L.; Silva, S., 2006, p. 187). Dados reportam ser a espécie A. ocellatus, endêmica da bacia amazônica, uma das mais capturadas no estado do Amapá, com 597 toneladas produzidas em 2007 (IBAMA, 2007, p. 65). Todavia, informações a respeito da pesca desta espécie na região são extremamente escassas, o que pode estar incorrendo na gestão inadequada das pescarias. Embora estratégica e economicamente importante, a pesca de A. ocellatus na região é pouco explorada sob a perspectiva do conhecimento tradicional dos pescadores e, além disso, é pouco conhecida a situação social deste grupo, dificultando a implementação de políticas públicas voltadas ao setor pesqueiro. Diante do exposto, este trabalho teve por objetivo caracterizar a pesca da espécie Astronotus ocellatus, a partir da percepção dos pescadores da região lacustre do município de Pracuúba, no estado do Amapá, bem como avaliar a situação socioeconômica desses pescadores, com o intuito de gerar informações que possibilitem a melhor gestão da cadeia produtiva da pesca na região.

MATERIAL E MÉTODOS ÁREA DE ESTUDO O município de Pracuúba está localizado no estado do Amapá e faz parte da Amazônia brasileira (Figura 1).

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Figura 1. Mapa de localização do município de Pracuúba, estado do Amapá, Amazônia, Brasil.

Possui uma área de 4.957 km2, onde estão inseridas duas unidades de conservação ambiental: a Floresta Nacional do Amapá e a Floresta Estadual do Amapá. Sua população é de 3.793 pessoas (IBGE, 2010), divididas entre as seguintes comunidades: Pracuúba, Breu, Cujubim, Flexal, Pernambuco, Porto Franco, São Miguel e Tucunaré. A região apresenta clima tipicamente amazônico – quente e úmido –, estando situada em área inundável e sendo regulada pelo regime pluviométrico (Rabelo et al., 2006, p. 71). A sazonalidade dos períodos de chuva na região faz com que os vastos campos naturais sejam

inundados durante o primeiro semestre do ano, para, posteriormente, secarem pela ausência de chuvas durante parte do segundo semestre. Essa dinâmica sazonal evidencia ainda mais os grandes lagos que compõem a região, e a potencializa como grande produtora de pescado (Rabelo et al., 2006, p. 70-71). As principais atividades econômicas desenvolvidas na região são: extrativismo vegetal; agricultura de subsistência; pecuária e pesca, sendo esta última de grande relevância para a economia local. Segundo informações da Superintendência Estadual de Aquicultura

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Pesca do apaiari, Astronotus ocellatus (Agassiz, 1831), e perfil socioeconômico dos pescadores artesanais de uma região da Amazônia brasileira

e Pesca (SEPAq), 200 pescadores são associados à Colônia Z11 (Silva, L.; Silva, S., 2006, p. 176), porém se estima que esse número seja maior, pois muitos pescadores não estão vinculados à Colônia.

COLETA DE DADOS Antes de iniciar o levantamento de dados, fez-se uma visita exploratória, em abril de 2011, com o intuito de conhecer melhor a região e, através de conversa informal, identificar pescadores experientes que pudessem auxiliar a equipe de pesquisa no início do estudo. A pesquisa foi realizada de maio a agosto de 2011, e consistiu em entrevistas, feitas por meio de perguntas semiestruturadas, organizadas na mesma ordem para todos os entrevistados (Silvano, 2004, p. 195). Foram selecionados pescadores com idades acima de 18 anos pelo método snow ball ou ‘bola de neve’, preconizado por Bailey (1982, p. 96) e Silvano (2004, p. 197), o qual consiste em um pescador indicar o outro, e assim sucessivamente. Desta forma, seria possível alcançar o maior número de participantes. Durante a abordagem, a equipe se apresentava, informando seus nomes, instituição e explicava os principais pontos da pesquisa. Caso o pescador aceitasse participar, era feita a leitura do “termo de consentimento livre e esclarecido”, que elucidava ao entrevistado sobre os objetivos do trabalho e o uso das informações repassadas por ele, assegurando que o mesmo não seria identificado na publicação dos resultados. Através de assinatura ou impressão digital, para os que não assinavam o nome, todos autorizaram as entrevistas e o uso das informações nas condições estabelecidas no termo. Além disso, algumas entrevistas foram gravadas em áudio, quando autorizadas, para que questões importantes pudessem ser registradas. Sobre a socioeconomia, foram obtidas as seguintes informações: nome, sexo, idade, local de nascimento, comunidade onde mora, tempo de moradia na região, estado civil, escolaridade, número de filhos, tempo em que pratica a atividade de pesca, número de membros

da família que também atuam na pesca, dias de pescaria, acompanhantes no trabalho, tipo de embarcação, espécies que costuma pescar, nome dos locais onde pratica a atividade, conservação e comercialização do pescado, renda mensal proveniente desta ocupação, prática de outra atividade além da pesca, renda proveniente dessa prática, dependentes da renda mensal e vínculo com a colônia de pescadores. Além das perguntas semiestruturadas, foram feitas observações in loco sobre o papel das mulheres naquele grupo e também questões sobre moradia, saneamento básico, energia elétrica, entre outras. A respeito da pesca do apaiari, inicialmente, foi apresentada uma fotografia da espécie para os pescadores, requerendo seu próprio reconhecimento do peixe, sem que houvesse interferência do entrevistador para tal informação. Em seguida, foram feitas perguntas sobre os melhores locais, a melhor época para captura, os apetrechos de pesca mais utilizados, tamanho de captura, quantidade por pescaria, preço de venda, formas de consumo, espécies acompanhantes na pescaria, além de questões sobre a situação do estoque da espécie nos lagos da região. Os dados das entrevistas foram organizados em planilhas computadorizadas para análise descritiva, e as gravações foram transcritas utilizando-se o programa Scribe.

RESULTADOS SOCIOECONOMIA DOS PESCADORES ARTESANAIS Foram entrevistados 68 pescadores e, desse total, 80,9% são do gênero masculino. A idade média dos entrevistados foi de 40,7 anos, sendo que o pescador mais jovem tinha 21 anos e o mais velho, 79 anos. Quanto à naturalidade, a maioria, 72%, nasceu em Pracuúba, e 28% em outras cidades dos estados do Amapá e do Pará. Destes últimos, o tempo de residência no município variou de três meses a 37 anos. Apesar de a sede possuir uma escola estadual e uma municipal, e de todas as comunidades possuírem uma escola municipal, foi verificada baixa escolaridade

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entre todos os entrevistados, sendo que 5,9% não são alfabetizados e 61,8% não concluíram o ensino fundamental. Com relação à estrutura familiar, observou-se que 63% dos pescadores são casados no civil ou têm união estável e, desse total, apenas 10,3% não possuem filhos. A maioria das famílias vive em casas típicas da região, de madeira e coberta por telhas de amianto (Figura 2), as quais, de forma geral, são o local onde o pescado é comercializado. A Tabela 1 apresenta a caracterização geral dos pescadores de Pracuúba. As moradias dos pescadores não apresentam infraestrutura de saneamento básico. Não possuem água tratada pela Companhia de Água e Esgoto do Amapá (CAESA). Desse modo, a água utilizada pela população

é proveniente de poços escavados nos quintais de suas residências. Em contrapartida, todas as comunidades do município, incluindo a sede, possuem energia elétrica fornecida pela Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA). No que corresponde à atividade pesqueira, todos os entrevistados declararam ser pescadores artesanais profissionais, dependendo diretamente da pesca, tanto para sua subsistência quanto como principal fonte de renda. Destes, 79% têm de dez a 70 anos praticando a atividade e, apesar de todos se declararem pescadores artesanais, 20% não são cadastrados na Colônia Z11. Portanto, não possuem a carteira de pescador artesanal profissional e não recebem o Seguro Defeso. Na Tabela 2 estão descritos os dados socioeconômicos referentes à pesca na região.

Figura 2. Residência dos pescadores artesanais do município de Pracuúba, estado do Amapá, Amazônia, Brasil. Foto: Márcia Daaddy.

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Pesca do apaiari, Astronotus ocellatus (Agassiz, 1831), e perfil socioeconômico dos pescadores artesanais de uma região da Amazônia brasileira

A maioria dos entrevistados (80,9%) declarou ter uma ou mais pessoas da família que trabalha com atividade pesqueira. Sobre a coletividade nas pescarias, 72% afirmaram pescar com duas ou três pessoas, sendo os acompanhantes, geralmente, membros de sua família – por exemplo, marido acompanhado da esposa, o pai acompanhado do filho – ou então amigo de relação próxima.

Tabela 2. Informações socioeconômicas referentes à atividade de pesca. Legendas: n = número de entrevistados; * = salário mínimo em 2011: R$ 545,00; ** = outras atividades: vaqueiro, servente, pedreiro, vigilante noturno, capinador, vendedor de açaí.

Tabela 1. Informações socioeconômicas dos pescadores. Legenda: n = número de entrevistados.

Gênero

Idade (anos)

Naturalidade

Escolaridade

Estado civil

Filhos

Habitação

Variável

Tempo como pescador artesanal (anos)

(Continua) n %

< 10

14

21

10 a 19

16

23,5

20 a 29

17

25

30 a 39

9

13,2

40 a 49

9

13,2

Variável

n

%

50 a 59

2

2,9

Masculino

55

80,9

60 a 69

1

1,2

Feminino

13

19,1

Apenas o entrevistado

13

19,1

20 a 29

15

22,1

1a2

36

53

30 a 39

21

30,9

3a4

15

22,1

40 a 49

14

20,6

5a6

3

4,4

50 a 59

12

17,6

>6

1

1,4

60 a 69

5

7,4

Sozinho

19

28

70 a 79

1

1,4

2a3

49

72

Pracuúba

49

72,0

Subsistência

4

5,9

Outro município (Amapá)

15

22,1

Comercialização

10

14,7

Outro município (Pará)

4

5,9

Não alfabetizado

4

5,9

Subsistência e comercialização

54

79,4

Ensino fundamental incompleto

42

61,8

Não cadastrados

14

20,6

Cadastrados

54

79,4

1 a 3 vezes/semana

11

16,2

4 a 6 vezes/semana

46

67,6

Todos os dias

11

16,2

Canoa a remo (montaria)

27

39,7

Canoa a motor, tipo rabeta (batelão)

40

58,9

Barco de pequeno porte

1

1,4

Até 1 salário mínimo

37

54,4

Até 2 salários mínimos

24

35,2

Até 3 salários mínimos

2

3

Membros da família que trabalham com a pesca

Pescadores embarcados

Finalidade da pesca

Colônia de pescadores Z-11

Ensino fundamental completo

2

2,9

Ensino médio incompleto

16

23,5

Ensino médio completo

4

5,9

Casado/união estável

43

63,3

Solteiro

17

25,0

Separado

6

8,8

Viúvo

2

2,9

Não tem

7

10,3

1a3

20

29,4

4a6

25

36,8

7a9

7

10,3

10 a 12

8

11,8

13 a 15

1

1,4

Madeira

65

95,5

Até 4 salários mínimos

2

3

Alvenaria

3

4,5

Não responderam

3

4,4

Frequência das pescarias

Tipo de embarcação

Renda mensal (pesca)*

368


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 2, p. 363-378, maio-ago. 2016

Tabela 2. Variável Atividade além da pesca

Dependentes da renda mensal

(Conclusão) n %

Somente a pesca

44

65

Outras atividades**

20

30

Bolsa Família

4

5

1a3

13

19

4a6

43

63,2

7a9

8

12

10 a 12

3

4,4

13 a 15

1

1,4

Quanto à frequência das pescarias, 67,6% afirmaram pescar de quatro a seis vezes por semana (Tabela 2), relatando também que as pescarias duravam normalmente um dia. Os principais locais de pesca citados foram o lago do Comprido, Sacaizal, região das Fazendas e rio Flexal. Sobre os tipos de embarcação, foram citados: canoa a remo, também chamada de ‘montaria’; canoa com motor do tipo ‘rabeta’ (com 3,5 a 6,5 HP de propulsão), também conhecida como ‘batelão’; e barco de pequeno porte com 12 HP de propulsão do motor (Figuras 3A a 3C).

Figura 3. Embarcações típicas da região amazônica utilizadas pelos pescadores artesanais no município de Pracuúba: A) montaria; B) batelão; C) barco de pequeno porte. Fotos: (A) Rúbia Brandão; (B e C) Cesar Santos.

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Pesca do apaiari, Astronotus ocellatus (Agassiz, 1831), e perfil socioeconômico dos pescadores artesanais de uma região da Amazônia brasileira

Entre os principais peixes capturados e comercializados, além do apaiari (Astronotus ocellatus), estão tucunaré (Cichla spp.), tamuatá ou ‘tamatá’ (Hoplosternum littorale), acará (Chaetobranchus spp.), aracu ou piau (Leporinus spp.), acari (Hypostomus sp.), piranha (Serrasalmus spp.), pacu (Myleus spp.), traíra (Hoplias malabaricus) e aruanã (Osteoglossum bicirrhosum). Quanto à comercialização, os pescadores relataram vender o pescado, in natura, principalmente ao atravessador, denominado por eles de ‘geleiro’, além de comercializarem o produto nas comunidades locais. Em relação à renda mensal proveniente da atividade pesqueira, a maioria (54,4%) relatou receber até um salário mínimo. Um percentual de 30% dos pescadores trabalha em outras funções para complementar a renda, citadas como vaqueiro, servente, pedreiro, vigilante noturno, capinador e vendedor de açaí. A renda mensal referente a essas atividades é menor do que o salário mínimo. Além disso, alguns entrevistados disseram receber auxílio de programas sociais do governo federal, tal como o Bolsa Família. Entre os entraves observados pelos pescadores em relação ao desenvolvimento da pesca no município de Pracuúba estão: a falta de uma fábrica de gelo operante; a falta de um caminhão frigorífico para auxílio na distribuição do pescado; e, principalmente, a falta de pavimentação da estrada, denominada por eles de ‘ramal’, a qual permite acesso à BR-156, rodovia que interliga o município de Pracuúba à capital Macapá.

por eles de barranco, mururé e aningal, que, na visão dos entrevistados, é o melhor local de alimentação para a espécie e esconderijo diante de predadores (Tabela 3). Sobre o melhor período do ano para a captura do apaiari, 76,5% dos pescadores relataram ser o verão (período de estiagem ou seca), pois é quando os peixes ficam concentrados nos locais onde o nível da água não reduziu totalmente. No entanto, 7,4% afirmaram que capturam a espécie durante todo o ano, e que a eficiência na captura vai depender do método de pesca empregado, ou seja, do tipo de apetrecho utilizado (Tabela 3). Tabela 3. Caracterização geral da pesca do apaiari. Legenda: n = número de entrevistados.

A PESCA DO APAIARI NA VISÃO DOS PESCADORES ARTESANAIS Todos os pescadores reconheceram o A. ocellatus mostrado na fotografia e, apesar de 80,9% o denominarem como apaiari, ele também foi reconhecido pela denominação de acará-açu, flamengo ou flamenguista. Quanto ao tipo de ambiente preferencial para captura da espécie, 91% responderam que o apaiari é encontrado mais facilmente no meio da vegetação aquática, denominada

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Variável

n

%

Nome vulgar de A. ocellatus

Acará-açu

11

16,1

Flamengo ou flamenguista

2

3

Apaiari

55

80,9

Abaixo da vegetação aquática

62

91

Habitat do apaiari Melhor período de captura

Apetrechos usados na pesca do apaiari

Tamanho médio de captura (cm)

Conservação

Na margem (beira) do lago

6

9

Verão

52

76,5

Período chuvoso

11

16,1

O ano todo

5

7,4

Rede

21

30,9

Caniço

1

1,4

Rede e caniço

13

19,1

Rede e linha de mão

8

12

Rede e zagaia

7

10,2

Rede, linha de mão e zagaia

15

22

Rede, linha de mão, zagaia e flecha

2

3

Rede, linha de mão, zagaia e tarrafa

1

1,4

< 20

24

35

20 a 25

36

53

> 25

8

12

Caixa térmica de isopor e gelo

63

92,7

Freezer

4

5,9

Salga

1

1,4


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 2, p. 363-378, maio-ago. 2016

Quanto ao tamanho médio de captura do apaiari, eles relataram capturar peixes de 20 a 25 cm. Em relação aos apetrechos utilizados na captura da espécie, 30,9% dos pescadores utilizam rede de emalhar; as malhas variam entre 8 e 11 cm, entre nós opostos. De acordo com eles, as malhas de 8 e 9 cm entre nós opostos capturam peixes pequenos, denominados peixes miúdos, e as de 10 e 11 cm capturam os peixes maiores, denominados de peixes graúdos. A rede pode ser utilizada em combinação com outros apetrechos citados, como: linha de mão (linha de nylon com um anzol na extremidade); zagaia (semelhante a uma lança); caniço (composto por um fio de nylon, com um anzol na extremidade, interligado a uma haste de bambu); e flecha (Tabela 3). Porém, os pescadores observaram que, para a pesca tradicional e específica do apaiari, eles utilizam o caniço, com uso de iscas. Dependendo do local de pescaria e da estratégia de pesca adotada, a quantidade de apaiari capturado pode variar de 10 a 50 kg; no verão, essa quantidade pode ser acima de 50 kg. Sobre a fauna de peixes que acompanha a captura do apaiari, os pescadores citam principalmente: tucunaré (Cichla spp.), acará (Chaetobranchus spp.), traíra (Hoplias malabaricus), piranha (Serrasalmus spp.), aruanã (Osteoglossum bicirrhosum) e pacu (Myleus spp.). Sobre a conservação do apaiari, é feita com a utilização de caixas térmicas de isopor, contendo gelo; sua comercialização é feita in natura ou apenas com o produto resfriado. O preço médio de comercialização do apaiari no município de Pracuúba é de R$ 3,15, sendo o menor preço registrado de R$ 1,50 e o maior, de R$ 5,00 por kg. O pagamento pelo peixe é feito à vista. Quanto à preferência pelo apaiari, 100% dos pescadores afirmaram que a espécie é muito procurada no município, sendo que eles próprios o apreciam para consumo. Em relação ao estoque natural deste pescado, os entrevistados consideram que está diminuindo e as possíveis causas enumeradas por eles como responsáveis por essa diminuição estão citadas na Tabela 4.

Tabela 4. Opinião dos pescadores sobre a diminuição do apaiari na região dos lagos de Pracuúba. Resposta

Justificativa “Tem muito pescador” “A população cresceu” “Matam a mãe e o pai, e os filhos ficam sem proteção”

Sim

“Todo mundo pesca no lugar onde ele é encontrado” “Existem malhadeira e o búfalo” “Pesca com malha pequena pega os filhinhos” “Devido à pesca na piracema”

Não

“Porque o defeso proíbe a pesca” “Depende do ano”

DISCUSSÃO SOCIOECONOMIA DOS PESCADORES ARTESANAIS O resultado encontrado quanto à predominância do sexo masculino na atividade pesqueira foi observado durante os trabalhos de campo, onde havia maior participação dos homens na prática da pesca, enquanto as mulheres cuidavam das tarefas domésticas e/ou tinham outra ocupação fora de casa para complementar a renda familiar. Sendo assim, apesar de haver mulheres trabalhando como pescadoras em Pracuúba, essa prática é predominantemente masculina. Silva e Begossi (2004, p. 104) também encontraram a mesma organização entre homens e mulheres, ao investigarem sobre o uso dos recursos por ribeirinhos do médio rio Negro. Alencar (1993, p. 66) e Fabré e Barthem (2005, p. 34) destacam que, embora as atividades executadas pelas mulheres nem sempre se desenvolvam nos mesmos espaços das atividades masculinas, e com a mesma frequência, a mulher possui uma relação orgânica com a pesca, pois desempenha certas funções que fazem parte dessa atividade, como consertos de materiais de trabalho, limpeza do pescado, conservação e comercialização. Essa relação descrita por Alencar (1993, p. 66) e Fabré e Barthem (2005, p. 34) corrobora o observado em

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Pesca do apaiari, Astronotus ocellatus (Agassiz, 1831), e perfil socioeconômico dos pescadores artesanais de uma região da Amazônia brasileira

Pracuúba, já que as mulheres possuem papel fundamental na pesca, ajudando no trato e na venda do pescado, além de colaborarem no conserto de apetrechos. Ademais, elas desenvolvem outras atividades para ajudar na renda da família, atuando como merendeiras, em serviços gerais, faxineiras, geralmente desempenhando essas atividades nas escolas da sede ou nas escolas das comunidades e unidades básicas de saúde. Quanto à naturalidade dos pescadores, apesar do predomínio de pessoas nascidas no município, há pessoas provenientes de outras cidades que chegaram à região em busca de melhores oportunidades de emprego. Como a cidade não possui empresas ou indústrias, mas apresenta uma extensa região formada por grandes lagos, a pesca tornou-se a oportunidade mais acessível aos novos habitantes, que, em sua maioria, buscaram legalizar-se como pescadores, cadastrando-se na colônia de pescadores. Segundo Alves e Nishida (2003, p. 40), para a inclusão de uma população na categoria de comunidade tradicional, o tempo de permanência no local é um fator preponderante. Dessa forma, o alto tempo de fixação de residência observado entre os pescadores de Pracuúba, com média de 30 anos, evidencia a forte relação dos pescadores com o ambiente no qual vivem. A despeito da baixa escolaridade constatada na pesquisa, o censo demográfico de 2010 identificou que 18,1% da população deste município não é alfabetizada, entretanto, quando tal aspecto é relacionado à idade, esse percentual possui uma correlação positiva, pois em grupos de idade entre 24 e 59 anos o analfabetismo é de 13,9%, e em grupos de 60 anos ou mais é de 30,2% (IBGE, 2010). De acordo com Alves e Nishida (2003, p. 41), entre os diversos fatores que causam o abandono das salas de aulas está a falta de escolas, a falta de incentivos para prosseguir os estudos e a necessidade de trabalhar para colaborar com a melhoria da renda da família, sendo este padrão também observado para o universo amostral deste estudo.

Lima et al. (2012, p. 77) verificaram, em duas comunidades ribeirinhas às margens do rio Madeira, que 66,6% dos pescadores possuíam apenas o ensino fundamental incompleto. Tamano et al. (2015, p. 702) também encontraram baixa escolaridade entre os pescadores de sururu da lagoa Mundaú, em Maceió, Alagoas. Segundo os autores, a justificativa para os poucos anos de estudo se deve à necessidade daquela população de trabalhar muito cedo para contribuir com a renda familiar. Quando se fala do nível escolar dos jovens, é importante entender que estes, inicialmente, conciliam os estudos com a pesca para auxiliar os pais no sustento da casa, porém, com o passar do tempo, esta atividade torna-se sua ocupação principal (Maneschy, 1993, p. 46). A mesma autora observa ainda que, quando esses jovens confrontam as perspectivas longínquas de “melhorar de vida” através da obtenção de um diploma com a possibilidade imediata de ganhar seu próprio dinheiro todos os dias pescando, a última opção, na maioria das vezes, prevalece e acontece o abandono prematuro da escola como resultado. Este fato é observado no presente estudo em relação ao município de Pracuúba, havendo relação com a estrutura familiar, pois a maioria dos pescadores tem uma companheira ou, no caso das pescadoras, um companheiro, com os quais tem filhos. Maneschy (1993, p. 46) ressalta que as uniões conjugais nas comunidades tradicionais ocorrem muito cedo, por volta dos 17 a 20 anos de idade para os homens e dos 16 para as mulheres, que logo engravidam dos primeiros filhos. Assim, esses jovens trocam o banco da escola pelo banco da canoa, dada a responsabilidade de sustentar os filhos. No que concerne à moradia, além de ser o local onde a família reside, a casa também é o espaço no qual o pescado é comercializado. Os atravessadores conhecem os pescadores e vão até eles efetuar a compra. Além disso, é na residência que o pescador guarda e conserta suas redes e faz a manutenção de todo o aparato utilizado na pesca. A falta de saneamento básico obriga a população a descartar os dejetos nos lagos, causando eutrofização desses ambientes, além de contaminação do lençol freático,

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devido às fossas escavadas nos quintais, com a finalidade de descartar parte desses rejeitos. Assim como na comunidade estudada, Alves da Silva et al. (2009, p. 540), ao investigarem pescadores artesanais no Reservatório de Billings, em São Paulo, observaram a precariedade do saneamento básico naquelas comunidades, com 87,8% das residências descartando seus rejeitos em fossas. Tamano et al. (2015, p. 704) também relataram que 61,54% dos pescadores de sururu da lagoa Mundaú não têm acesso à rede de esgoto, descartando parte de seus resíduos na própria lagoa. No que se refere à prática da pesca artesanal, todos os entrevistados se declararam pescadores artesanais. Misund et al. (2002, p. 25) afirmam que a pesca artesanal se caracteriza por ocorrer em pequena escala, com o uso de embarcações menores, com pouco ou nenhum gasto de combustível, tendo uma extraordinária variedade de métodos de captura desenvolvidos de acordo com os diferentes recursos, ambientes e estações. Segundo os mesmos autores, entre os diversos equipamentos característicos da pesca artesanal, há o uso de canoas, jangadas, pequenas embarcações a motor, lanças, arpões, redes de emalhar, puçás, redes de cerco, linha de mão, anzol. A pesca tem um papel fundamental na organização social das comunidades, pois é a principal fonte de alimento e de renda das populações tradicionais que vivem às margens de rios e lagos. Segundo Diegues (2000, p. 49), a pesca artesanal é predominantemente familiar, com a tripulação constituída por membros da família, por conhecidos ou parentes, sendo que o produto resultante dessa pequena pesca é, em sua maioria, consumido pela família e o excedente, comercializado. Portanto, a pesca no município de Pracuúba é marcada pelo uso da mão de obra familiar e pelo conhecimento tradicional acumulado e repassado ao longo de gerações (Diegues, 2004, p. 122), o que a caracteriza como artesanal. Sendo assim, a maioria dos pescadores do município não sai sozinha para pescar, mas em sistema de parceria com outros pescadores que pertencem ao seu ciclo familiar ou com amigos próximos. Dâmaso (2006, p. 51) teve a

mesma percepção em Itacaré, Bahia, onde as pescarias são realizadas, geralmente, por dois homens, podendo haver embarcações com um ou três pescadores. Segundo a mesma autora, o sistema de parceria adotado envolve relacionamentos e ligações específicas de parentesco e amizade, e o produto é dividido entre eles. Considerando a organização desses pescadores, observou-se que a maioria está articulada na Colônia de pescadores Z-11, mas um número significativo ainda não está associado. Segundo os próprios pescadores, há dificuldade em se associar, devido a uma extensa documentação exigida pela colônia e também porque eles não veem benefícios diretos nisso, pois, de acordo com a percepção deles, apenas um grupo seleto se favorece dos recursos destinados a essa instituição. Fabré e Barthem (2005, p. 35) verificaram que a maioria dos pescadores de bagres do eixo SolimõesAmazonas não está filiada a seus órgãos de classe. Esse é um dado preocupante, pois a colônia é uma forma de associativismo importante para as comunidades tradicionais, já que representa a ‘voz’ dos pescadores perante as instituições públicas. De acordo com Silva (2005, p. 71), qualquer forma de organização política, além de estar estabelecida jurídica e socialmente, deve ter prestígio perante a sociedade na qual se insere, uma vez que, institucionalmente, essa organização atua diretamente na tomada de decisão em benefício próprio, de seus membros e de toda a comunidade. Além disso, a opinião emitida por este grupo tem grande importância na definição de políticas públicas voltadas para a sua área de atuação. No que tange às pescarias, as viagens dos pescadores geralmente são curtas; eles vão e voltam no mesmo dia, pois os locais de pesca ficam próximos. Geralmente, as pescarias ocorrem de segunda a sexta-feira. A maioria reserva os finais de semana para consertar as redes de pesca, cuidar dos afazeres da casa e descansar. Isaac et al. (1998, p. 27), ao descreverem a pesca nos lagos do estado do Amapá, também constataram que as viagens são curtas,

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Pesca do apaiari, Astronotus ocellatus (Agassiz, 1831), e perfil socioeconômico dos pescadores artesanais de uma região da Amazônia brasileira

estendendo-se, no máximo, por um ou dois dias. Outro fator que influencia na ida e vinda das pescarias no mesmo dia são os problemas com a precária disponibilidade de gelo no município, pois o pescador não leva gelo na embarcação, tendo que retornar à sua residência ao final do dia para repassar parte do pescado ao atravessador e destinar a outra ao consumo e à comercialização local. As embarcações e as artes de pesca empregadas nesta atividade em lagos são típicas da pesca tradicional. Santos (2005, p. 71), no estudo sobre a cadeia produtiva da pesca artesanal no estado do Pará, identificou que 51% dos pescadores do nordeste do Estado utilizam, para a execução de seu trabalho, barcos a motor e 49%, canoas a remo. Quanto às artes de pesca empregadas, o autor identificou que 56% utilizam redes de diferentes malhas para a captura do pescado. Contudo, é importante ressaltar que, apesar de certa modernização, as metodologias para a prática da pesca nas diversas comunidades pesqueiras da Amazônia ainda conservam os modos tradicionais. No que concerne aos peixes pescados e comercializados no município de Pracuúba, Isaac et al. (1998, p. 27) também identificaram as mesmas espécies para essa região, tais como apaiari, tucunaré, traíra, tamuatá, aruanã, piranha, entre outras. Esse pescado é vendido ao atravessador (‘geleiro’). O ‘geleiro’ é chamado por esse nome porque transporta o gelo para conservação do pescado em sua caminhonete, já que muitos pescadores não possuem freezer e, por isso, não conseguem produzir gelo suficiente. Em troca, o atravessador exige exclusividade e compra o produto por um valor muito abaixo do praticado pelo mercado, revendendo a um preço muito maior na capital Macapá e em outras cidades do estado do Amapá. O trabalho de Silva e Dias (2010, p. 51) corrobora o presente estudo. Os autores relatam que o pescado vendido em Macapá torna-se mais caro por chegar à capital por intermédio de atravessadores. Em razão de Pracuúba ter uma fábrica de gelo desativada, que não oferece o produto para a conservação

do pescado, por não possuir caminhão frigorífico para o seu transporte para outras cidades do estado do Amapá e pelo difícil acesso à BR-156, o ‘geleiro’ assume um papel importante na distribuição e na venda desse pescado. Em relação ao rendimento financeiro proveniente da pesca, a renda da maioria dos entrevistados (renda de até um salário mínimo) está em concordância com a relatada pelo censo de 2010 para famílias do município, no valor de R$ 256,00 (IBGE, 2010). A maioria dos pescadores entrevistados tem na pesca artesanal, realizada diariamente, sua principal fonte de renda e subsistência. Isaac et al. (1998, p. 42) ressaltam que a pesca no estado do Amapá apresenta dois extremos econômicos: de um lado, encontra-se uma minoria de empresas que compra o pescado das embarcações de maior porte, a um baixo valor de mercado, e revendem esse pescado para fora do Estado e para o exterior, tendo uma margem de lucro muito elevada; de outro lado, existe um grande número de pescadores artesanais, cujas embarcações rudimentares e com baixa capacidade pesqueira geram lucros muito baixos, que não se revertem em benefícios econômicos para o Estado e nem para os próprios pescadores e seus familiares, resultando em baixa qualidade de vida dessas populações.

A PESCA DO APAIARI NA VISÃO DOS PESCADORES ARTESANAIS O apaiari é um peixe muito consumido no município de Pracuúba. Isaac et al. (1998, p. 27) citam essa espécie como uma das mais pescadas na região dos lagos, juntamente com o tucunaré. Fontenele e Nepomuceno (1983, p. 88) enfatizam que se trata de uma espécie bastante apreciada no Norte e no Nordeste do Brasil, por apresentar carne saborosa, firme e sem espinhas intramusculares. Por ser preferencial na alimentação da população do município, é facilmente identificada pelos pescadores. Silvano (2004, p. 192) afirma que os pescadores artesanais apresentam conhecimento aprofundado acerca dos recursos dos quais dependem. Dessa forma, a facilidade

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apontada pela maioria dos entrevistados quanto à pesca do apaiari evidencia o conhecimento detalhado que estes pescadores têm da biologia e da ecologia da espécie. Thé (2003, p. 17) ressalta que a compreensão dos pescadores sobre a ocupação e a movimentação dos peixes no ambiente aquático contribui com a pesca, tornando-a mais eficiente. Os pescadores do município de Pracuúba distinguem duas épocas do ano, o período chuvoso (inverno), que vai de janeiro a abril, e o seco (verão), que se estende de setembro a dezembro, assim como descrito por Fisch et al. (1998, p. 104) e Ananias et al. (2010, p. 219) para a região amazônica. De acordo com os entrevistados, as pescarias são fartas no verão, pois os peixes ficam concentrados em regiões permanentemente inundadas. Contrariamente, no inverno, os peixes se dispersam por longas distâncias, já que o lago está cheio, facilitando a sua locomoção e tornando mais difícil a busca por este recurso pesqueiro. Em função da vegetação e da ampliação das áreas de distribuição das espécies, resultados de Isaac e Barthem (1995, p. 298) corroboram a afirmação e informam que os rios de água branca da Amazônia, especialmente as áreas inundáveis, são regiões de alta produtividade, onde a pesca é intensa, principalmente no período de estiagem, quando os peixes ficam concentrados no canal permanente, porque as águas estão baixas e as margens estão secas. Na visão dos pescadores de Pracuúba, essa sazonalidade exerce grande influência na pesca do apaiari. Quanto aos apetrechos utilizados na pesca desta espécie em Pracuúba, os pescadores utilizam artes de pesca artesanais, assim como as populações ribeirinhas do rio Negro, que empregam diferentes artes, de acordo com os objetivos da pesca, incluindo subsistência ou comercialização, tipo e sazonalidade dos recursos explorados (Silva; Begossi, 2004, p. 109). Na pesca do apaiari, vários pescadores afirmaram que no verão o uso da rede é o melhor método, e no inverno o caniço é o mais eficiente. Dessa forma, as estratégias e apetrechos de pesca expressam uma adaptabilidade às variações sazonais do nível das águas, impostas pelo ciclo das chuvas (Batista et al., 2004, p. 80).

A pesca do apaiari realizada com o uso de rede de emalhar, com malhas variando de 8 a 11 cm entre nós opostos, segundo informações dos pescadores de Pracuúba, captura outros peixes, como tucunaré, acará, aruanã, tamuatá, indicando que essas espécies compartilham o mesmo habitat. Santos et al. (1984, p. 44) afirmam que essas espécies vivem em ambientes lênticos, áreas marginais cobertas por vegetação e dispostas em lagos. A pesca tradicional do apaiari é feita com o caniço e se dá próxima à vegetação e a barrancos, ocorrendo da seguinte forma: antes de jogar o caniço na água, o pescador escuta onde o peixe está comendo; quando ele localiza a área, joga o caniço, usando iscas como o sarará e o camarão, itens que fazem parte da alimentação desse peixe. Outra estratégia do pescador é dar pequenas batidas na água com os dedos e com a ponta do caniço, simulando o som de peixe comendo. Este tipo de som chama a atenção de A. ocellatus, que se desloca em direção à área onde o pescador está. Em estudo na Usina Hidrelétrica de Tucuruí, Pará, Alves e Barthem (2008, p. 555) analisaram a pesca tradicional do tucunaré e verificaram que nesta prática também se utiliza o caniço e a isca viva, como o camarão e a piaba, itens que fazem parte da alimentação daquele peixe. Essa pesca consiste em identificar os locais de alimentação e de reprodução dessa espécie que se tornam fixos no lago, chamados de coito. A prática ocorre nas águas rasas nas margens do lago ou em áreas onde há galhadas de árvores mortas submersas no lago. Trata-se de um tipo de pesca que se assemelha muito à captura do apaiari realizada pelos pescadores artesanais de Pracuúba. Em relação à diminuição dos estoques do apaiari e das demais espécies ícticas, pode-se dizer que se deve não apenas à pesca extrativa predatória, mas à criação de búfalos por fazendeiros da região. Diegues (2002, p. 165) afirma que, entre os impactos negativos das atividades humanas para a região da costa amazônica do Amapá, a pecuária bubalina extensiva é a grande responsável pela compactação do solo, o que é prejudicial para a biodiversidade.

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Pesca do apaiari, Astronotus ocellatus (Agassiz, 1831), e perfil socioeconômico dos pescadores artesanais de uma região da Amazônia brasileira

CONSIDERAÇÕES FINAIS O município de Pracuúba, apesar de ser uma das principais regiões produtoras de pescado advindo da pesca feito no interior do estado do Amapá, não oferece infraestrutura suficiente para a conservação e a distribuição do produto. A falta de uma fábrica de gelo, as condições precárias do ramal que interliga a sede municipal com a BR-156, que dá acesso à capital Macapá e aos demais municípios, além da falta de um caminhão frigorífico que faça essa distribuição, bem como de uma associação consolidada, que defenda os direitos e o interesse dos pescadores artesanais, são grandes entraves ao desenvolvimento da pesca na região dos lagos. A vida da comunidade local e a economia da região giram em torno da pesca, por isso medidas mitigadoras devem ser tomadas pelas autoridades competentes, com o intuito de resolver os obstáculos a esta atividade nesse município, principalmente buscando desenvolver ações voltadas para a melhoria das condições de trabalho e aumento da renda desses pescadores. Os dados socioeconômicos associados ao conhecimento etnoecológico acumulado e repassado ao longo de gerações podem ser uma importante ferramenta no desenvolvimento de medidas sustentáveis e na cogestão dos recursos pesqueiros da região dos lagos de Pracuúba (parceria entre poder público e comunidade local), resultando não apenas na preservação da biodiversidade, mas em melhorias socioeconômicas e na manutenção da pesca artesanal dessa região.

ALVES, Rômulo Romeu da Nóbrega; NISHIDA, Alberto Kioharu. Aspectos socioeconômicos e percepção ambiental dos catadores de caranguejo-uçá Ucides cordatus cordatus (L. 1763) (Decapoda, Brachyura) do estuário do rio Mamangupé, Nordeste do Brasil. Interciencia, Venezuela, v. 28, n. 1, p. 36-43, jan. 2003. Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=33907606>. Acesso em: 16 mar. 2012.

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Perspectivas do trabalho feminino na pesca artesanal: particularidades da comunidade Ilha do Beto, Sergipe, Brasil Female labor in artisanal fishing: the community of Ilha do Beto, Sergipe, Brazil Mary Lourdes Santana MartinsI, Ronaldo Gomes AlvimII I II

Universidade Federal de Sergipe. Aracaju, Sergipe, Brasil

Centro Universitário Tiradentes, Unit/MACEIÓ, Brasil, Núcleo Interdisciplinar de Pós-Graduação

Resumo: A participação feminina na atividade pesqueira representa uma alternativa de subsistência, fonte de trabalho e renda para inúmeras famílias em todo o país. Todavia, a atuação da mulher neste universo ocorre, com algumas exceções, num contexto de invisibilidade e desvalorização do seu trabalho, entendido, muitas vezes, como extensão das tarefas domésticas, e não como pesca propriamente. Contrariando este contexto, destaca-se um grupo de pescadoras da comunidade Ilha do Beto, localizada no município de Itaporanga D’Ajuda, Sergipe, Brasil. O presente trabalho é um estudo de caso e tem por finalidade revelar as distintas atribuições dessas mulheres e as características de sua atuação na pesca artesanal. Para alcançar o objetivo proposto, a metodologia utilizada fundamenta-se na abordagem qualitativa. Foram também adicionados à estrutura metodológica pressupostos da história oral e aspectos da abordagem etnográfica. A elaboração deste estudo permitiu apreender que o papel desempenhado por essas pescadoras na aludida comunidade assume uma conotação diferenciada, uma vez que a importância do seu trabalho é reconhecida e assumida por elas. Ademais, foram observadas outras surpreendentes características peculiares ao grupo, tais como dependência masculina em relação à mulher para realização da atividade pesqueira; inexistência de atribuições ocupacionais distintas entre os gêneros, constatadas a partir da presença da mulher nas embarcações, desempenhando funções também no mar, entre outras. Palavras-chave: Pesca artesanal. Mulher. Gênero. Ilha do Beto. Abstract: Female participation in fishing activity is an alternative livelihood, source of work and income for many families across the country. However, the role of women in this universe is, with some exceptions, characterized by invisibility and devaluation of their work, often understood as an extension of household chores and not as real fishing. But one group of fisherwomen in the community of Ilha do Beto, located in the municipality of Itaporanga D’Ajuda, Sergipe, Brazil are exceptions to this characterization. This article is a case study and aims at showing the different functions and characteristics of these women’s work in artisanal fisheries. The study is based on a qualitative approach. Oral history and aspects of ethnography are also part of the methods used. The preparation of this study showed us that the role played by these fisherwomen takes on a different meaning as they themselves acknowledge and recognize their contribution in the craft. Other surprising traits particular to the group were observed, for example the fishermen’s reliance on women to perform fishing activities and the lack of separate occupational responsibilities between genders, as demonstrated by women’s presence on the ships, working on the sea. Keywords: Artisanal fishing. Women. Gender. Ilha do Beto.

MARTINS, Mary Lourdes Santana; ALVIM, Ronaldo Gomes. Perspectivas do trabalho feminino na pesca artesanal: particularidades da comunidade Ilha do Beto, Sergipe, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 2, p. 379-390, maio-ago. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000200003. Autora para correspondência: Mary Lourdes Santana Martins. Universidade Federal de Sergipe. Rua Adelaide Souza Ferraz, n. 266. Aracaju, SE, Brasil. CEP 49085-010 (marylugeo@yahoo.com.br). Recebido em 06/08/2014 Aprovado em 12/05/2016

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Perspectivas do trabalho feminino na pesca artesanal: particularidades da comunidade Ilha do Beto, Sergipe, Brasil

INTRODUÇÃO A pesca constitui uma das atividades produtivas mais antigas do mundo, e que, ao longo do tempo, vem sendo realizada predominantemente por homens. O envolvimento das mulheres neste universo ocorreu inicialmente de forma indireta, quando a elas cabia a responsabilidade do beneficiamento e da comercialização do pescado, além da confecção e do reparo dos instrumentos utilizados pelo homem para a realização da atividade. Porém, as dificuldades socioeconômicas, característica comum às comunidades que sobrevivem da exploração dos recursos pesqueiros, contribuíram significativamente para a inserção da mulher de forma direta na pesca (Ramalho, 2006). Assim, elas ocupam as margens de rios, estuários e mangues, trabalhando diretamente na captura de peixes, moluscos e crustáceos, a fim de atender às necessidades de sobrevivência de suas famílias. A participação feminina na aludida atividade representa uma alternativa de subsistência, fonte de trabalho e renda para inúmeras famílias em todo o país. Todavia, a atuação da mulher neste universo ocorre, com algumas exceções, em um contexto de invisibilidade e desvalorização do seu trabalho, entendido como extensão das tarefas domésticas, e não como pesca propriamente, resultando na fragilidade da identidade profissional das pescadoras, em razão do não reconhecimento e da invisibilidade de suas funções (Maneschy; Álvares, 2010; Motta-Maués, 1999; Martins, 2005). Por outro lado, tem-se observado uma notável emergência da presença feminina neste setor, seja trabalhando diretamente na extração e na captura do pescado, seja atuando no beneficiamento e na comercialização destes produtos. A inserção da mulher na pesca possibilita não somente a produção de alimento e geração de renda para sua família, mas também a manutenção da própria atividade, mediante manipulação dos recursos, introdução

dos filhos nas tarefas e consequente transmissão de conhecimentos, apesar das condições adversas enfrentadas por esta profissão. É neste contexto de participação e de atuação da mulher neste setor de produção que o presente trabalho está inserido, cuja finalidade é revelar as atribuições e as singularidades de um grupo de pescadoras, de uma comunidade denominada Ilha do Beto, localizada no município de Itaporanga D’Ajuda, litoral sul do estado de Sergipe. O papel desempenhado pelas pescadoras na aludida comunidade opõe-se às práticas de submissão entre os gêneros, comuns no universo da pesca. Entre os municípios que compõem o litoral sul do estado de Sergipe, Itaporanga D’Ajuda despertou um singular interesse para o desenvolvimento do estudo, haja vista a significativa participação da mulher na pesca artesanal, realidade não observada nos demais municípios. Em um levantamento prévio junto à colônia de pescadores Z-91, constatou-se que as mulheres correspondem a maioria do percentual de cadastros. Muitas possuem seu próprio barco e saem para pescar em companhia de outras mulheres ou de seus familiares, sendo estas que determinam a atividade do dia. Desta maneira, elas sustentam a casa com a comercialização do pescado, além de cuidarem dos afazeres domésticos. Esta realidade foi observada na comunidade Ilha do Beto, uma localidade com características muito peculiares no que se refere ao exercício da mulher na pesca artesanal, haja vista o protagonismo e a autonomia com a qual realizam a atividade, bem como os significados, os valores e os sentimentos que as pescadoras atribuem à ilha, lugar de vida e de trabalho. Para facilitar a compreensão da realidade investigada, o trabalho foi estruturado da seguinte forma: o primeiro momento traz uma breve discussão teórica acerca do tema proposto; em seguida, apresenta-se a caracterização

Nomenclatura utilizada para designar as colônias ou as associações de pescadores e pescadoras, sendo este o número do grupo social em referência.

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da comunidade Ilha do Beto, sua localização, história e as especificidades do lugar; posteriormente, tem-se a descrição detalhada das atribuições da mulher nos segmentos da atividade (captura, beneficiamento e comercialização), bem como as peculiaridades no que se refere ao papel e à atuação da mulher no universo da pesca, encontradas no grupo pesquisado; por fim, tem-se as considerações finais, que revelam um contexto diferenciado de atuação da mulher no universo da pesca, pois a valorização e o reconhecimento conferido pela própria pescadora ao seu trabalho opõem-se às práticas de submissão, invisibilidade e cultivo de atribuições ocupacionais distintas entre homens e mulheres, tão disseminadas e vivenciadas pelas mulheres no universo da pesca.

O CONTEXTO DE ATUAÇÃO DA MULHER NA PESCA ARTESANAL: APORTES TEÓRICOS De acordo com os estudos de Vasconcellos et al. (2007), Ramalho (2006) e Woortmann (1992), a inserção da mulher na atividade pesqueira resulta de contextos socioeconômicos distintos, ou seja, não há uma razão comum. O acesso da mulher ao universo da pesca decorre de fatores como: ausência dos seus companheiros, desemprego e baixo rendimento familiar, ou ainda perda de seu espaço de trabalho. Se a entrada da mulher na atividade pesqueira resulta de razões diferenciadas, por outro lado, pode-se afirmar que o principal fundamento para tal é o atendimento de suas necessidades de subsistência, pois o destino da produção realizada por elas é a comercialização e o consumo, conforme sinalizam os estudos de Martins (2013) e Alencar et al. (2014). Diferentes literaturas que discutem a atuação da mulher nesta atividade abordam uma diversidade de aspectos importantes para a análise e a compreensão acerca das condições profissionais e de vida deste grupo social. Maneschy e Álvares (2010), por exemplo, ao analisarem as comunidades pesqueiras litorâneas das regiões Norte e Nordeste, identificaram que a participação

feminina neste setor ocorre mediante precariedade, baixa renda e exclusão dos direitos previdenciários e sociais, condições igualmente observadas por Lima (2003). A este respeito, Motta-Maués (1999) acrescenta que, comumente, suas atividades não são reconhecidas como pesca, por passarem mais tempo em terra, e, de igual modo, não são considerados pescados os produtos capturados por elas. Outro fator referente à realidade da identidade profissional das pescadoras é apresentado por Martins (2005), ao verificar que as atividades femininas são vinculadas à figura do homem. Nesta perspectiva, suas tarefas são vistas como auxiliares dos companheiros, associadas às atividades domésticas. Diante deste contexto, pode-se afirmar que a participação da mulher no universo da pesca ocorre em um contexto de limitações e dificuldades, ainda mais acentuadas em relação às comumente enfrentadas pelo gênero masculino, pois o estabelecimento de atribuições ocupacionais distintas entre homens e mulheres produz alto grau de complexidade no que se refere às questões de gênero na atividade. Em muitas comunidades que têm sua fonte de subsistência e de renda na pesca, é comum a existência de práticas de submissão das mulheres aos homens, uma vez que a referida atividade apresenta uma divisão sexual do trabalho bem definida e intensamente centrada no elemento masculino (Fox; Callou, 2009). Podem-se citar como exemplos dessa realidade a comunidade de Lençóis, situada no litoral do Maranhão, cujas particularidades acerca do papel da mulher na organização do trabalho na pesca foram investigadas por Alencar (1993); bem como a grande maioria das comunidades do litoral do Pará, onde, mesmo a mulher desempenhando papéis importantes no processo produtivo da pesca, ainda se observa um padrão bastante acentuado no que se refere à divisão social do trabalho (Maneschy, 1995). Geralmente, a divisão das tarefas se define entre o espaço do mar e o espaço da terra. Cabe aos homens a pesca, enquanto as mulheres são responsáveis pela

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coleta de mariscos, moluscos, algas, camarão, entre outros produtos coletados na beira de praias, lagos, rios e mangues. É de sua inteira responsabilidade também o beneficiamento do pescado capturado por seu companheiro ou por ela mesma, assim como o reparo dos instrumentos de pesca. A ocupação da mulher nas diversas atividades inerentes ao setor pesqueiro não a isenta das suas obrigações domésticas, como o cuidado com os filhos, o esposo e a casa, conferindo-lhe dupla jornada de trabalho. Por estas razões, as atividades femininas tendem a ser multidirecionadas, pois geralmente sua jornada de trabalho é mais longa, combinando tarefas domésticas e produtivas (Begum, 2011), ao contrário das masculinas, geralmente centradas em uma ou duas atividades principais, como a pesca e a lavoura. Esse fato reforça a invisibilidade de seu trabalho e dificulta a identificação da mulher como trabalhadora. Nessa condição, fica excluída dos correspondentes direitos sociais e previdenciários (Maneschy, 2000). Há ainda outras lacunas sobre a notoriedade do trabalho da mulher no universo da pesca. Em um estudo sobre a participação feminina em projetos de manejo de recursos pesqueiros, Alencar et al. (2014, p. 125) apresentam outros fatores que comprometem ainda mais a visibilidade da mulher neste ramo de produção: “a falta de informação sobre o volume da produção, sobre as formas de acesso ao mercado e a renda gerada com o trabalho das mulheres na pesca contribui para que elas não sejam incluídas nas estatísticas da produção pesqueira”. A invisibilidade ou o não reconhecimento das funções que exercem as mulheres na pesca artesanal não se constitui, por sua vez, como uma situação generalizada, haja vista que em vários lugares muitas pescadoras já conquistaram seus direitos enquanto cidadãs trabalhadoras. Frente aos desafios do reconhecimento social e profissional,

faz-se necessário mencionar que as colônias de pescadores2 ou associações têm um importante papel a desempenhar, devendo, pois, assumir essa demanda, possibilitando que as pescadoras também tenham lugar. Neste sentido, Maneschy (2000, p. 88) considera que: “assegurar às mulheres o estatuto de trabalhadoras da pesca, como parceiras de terra ou das águas, é um passo na conquista de uma cidadania de qualidade, com relações mais justas e igualitárias entre homens e mulheres”. Diante de todos esses desafios, alcançar reconhecimento efetivo do trabalho empreendido pelas pescadoras faz-se necessário, pois, de modos distintos, as mulheres desempenham papéis imprescindíveis para manutenção de suas comunidades, quer seja por meio da manipulação dos recursos de diferentes ecossistemas, quer seja gerando rendas complementares à da pesca, agregando valor a produtos locais e participando de organizações coletivas (Maneschy, 2000). Pode-se observar, a partir dos estudos levantados, que, de diferentes formas, as mulheres assumiram (e ainda assumem) importantes funções no universo da pesca. Assim, depreende-se que a importância do seu papel não se restringe apenas a uma ajuda financeira para a complementação da renda de sua família, mas sim de participação ativa, não exercendo um papel secundário ou complementar ao do marido, reconhecendo-se, desse modo, a essencialidade de sua atuação. Esta importante e singular característica atribuída ao papel da mulher na pesca artesanal foi observada in loco na comunidade investigada, cujas particularidades serão descritas a seguir.

ENTRE RIOS, ESTUÁRIOS E MANGUES: UM LUGAR CHAMADO ILHA DO BETO A Ilha do Beto (Figura 1) está localizada no povoado Nova Descoberta, município de Itaporanga D’Ajuda, litoral sul do

Órgãos de classe dos trabalhadores do setor artesanal da pesca, com forma e natureza jurídica próprias, obedecendo ao princípio da livre organização, previsto no art. 8º da Constituição Federal. Definição extraída da Lei nº 11.699, de 13 de junho de 2008 (Brasil, 2008).

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Figura 1. Ilha do Beto. Fonte: Martins (2013).

estado de Sergipe. Situa-se entre importantes ecossistemas favoráveis ao desenvolvimento da pesca artesanal, atividade responsável pela obtenção de sustento e de renda de inúmeras famílias no município (Martins et al., 2015). Além da realização da pesca, o lugar aqui evidenciado é um espaço onde se processam relações sociais e um modo de vida particular, caracterizado por relações de parentesco, amizade e vizinhança, fatores que impulsionaram o acesso e a permanência de alguns indivíduos no local. A aludida localidade é um espaço onde as condições de vida e de trabalho se assentam em um contexto de limitações socioeconômicas. Em contrapartida, a Ilha do Beto constituiu-se efetivamente como o local adequado para a realização deste trabalho, pois, se, por um lado, aquele era o local no qual foram observadas as difíceis condições de vida e de trabalho dos indivíduos ali presentes, por outro, era também o espaço da subsistência, da beleza cênica dos ecossistemas, do descanso e da tranquilidade para os seus moradores, da amistosidade e solidariedade entre os mesmos. Na ilha existem 34 barracos. Os primeiros foram construídos pelos próprios pescadores com a ajuda de vizinhos. Inicialmente, as pessoas frequentavam o local diariamente para realizar a atividade pesqueira, retornando no final do dia para a cidade de origem. Depois, os

pescadores começaram a passar dias lá, acampados em barracos de plástico, para evitar o cansativo processo de ir e vir da cidade ou povoado de origem. A longa distância percorrida cotidianamente a pé, do local de residência até a ilha, foi a principal razão para a ocupação do lugar, pois muitos ainda não possuíam barco, e os veículos que existiam não eram a motor. Este período foi marcado pelas difíceis condições de vida e de trabalho enfrentadas pelos pescadores, impostas, sobretudo, pela falta de estrutura para a devida acomodação das famílias. Após um longo período nestas condições, surgiu a necessidade de fixar moradia na ilha, fato que ocorreu a partir da construção de barracos, com a finalidade de melhorar e facilitar as condições de permanência dos pescadores no local. Não há consenso sobre o primeiro morador da Ilha do Beto, mas, de maneira geral, foi observado que a instalação do grupo de pescadores no local ocorreu há aproximadamente quinze anos. A ideia para o estabelecimento das moradias se deu em razão da real necessidade e dependência dos recursos pesqueiros encontrados na localidade, cuja exploração configura-se como única fonte de trabalho e de renda para a maioria dos habitantes de lá. As melhorias das condições de vida e de trabalho possibilitaram a realização de reparos nas habitações. Atualmente, alguns barracos destacam-se por apresentar o conforto de uma casa, com piso, móveis, banheiro, quartos, cozinha, tudo muito bem estruturado e organizado, como foi observado. Outros, no entanto, ainda apresentam condições precárias de higiene e de instalação. Grande parte das pescadoras está na ilha há mais de dez anos. De acordo com o que foi verificado, a razão primordial para permanecerem no local é o atendimento das necessidades de sobrevivência, alcançado graças à realização da pesca artesanal. Todavia, em virtude do cotidiano da pesca artesanal, a Ilha do Beto é concebida pelas pescadoras não apenas como um local apropriado para a realização daquela atividade, da qual obtêm sua

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fonte de sobrevivência, mas, sobretudo, como o espaço onde se estabelecem ricas interações entre as pessoas e destas com o ambiente em que vivem. As interações, vivências e experiências empreendidas, assim como a história da ilha, que se imbrica com a história dos moradores que ali vivem, suscitam um sentimento particular pelo lugar, carregado de afeição, o qual se apresenta como único e singular, pois possui características próprias que, em conjunto, conferem-lhe uma identidade própria. Tal sentimento manifestado e reconhecido pelas pescadoras em relação ao local é denominado por Tuan (1980) como topofilia, que significa o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico. De acordo com o autor, este sentimento pode surgir por diferentes razões e, no caso da Ilha do Beto, ele é resultado da intimidade física e da dependência material, haja vista a potencialidade para exploração dos recursos pesqueiros que o lugar oferece. Assim, esse lugar consiste em um cenário onde se processam as mais complexas interações, edificadas por meio dos elementos subjetivos, como as experiências, os sentimentos, as relações de amizade e a afetividade dos sujeitos para com o lugar. Tais elementos em conjunto fundamentam a lógica para a sobrevivência dos sujeitos ali inseridos.

A DIMENSÃO DO TRABALHO FEMININO NA ILHA DO BETO O trabalho das pescadoras na aludida comunidade alcança todas as etapas da atividade profissional deste grupo social, ou seja, captura, beneficiamento e comercialização. Todavia, apesar da importante atuação, o trabalho da mulher no setor, em algumas comunidades, é entendido como secundário ou auxiliar. Essa é uma compreensão, sobretudo masculina, decorrente da opinião de esposos, irmãos e pais. Desse modo, suas tarefas são vistas como extensão das atividades domésticas, não sendo reconhecidas como pesca propriamente, pois, neste ofício, as mulheres

geralmente são encarregadas de coletar as espécies em ambientes como rios, estuários, mangues, entre outros, cujo manejo não requer a força física exigida em mar aberto, nem oferece os mesmos riscos enfrentados pelos pescadores. Isso fez com que os méritos de seu trabalho fossem diminuídos, quando comparado ao dos homens que pescam em alto-mar ou em ambientes estuarinos também. Outros fatores concorrem para o não reconhecimento do trabalho feminino, como a dificuldade que algumas pescadoras têm de se assumir como trabalhadoras, ou seja, como profissionais da pesca. A participação nas fases pré e pós-captura, bem como na confecção e no reparo dos instrumentos utilizados para a captura do pescado, concorre para que a atuação da mulher neste universo, com algumas exceções, ocorra em um contexto de invisibilidade. O papel secundário atribuído ao trabalho feminino não constitui uma realidade circunscrita a todas as comunidades que obtêm dos recursos pesqueiros sua forma de sobrevivência. O grupo de pescadoras da comunidade Ilha do Beto é um notável exemplo de oposição a esta realidade. As pescadoras que compuseram a amostragem da presente pesquisa reconhecem que o trabalho desempenhado na pesca é tão importante quanto aquele realizado por seu companheiro. Desta maneira, observa-se que sua participação na atividade ultrapassa o sentido das expressões “ajuda” ou “complementação”, já que seu trabalho contribui significativamente para a formação da renda familiar ou, em alguns casos, representa o único rendimento domiciliar. Além da contribuição no orçamento doméstico, o envolvimento da mulher na pesca em Ilha do Beto assume outras finalidades. Em algumas situações, sua participação é imprescindível para o desenvolvimento e o êxito do trabalho do cônjuge. Presente na embarcação do companheiro, ela assume a função de controle do barco, e o auxilia a puxar a rede, como esclarece este relato de uma pescadora:

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Sou eu que remo, eu sou a popeira3. Enquanto ele fica no bico do barco jogando a tarrafa pra pegar o peixe, eu fico controlando o barco, se ele mergulhar eu tenho que segurar a corda da tarrafa e ficar controlando o barco, que é pra ele não bater a cabeça no barco, nem na hélice, nem ele se enganchar quando eu puxar a rede. A mulher tem que tá ativa (P. V. H., 45 anos 4).

O trabalho feminino consiste em uma parceria com o marido também na pesca oceânica. Apesar dos riscos que este ambiente oferece, as mulheres costumam acompanhar seus esposos nas embarcações5. Esta é mais uma característica interessante e peculiar deste grupo de pescadoras, fato que contraria realidade assinalada em alguns estudos (Woortmann, 1992; Borgonha, Mirtes; Borgonha, Maíra, 2008) sobre comunidades que têm sua fonte de renda na pesca, cuja presença da mulher não é admitida nas embarcações em razão da crença de que isso traz má sorte, ou por determinarem que o barco e o mar são espaços exclusivamente masculinos, nos quais mulher não é bem-vinda. Por conhecerem esta realidade, as mulheres da Ilha do Beto descrevem as situações de perigo que já vivenciaram. Relatam dificuldades como problemas com a embarcação, e, sobretudo, o medo, visto que estão vulneráveis aos riscos que o oceano oferece. Além dos perigos do mar, as mulheres temem também acidentes com o próprio pescado, como peixe e arraia, por exemplo. Por pescarem peixes maiores, elas têm medo de caírem dentro d’água quando estão ajudando o companheiro a puxar a rede: “teve uma vez que meu marido tava puxando a rede, quando penso que não ele foi arrastado e eu quase caí dentro d’água com ele” (P. F., 46 anos). Quanto às arraias, elas temem acidentes com o ferrão: “quando as arraias vêm na rede, elas vêm se batendo e também

às vezes elas voam pra dentro do barco por causa da luz da lanterna ou do lampião, aí eu morro de medo daquele ferrão pegar na gente” (P. S., 44 anos). Os riscos vivenciados não constituem fatores que impossibilitam o acesso e a atuação das mulheres no ambiente marítimo, pois, ainda que temerosas, como sinalizam os relatos, as pescadoras não se intimidam a se aventurar e a enfrentar os infortúnios do oceano. Tal realidade confronta a ideia preconcebida de que o mar é espaço proibido para as mulheres, pois o que importa verdadeiramente para as pescadoras da Ilha do Beto é assegurar suas necessidades de sobrevivência, independente do ambiente em que atuam. Durante a noite, quando retornam cedo da maré6 (por volta das 23:00 h até as 00:00 h ou nas primeiras horas da madrugada), é comum algumas mulheres darem continuidade à jornada de trabalho, realizando o beneficiamento do pescado, ou seja, separando e torrando o camarão. De acordo com as pescadoras, isto ocorre em razão da insônia desencadeada pelo cansaço: “[...] a gente chega tão cansada que não consegue dormir, então se é de tá bolando na cama é melhor tá cuidando, porque já é uma coisa a menos pra fazer no outro dia” (P. S., 44 anos). Seja pernoitando em busca do pescado em rio ou na “boca do mar”, seja madrugando para tratá-lo quando retornam aos barracos, é assim que se processa a dinâmica de pesca das mulheres durante a noite. A árdua jornada exigida pela profissão, durante o dia ou a noite, não constitui necessariamente um fator determinante para que o momento da pesca seja definido pelas pescadoras, considerando-se somente as dificuldades e riscos experimentados durante a realização da atividade. De acordo com o observado, a labuta diária da profissão

Termo utilizado pelas pescadoras da ilha para indicar quem assume o controle do barco. Com a finalidade de salvaguardar a identidade das pescadoras, serão utilizadas siglas, em que a letra P refere-se à profissão (pescadora) e a segunda letra corresponde à inicial dos nomes das entrevistadas, seguida pela idade. 5 Das treze pescadoras entrevistadas, quatro informaram pescar também no ambiente marítimo, duas junto dos companheiros; as demais costumam pescar juntas, sem a companhia da figura masculina. 6 Expressão utilizada para referir-se ao momento em que está em atividade, ou seja, pescando, em qualquer que seja o ambiente (rio, mar, mangue, croa etc.). 3 4

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proporciona também satisfação, alegria e prazer, como pode ser verificado nestes depoimentos: É cansativo, mas também é divertido e alegre porque a gente conversa, ri e brinca (P. J. O., 54 anos). O momento da pesca é cansativo, mas a gente se diverte, não tem trabalho que não seja cansativo, mas é divertido (P. V., 53 anos). O momento da pesca é bom, pense numa coisa que eu faço porque eu gosto é pescar, pra mim é melhor do que tá aqui nesse bar. Ave-maria, eu fico feliz quando saio de casa, que levo minhas trouxas, minhas comidas pra chegar na quinta ou na sexta-feira em casa (quando retorna da ilha) pra mim é bom (P. F., 46 anos).

As saídas para a realização do seu saber-fazer produtivo podem ser feitas várias vezes ao dia, isto vai depender de alguns fatores, como a espécie de pescado. A disposição também é um importante elemento a ser considerado. Quando saem para pescar durante o dia, conforme ilustra a Figura 2, em períodos de maré seca, chegam a passar um turno inteiro (manhã ou tarde, dependendo da maré) no ambiente de pesca, o que corresponde a seis horas ininterruptas de trabalho. De maneira geral, o que foi observado é que a grande maioria das pescadoras costuma sair para a atividade mais de uma vez, pelo dia e pela noite. Quando a atividade é realizada pelo dia, o trabalho das mulheres tem início nas primeiras horas da manhã, com a preparação da alimentação e dos instrumentos de pesca necessários. Devido ao horário, a primeira refeição é realizada no ambiente de trabalho, por isso, além dos apetrechos – como balde, cestos, vasilhas, colheres e facão –, as pescadoras levam para o trabalho café, pão, biscoito, fruta, principalmente manga ou banana, pois, a depender do tempo que precisem ficar, também almoçam no local. A refeição é feita da mistura de frutas e de farinha. Dessa maneira, elas ficam alimentadas, assegurando, assim, a produtividade do dia.

Figura 2. Pescadoras da Ilha do Beto realizando coleta de maçunim. Fonte: Martins (2013).

Neste horário, o trabalho compreende a captura de espécies de crustáceos; caranguejo (Ucides cordatus) e aratu (Goniopsis cruentata), além de moluscos, como sururu (Mytella charruana), ostra (Crassostrea brasiliana) e maçunim (Anomalocardia brasiliana). Os crustáceos e os moluscos são encontrados no ecossistema manguezal, com exceção do maçunim, que é coletado nas croas. A diversidade de ambientes, bem como das espécies capturadas, implica a multiplicidade de instrumentos utilizados para facilitar a realização da atividade de acordo com cada ambiente, como bem salientam Vasconcellos et al. (2007). Nesta perspectiva, são variados os apetrechos utilizados pelas pescadoras, tais como ratoeira, redinha, rede de cacear, rede de malhar, colher, facão, gereré de botada e grozeira. O emprego de cada instrumento e seu respectivo pescado pode ser visualizado na Tabela 1. Ao retornar para casa, tem início o processo do beneficiamento para a conservação do pescado, que envolve as seguintes etapas: cozimento, desmiolamento7 e armazenamento do produto capturado. De acordo com a maioria das entrevistadas, o destino do pescado é, predominantemente, a comercialização. Contudo, ainda que se priorize a venda, há de se enfatizar

Termo utilizado para a separação da carne da concha ou exoesqueleto. A finalidade deste processo é conservar, além de agregar valor ao produto.

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Tabela 1. Demonstrativo das espécies de pescado, ambiente e instrumentos utilizados para a captura. Fonte: Martins (2013). Pescado Ambiente Instrumento

Peixe

Rio e mar

Redinha; Armadilha de garrafa PET Rede de cacear Tarrafa Grozeira

Caranguejo

Mangue

Ratoeira

Siri

Rio

Gereré Redinha

Ostra

Mangue

Facão

Maçunim

Croa

Colher Cutelo Facão

Arraia

Mar

Grozeira

Camarão

Rio

Redinha Tarrafa

que é comum a separação de uma parte da produção para o consumo familiar. Tal situação, observada in loco, é corroborada por Diegues (1983, p. 155), ao afirmar que o objetivo primordial da pesca artesanal é o mercado, “[...] ainda que o balaio ou cesto de peixe seja religiosamente separado [...]” para o consumo familiar. A pesca não figura como a única atividade a que as mulheres se dedicam na ilha. Elas também se ocupam de outras funções, como a coleta de água e a extração de lenha, cuja execução é essencial para a realização das etapas que envolvem o beneficiamento do pescado, como também para a própria permanência dos indivíduos que residem na vila de pescadores, já que os barracos não dispõem de água encanada e fogão a gás. Este trabalho é realizado na companhia do marido ou de outras mulheres. A realização destas tarefas e a comercialização do pescado durante os finais de semana na sede do município completam a jornada de trabalho relativa à pesca na comunidade Ilha do Beto. O cotidiano da pesca na comunidade é concluído com a comercialização do pescado na sede do município ou em cidades próximas, sendo toda a produção da

semana vendida em feiras livres ou em domicílio. Apenas uma pescadora relatou vender a produção para o atravessador. As pescadoras saem da Ilha na sexta-feira ou no sábado, para comercializar o pescado, e retornam na segunda à tarde ou na terça pela manhã, para dar início à dinâmica produtiva. O contato com as pescadoras da localidade permitiu constatar que o papel das mulheres na atividade pesqueira assume uma conotação diferenciada, tendo em vista que a importância do seu papel é reconhecida e assumida por elas. Somado a isso, foram observadas outras surpreendentes características peculiares ao grupo, tais como: a dependência masculina em relação à mulher para a realização da atividade pesqueira, depreendendo-se que a participação feminina não está restrita à coleta de marisco e crustáceos em ambientes estuarinos ou à execução das fases pré e pós-captura, como assinalam Maneschy e Álvares (2010); inexistência de atribuições ocupacionais distintas entre os gêneros, constatadas a partir da presença da mulher nas embarcações, desempenhando funções também no mar, espaço que, em algumas comunidades, é considerado exclusivo ao homem, conforme explicita

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Woortmann (1992); ainda no que se refere a este fator, o oposto também foi observado, ou seja, o envolvimento do homem em tarefas destinadas constantemente às mulheres, como o beneficiamento do pescado. Desse modo, pode-se inferir que, além da importante atuação da mulher em todas as etapas deste setor, seja capturando, beneficiando, comercializando o pescado ou acompanhando o marido nas embarcações, é interessante observar que, na Ilha do Beto, pescadores e pescadoras compartilham o mesmo espaço, não havendo diferenciação entre as tarefas realizadas por homens e mulheres.

CONCLUSÃO A proposição deste estudo consistiu em investigar e analisar o papel e as atribuições de um grupo de mulheres na pesca artesanal na comunidade Ilha do Beto, localizada no município de Itaporanga D’Ajuda, Sergipe. As entrevistas realizadas, as conversas informais e as observações diretas permitiram identificar o quão importante e singular é a atuação da mulher neste ofício. Tal prática proporciona o estabelecimento de um modo de vida particular, fundamentado nos saberes tradicionais, nas relações de parentesco, amizade e vizinhança, possibilitando, assim, o surgimento de ricas relações sociais e afetivas em relação ao lugar de vivência e ao trabalho, como observado na aludida comunidade. A investigação junto ao grupo de pescadoras artesanais permitiu identificar uma surpreendente realidade no que se refere à mulher no exercício da profissão pesqueira, haja vista a existência das práticas de relação de poder masculina, comuns às comunidades que obtêm sua fonte de sobrevivência da exploração dos recursos pesqueiros. Contrariando esse contexto, a mulher, na comunidade em estudo, ao conduzir embarcações e lançar-se ao mar em busca do sustento da família, ampliou seu universo de atuação e conquistou espaços historicamente ocupados pelos homens.

A autonomia das mulheres e o fato de se reconhecerem como pescadoras explicitam-se e fundamentam-se nas experiências e habilidades relacionadas à escolha e ao manuseio dos apetrechos de pesca, bem como no conhecimento dos hábitos das espécies e dos ciclos naturais. A vivência com o referido grupo permitiu observar o quão singular é a leitura que as pescadoras fazem das condições naturais, utilizando-a na seleção dos instrumentos de pesca. Não obstante, percebe-se que esta leitura não se desenvolveu de uma hora para outra: avós, pais, maridos e amigos contribuíram para a construção de um conhecimento característico e essencial à pesca artesanal. As pescadoras que participaram deste estudo tiveram contato com a pesca ainda na infância (maioria), acompanhando os pais. Apenas duas entrevistadas declararam ter tido o contato com a profissão com outras pessoas, mas, ainda assim, o aprendizado ocorreu na infância e/ou, no máximo, na adolescência. O contato com a atividade durante a infância indica semelhança entre a comunidade investigada e as comunidades tradicionais, nas quais os conhecimentos referentes aos ciclos naturais, hábitos das espécies e os instrumentos apropriados à captura são ministrados e absorvidos muito cedo, como afirmam Andreoli e Silva (2008) e Alvim (2012). Tal processo mostra-se significativamente importante, na medida em que proporciona transmissão de conhecimentos entre as gerações. O diálogo entre as gerações sobre os fatores naturais que influenciam no desenvolvimento da pesca constitui uma importante estratégia para a preservação/ conservação dos conhecimentos tradicionais, assim como para a manutenção da própria atividade. Todavia, é importante observar que este processo admite um sentido diferenciado entre as pescadoras da Ilha do Beto. Para algumas, o ensino da atividade ao filho significa um modo de oferecer-lhes uma profissão e, nesse sentido, o papel da transmissão dos ensinamentos é assumido, inclusive como uma responsabilidade.

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Para outras, a aprendizagem da atividade é importante para auxiliar na sobrevivência da família, como destaca o relato: “[...] eles me acompanhavam e eu dizia: vamos dar uma pescadinha pra comer? E eles vinham” (P. A. L., 69 anos). Ademais, as falas mostram um trabalho geracional, ancestral, que é esculpido no seio da família. Assim, pode-se afirmar que a apreensão deste conhecimento pelas mulheres contribuiu para que elas dominassem a/o arte/ofício da pesca, tornando-as independentes em relação ao homem. De fato, muitos foram os relatos nesse sentido, a independência, principalmente a financeira, e a possibilidade de criação dos filhos são, sem dúvida, os aspectos que corroboram para que a mulher sintase orgulhosa e reconheça a importância da sua profissão. O papel do grupo de pescadoras aqui evidenciado assume uma conotação que se opõe a um contexto de submissão e invisibilidade do trabalho feminino, presente, com algumas exceções, no universo da pesca. A interessante realidade encontrada na Ilha do Beto, explica-se a partir da valorização conferida ao papel desempenhado na atividade pesqueira, cuja importância é reconhecida e assumida pela própria pescadora, seja trabalhando diretamente na captura, em rios, estuários, e mangues, seja beneficiando e comercializando o pescado, ou acompanhando o marido nas embarcações. Dessa forma, a participação e o envolvimento da mulher na pesca artesanal na comunidade Ilha do Beto certamente ultrapassam o sentido da complementaridade ou ajuda, pois, ao adentrar o universo da pesca, ela participa efetivamente da formação da renda familiar, ou ainda, assegura o provimento de sua família quando seus companheiros estão ausentes, como verificado. Nesse ínterim, a mulher aqui evidenciada se destaca, enquanto mãe, dona de casa, profissional da pesca e provedora do lar.

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Pescados, pescarias e pescadores: notas etnográficas sobre processos ecossociais Fish, fisheries and fishermen: ethnographic notes about ecosocial processes Cristiano Wellington Noberto Ramalho Universidade Federal de Pernambuco. Recife, Pernambuco, Brasil

Resumo: Este escrito focaliza três conceitos êmicos (pescados, pescarias e pescadores), importantes para a compreensão do trabalho pesqueiro artesanal em duas praias pernambucanas no Nordeste brasileiro: São José da Coroa Grande e Carne de Vaca. Por meio de pesquisa etnográfica de cunho comparativo, discuto as aludidas categorias enquanto processos ecossociais, apoiando-me nas noções de produção e de reprodução social de Godelier e Lukács. Assim, processos ecossociais são entendidos como um irrevogável metabolismo do pescador com a natureza, cujo trabalho torna-se condição sine qua non da produção e reprodução social da pesca artesanal enquanto categoria constitutiva e constituída das formas de ser e das determinações de existência socioeconômica, culturais e ecológicas. Além disso, os processos ecossociais são mediações societárias vinculadas a determinados tempos históricos, condições ambientais encontradas, particularidades locais e suas interações com a totalidade social, a exemplo do que se apresenta nas distintas pescarias (jangadas, caícos e botes) e maneiras de ser pescador nas praias de São José da Coroa Grande e Carne de Vaca. Palavras-chave: Sociologia do trabalho. Socioantropologia da pesca. Pesca artesanal. Sociologia rural. Abstract: This paper focuses on three emic concepts (fish, fisheries, and fishermen) that are important to understand artisanal fishing at two beaches of Pernambuco in the Brazilian Northeast: São José da Coroa Grande and Carne de Vaca. Using a comparative ethnographic approach, I discuss these concepts as eco-social processes, supporting the concepts of social production and reproduction of Godelier and Lukács. Thus, eco-social processes are understood as an irrevocable metabolism of the fisherman with nature. Consequently, the fisherman’s work becomes a sine qua non condition for social production and reproduction of artisanal fishing as a category that at the same time constitutes and is comprised by ‘ways of being’ and by socio-economic, cultural and ecological conditions of existence. In addition, eco-social processes are social mediations linked to certain historical times, given specific environmental conditions, local characteristics and their interactions with the whole of society. An example of this is presented through the different fishing practices (with rafts, boats and canoes) and ways of the fishermen at the beaches of São José da Coroa Grande and Carne de Vaca. Keywords: Sociology of Work. Social anthropology of Fisheries. Artisanal Fisheries. Rural Sociology.

RAMALHO, Cristiano Wellington Noberto. Pescados, pescarias e pescadores: notas etnográficas sobre processos ecossociais. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 2, p. 391-414, maio-ago. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81 222016000200004. Autor para correspondência: Cristiano Wellington Noberto Ramalho. Rua Tenente Agripino, n. 92, Campo Grande, Recife, PE, Brasil. CEP: 52040-040 (cristiano.ramalho@yahoo.com.br). Recebido em 24/11/2014 Aprovado em 20/06/2016

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Pescados, pescarias e pescadores: notas etnográficas sobre processos ecossociais

APRESENTAÇÃO […] então concluiremos que uma palavra, quando dita, dura mais que o som e os sons que a formaram, fica por aí, invisível e inaudível para poder guardar o seu próprio segredo, uma espécie de semente oculta debaixo da terra, que germina longe dos olhos, até que de repente afasta o torrão e aparece à luz, um talo enrolado, uma folha amarrotada que lentamente se desdobra (Saramago, 1980, p. 273).

Na tarde do dia 10 de novembro de 2009, encontrei Seu Ciso, pescador experiente da praia de Carne de Vaca1, última do litoral norte de Pernambuco, reparando sua rede à beira-mar. Ele me convidou para sentar ao seu lado, porque desejava “conversar um pouco”. Foi quando disse uma frase que me remeteu a um trecho proferido pelo personagem Gilliatt do livro “Os trabalhadores do mar”, de Victor Hugo (2002, p. 31): “tendo feito um recenseamento na ilha, perguntou-se-lhe a profissão, e ele respondeu: ‘pescador quando há peixe’”. Próximo ao emitido por Gilliatt, Seu Ciso falou: “todo pescador tem sua pescaria, e toda pescaria tem seu pescado que ela quer pegar. Pescador só existe por conta dos pescados, e mais ainda por ele fazer pescaria”. Isso me conduziu a algumas reflexões, ao indicar que sem pescados não haveria pescarias e pescadores, permitindo aproximações com o trecho “pescador quando há peixe”, de Hugo (2002, p. 31). De fato, sem peixe ou pescado não há pescador, pela imbricação que há entre ser social e natureza, especialmente “por ele fazer pescaria”, segundo Seu Ciso. A combinação desses termos já tinha sido feita pelos pescadores de São José da Coroa Grande, última praia do litoral sul de Pernambuco (Figura), um ano antes. Por isso, inquiri-me: essas noções locais seriam regularidades socioculturais presentes nas maneiras dos próprios pescadores interpretarem e viverem seu trabalho e suas

vidas nas águas? Elas significariam um ethos, linguagem típica de um ofício pesqueiro artesanal? Percebi que as transcrições indicavam aspectos significativos, já que as categorias levaram-me a pensá-las enquanto partes integrantes de uma dinâmica ecossocial2 histórica, cujo trabalho (a pescaria) assumia centralidade; situação clarificada pelo depoimento de Seu Inácio (pescador de São José da Coroa Grande, Pernambuco): “quem já viu pescador sem ter e praticar pescaria?! É com a pescaria que a gente vira pescador, porque é ela quem faz com que os pescados sejam pegos por nós”. No geral, os peixes [pescados], as armadilhas e embarcações [pescarias] e os trabalhadores das águas [pescadores] são partes integrantes da produção e reprodução social da pesca. Segundo Edim (pescador de São José da Coroa Grande, Pernambuco), “pescaria é um tudo na pesca, e é ela quem liga o pescador ao peixe na luta pra viver”. Por isso, para João Paulo (pescador de Carne de Vaca, Pernambuco), é “um triangulo onde a pescaria é o mais frontal”. Nesse sentido, “quer saber como é um pescador?! Olha a pescaria dele”, no entender de Alexandre (pescador de São José da Coroa Grande, Pernambuco). Sem dúvida, a pescaria é a comprovação de um conhecimento em plena elaboração e execução, porque “os peixes tão na água e tem que saber usar a armadilha certinha pra eles, naquela pescaria correta, e o pescador é o cara que sabe disso. É uma continuidade dos pescadores velhos pros novos essa sabedoria” (Seu Mário, pescador de Carne de Vaca, Pernambuco), que se recria com o atributo ancestral de desvelar a natureza para que esses trabalhadores apropriem-se das potencialidades ecológicas. Através desses conceitos locais, identifiquei contextos particulares e gerais, de maneira diacrônica e sincrônica, onde a categoria pescaria assumiu papel preponderante nas narrativas dos entrevistados. Isso não representou que

Este local (Carne de Vaca) foi-me indicado pelo pesquisador Pedro Silveira (Coordenação Geral de Estudos Ambientais e da Amazônia, da Fundação Joaquim Nabuco - CGEA-Fundaj), a quem agradeço. 2 Vale destacar que a ideia do uso desse termo ecossocial foi-me sugerida pela pesquisadora Solange Coutinho (CGEA-FUNDAJ), a quem também agradeço. Porém, o desenvolvimento socioantropológico do referido conceito, com seus limites e possíveis qualidades, é de minha inteira e única responsabilidade. 1

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eu levasse a negligenciar as demais categorias (pescado e pescador), visto que elas são valiosas para o entendimento mais adequado da própria categoria pescaria. Face ao exposto, construí o enunciado a seguir enquanto esteio analítico deste texto: As pescarias – organização sociocultural e econômica do trabalho, manejos técnicos e tecnológicos (barcos e armadilhas, relações sociais) – anunciam modos de ser e fazer-se pescador artesanal distintos, com suas alternativas de apropriação humana (material e imaterial) da natureza aquática de acordo com os tipos de nichos ecológicos e dos pescados encontrados, onde as mediações históricas e as múltiplas

dinâmicas societárias, econômicas, jogam um peso importante. Assim, a pescaria é a síntese do processo de (re)produção social do pescador, seja na forma de ser, seja na sua determinação de existência ecossocial.

Este escrito resulta de pesquisa etnográfica desenvolvida de outubro a dezembro de 2008 em São José da Coroa Grande (ou simplesmente São José para os nativos)3 e um ano depois (nos mesmos meses) em Carne de Vaca, onde entrevistei 42 pescadores (22 em São José e 20 em Carne de Vaca) e oito comerciantes/atravessadores (cinco na primeira praia e três na segunda). Nos referidos períodos, aluguei casas para residir durante a pesquisa de campo (Figura).

Figura. Litoral de Pernambuco. Fonte: Ramalho, 2015. A partir deste momento em diante, utilizarei no artigo São José da Coroa Grande ou São José como sinônimos.

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O fundamental foi compreender, de modo comparativo e sob o olhar sincrônico e diacrônico sustentado na etnografia, as semelhanças e especificidades presentes nas pescas das referidas praias e em uma mesma localidade, desvelando-as como totalidades parciais inseridas numa ‘totalidade totalizante’ do capitalismo, que as influencia – sem determiná-las mecanicamente de modo homogêneo –, ao se apresentarem por meio das categorias pescados, pescarias e pescadores existentes nas duas regiões praieiras examinadas. Nunca é demais frisar que a importância do método comparativo remonta ao surgimento e à legitimação da ciência sociológica na segunda metade do século XIX. Na visão de Durkheim (2004, p. 10), “só se explica comparando. Uma investigação científica, portanto, só poderá chegar a seu fim se se referir a fatos comparáveis, e terá tanto maior possibilidade de êxito quanto maior for a certeza de que reuniu todos os que pudessem ser eficazmente comparados”. Exagero positivista à parte acerca da supervalorização e da finalidade da abordagem comparativa, é inegável seu valor para melhor entendimento em face de determinadas realidades e certos temas socioantropológicos, especialmente aqueles que busco tratar neste estudo, ao enlaçar processos particulares aos universais, totalidades parciais à ‘totalidade totalizante’ do capitalismo, como postulado por Mészáros (2002) e Lukács (2010, 2013), tendo em vista que, como ocorre no presente estudo, “há casos em que a comparação elege relações, processos e estruturas, procurando combinar configurações sincrônicas e diacrônicas” (Ianni, 2007, p. 241). Para dar conta dos desafios e do problema de pesquisa apontado, dividi o texto em três momentos: 1º) inicialmente, realizarei uma breve abordagem, em tom de apresentação, sobre os conceitos utilizados neste artigo, aproximando

considerações êmicas e científicas; 2º) no momento seguinte, haverá uma descrição sustentada nas definições locais dos pescadores de São José e de Carne de Vaca acerca do seu universo pesqueiro, de caráter mais descritivo, com base nas vozes dos homens das águas; 3º) por fim, efetivarei uma reflexão teórica sobre as mencionadas definições êmicas, interpretando-as enquanto processos ecossociais, com base nos conceitos de produção e reprodução social de Godelier (1969, 1978, 1981) e Lukács (1979, 2010, 2013). Nesse sentido, optei em realizar o debate teórico, de modo mais detalhado, no último item do presente texto, após as narrativas dos pescadores artesanais. Não é demais frisar que a presente pesquisa, ao guiar-se pelas entrevistas e pelo que observei em campo, centrará seu foco no universo do trabalho, da pescaria artesanal, sem deixar de valorizar os aspectos dos pescados e dos pescadores, enquanto uma tríade que se comunica, informa e se estrutura mutuamente. Portanto, este artigo é sobre o trabalho da pesca artesanal. Sobre as localidades pesquisadas, é necessário acrescentar que Carne de Vaca tem sua pesca voltada para rios, estuários e águas marinhas do mar de dentro, ficando a 74 km da capital pernambucana (Recife). Não se pesca, portanto, no mar de fora (depois dos arrecifes em mar aberto ou alto-mar)4. Já a praia de São José da Coroa Grande, que recebe o nome do próprio município e se localiza em sua sede, está a 125 km de Recife, Pernambuco. A pesca é desenvolvida artesanalmente no oceano Atlântico, seja no mar de fora (mar-alto), seja no mar de dentro, próximo à praia5.

O ENCONTRO DE CONCEITOS: UMA BREVE INCURSÃO No presente momento, resolvi esmiuçar, com base nas entrevistas, os termos pescados, pescarias e pescadores,

Carne de Vaca localiza-se em Goiana, que conta com uma população de 75.644 habitantes (IBGE, 2010), e é o município externo à região metropolitana do Recife (RMR) de maior produção pesqueira do Estado, com 2.864,7 toneladas (t) capturadas das 13.999,5 (t) de Pernambuco, ou seja, 20,5% da sua produção geral (CEPENE, 2006). 5 São José da Coroa Grande registrou 18.172 habitantes (IBGE, 2010), sendo o lugar de maior produção pesqueira do litoral sul pernambucano (603,2 toneladas capturadas em 2006), fora da RMR (CEPENE, 2006). 4

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para, em seguida e de modo abreviado, apresentar os conceitos de produção e de reprodução social, relacionando-os: a) Pescados: Seus ciclos de aparecimento e desaparecimento definem-se por questões naturais ou devido às intervenções humanas no ambiente, como evocou o pescador Seu Dorgival (de Carne de Vaca): “tem a época do caranguejo, da tainha, do camarão, mas essas épocas tão mudando por conta das coisas que as usinas jogam na água, que as fazendas de camarão fazem, detonando tudo”. Assim, os pescados dependem de condições ecológicas favoráveis; e se isso não acontece, as pescarias são afetadas negativamente. Além disso, os pescados “são coisas feitas por Deus e atuam devido à sua vontade” (Seu Maragogi, de São José da Coroa Grande), sendo, assim, sagrados e governados, para alguns, por força sobrenaturais. Por isso, possuem inteligências próprias, são espertos e ágeis, com capacidades de lutar pela sobrevivência e de fugir da ação humana, podendo “pregar peças nos homens” (Seu Dorgival). Moram e são partes integrantes de lugares (as águas marinhas e estuarinas), não sendo submetidos às vontades humanas. b) Pescarias: Meios pelos quais os pescadores capturam os pescados, através das armadilhas (redes, linhas, covos etc.) e navegações. São processos técnico-tecnológicos, organização social do trabalho e formas de saber-fazer pesqueiro, explicitando “aqueles conhecimentos dos antigos” (Seu Olival, de Carne de Vaca), que se recriam em gerações sucessivas. Cada pescado tem peculiaridade para

ser “apanhado de tal jeito e não daquele. Já aquele pescado tem que ser desse e não de outro modo. Por isso, cada qual exige uma pescaria própria” (Seu Lula, pescador de Carne de Vaca) ou “um jeito típico pra ele mesmo” (Seu Inácio), a depender da profundidade, espécie, lugar e época. Há, assim, determinadas pescarias exclusivas para certos pescados (covos para a lagosta e alguns tipos de peixes – dentão, cioba etc. – e linhas para dourado); algumas delas exigem investimentos monetários maiores (como espinhel6), pelo fato de as embarcações passarem mais tempo no mar, no intuito de capturarem lagostas. Segundo o pescador Tato, “as pescarias de mar-alto têm que ter investimento mais pesado, por conta dos barcos maiores e que passam muitos dias nas águas”. c) Pescadores: Profissionais que fazem da “pesca seus meios de vida” (Alexandre) e são portadores de “um jeito de ser que é somente deles” (João Paulo), um modo de vida pleno de especificidades socioculturais. O pescador é o “cara que sabe usar e desenvolver as pescarias” (Seu Mário), por conhecer e deter um ofício que é aprendido junto aos seus familiares, porque “a pesca é uma profissão de família” (Paulo, de Carne de Vaca), uma atividade ancestral, comunitária. O pescador é um trabalhador singular, cujo “foco é ir lá e pescar o peixe, de entender das coisas do mar. Ele trabalha numa coisa que é específica no bairro, aqui no município de Goiana, para vender pros outros e se alimentar também, e aí sobreviver” (Seu Dorgival). Sem dúvida, o pescador insere-se numa trama social, onde cumpre determinado papel na escala socioeconômica,

Segundo os pescadores de São José da Coroa Grande, a pescaria com espinhel foi uma tecnologia implantada na localidade há algumas décadas por um grupo de pesquisadores do Departamento de Aquicultura e Pesca (DEPAQ) da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Buscou-se, entre outras coisas, com a referida implantação, melhorar o índice de captura sem necessariamente gerar aumento na depredação dos recursos pesqueiros, ao provocar a pesca seletiva e, com isso, diminuir a possibilidade de descartes de outras espécies que não eram foco do trabalho nas águas. Todavia, tal tecnologia acabou por reforçar situações de desigualdades socioeconômicas já existentes e/ou criou novas situações, pois o espinhel foi apropriado, em larga medida, por comerciantes de pescados que eram também proprietários de barcos e que tinham condições monetárias para implantar a aludida pescaria (ela não é um armadilha barata), fato que produziu, por um lado, o aumento na jornada de trabalho da tripulação embarcada (mestres e proeiros) e, por outro, não deixou de aumentar seletivamente a pressão sobre as espécies-alvos da captura (cioba, principalmente). Tais questões foram os custos socioeconômicos e ambientais oriundos do aumento dos ganhos financeiros por parte dos donos dos instrumentos de produção, tendo como suporte disso a utilização da tecnologia do espinhel.

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enquanto produtor primário. Há vários modos de ser pescador, pois o mesmo é definido pelo tipo de pescaria que faz, de condições materiais que detém para exercer seu trabalho, já que “toda pescaria tem uma fórmula de ser pescador” (Seu Izaque, de Carne de Vaca). Ser pescador é lidar com um tipo de pescaria, de situação e de condição de classe, que denuncia, dentre tantos aspectos, a baixa escolaridade. Então, “é um cara que tem estudo fraquinho, porque a maioria tem primário em São José” (Alexandre), sendo portador de um sentimento religioso, “de crença nas coisas sagradas” (Walter, de São José). Como essas categorias êmicas podem ser problematizadas pelas ciências sociais? Compreendo que as abordagens de Maurice Godelier sobre o processo de produção e de György Lukács sobre reprodução social apresentam encaminhamentos teóricos férteis para o exercício de aproximação e análise diante dos conceitos de pescado, pescaria e pescador, efetivados pelos trabalhadores da pesca artesanal em Pernambuco. Para Godelier, a produção social contém “ao menos três conjuntos de condições materiais e sociais que permitem aos membros de uma sociedade produzir e reproduzir os meios materiais de sua existência social” (Godelier, 1981, p. 174). Assim, A produção – a combinação funcional de três conjuntos de variáveis (os fatores de produção M [meio ambiente] – E [equipamentos] – H [homens]) – assume formas diversas, segundo a natureza das variáveis e as maneiras possíveis de combiná-las. A relação das variáveis entre si é recíproca. As matérias-primas exploradas (M) dependem do estágio tecnológico do equipamento (E) e do “know-how” (H) que as torna exploráveis. Reciprocamente, o instrumental e o “know-how” exprimem a adaptação a um certo tipo de recursos exploráveis. Não há, portanto, recursos em si, mas possibilidades de recursos oferecidos pela natureza, no quadro de uma dada sociedade, num determinado momento de sua evolução (Godelier, 1969, p. 328).

Entendo que há nos “três conjuntos de variáveis” – meio ambiente (M), equipamentos (E) e homens (H), apontados por Godelier – similitudes com as três categorias

– pescado (natureza), pescaria (instrumentos de trabalho) e pescador (ser social) – elaboradas pelos trabalhadores das águas de São José e de Carne de Vaca. Pude, então, relacionar pescado “às condições ecológicas e geográficas” (Godelier, 1981, p. 174) encontradas, que, no primeiro instante, ainda são meras possibilidades de recursos para os seres humanos; pescaria “às forças produtivas, isto é, aos meios materiais e intelectuais que os membros de uma sociedade acionam no interior de diversos processos de ‘trabalho’ para agir sobre a natureza [...]” (Godelier, 1981, p. 175), transformando-as, de fato, em recursos, em valor de uso para as pessoas, através do conhecimento, do know-how passado de geração a geração; e pescador “às relações sociais de produção” (Godelier, 1981, p. 175), diálogos de classe, sociabilidade familiar, costumes e um modo de ver e ver-se no mundo, que isso anuncia a partir de suas relações com outros grupos (atravessadores etc.), com as mediações sociais e os poderes públicos. Tais processos resultam de racionalidades socioeconômicas ligadas às estruturas e dinâmicas culturais e históricas de cada grupo, de cada sociedade, segundo Godelier (1981), necessitando ser entendidas através disso; e com os pescadores tal questão não é diferente. Embora as comunidades de pescadores componham uma totalidade social, os processos de produção e reprodução social ocorrem em situações particulares, nos atos singulares tecidos por indivíduos e suas comunidades, os quais experienciam determinados contextos alimentados de especificidades socioambientais, econômicas, políticas, históricas e culturais. É no diálogo entre os complexos sociais (economia, religião, política, cultura, classes sociais), entre o particular e o universal, que se põe em movimento a vida dos trabalhadores da pesca, pois “a reprodução no âmbito de ser social está, por princípio, regulada pela mudança interna e externa”, onde “verificam-se mudanças contínuas, embora mínimas, nas ferramentas, nos processos de trabalho etc., cujas consequências se evidenciam abruptamente, em certos momentos nodais,

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como mudanças qualitativas” (Lukács, 2013, p. 160), em termos materiais e imateriais nas formas de sociabilidade. Isso pode ser constatado nos processos de reprodução dos pescadores e de suas pescarias, que se dão, hoje, em contextos diferentes dos anos de 1960 a 1990, em São José e Carne de Vaca. Para os pescadores, isso se explicita nos instrumentos de trabalho: As pescarias mudaram com a chegada das linhas de náilon, dos barcos de motor, do comércio. Chegaram atravessadores de fora, com o aparecimento da BR pra Recife. Isso afetou nossas pescarias, pois há mais compradores de peixe (Seu Inácio, São José, Pernambuco). Não tinha rede de náilon e nem caíco com rabeta. Antes a gente ficava trabalhando mais na beirada da praia, com pescaria de mangote, ou na pescaria de curral com canoas grandes, e agora não. O caíco é mais ágil e fácil de fazer e as redes são mais variadas. Isso foi ajudado, na minha visão, pelo comércio, que tá mais grandinho quando olhamos pro passado (Seu Ediburgo, Carne de Vaca, Pernambuco).

Para efetivar uma interpretação mais aprofundada sobre a realidade narrada pelos pescadores, recorro à noção de produção de Godelier – já citada –, associando-a à de reprodução de Lukács, que a entende enquanto sinônimo de respostas dos sujeitos. Na compreensão de Lukács (2013, p. 170), “a rigor, ser significa o mesmo que reproduzir a si mesmo” particular e genericamente, apoiando-se, para tanto, em três elos: (a) na natureza em si (meio ambiente e sua reprodução puramente biológica); (b) na primeira natureza (o trabalho enquanto eterno metabolismo do ser social com a natureza, condição ontológica do ser humano); e (c) na segunda natureza (cultura, religião, valores de classes sociais, gênero, política, mercado, ideologia, Estado), que é constitutiva e constituída da primeira natureza, do trabalho enquanto base para a reprodução social. Elos esses que formam e conformam um “complexo de complexos societários”, de “ordem natural” e de “ordens sociais” (Lukács, 1979, 2010, 2013), cujas qualidades podem ser

conectadas aos termos pescados, pescarias e pescadores, a saber, aos processos ecossociais. Processos ecossociais são entendidos como um irrevogável metabolismo do ser social com a natureza, cujo trabalho torna-se condição sine qua non da produção e da reprodução social dos pescadores artesanais, enquanto categoria constitutiva e constituída das suas diversas formas de ser e das suas singulares determinações de existência socioeconômicas, culturais e ecológicas encontradas em dadas localidades. Assim, os processos ecossociais são mediações societárias vinculadas a tempos históricos, condições ambientais existentes, particularidades locais e suas interações com a totalidade social, inclusive o mercado, o que se revela nas diversas maneiras de ser e fazer pescador artesanal, presentes, por exemplo, por meio das noções nativas de pescados, pescarias e pescadores, das distinções entre as pescarias e pescadores de jangada, caícos e botes. A simbiose das definições êmicas com as aludidas categorias científicas (éticas) torna-se um terreno promissor para a minha análise. A abordagem ética tem a ver com a interpretação que os cientistas efetivam em relação à determinada cultura (o outro), fundamentando-se, para isso, em categorias científicas para compreendê-las. No que diz respeito à leitura êmica, almejei entender certa cultura a partir dos referenciais tecidos pelos próprios sujeitos que a fazem existir. Todavia, embora a abordagem ética seja essencial e mais do que necessária para desvelar processos, compartilho o princípio de que: Um levantamento das categorias explicativas do sujeito que vive a história nos oferece, ademais, a lógica das múltiplas perspectivas que estão sempre em relação nas situações estudadas. A possibilidade de identificação sujeito/objeto aproxima experimentação e conceptualização. Esse movimento parte de um momento em que deve haver identificação entre sujeito e objeto da produção do conhecimento (Ferraz, 2009, p. 15).

Assim, associo-me à concepção da qual “a proposição de fazer a experiência das categorias é um caminho para a compreensão. O diálogo etnográfico, que se dá no tempo

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da pesquisa de campo, é um momento vivo de construção do conhecimento no exercício da compreensão” (Ferraz, 2009, p. 14). Por isso – neste escrito –, a opção em começar pelos depoimentos dos pescadores foi a escolha que adotei, especialmente no intuito de identificar a presença de processos ecossociais nas construções conceituais e vivências socioambientais edificadas pelos trabalhadores da pesca, as quais receberam colorações particulares, por conta das dinâmicas de cada praia, mas sem deixar de manter elos comuns. Sendo assim, compreender essas questões nos lugares pesquisados, começando por São José da Coroa Grande e, depois, Carne de Vaca foi a minha estratégia teórico-metodológica.

DO PESCADOR AO PESQUISADOR Cada comunidade pesquisada possui dinâmicas ecossociais que necessitam ser interpretadas no que guardam de singular e/ou universal. Muito disso tem conexão com as condições ecológicas encontradas em cada praia e seus processos sócio-históricos, econômicos e culturais. Dessa maneira, apresentar esses elementos, através das narrativas dos próprios trabalhadores da pesca, é o que farei em seguida, começando por São José da Coroa Grande e, posteriormente, por Carne de Vaca. SÃO JOSÉ DA COROA GRANDE Os pescadores dividem a plataforma continental em territórios de pesca, da praia até a parede/talude, tendo no fundo das águas um referencial valioso, conhecido através da “saçanga, uma linha com um peso, uma chumbada na ponta por onde a gente fica sabendo da profundidade” (Zeca). Assim, o oceano é mapeado em mar de dentro, lama, cascalho e pedra, porque “é lá que andam as diferenças dos pescados, dos pescadores, de suas pescarias” (Seu Babau). Sobre isso, é imprescindível recorrer (e recorri) aos depoimentos dos marítimos:

a) Mar de dentro: Parte rasa que começa na praia e vai até os arrecifes. Praticam-se pescas “de jangadas, arrastões de praia, tarrafas, jererê e vara, pegando os peixes mais fraquinhos de preço” (Seu Babau), como a tainha, xira, siri, salema, que não despertam interesse dos grandes comerciantes por serem “de terceira” (Luís de França). Ademais, “as pescarias não são caras, como aquelas do alto-mar” (Seu Benedito), e feitas por pescadores detentores, na maioria, de seus instrumentos de trabalho (jangada, tarrafas, linhas e redes mais simples). No caso da divisão do ganho, é a mais antiga e opera-se através do quinhão desde “tempos remotos” (Wilson), a saber “se vão dois pescadores, e a pescaria der 30 quilos de peixe, são dez quilos da jangada – pro reparo dela, do pano da vela e da armadilha – 20 quilos divididos pra cada um dos pescadores, dez a dez. Tudo na igualdade” (Seu Maragogi). Quem comercializa são os pescadores, que saem “com carrinho de mão, carregando um isopor com os produtos dentro” (Alexandre), vendendo-os nas ruas, de casa em casa, para os moradores locais, veranistas e pequenos comerciantes (feirantes). Observei isso quando morei nesta praia. Sobre as condições dos jangadeiros, Seu Inácio definiu: “sabe, nós somos os mais livres daqui, porque os camaradas no bote são cativos devido à pesca ser mais comercial”, ou seja, eles necessitam de maiores investimentos monetários, aspecto que os subordina a terceiros (comerciantes, atravessadores etc.). b) Lama: Com profundidade de 7 a 17 braças (uma braça equivale a 1,5 m), a lama situa-se após os arrecifes e os primeiros tacis (pedras), apresentando esse nome “por ser uma parte do mar que tem lama dos rios e dos mangues” (Alexandre). Nesse lugar inicia-se o mar de fora, existindo a ocorrência de peixes como agulha, boca mole, bagre, cururuca, sapuruna, além do camarão. Este último pescado, de considerável valor monetário (em torno de R$ 16 a 20,00 o quilo), é alvo dos botes (barcos motorizados)7,

Barcos artesanais feitos de madeira, com 7 a 12 metros, movidos a motor, com quilha, convés e cabine fechada.

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que “chegaram na praia no início dos anos de 1970 trazidos pelos comerciantes e donos de terras, vindo junto redes de náilon” (Seu Naninho, ex-pescador e dono de barco), o que levou ao surgimento e distinção entre, inclusive, grupos sociais mais e/ou menos capitalizados no setor pesqueiro. Esse território é frequentado pelos jangadeiros, que o disputam em condições desiguais com os botes, pois estas embarcações têm maior capacidade de captura, com suas redes de arrasto duplo, velocidade e deslocamento rápido e intenso na área de lama. Conforme disse Seu Inácio, “essa pescaria pega tudo que é pescado, e novinho, além do camarão. Chega a ser malvadeza”. Além dessa armadilha, pesca-se com redes de espera ou cerco. Boa parte dos botes é de “propriedade de comerciantes, atravessadores e de gente que não sabe nem pescar” (Edim). c) Cascalho: De 18 a 23 braças, localiza-se o cascalho, onde o “chão do mar tem mais pedrinhas” (Valter), e os peixes mais comuns são “dentão, piraúna, cangulo, guaiúba, e surgem umas guarajubas, garaçumas, e o que mais chama atenção dos botes, as lagostas pegas de covo” (Seu Benedito). Nos botes, desenvolve-se a pescaria de espinhel, “que é voltada por essas bandas mais pra cioba” (Seu Maragogi). Há, nos cascalhos, os usos de redes de espera e, em menor medida, da pesca de linha, que, além de serem usadas pelos botes, são praticadas por jangadas. Nesse território marítimo, a presença dos barcos se sobressai com a ascensão do regime de trabalho individualista e, assim, mais mercantilizado, fundamentado na divisão por “bandas” (tipo de quinhão), inibindo o “regime antigo da igualdade mesmo” (Luís de França). Na “banda”, ocorre a seguinte partilha: se a pescaria for executada de espinhel, rede ou covo, onde os pescadores (proeiros e o mestre) não conseguem individualizar seu pescado com uma marca8, como é feito na pescaria de

linha, e se capturarem 300 quilos de peixe – cioba, por exemplo –, duas partes ficam para o dono do barco (uma que ele alega ser para o conserto do bote e das armadilhas e a outra para despesas com o rancho, combustível, gelo, iscas, botijão de gás etc.) e a terceira (última “banda”) é dividida pela tripulação de três a quatro homens. Seu Naninho disse-me: “o bote mudou muito a divisão do ganho. Por exemplo, o barco é meu e eu dou tudo: óleo diesel, rancho, que é a alimentação dos homens, gelo. E as pessoas vão e pegam 100 quilos de peixe. Eu vendo por R$ 750,00. Aí, R$ 250,00 são da tripulação e R$ 500,00 do barco. Cada quilo eu pago a R$ 2,50 e vendo pro atravessador a R$ 7,50”. Em alguns casos, o mestre leva 10%, a que chamam de comissão. Na pesca de linha, a preferida pelos pescadores de bote, a divisão por “banda” é realizada pela quantidade que cada pescador captura individualmente, colocando em xeque o que existia na pescaria de jangada de linha junta, onde “todos juntavam a produção de sua linha para dividir na igualdade. Era mais comum do que na linha separada” (Zeca). Hoje, na linha individual, recebem pelo que cada um consegue extrair do mar, a saber, quando uma tripulação é composta por três homens, e se um deles pegar 100 quilos de peixe e os dois restantes 70 e 80 quilos, cada um receberá pelo que produziu, ou seja, se forem peixes de primeira (cavala, dourado, sirigado) recebem R$ 2,50 por quilo e se forem de segunda (biquara), R$ 2,00. Esse é um preço fixo pago pelos donos dos barcos, “e isso é uma espécie de cartel desses caras” (Seu Babau), fato que acontece também por parte dos atravessadores em relação aos donos de barcos – isso quando não são eles os próprios donos dos meios de produção –, que pagam entre R$ 7 a R$ 8,00 o quilo dos pescados (pelos de segunda e até pelos de primeira qualidade). Constatei que os atravessadores vendem ao consumidor final esses pescados entre R$ 10 e R$ 15,00 o quilo, a depender

“Se pro mar for quatro pescadores, o procedimento é dessa maneira: o mestre não marca nada, né; um proeiro faz uma marca no rabo do peixe, o outro duas e o último tira um pedaço da cabeça do peixe, da testa” (Seu Benedito, pescador de São José, Pernambuco).

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da época do ano. Isso significa que quatro homens, ao pescarem de rede, covo ou espinhel, dividirão o ganho de R$ 2,00 a R$ 2,50, onde cada marítimo fica com R$ 0,50 e, no máximo, R$ 0,63. Verifiquei que a tripulação – de vários botes – executa pescas distintas ao mesmo tempo, porque, ao colocar covos, lança em seguida redes e, no intervalo disso, trabalha com pesca de linha. d) Pedras até a parede: De acordo com o pescador Alexandre, este é um “lugar que começa com 24, 25 braças e termina com umas 180 braças. É um mundo de fundura e demora umas quatro horas pra chegar lá de bote”. Recebe esse nome por ser formada “por aquelas pedras grandes ou pequenas, os tacis e cabeços. Já a parede é uma pedra bem maior e depois o fundo aumenta muito e pro pescador artesanal fica ruim, porque não é muito seguro não” (Valter), sendo o fim da plataforma costeira a cerca de 40 milhas da costa. Se nas outras áreas a marcação dos pesqueiros9 é realizada com base em pontos existentes no continente (árvores, morros, prédios) de maneira triangular – “no meio de tal ponto e outro há um pesqueiro, olhando da água pras terras” (Zeca) –, para se lançar redes, covos, espinheis ou linha, das pedras em diante, onde a terra começa a não ser mais vista, a marcação dos locais de pesca passa a ser feita apoiando-se nos astros e/ou através da saçanga. Vários mestres de botes têm utilizado recentemente o GPS para mapear pesqueiros. Contudo, a navegação continua a fundamentar-se no conhecimento patrimonial dos pescadores. Nesse pedaço do mar, há uma hegemonia das pescarias de bote – espinhel, covo e linha –, sendo afrontadas por pouquíssimas jangadas de alto, “jangadas grossas que quase não existem mais, praticamente” (Seu Maragogi). Há peixes mais nobres (cavala, sirigado, cioba, carapeba, dourado, agulhão, guarajuba, guaiúba, saramunete), de primeira e segunda, capturados nas pedras (recifes), de linha e espinhel, e, em

menor quantidade, de covos (cioba, dentão). Há também a presença de lagostas, justificando o uso dos covos. Como os investimentos são maiores (compras e/ou reparos de equipamentos, além de despesas com a tripulação e com o barco para colocá-los no mar), os botes passam entre sete a 15 dias no oceano. Tomando por referência as pescarias que ficam sete dias em alto-mar, constatei que aquelas de linha têm um custo de R$ 700,00, as de espinhel, de R$ 1.200,00, e as de covos, de R$ 1.700,00, situação que ocorre, principalmente, pelo consumo de combustível, visto que os demais itens mantêm-se iguais. Por exemplo, a pesca de linha “gasta 100 litros de óleo, por ficar mais tempo parada no mar. Já a pescaria de espinhel gasta 250 litros, porque ela se movimenta metade do tempo, do dia. E a de lagosta gasta 350 litros, por ficar, vamos supor, de 5 h da manhã até dez da noite, e no dia seguinte é a mesma coisa” (Seu Naninho). Parte considerável dos custos “é bancada pelos atravessadores e aí você fica na mão deles” (Wilson), sendo também sustentada por uma grande empresa de pescados regional. Alguns pescadores (proprietários dos instrumentos de produção) não conseguiram saldar suas dívidas e entregaram os barcos aos comerciantes (um deles detém sete barcos), e outros vivem em um processo de autoexploração, com o aumento da carga de trabalho de toda sua tripulação – normalmente familiares – para conseguir saldar débitos. Tornou-se comum nas três últimas décadas a pescaria da lagosta durar duas semanas, e o mar ser “varrido em seus quatro cantos” (Seu Inácio). Varredura que é sinônimo de exploração e intensificação do trabalho e vem a diferenciar ainda mais as pescarias de bote das de jangada. Cada um desses nichos ecológicos, mar de dentro e mar de fora (lama, cascalho e pedra), é apropriado por pescadores artesanais com capacidades técnicas, tecnológicas e econômicas diferentes, visto que “uns possuem equipamentos mais modestos, antigos e

Habitat, comedouro ou abrigo dos pescados.

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simples, são mais humildes e pescam aqui no mar de dentro com suas jangadinhas” (Alexandre), e existem aqueles “com mais renda, que pescam com coisas mais modernas, nos botes, os pescados mais caros e ficam mais tempo n’água” (Seu Babau). Independentemente disso, “o pescador artesanal é o cara que tem um conhecimento antigo, que vem lá detrás, e trabalha com seus parentes, compadres, amigos mesmo, com aqueles instrumentos simples não tão tecnológicos como o dos barcos industriais” (Walter), cujo trabalho é forjado em regime de parceria, sendo que parte considerável da produção é vendida. São quatro tipos de pescarias feitas por pescadores artesanais: dois são jangadeiros10 e os outros dois tipos são pescadores de bote11. Esses pescadores revelam formas de ser e fazer-se pescador, a partir de uma íntima interação das condições de trabalho com as possibilidades socioambientais encontradas. As jangadas de alto-mar e de mar de dentro eram exclusivas na localidade durante as seis primeiras décadas

do século XX, onde as suas produções destinavam-se ao consumo familiar e ao mercado local, embora já começassem a aparecer intermediários de fora (Recife, Pernambuco, Maceió e Alagoas), que buscavam a lagosta e o camarão de São José. Quando os pescadores chegavam do mar nessa época, tocavam o búzio para informar aos moradores que havia pescados para a venda. Os barcos motorizados (botes) e as redes de náilon foram introduzidos na praia por um comerciante e um dono de terras na primeira metade do decênio de 1970. Além disso, a melhoria do acesso ao local via estrada, principalmente nos anos de 1980, aumentou consideravelmente a especulação imobiliária na região, permitindo a chegada de novos comerciantes e atravessadores de pescados. Tudo isso mudou as condições da pesca e dos pescadores na localidade até os dias de hoje (quadro 1). No quadro 1, que resulta das entrevistas feitas com os pescadores locais, há uma narrativa sintética sobre a história da pesca na praia de São José.

Quadro 1. Síntese histórica da pesca em São José da Coroa Grande, Pernambuco. (a)

Saída da casa dos pescadores da beira-mar por conta da compra de suas áreas por veranistas, donos de pousadas, restaurantes e marinas;

(b)

Intensificação do comércio de pescados com a presença de sujeitos regionais e grandes empresas do setor, com interesse na lagosta, camarão e alguns tipos de peixes (a exemplo da cavala, bonito, cioba);

(c)

Subordinação dos pescadores de botes ao mercado e/ou a terceiros (donos dos botes e armadilhas, normalmente comerciantes), com a introdução de relações desiguais de partilha dos ganhos e maior tempo de trabalho no mar (até 15 dias), gerando superexploração de sua força de trabalho e também dos recursos naturais;

(d)

Aumento dos turistas e da presença de veranistas na localidade, ocorrendo o crescimento de bares e de restaurantes dedicados aos frutos do mar, o que intensificou a demanda pelos pescados;

(e)

Paralelamente a esse processo, houve a permanência da pesca de jangada, que continua a abastecer, em maior medida, o mercado local, almeja a alimentação familiar e mantém as tradições pesqueiras locais de trabalho anteriores ao aparecimento dos botes, inclusive com suas formas de autonomia possível.

Os de alto e os de mar de dentro, que possuem seus próprios meios de trabalho. Os segundos pescam, mais próximos à costa, produtos de menor valor mercantil, e os primeiros vão até a região de cascalho, capturando pescados de maior valor monetário. Possuem mais autonomia de trabalho, quando comparados aos pescadores de botes, por possuírem seus instrumentos de trabalho, apesar de uma renda monetária inferior. 11 Um pesca camarão e peixes na lama e cascalho, chegando até o talude. Entretanto, não chegam a passar mais de um dia no mar, trabalhando em regime de parceria em barcos próprios e/ou de terceiros – comerciantes locais. O segundo tipo trabalha cerca de 15 dias no mar, dedicando-se à pesca de lagosta, ciobas, cavala, nas regiões de cascalho em diante, onde os barcos e instrumentos de captura pertencem aos comerciantes locais. O regime de parceria impera, cabendo ao mestre escolher sua tripulação e responsabilizar-se por ela. 10

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CARNE DE VACA Distintamente de São José, a parte do oceano Atlântico que banha Carne de Vaca possui um mar de dentro mais vasto, com maior diversidade de pescados, inexistindo uma cultura do trabalho de pescarias de bote. A confluência disso possibilitou pouco interesse pelo mar de fora. Na realidade, “não se tem uma tradição de bote aqui” (Seu Izaque), “a gente nunca teve costume de pescar lá fora” (Lourenço), o que gestou processos ecossociais singulares e, com isso, uma forma singular de ser pescador artesanal. Além da dimensão geográfica, há grande fertilidade no (e do) mar de dentro, ocasionada pela decisiva presença de manguezais e estuários, onde “dois rios, o Megaó e Goiana, jogam suas águas direto nesse mar e o mar neles também, fazendo com que se tenha muita criação e muito pescado andando por aí na frente de nossa praia” (Xaba). A cor mais escura do mar local ratifica esse intercâmbio expressivo entre as águas doces e salgadas. De fato, é “um mar que sempre alimentou o povo daqui” (Seu Ediburgo). Devido a essa ecologia, o caíco (espécie de canoa movida à vela latina e/ou a motor de rabeta – de baixa potência) é a navegação predominante no local, e típica de pescarias realizadas antes da arrebentação com o mar de fora, que “leva de 30 a 40 minutos” com este veículo (João Paulo) para ser atingida. Com esse tipo de canoa, alcança-se, no máximo e “brevemente, as pedras antes dos cascalhos” (Lourenço). Suas características náuticas adaptam-se bem aos rios, estuários e às águas oceânicas do mar interior, podendo ser encalhadas (ou ancoradas) com facilidade na praia e em mangues. Ademais, o fabrico, compra e/ou reparo dos caícos são menos onerosos12 em comparação ao dos botes13. Essa navegação (caíco) pertence aos pescadores, bem como as armadilhas (tarrafa, rede de emalhar – espera ou cerco – e linha) mais acessíveis aos seus ganhos

financeiros. Sobre isso, Seu Ediburgo argumentou: “se a gente pescasse de bote, a gente tava na mão do empreseiro [dono dos meios de produção], e com o caíco, que é uma navegação mais barata, a gente fica mais liberado”. Acerca disso, a história do trabalho local ajuda na apreensão das características da pesca nesta praia. Por exemplo, em uma animada e coletiva conversa que estabeleci com alguns pescadores – Seu Olival, Seu Ciso, Seu Ediburgo, Paulo, Seu Armando, Tato – à beira-mar no dia 22 de outubro de 2009, eles recordavam como era Carne de Vaca até o fim da década de 1980. Assim, pude ouvi-los discorrer e discutir sobre o passado, relatos que estão destacados no quadro 2. Tais fenômenos societários – reunidos sinteticamente no quadro 2 – influenciaram a cultura produtiva, as práticas ecossociais vigentes, com alguns rompimentos e permanências. Atualmente, os pescadores, no período de chuva (maio a julho), passam 12 horas nas águas, porém “a média é de quatro a oito horas” (Armando) durante o restante do ano. Existe número expressivo dos que pescam quatro dias por semana, descansando nos outros. Navegam próximo à costa, no mar e nos rios da localidade, já que “esses locais são os preferidos das tainhas, espadas, sauna, xaréu, siri e do camarão vila franca” (Galego). A pescaria é feita, predominantemente, com redes de emalhar, havendo dois pescadores na embarcação, tecnologias que possuem baixa capacidade de captura frente aos botes. Assim como acontece com os jangadeiros de São José, o sistema de partilha da pescaria no caíco fundamenta-se no quinhão, cuja força de trabalho é “familiar e de nossos amigos mesmo” (Tato). O mercado pesqueiro é local e a produção é vendida pelos pescadores em suas próprias casas ou em carrinhos de mão pelas ruas. Parcela da produção é comprada por atravessadores da região (na maioria, familiares dos pescadores) para comercializá-la em bares e restaurantes em outras praias do município de

Um caíco novo custa R$ 2.400,00 e um usado, cerca de R$ 800,00 (preços relativos ao mês de novembro de 2009). Um bote novo custa de R$ 18.000,00 a R$ 22.000,00 e um usado, cerca de R$ 10.000 (valores de outubro de 2008).

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Quadro 2. Síntese histórica da pesca em Carne de Vaca, Goiana, Pernambuco. (a)

Quem controlava a pesca eram quatro comerciantes locais, que tinham canoas (maiores que os caícos e usadas, normalmente, para a despesca dos peixes no curral) e currais de pesca;

(b)

Cada empreseiro (misto de dono dos instrumentos de pesca e comerciante) pintava suas embarcações de uma única cor, para distingui-las das de outros empreseiros;

(c)

Sempre se pescou no mar de dentro devido à fertilidade das águas;

(d)

A pesca mais mercantil era feita de mangote (espécie de arrasto de praia), tecido de algodão para se capturar camarão, e com rede de emalhar para peixes, que eram beneficiados (artesanalmente) para serem vendidos seco-salgados;

(e)

As redes, currais e canoas eram caras e, por isso, inacessíveis aos pescadores, que, além de se verem obrigados a repassar toda a produção que pescavam para o empreseiro, não tinham renda monetária, visto que se viam constrangidos a comprar seus alimentos em pontos comerciais dos próprios empreseiros. Era uma espécie de sistema de barracão de engenho, baseado no vale, onde ficavam sempre endividados;

(f)

Isso começou a mudar face à redução na dificuldade que os pescadores tiveram para adquirir os seus instrumentos de trabalho (tornaram-se mais baratos, com a chegada do caíco e redes de náilon), que se juntou à diminuição do interesse, redução de ganhos e descontinuidade nos negócios familiares (com o falecimento dos antigos empreseiros do setor pesqueiro local) por parte das novas gerações de comerciantes, na segunda metade dos anos de 1980;

(g)

Com a melhoria das estradas e o aparecimento de outros atravessadores, veranistas e turistas, estabeleceu-se maior dinâmica socioeconômica na localidade (sem que isso tivesse grande pujança), circulando renda monetária entre os pescadores.

Goiana – especialmente Pontas de Pedra – ou na feira pública situada na sede da cidade. Nas palavras de Seu Ciso, “não há grandes comerciantes, pombeiros aqui, porque nossos produtos são peixes de terceira e eles não têm tanto interesse”. Prova disso são os valores dos pescados vendidos diretamente pelos pescadores por quilo, a exemplo da tainha (R$ 6,00 a R$ 7,00), sauna (R$ 4,00), xaréu (R$ 5,00) e espada (R$ 3,00). Já “o caranguejo vende-se por corda, que vêm 20 caranguejos, a R$ 7,00” (Seu Mário). Quando os atravessadores compram caranguejos, revendem por R$ 8,00 a R$ 9,00, R$ 6,00, R$ 7,00, R$ 5,00, R$ 10,00, inibindo margens consideráveis de lucros. No caso do camarão de maior tamanho, a produção é pouca e em curta temporada (outubro a dezembro), diferentemente da tainha, “que dá o ano todo e é melhor pra renda” (Seu Dorgival). Para os pescadores, “a melhor época pra vender é de janeiro a março, pois tem muita gente de fora [veranistas, turistas, banhistas], e os bares daqui compram nossa produção por conta desse povo que chega” (Seu Mário). Por isso, “o pior período é o inverno, porque a nossa praia fica vazia, difícil pra comercializar, e obriga a gente a

vender mais pros pombeiros. Só temos eles pra vender mesmo” (Seu Lula), o que acaba sendo um mal necessário. Três questões são essenciais para que eu ressalte a peculiaridade de Carne de Vaca ante São José: 1º) a pesca artesanal é mais uniforme no que diz respeito ao regime de trabalho, técnicas e tecnologias, embora isso não signifique falta de complexidade; 2º) os pescadores dividem os locais de pesca, de acordo com as dinâmicas ecológicas do mar de dentro, a saber, pescam nos rios/estuários, croas, canais, lamas (em menor medida) e em recifes (pedras); 3º) essas formas de apropriações dos nichos ecológicos dependem, fundamentalmente, das estações do ano (inverno e verão) para definição de seus usos, já que “são elas que dizem as coisas pros pescadores” (Armando), devido à pesca concentrar-se no mar de dentro a partir das decisivas influências dos rios e estuários. Assim sendo, é pelos ciclos das estações que guiarei a minha escrita a seguir. a) Inverno: Como afirma Seu Olival, o inverno é o “período de chuvas, águas frias e escuras, que a gente chama de suja, e que vai de maio a agosto”, ocorrendo quando os rios

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Megaó e Goiana recebem consideráveis águas oriundas das suas cabeceiras ou em outros trechos, o que os leva a chegar “mais cheios” (Seu José) para desaguarem na foz do Pontal de Carne de Vaca. As chuvas “trazem das terras muitas coisas e poluições, ficando as águas barrentas demais e ruins pras pescarias, inclusive no mar daqui, afugentando os pescados” (Seu Armando). Nessa época, os pescadores deixam de trabalhar no mar da praia e se deslocam pelo mar de dentro para outras localidades de Goiana (Pontas de Pedra, Barra de Catuama e Catuama), chegando, em poucos casos, a pescar no mar da ilha de Itamaracá, no intuito de capturarem peixes (tainha, principalmente), porque “a água de lá é mais limpa no inverno” (Seu Dorgival). Esse processo aumenta as horas de trabalho. Agora, “pro caranguejo é melhor no inverno no Megaó. Na verdade, eu fico nele de maio a setembro, depois eu passo pra pescar de rede de tainheiro e sauneiro até maio” (Seu Mário), utilizando estratégias combinadas durante o ano, por estação. No geral, o inverno “é a época onde a gente sai mais pra longe, que a gente trabalha mais, porque a gente sai pra buscar outras águas mais limpas em outras praias, indo de cinco da manhã e voltando de quatro, seis da tarde” (Seu Ediburgo). Dificuldade que se soma à baixa no comércio de pescados. Além disso, os pescadores buscam as pedras (recifes) da galeia (início do mar-alto na parte norte), das malhas (após a área da lama) e da barreta (fronteira com o mar de fora na parte sul) para realizarem pescarias de linha e redes de fundo (caçoeira), capturando os peixes galo, xixarro, aracimbora, paru, sapurana, ariocó, xira, guarajuba, cioba, budião. Nessa localidade, atinge-se a maior profundidade do mar interno de Carne de Vaca, de três a nove braças. É nessa região – entre a galeia e as malhas há área da lama – que ocorrem conflitos com os botes da praia vizinha (de Acaú, na Paraíba), os quais frequentam o lugar para extrair camarão com suas possantes redes de arrasto. Na área próxima à praia, alguns pescadores desenvolvem a pescaria do “camarão pequeno com rede

sauneiro e de tarrafa, porque eles gostam da água mais suja” (Tato), surgindo na “praia trazidos pelos ventos norte e sul” (Galego) e passando por áreas do mar interno, como os canais da Barra e da Égua, e as croas (bancos de areia), como a do Bandeira, em “suas beiradas” (Hula). Independentemente da estação, a pescaria do marisco, nas croas, é desempenhada pelos pescadores e, principalmente, pescadoras o ano inteiro, com base na coleta manual, sendo guiada pelo fluxo das marés. A participação dos homens na mariscagem cresceu, nos últimos anos, com o aumento do valor monetário desse produto. b) Verão: Conforme o pescador Lourenço, nesse período “fica tudo mais brando e a água mais limpa, melhor de fazer pescaria”. Ocorre de setembro até meados de maio, sendo a época em que os pescadores ficam mais presentes no mar de dentro da praia de Carne de Vaca. Tornam-se episódicas suas saídas para outros mares, se comparado ao inverno. Como relata Seu Lula: “Oxente, no verão não tem precisão de sair daqui, não. É peixe à vontade por essas bandas, principalmente o que o pessoal gosta mais de pescar, que é a tainha”. Há uma profusão de espécies de pescados cristalizada nas variadas pescarias “de rede, de sauneiro, tainheiro e caçoeira” (Xaba) em distintos locais do mar de dentro, como os canais da Égua, Barra e do Arrombado, as croas (Bandeira e Tabatinga) e a área de lama, bem como os rios da região. Além dos recifes (malhas, galeia e barreta), há pedras anteriores, a exemplo dos Galos (submersas) e Cachá, que são pontos valiosos para a pesca do pampo, bagre, cabumba e tainha. Os rios Goiana e Megaó são espaços corriqueiramente apropriados. Para os pescadores, esses rios são “aqueles lugares na beira do mar que têm a mistura da água doce com a salgada, e que sobe o continente pra dentro, tendo os mangues neles” (Seu Izaque), simbolizando a junção das águas fluviais, estuarinas e os manguezais. Neles, desenvolvem-se trabalhos com redes de emalhar e tarrafas

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– pescarias praticadas por duas, em média, a três pessoas, e há casos de um único pescador –, seguidas por aquelas efetivadas por coleta manual “nas margens, caranguejo, marisco, sururu e ostra” (Seu José). Essas três últimas são exercidas fortemente pelas mulheres. No entender de Seu Mário, o mar de Carne de Vaca e os seus diversos pontos pesqueiros pedem “armadilhas próprias [...] tudo é pescaria, mas cada uma é um esquema diferente de trabalhar pra pescar pescados, com esquemas diferentes de costumes. Cada armadilha pede um esquema. É um conhecimento diferente. Tem um pescador diferente”. São, portanto, objetivações do conhecimento patrimonial pesqueiro com suas gestões ecológicas. As questões formuladas ao longo dos diversos relatos expressam processos de (re)produção sociocultural e são manifestações de dinâmicas ecossociais e do saber-fazer ancestral, em suas especificidades e generalidades, onde a força societária das definições locais para pescados, pescarias e pescadores resplandecem-se na definição sobre como é viver nas (e das) águas piscosas.

DO PESQUISADOR AO PESCADOR Problematizarei, de maneira detalhada, as três categorias locais (pescaria, pescado e pescador) a partir do debate das ciências sociais, apoiando-me nos conceitos de processo de produção, de Godelier, e reprodução social, de Lukács. Tais conexões serão promovidas com o objetivo de relacionálas e discuti-las por meio da Socioantropologia da Pesca, especialmente a do trabalho pesqueiro. Realizarei, para tanto, uma separação entre esses conceitos, para fins meramente didáticos, iniciando meu diálogo pela categoria pescaria, a mais central para os pescadores e que, em virtude disso, perpassará as demais. PESCARIA É no ato de pescar que se pode entender a distinção ontológica entre ser social e natureza e, assim, a diferença

entre sujeito (ser consciente) e objeto (natureza-em-si orgânica e inorgânica), entre teleologia e nexos causais, que coexistirá enquanto unidade íntima na diversidade expressa no desenvolvimento da própria práxis social. Isso não representa uma separação entre o humano e o meio ambiente, mas sim distinções ontológicas, visto que, além de “constatar que as categorias e as leis da natureza, tanto orgânica quanto inorgânica, constituem em última análise (no sentido da alteração fundamental da sua essência) uma base ineliminável das categorias sociais” (Lukács, 1981, p. 94), antes de qualquer coisa “o ser humano pertence ao mesmo tempo (e de maneira difícil de separar, mesmo no pensamento) à natureza e à sociedade” (Lukács, 2010, p. 41-42), onde o simbólico e o material apresentam-se nas formas de reprodução social. Pertence à sociedade e ao meio ambiente ao mesmo tempo por conta do trabalho, que sempre foi e “é condição necessária do intercâmbio material entre homem e natureza; é condição natural eterna da vida humana” (Marx, 1982, p. 208). É por isso que o ato da pescaria necessitou do pescado desde os primórdios, para sua objetivação, pois “até hoje não se inventou a arte de pescar em águas onde não haja peixe (Marx, 1982, p. 205)14, onde a realidade não traga “possibilidades de recursos oferecidos pela natureza” (Godelier, 1969, p. 328), para que a práxis humana realize-se e o pescador exista e se reproduza no tempo e no espaço. Segundo Furtado (2002, p. 25), “em outras palavras, os bens oriundos dos ecossistemas aquáticos, ao se tornarem recursos, pressupõem a presença humana em sua relação”. Além disso, assim como no contexto dos camponeses, no qual o ser humano, a natureza e o sobrenatural são partes de um único mundo (Queiroz, 1973), essa situação apresenta-se na esfera do trabalho pesqueiro, já que o mundo simbólico dos pescadores artesanais (a noção de que os peixes são regidos por uma funcionalidade

Tal passagem é uma nota de rodapé na obra de Marx.

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baseada no sagrado e/ou de que o mar tem seu próprio ‘temperamento’, inclusive de revolta diante de determinadas ações humanas) também impõe suas imagens e explicações ao mundo material (Diegues, 1996; Furtado, 1987; Britto, 1999; Ramalho, 2012). Por isso, quando os homens do mar trabalham, não é recomendado que cuspam nas águas, falem mal de pessoas já falecidas ou chamem palavras de baixo calão, já que isso pode desagradar os mares de dentro ou de fora, ao fazê-los arredios, inimigos das boas pescarias e da sobrevivência dos próprios pescadores. O plano das simbologias invade, dessa maneira, a materialidade, e esta interfere naquela, enquanto momento dialético de feitura dos processos ecossociais. Inspirando-se nos argumentos de Godelier, Edgard de Assis Carvalho lembra que:

A partir de 1970, a construção de estradas em muitas comunidades favoreceu o desenvolvimento de mercados para a venda do pescado. Primeiramente, os atravessadores compravam o pescado na Lagoa para vendê-lo nas grandes cidades, a exemplo de Florianópolis. Neste caso, um atravessador adiantava o dinheiro ou comprava apetrechos de pesca para um dado pescador. Este, por sua vez, via-se obrigado a vender para o atravessador sua captura configurando assim um sistema de patronagem (Seixas; Berkes, 2005, p. 128).

Além disso, quando articulo essa dimensão diacrônica à sincrônica, ela se anuncia como fundamental. Por exemplo, Furtado mostrou algo significativo acerca da diversidade de pescas nos mesmos espaço e tempo histórico no Pará, particularmente devido à sazonalidade de espécies:

[...] o ideal não é nunca pensado como contraposto ao material. Não constitui também seu reflexo passivo e muito menos é causado mecanicamente por ele. Antes de mais nada, constitui uma modalidade de produção de sentido diretamente imbricada e articulada no conjunto das práticas sociais. Não goza de autonomia relativa, não constitui instância autônoma, porque o pensamento pensa simultaneamente matéria e ideia (Carvalho, 2003, p. 62).

As pescarias são contextos históricos (caícos, jangadas, botes, redes, espinhel, linha, mariscagem), pois se transformam internamente ao se transformarem os pescadores e o mercado pesqueiro, como foram os casos das mudanças ocorridas nas praias de São José e de Carne de Vaca, relatadas pelos pescadores, que as elucidaram ao detalharem o deslocamento da hegemonia das pescarias de jangadas para as de botes (São José) ou das canoas e currais para a pesca com os caícos (Carne de Vaca), passando pelo emprego de novas armadilhas que chegaram juntamente com a abertura das estradas, pujança do mercado e, com isso, ampliação da rede de relações sociais vinculadas à divisão social do trabalho na pesca. Isso foi um fenômeno social geral, a exemplo do que aconteceu na Lagoa de Ibiraquera, em Santa Catarina, segundo a análise abaixo:

A escolha destas alternativas é sazonal. Com relação à pesca de curral e de rede, estas alternativas são influenciadas tanto por fatores econômicos como ecológicos. A demanda do mercado tem ditado a escolha do tipo de equipamento para a captura do pescado. As espécies de peixes capturados pela tiradeira e a tarrafa são quase sempre de pequeno porte e de qualidade pouco valorizadas no mercado consumidor extra-local, para onde vai o grosso da produção dos pescadores. As mais valorizadas são capturadas pelo curral e pela rede. Torna-se claro por que os pescadores preferem operar com estas duas modalidades de pescaria. Esse fator assume um papel de reforço na escolha dessa modalidade. As condições ecológicas da região de Marudá também ajudam nessa escolha (Furtado, 1987, p. 230).

Tal situação ajuda-me a explicar a diversidade de pescarias em Carne de Vaca e São José, a partir da junção entre estratégias societárias múltiplas em termos técnico-tecnológicos e as dinâmicas ambientais inerentes à costa, ao mar e aos rios, no inverno ou no verão, comprovados nos modos de apropriação das áreas piscosas e suas profundidades diferenciadas como lama, cascalhos, pedras, canais, croas e estuários, em um mesmo tempo histórico e espaço geográfico. Zarur (1984, p. 70) encontrou usos territoriais distintos em uma mesma pescaria (caranguejo) na Flórida,

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EUA, em razão das estações do ano, pois, “no verão, a maioria dos pescadores de caranguejos coloca suas armadilhas perto da linha da rebentação, na esperança de conseguir maior quantidade de jimmy crabs (caranguejo macho). Nas outras estações, as armadilhas são colocadas entre 15 a 20 quilômetros da praia”. Tudo isso me leva a considerar que “o cotidiano de trabalho dos pescadores é marcado pelo tempo natural dos sistemas ecológicos e pelo tempo mercantil das práticas econômicas” (Brito et al., 2009, p. 136). Assim sendo, “essa reflexão permite afirmar que o sentido dado ao processo de trabalho dos pescadores das localidades, seja para subsistência ou comercialização, se coadunam com elementos ecológicos, cuja composição é internalizada nas práticas de pesca” (Brito et al., 2009, p. 136). Por isso, pescados (peixe, lagosta, camarão) exigem pescarias próprias (rede, linha, covo) e pescadores para que elas existam. Na pesca, o papel da consciência, através do trabalho, das relações familiares, dos valores imateriais, vislumbra-se, sobretudo, na maneira como os pescadores artesanais percebem as condições ecológicas encontradas, e aí produzem mecanismos (pescarias) para capturar a natureza, em termos objetivos e subjetivos, transformando-a “assim em uma natureza ‘socializada’” (Godelier, 1981, p. 175). Conhecimento que agrega, além de componentes socioculturais, metabolismos ambientais: A minúcia do conhecimento dos pescadores sobre a distribuição espacial dos peixes envolveu a percepção de movimentação ou migração entre habitats e a ocupação de habitats diferenciados ao longo do ciclo de vida (por exemplo, no período reprodutivo) e do ciclo ontogenético (por exemplo, diferenças entre habitats entre juvenis e adultos) (FernandesPinto; Marques, 2004, p. 172).

Se, por um lado, as pescarias são mediações tecno-tecnológicas (barcos e armadilhas) entre o pescador (ser social) e o pescado (ente ecológico), de outro, não deixam de ser também processos de organização produtiva, sistema de parceria baseado

na família e no compadrio – os quais regem a vida dos homens embarcados e assumem “a função de relações de produção” (Godelier, 1978, p. 50) –, divisão social do trabalho e formas de arranjos socioculturais e econômicas específicas de uma cultura produtiva particular, onde o saber-fazer pesqueiro ancestral é essencial (Ramalho, 2011, 2006). Com isso, posso frisar que “as pescarias (canoas/redes) materializam processos reais de organização social, sob as quais os pescadores efetivam a sua própria reprodução social” (Britto, 1999, p. 49). Então, compreendo a “[...] pescaria como processo de produção” (Duarte, 1999, p. 101) com suas relações sociais e emprego de técnicas e tecnologias tradicionais postas em execução por um conhecimento patrimonial (tradicional). É isso que se manifesta nas quatro formas de pescarias encontradas em São José da Coroa Grande – os jangadeiros de alto-mar e de mar de dentro e os botes que passam, no máximo, 24 horas no mar e aqueles que chegam a 15 dias ininterruptos nas águas – e na passagem da canoa para o caíco, em Carne de Vaca, clarificando processos ecossociais pesqueiros. Os processos ecossociais mostram dinâmicas históricas e atuais na pesca artesanal e revelam que o fundamental a inquirir-se “[...] não é o que se faz, mas como, com que meios de trabalho se faz” (Marx, 1982, p. 204). Apesar das transformações vividas, a exemplo de São José com a inserção de sujeitos capitalizados na pesca (classe dos comerciantes e donos dos instrumentos de produção), a força de trabalho ainda é de base familiar e por meio de amigos, bem como o conhecimento patrimonial continua no centro do trabalho pesqueiro. A permanência desses elementos tradicionais é um fenômeno que não coloca em risco a expansão da lógica capitalista na pesca, porque ela se apropria, em muitas regiões pesqueiras, dos ganhos do trabalho alheio à custa da manutenção de relações sociais de trabalho e saber-fazer ancestrais. De maneira geral, independentemente das plurais pescarias, seria impossível pensar o trabalho

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pesqueiro, inclusive do ponto de vista histórico, sem ter a complexa compreensão das dinâmicas ecológicas que o envolvem.

PESCADOS Pescados são entes orgânicos que vivem em metabolismo com outros corpos orgânicos e inorgânicos (da flora e fauna estuarina, fluvial e marítima), cujos processos vinculam-se à reprodução biológica sem que haja uma autoconstrução radicalmente distinta da anterior, fato comum somente aos humanos. Os pescados referem-se às dinâmicas ecológicas (físicas, químicas e biológicas) presentes em dados ecossistemas (rios, mangues, estuários, praias, oceano, mata atlântica), com seus ritmos, sazonalidades, causalidades, intercâmbios e transformações decorrentes do meio ambiente (atmosfera, temperatura, salinidade, processos físico-químicos etc.) ou são aquelas dinâmicas ecológicas oriundas das intervenções socioeconômicas (despejos químicos nas águas resultantes das usinas e indústrias, construção de complexos portuários e de fazendas de camarão, desmatamento de mangues etc.), que impactam e exigem capacidade de resiliência dos pescados e dos ambientes naturais nos quais os mesmos estão inseridos. Além disso, a práxis pesqueira conduziu mudanças no processo de (re)produção da natureza, a exemplo do que aconteceu no Brasil com o surgimento de uma nova classe social – industriais da pesca –, estimulada pela Superintendência de Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE), que funcionou de 1962 a 1989 (Neto, 2003; Diegues, 1983; Ramalho, 2014). Em decorrência disso, houve consideráveis aumentos na captura de algumas espécies (sardinha, atuns etc.), de forte interesse mercantil, com a implantação de modernas e poderosas pescarias, explicitadas na presença de barcos maiores e mais potentes – com sonar, GPS, fabricação de gelo e condições mais amplas de armazenamento de frutos do mar e de navegação –, uso de grandes redes de arrasto

industriais, varredoras do fundo das águas marinhas e de sua fauna, bem como a presença de trabalho assalariado. Alterações que se apresentaram – só que em bases artesanais – com a expansão e o aumento excessivo na captura da lagosta e do camarão em São José, ou devido aos impactos negativos oriundos dos viveiros de camarão e da poluição canavieira na área de Carne de Vaca. A aliança de tais elementos (direta ou indiretamente relacionados à pesca) gerou a superexploração de vários recursos pesqueiros e/ou conduziu a limites físicoquímicos na recriação biológica de inúmeras espécies. Assim, diversos pescados, por conta dessa pressão sobre seus ambientes, tiveram suas capacidades de resiliências afetadas, pois o “biológico pressupõe uma constituição especial do inorgânico e, sem a interação ininterrupta com ele, não é capaz de reproduzir o seu próprio ser nem por um instante” (Lukács, 2013, p. 191). O ambiente costeiro liga-se a interações ecológicas sofisticadas (água, flora, fauna, bactérias, fungos etc.), com suas causalidades e leis de funcionamento, e quaisquer transformações nisso podem levar a prejuízos inestimáveis ao mundo natural e social. Sem dúvida, os pescadores de Carne de Vaca dependem da biodiversidade para sua reprodução social. Sobre o ecossistema manguezal, é oportuno dizer: O que une na verdade e estrutura o ecossistema num todo coerente e funcional é a interação dinâmica de suas diferentes partes, expressa com a transferência ou o fluxo de matéria e energia de um componente – ou parte – aos outros componentes dentro do ecossistema e entre o ecossistema manguezal e os ecossistemas adjacentes (Vannucci, 2002, p. 76).

Portanto, é impossível negar o peso – sem que isso ecoe em um determinismo geográfico – das condições ambientais para a estruturação da pesca, haja vista os conteúdos ecológicos encarnados nas pescarias e tipos de sociedades pesqueiras que habitam Carne de Vaca e São José, a saber, o litoral norte e sul de Pernambuco.

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Estuários e manguezais são explorados pela pesca de pequena escala, além da coleta manual de moluscos e crustáceos. Na região costeira, a pesca é realizada em duas zonas distintas: na área interna aos recifes, denominada pelos pescadores como mar de dentro, e na zona externa aos recifes, incluindo a plataforma e o talude continental (mar de fora). A maior parte das atividades pesqueiras desenvolvidas pelas comunidades do litoral norte do estado é realizada no mangue e na zona estuarina, enquanto as comunidades do litoral sul concentram suas pescarias na zona estuarina e no mar de fora (Lessa et al., 2006, p. 69).

Os fatores naturais resplandecem-se nas particularidades dos pescados, nos gêneros e ritmos de pescarias existentes em cada região da costa pernambucana. Os pescados colocam novas questões para os pescadores e suas práticas de pescarias, anunciando que a natureza não é passiva e impõe seus ritmos infinitamente causais ao pescador. Se tudo fosse mera repetição, o trabalho do pescador não se enriqueceria do imponderável e, consequentemente, não se aperfeiçoaria em suas técnicas de pescarias e nem colocaria em movimento suas próprias simbologias, por isso “o conhecimento dos pescadores se constrói na prática, trabalhando” (Brito et al. 2009, p. 137).

PESCADORES A pescaria é um momento meio orquestrado por uma finalidade presente na ideação do trabalho do pescador, com seus valores, necessidades e possibilidades socioambientais, com vistas a extrair das águas os pescados, trazendo em si implicações das relações e processos socioeconômicos mais gerais, como também das situações e interações de classes imanentes à pesca artesanal, cujos mecanismos clarificam as formas de ser e as determinações de existência no ser e fazerse pescador. Desse modo, “vemos, por fim, que toda produção é um ato duplo submetido às normas técnicas de uma relação determinada dos homens com a

natureza e às normas sociais que regulam as relações dos homens entre si no emprego dos fatores de produção” (Godelier, 1969, p. 345). Esta questão revela que o fazer humano, seja ele elementar ou não, imediato (trabalho) ou mediado (práxis), traz valores de mundo como referência à consciência, na qual a finalidade precede e guia a realização autocriadora do próprio pôr teleológico 15 sobre a natureza, com suas transformações constantes. Finalidade do trabalho que se apresenta na consciência e, com isso, na sua projeção sobre determinada realidade, no intuito de transformá-la de acordo com as necessidades humanas, sempre renovadas de sua classe ou grupo social. Interesses de mercado e/ou costumes tradicionais decifram-se a partir daí, bem como processos de subordinação ou de maior liberdade frente aos valores do capital, por exemplo. Nesse caso, processos mais gerais, intrínsecos à práxis, à categoria pescador, com seus sistemas de mediações mais complexos (religião, política, mercado, Estado, cultura), apresentam-se na interação mais imediata (pescaria) entre pescador (práxis) e o pescado (natureza), ofertando um tipo de organização social do trabalho, de reprodução social. [...] devemos ter sempre em mente que a reprodução se dá num entorno, cuja base é a natureza, na qual, contudo, é modificada pelo trabalho, pela atividade humana; desse modo, também a sociedade, na qual o processo de reprodução do homem transcorre realmente, cada vez mais deixa de encontrar as condições de sua reprodução “prontas” na natureza, criandoas ela própria através da práxis social humana (Lukács, 2013, p. 171).

Realmente, tal organização é “uma práxis social, um padrão normal de trabalho, uma forma de regulação social de trabalho” (Dal Rosso, 2008, p. 198), que se explicitou na época do domínio dos comerciantes/‘empreseiros’ (donos

A teleologia é restrita ao trabalho (Lukács, 1979, 2013).

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de canoas e currais) em Carne de Vaca e que se aviva, desde 1970, na pescaria de bote feita de espinhel, covo ou rede em São José, com sua partilha concretizada na forma da “banda”. Um dos exemplos disso é a pescaria de bote em linha separada, cuja individualização do ganho tornou-se sinal da instalação de uma ‘ética’ marcadamente mercantil. Essa práxis reguladora do trabalho, de ordem mais individualista, e influenciada pela propagação de uma cultura capitalista, já havia sido identificada no Ceará, em meados do decênio de 1970, por Chaves (1975), indicando a amplitude desse fenômeno: A tripulação se classifica no local em tripulação de “linha junta” e de “linha separada”. Linha junta, quando a produção de todo é posta num único monte comum para, ao cabo, subtraído o quinhão do dono, ser dividida de modo igual pela tripulação. Linha separada, quando cada um pesca para si. Nesse caso, cada pescador marca o seu peixe para identificá-lo posteriormente em terra. Antigamente a quase totalidade das tripulações era de linha junta. Na atualidade, inverteu-se a situação: quase todas são de linha separada. Segundo nossa hipótese, tal fato ocorreu em virtude da intensificação do capitalismo comercial na região. Alegam os pescadores que o importante é conseguir mais peixe para vender em quantidade maior e ficar com algum excedente para outras necessidades. Em razão disso, preferem pescar de linha separada “porque assim uns não se encostam nos outros, e quem trabalhar mais e tiver mais capacidade, obtém mais” (Chaves, 1975, p. 25).

As pescarias são o desnudamento das razões de ser pescador, seja quando buscam adequar-se às exigências do ambiente para melhor apropriar-se dele, seja motivadas pelas renovadas necessidades decorrentes das transformações econômicas, históricas, políticas e culturais originárias da inserção do pescador na sociedade mais abrangente. “Assim, uma pescaria tem dimensões biológicas, tecnológicas, econômicas, sociais, culturais e políticas” (Berkes et al., 2006, p. 26). Os pescadores (segunda natureza) compõem uma totalidade social a partir do desenvolvimento de suas particularidades (individuais e comunitárias), que se ampliam na mesma medida em que a totalidade

expande-se historicamente, através do mercado, poder público, comunicações, ampliação das redes de relações sociais, divisão regional e nacional do trabalho, estradas, onde ambos (o indivíduo e a totalidade) são movimentos e “essas interações inevitáveis são mediadas pelo medium da sociedade; mais exatamente, como a sociabilidade do homem representa seu comportamento ativo e prático em relação ao meio ambiente como um todo” (Lukács, 2013, p. 204). O pescador é oportunidade socioeconômica, hábito de classe, costume, ideologia e relações sociais comunitárias ou com outros grupos, onde produz e reproduz sua singularidade em oposição ou em complementaridade com outros segmentos sociais no tempo e no espaço. Ademais, ser pescador é encontrar-se inserido em uma determinada relação na estrutura social, de comando do capital, cujas tensões alimentadas pelos desejos de autonomia, resignações e subordinações estão no dia a dia. É a partir daí que compreendo o pagamento feito em ‘banda’ ou ‘quinhão’, que diferencio os pescadores do mar-alto e os do mar interior em São José e Carne de Vaca, inferindo que os trabalhadores desta praia estão em condições econômicas mais favoráveis do que os daquela. Embora circule mais dinheiro no setor pesqueiro em São José (há várias peixarias, restaurantes, atravessadores, grandes empresas de pescado), as relações de classe existentes nos botes forjaram situações desfavoráveis em termos sociais e econômicos para os pescadores de alto-mar. Incluo, ao comparar as citadas praias, os pescadores de Carne de Vaca na seguinte consideração:

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Comunidades especializadas e autárquicas eram formadas por pescadores que, combinando técnicas nativas e a técnica portuguesa, proviam ao mercado um produto mercantil específico e acessível. Elas se distribuíam em aldeias pelas praias, dando uma ocupação permanente ao litoral. Constituída uma outra economia da pobreza, que possibilitaria maior fartura alimentar mas não ensejava riqueza (Ribeiro, 1995, p. 292).


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Postulo, com isso – guardadas as distinções históricas, culturais e geográficas em relação a algumas tribos aludidas por Sahlins (1978) –, a tese de certa “sociedade da afluência” para os pescadores de Carne de Vaca, quando, mais uma vez, relaciono-os aos que pescam no mar de fora em São José. Ao definir uma das características da “sociedade da afluência”, Sahlins escreveu:

de uso e, especialmente, de troca. Nesse contexto, o desenvolvimento histórico do mercado, da imposição realizada por outrem (atravessadores ou donos dos equipamentos) e das necessidades de consumo das crescentes populações urbanas e rurais são decisivos para pressionar os pescadores, através dos usos de suas pescarias, na captura de certos pescados. Essas questões podem ser encontradas no caso da lagosta, em São José, e da tainha, em Carne de Vaca. No primeiro exemplo, há um mercado internacional (Japão e EUA) e nacional que impõem seu ritmo à localidade há anos. E no segundo, houve uma ampliação do comércio, de características local e, no máximo, regional. Tudo isso revela como o comércio influencia nas escolhas das áreas de pesca, com seus sujeitos aí envolvidos.

Os caçadores e coletores, por força das circunstâncias, têm um padrão de vida objetivamente baixo. Mas visto de dentro de seus objetivos e dado seus meios de produção, todas as necessidades materiais das pessoas podem ser facilmente satisfeitas (Sahlins, 1978, p. 41).

Quando friso que estão próximos à ideia de “sociedade da afluência”, isso não significa retirar desses trabalhadores pesqueiros seu contexto de classe popular. Classificá-los como integrantes da classe trabalhadora é vê-los na condição de portadores de uma “pequena incorporação dos capitais impessoais mais importantes da sociedade moderna, capital econômico e capital cultural” (Souza, 2010, p. 327). A somatória desses elementos mostrou-me que a feitura de um pescador deve-se à própria feitura da sociedade da qual é integrante, e ocupa papel subordinado na divisão social e nos ganhos do trabalho, como destacou Wolf em relação aos camponeses. Para Wolf (2003, p. 121), ser camponês é “uma relação estrutural, não um determinado conteúdo de cultura” apenas, embora isso seja importante. Estruturas societárias geradoras de processos plurais no fazer-se pescador em São José e Carne de Vaca, encarnados nas formas e relações de produção no bote, jangada e caíco, no sistema de partilha por ‘banda ou quinhão’, nas situações e condições de classe, nas possibilidades de diálogos e inserção no todo social, nos contextos de autonomia e subordinação face aos frutos de seu trabalho. Além disso, essa relação estrutural valora a produção pesqueira. Por isso, os pescados são valores

Antigamente ninguém queria lagosta, ela sobrava aí, mas hoje é mais concorrida e valorizada. Há gente graúda interessada, que leva a lagosta até pra fora (Seu Maragogi, pescador aposentado de São José, Pernambuco). Faz uns 30 anos que os peixes pra vender melhor eram os pra salgar, os seco-salgados. Hoje, o interesse do povo é mais pra tainha, que vende pela região daqui mesmo (Xaba, pescador de Carne de Vaca, Pernambuco). Os comerciantes e os donos dos botes querem que a gente vá mais pros cascalhos e as pedras, porque é onde “tão” os pescados de primeira e segunda, os cobiçados por eles, por nós, pelo comércio (Edim, pescador de São José, Pernambuco).

Tal fato exerce ascendência nas definições do que pescar: pescados de primeira, segunda ou terceira. A tripulação reserva aqueles menos atrativos ao mercado para o consumo familiar, em muitos contextos, o que ostenta proporções agudas em pescarias profundamente mercantis. Marques e Ferreira (2010, p. 51) elaboraram conclusões similares sobre a pesca em Itamaracá, Pernambuco, pois “os pescadores agrupam as espécies de pescado definidas de acordo com seu valor de venda e destino comercial”.

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Os pescadores, ao (re)elaborarem seu saber-fazer sobre os pescados, objetivam suas pescarias (meios técnicos, tecnológicos) em um fluxo contínuo e dialético, que se integra como parte de sua própria condição e de seus atributos societários locais, e que não deixa de compor os processos regionais, nacionais e/ou globais e as possibilidades ecológicas encontradas. É nesse contexto, por a mediação ser feita entre pescador e o pescado, que as pescarias estão cheias de momentos de sínteses societárias, significando modos de ser e fazer-se pescador, nunca homogêneos, que buscam capturar tipos de pescados, a partir de interesses comerciais e/ou de subsistência, ou mesmo por conta das condições ambientais e de classes existentes, ora quando se é jangadeiro de alto-mar, ora quando se é pescador de lagosta no bote, ora quando se pesca em caíco ou em jangada de mar de dentro, resplandecendo processos ecossociais universais (a condição de ser pescador no sentido universal) e particulares (sintetizado nas pescarias diferentes). Por isso, “as relações sociais não existem somente entre os indivíduos e os grupos, elas existem ao mesmo tempo em cada um dos indivíduos e dos grupos envolvidos nessas relações” (Godelier, 2012, p. 48). Dessa maneira, apesar desse exercício de separação didática procedido, busquei valorizar a existência profundamente concatenada entre as categorias pescado, pescaria e pescador, compreendendo-as como algo necessário para uma leitura mais completa sobre a pesca artesanal nas citadas praias pernambucanas, através da categoria processos ecossociais.

CONCLUSÕES Os conceitos de produção (Godelier) e de reprodução (Lukács) foram essenciais para que eu pudesse compreender o universo da pesca artesanal aqui estudado, fundamentalmente no que diz respeito às diversidades de pescarias existentes em uma mesma praia ou em localidades distintas, o que equivaleu encontrar semelhanças e diferenças na ecologia, nas formas de ser

e nas determinações de existência em fazer-se pescador artesanal em São José da Coroa Grande e Carne de Vaca, inclusive no que concerne à construção e às objetivações dos processos ecossociais pesqueiros. Todavia, os aludidos conceitos (produção e reprodução social) seriam inócuos caso não fossem sustentados e sustentadores da abordagem que construí sobre as noções brotadas da compreensão dos pescadores sobre seu próprio mundo. Dessa maneira, emergiram – no escrito – os pescadores jangadeiros, os de caíco e de bote, com suas particularidades e universalidades oriundas do trabalho, ora na apropriação de determinados nichos ecológicos, ora nas condições objetivas (subordinadas ou não) de exercerem seu ofício, no uso do regime de parceria, nas situações ambientais, históricas e econômicas encontradas. No processo etnográfico da pesquisa (período de campo, análise dos materiais colhidos até a redação final do texto), esteve contido, de maneira dialética, o movimento de aproximação entre o aspecto êmico e ético, com seus momentos de alteridade, distanciamento, proximidade e tradução, cuja escrita do pesquisador almejou ser a mediadora entre o mundo dos pescadores e dos leitores deste artigo, a partir do conceito processos ecossociais. Nesse sentido, a minha análise socioantropológica fundamentou-se em três definições êmicas plenas de sentido societário e capazes de dar entendimento aos complexos processos ecossociais do trabalho pesqueiro. Assim, as categorias locais pescados, pescarias e pescadores tornaram-se lentes que me ajudaram a apreender o trabalho pesqueiro (a pescaria), pela mediação e qualidade sumarizante da mesma, atuando enquanto elo articulador das outras definições nativas (pescado e pescador), por ocupar, segundo os homens das águas, papel central no mundo da pesca artesanal aqui estudado.

AGRADECIMENTOS Esta pesquisa recebeu financiamento da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco

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(FACEPE) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio da bolsa Desenvolvimento Científico Regional (DCR), o que me permitiu trabalhar, de novembro de 2007 a maio de 2010, na condição de pesquisador visitante, na Coordenação Geral de Estudos Ambientais e da Amazônia (CGEA), da Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ), em Recife, Pernambuco, e produzir o relatório final de pesquisa intitulado “Gestão ecológica enquanto conhecimento patrimonial dos pescadores artesanais: um estudo comparativo entre práticas pesqueiras estuarina e marítima em Pernambuco”, de 2010, que é inspirador do presente escrito. Também agradeço à socióloga e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA), da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Andreia Patrícia dos Santos, pela leitura atenta e sugestões ao texto; e aos pareceristas (anônimos) do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, pela acolhida do artigo e sugestões ricas ao texto. Muito obrigado!

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Fronteira agrícola na Amazônia contemporânea: repensando o paradigma a partir da mobilidade da população de Santarém-PA Agricultural frontier in contemporary Amazonia: rethinking the paradigm on the basis of population mobility in Santarém, Pará Julia Corrêa CôrtesI, Álvaro de Oliveira D’AntonaI I

Universidade Estadual de Campinas. Campinas, São Paulo, Brasil

Resumo: Processos demográficos na Amazônia permanecem explicados a partir da dinâmica da fronteira agrícola, um referencial aplicado à conjuntura da década de 1970. Buscando verificar sua capacidade de refletir a contemporaneidade da região, o trabalho apresenta um estudo sobre a mobilidade populacional em Santarém, um caso pertinente pela complexidade da configuração rural e recente inserção do agronegócio. Dados dos Censos Demográficos do IBGE e entrevistas em 311 propriedades rurais familiares foram usados para múltiplas análises migratórias. O resultado destacou a relevância da circulação interna na dinâmica do município, além de revelar que o meio rural é mais estável e menos impactado pela migração do que o urbano. Ao contrário do que a reflexão sobre fronteira usualmente preconiza, o êxodo rural teve baixo impacto no volume populacional e suas análises apontaram para novas tendências na composição de quem os realiza. A verificação de categorias de mobilidade latentes na bibliografia reforçou que a fronteira é plural e que seu referencial teórico é capaz de explicar somente parte das transformações rurais. A reconfiguração do meio rural só será amplamente compreendida quando contemplada a mobilidade intra-rural e a imigração rural, que tem na sua essência as relações de família, a identidade com rural e a dissolução da dicotomia rural-urbana. Palavras-chave: Migração rural. Mobilidade intramunicipal. Reconfiguração do rural. Urbanização. Abstract: Demographic processes in the Amazon are still explained by the dynamics of the agricultural frontier, which is a theoretical approach developed in the 1970s. This study considers population mobility in Santarém (PA) in order to assess the ability of the frontier model to represent the actual situation of the region. Santarém is a relevant case given the complexity of its rural aspect and the recent ascendency of agribusiness. The data are from the IBGE Demographic Census and from surveys conducted on 311 rural properties. The results highlight the importance of internal mobility in the municipality and reveal that the countryside is more stable and less affected by migration than the urban region. The small impact of rural exodus on the size of the rural population go against the classical assumptions concerning frontier regions. The attestation of certain types of mobility that are usually absent in the bibliographical sources reinforces that the frontier is diverse and its theoretical framework can explain rural transformations only partially. The concept of rural environment can only be satisfactorily redefined if intra-rural mobility and rural in-migration are added to the framework. Family relationships, the identification with the countryside and the dissolution of the rural-urban dichotomy lie at the foundation of these dynamics. Keywords: Rural migration. Intra-municipal mobility. Rural transformation. Urbanization.

CÔRTES, Julia Corrêa; D’ANTONA, Álvaro de Oliveira. Fronteira agrícola na Amazônia contemporânea: repensando o paradigma a partir da mobilidade da população de Santarém, Pará, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 2, p. 415-430 maio-ago. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000200005. Autora para correspondência: Julia Corrêa Côrtes. Universidade Estadual de Campinas. Cidade Universitária Zeferino Vaz - Barão Geraldo. Campinas, SP, Brasil. CEP 13083-970 (jccortes@nepo.unicamp.br). Recebido em 15/01/2015 Aprovado em 01/06/2016

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INTRODUÇÃO A expansão rumo ao norte do Brasil nos anos 1970 deu início a um período de intensas alterações na Amazônia (Mello, 2006; Becker, 2007). Os ciclos de ocupação promoveram um novo contexto populacional, ambiental e fundiário fortemente articulado pelos processos migratórios (Sawyer, 1984; Martine, 1988, 1992; Mueller, 1992; Diniz, 2002). Desde então, o entendimento da dinâmica populacional da região é influenciado pelo referencial da ocupação de uma fronteira agrícola. O movimento iniciou-se com o deslocamento pioneiro de migrantes originários de outras regiões do país para a fronteira. Predominava, então, a migração de homens em idade de trabalhar, solteiros ou casados, com posterior deslocamento de suas famílias (Hogan et al., 2008; Barbieri; Bilsborrow, 2009). Em um segundo momento, destacam-se os deslocamentos internos da fronteira. A migração inter-regional foi caracterizada pela expansão da agricultura capitalizada e pelo recorrente “fracasso dos colonos”1, impulsionando os deslocamentos em direção a terras virgens ou para os núcleos urbanos (Alston et al., 1996; Campari, 2002; D’Antona et al., 2011). O caráter masculino do rural foi intensificado pela emigração das mulheres, atraídas pelas atividades terciárias urbanas. Dadas as condições no campo, os jovens se deslocaram para as cidades em busca de trabalho e educação (Durston, 1996; Camarano; Abramovay, 1999; Diniz, 2002). Com isso, o rural tende a ser um meio predominantemente masculino e com uma estrutura etária envelhecida. Ao mesmo tempo, esses fluxos migratórios contribuíram para o aumento da população residente em áreas urbanas, tanto em termos absolutos quanto relativamente no que concerne ao número de habitantes

de áreas rurais (Sawyer, 1987; Martine, 1992). É a partir desta dinâmica migratória que se pautou a explicação da ampliação do número de cidades pequenas e médias orientadas ao longo dos eixos das rodovias e estradas (Castro, 2006; Pereira, 2006; Becker, 2007). Apesar de uma descrição consistente dos processos demográficos regionais, questiona-se aqui a perspectiva mecanicista do referencial de fronteira e a sua capacidade de contemplar a complexidade da mobilidade da população – e das suas implicações – na Amazônia contemporânea. Para tal, analisa-se a mobilidade da população a partir do caso de Santarém, Pará, antiga área de ocupação populacional e recentemente incorporada ao contexto do agronegócio. Buscando contribuir para a concepção de uma fronteira multifacetada e complexa (Schmink; Wood, 1992; Diniz, 2003), apresentam-se análises migratórias de uma perspectiva sociodemográfica, com base em dados censitários e em entrevistas realizadas em propriedades rurais, para que eles se complementem e revelem processos inter e intramunicipais, usualmente não destacados pela bibliografia.

MATERIAL E MÉTODOS ÁREA DE ESTUDO O município de Santarém foi reconhecido pela sua posição estratégica já no período colonial, passando por diversos ciclos econômicos associados a distintas ondas migratórias de origem nacional e internacional2. Entre ocupações espontâneas e as direcionadas pelo governo federal, a região foi se transformando e se caracterizando pela diversidade de sua composição populacional. Na abertura da fronteira agrícola, na década de 1970, Santarém foi alvo de intervenções federais, como

O “fracasso do colono” é atribuído a fatores de distintas ordens: desconhecimento do bioma, obstáculos naturais à ocupação, fertilidade do solo na Amazônia, acesso ao mercado e falta de estradas, bem como falta de apoio à produção, especulação fundiária e elevado preço da terra, entre outros (Moran, 1990; Martine, 1992; Alston et al., 1996; Diniz, 2002; D’Antona et al., 2011). 2 Na confluência do rio Amazonas com o Tapajós, a localização de Santarém como ponto de transição entre Belém e Manaus consolidou a região como um importante centro urbano já em 1828, desencadeando sucessivos ciclos econômicos. Entre os ciclos, destacam-se o da borracha (1839-1910 e 1920-1945), da juta e pimenta-do-reino (1915-1945), do pau-rosa (1940-1949), do agronegócio (1970) (Reis, 1979; Homma, 2003). 1

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a construção da rodovia federal BR-163 e projetos de colonização do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). A urbanização intensificou-se e novas formas de ocupação se estabeleceram com a chegada do contingente migratório oriundo principalmente da região Nordeste do país (Mello, 2006). Ao final da década, em 1980, Santarém se tornou um município urbano (58% da população em áreas urbanas), superando a proporção da própria unidade de federação (52%) e da grande região Norte (52%), segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No fim da década de 1990, a construção do porto de exportação de grãos reestruturou as áreas produtivas de Santarém, estimulando uma nova frente migratória de produtores capitalizados, principalmente da região Sul do país. O avanço da produção capitalista no campo afetou diretamente a região do planalto, onde se situa a área de estudo aqui considerada para a análise intramunicipal

(Figura 1). Alguns eventos foram correlacionados a este processo, como o êxodo rural e a formação das periferias urbanas (Sá et al., 2006), o desparecimento de vilas rurais (D’Antona; VanWey, 2009), a concentração de terras (D’Antona et al., 2011) e a queda na produção alimentícia, por exemplo, de feijão e de milho (Carvalho; Tura, 2006). A incorporação da região à expansão do agronegócio mais contemporânea torna Santarém relevante ao estudo, ao permitir o destaque a elementos que expressam não só a complexidade da reconfiguração rural na Amazônia, mas também que resgatam a discussão sobre o modelo de fronteira agrícola.

FONTES DE DADOS Visando integrar a perspectiva mais agregada (municipal) a uma microperspectiva (intramunicipal), foram combinados dados de fontes secundárias a outros diretamente coletados em campo.

Figura 1. Localização da área de estudo. Em destaque, a área de amostragem do levantamento sociodemográfico em Santarém, Pará.

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Para as análises no âmbito municipal, foram utilizados os censos demográficos do IBGE. As variáveis de volume populacional, sexo e estrutura etária foram obtidas por meio do questionário do universo dos censos demográficos realizados em 1991, 2000 e 2010. Demais dados são oriundos do questionário da amostra, provenientes do conjunto de microdados3. Para a mensuração direta da migração, as variáveis utilizadas foram: V1006 (situação do domicílio de residência na data do censo: rural; urbano), V4250 (código do município de residência no dia 31/07/1995), V0424 (zona de residência no município em 31/07/1995, quesito aberto, sendo subjetivo e arbitrário, conforme o recenseado). Esta última variável deixou de existir no censo demográfico de 2010. Para a mensuração indireta da migração, tábuas de mortalidade foram utilizadas. O saldo migratório foi calculado pela comparação entre população estimada com a tábua de mortalidade e a população recenseada no levantamento do censo demográfico. Para a construção da tábua de mortalidade, foram utilizados dados de estatísticas vitais obtidos no Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS). Os dados foram desagregados somente por sexo, de forma a ser calculada uma única tábua de mortalidade para a análise dos meios rural e urbano. Os dados secundários oferecem um quadro geral de Santarém, tendo como máxima desagregação espacial a zona rural e a urbana, o que não basta para qualificar dinâmicas internas do município. Para uma visão mais detalhada, foram utilizados dados de campo obtidos em área de estudo na região do planalto santarense, uma área bastante representativa dos processos aqui discutidos. Os dados primários foram coletados em trabalhos de campo realizados em 2003 e 2009, que previam aplicação de questionários em propriedades rurais. Os dados utilizados neste estudo referem-se a 392 propriedades e

539 unidades domésticas entrevistadas em 2009, que eram originalmente 311 propriedades e 404 unidades domésticas em 2003. O método de amostragem das propriedades é o mesmo descrito em D’Antona e VanWey (2007). Em 2003, distintos tipos de questionário foram utilizados para registrar as características das propriedades (tais como produção, usos e cobertura da terra ao longo do tempo) e dos domicílios existentes, bem como das pessoas residentes. Em 2009, os mesmos tipos de questionários foram aplicados a fim de: a) entrevistar os donos das propriedades visitadas em 2003 (inclusive os residentes em outros locais de Santarém e aqueles que não eram mais os donos de propriedades em 2009) e os novos donos identificados em 2009 (herdeiros ou compradores de propriedades visitadas em 2003); b) identificar e registrar novas propriedades em 2009 nos locais visitados em 2003 – como nos casos de subdivisões por herança ou de vendas de parte de propriedades originalmente visitadas. Assim como foi definido como regra em 2003, todas as unidades domésticas situadas dentro do perímetro de cada propriedade identificada foram entrevistadas. Tal estratégia permitiu capturar as alterações na estrutura fundiária, a mobilidade e as características da população – tanto daqueles que deixaram suas propriedades quanto dos que lá chegaram entre 2003 e 2009. Esses dados possibilitaram desenvolver análises integradas de processos relativos aos deslocamentos populacionais, aos migrantes e suas relações familiares, à transformação espacial e fundiária sob uma perspectiva intramunicipal.

PROCEDIMENTOS PARA A ANÁLISE MIGRATÓRIA Duas técnicas de mensuração foram aplicadas aos dados dos censos demográficos. A mensuração direta foi adotada para a construção de uma matriz migratória referente ao período

Dois tipos de questionários são utilizados para o levantamento do censo demográfico. O questionário do universo é aplicado em todas as residências e contém características básicas do domicílio e dos moradores. O questionário da amostra é aplicado em residências selecionadas para amostra, com informações que abrangem outras características do domicílio e de seus moradores, além das contidas no questionário básico (informações sociais, econômicas e demográficas).

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1995-2000 (IBGE, 2000), a partir do quesito que captou o local de residência em 31 de julho de 1995. A desagregação por urbano e rural, empregando o quesito V0424 e V1006, avalia as correntes migratórias e a as situações de origem e de destino. Esta técnica detalha as categorias de mobilidade e seu volume, tendo como vantagem a possibilidade de captar movimentos rural-urbano internos ao município. A mensuração indireta da migração foi calculada pela técnica de ‘relação de sobrevivência’, que exige a população em dois momentos, desagregada por sexo e por idade quinquenal. A principal vantagem dessa técnica é a possibilidade de calcular o saldo migratório por grupo etário e por sexo, ilustrando as transformações na composição dos fluxos migratórios. Os censos demográficos analisados são de 1991, 2000 e 2010 (IBGE, 1991, 2000, 2010). O cálculo do primeiro período (19902000) incorpora a população dos municípios de Belterra e Placas, desmembrados de Santarém no início da década de 1990. A população de 1990 foi estimada segundo taxas geométricas de crescimento anual da população. As relações de sobrevivência entre os grupos quinquenais são obtidas pela construção da tábua de mortalidade, segundo Ortega (1987). A tábua de mortalidade foi elaborada a partir do número de óbitos e de nascidos vivos, corrigidos segundo o coeficiente de cobertura. A análise considerou tábuas de mortalidade para a população feminina e masculina, pressupondo comportamento análogo entre as zonas rural e urbana. O método consiste em comparar a população final e inicial, considerando as taxas específicas de mortalidade às quais a população esteve exposta no período. A diferença obtida entre a população esperada, conforme o padrão de mortalidade, e a população recenseada representa o saldo migratório para aquele período e grupo etário4. A análise da mobilidade populacional a partir dos levantamentos de campo foi organizada de duas formas:

a primeira tem ênfase nos donos das propriedades entrevistadas, buscando os fluxos dos que venderam e se mudaram da propriedade e os atuais donos (2009) que não moram na propriedade entrevistada; a segunda, com ênfase nos dados de história reprodutiva, averiguando a localização dos filhos em 2003 e em 2009. Com tais informações, foram construídas análises descritivas sobre a origem e o destino, assim como sobre a composição da população móvel, eventualmente recorrendo a outras características demográficas e quesitos dos questionários. A combinação das duas abordagens – aquela a partir dos censos e a outra baseada em trabalhos de campo – permite trabalhar com os processos vigentes em Santarém, possibilitando o entendimento de determinados fluxos a partir das reflexões provindas dos dados de campo. Os resultados apresentados a seguir – as categorias de migração, os tipos origem-destino e a composição da população migrante – buscam subsidiar a discussão sobre em que medida os processos identificados diferem ou não das descrições contidas no referencial teórico de fronteira agrícola na Amazônia.

RESULTADOS EVIDÊNCIAS DOS CENSOS DEMOGRÁFICOS: A ANÁLISE NO PLANO MUNICIPAL Santarém esteve sempre entre os municípios mais populosos do Pará. Em 1991, com 265.062 habitantes, ocupava a segunda posição no estado. As emancipações de novos municípios após 1988 a definiram como o terceiro município no estado com maior população (262.538 habitantes) em 2000, atrás de Belém e Ananindeua, na região metropolitana. Mantendo-se na terceira colocação, a cidade chegou a 294.580 habitantes em 2010. As áreas urbanas concentram a população, com pouca variação na proporção residente urbana ao longo

Os saldos referentes ao grupo etário de dez a 14 anos foram suprimidos, pois sofrem superestimação no fluxo de imigração devido à subenumeração no registro de nascimentos.

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do tempo. Em 1991, o grau de urbanização era de 68% e em 2010, de 73%. Com o propósito de identificar o conjunto de categorias migratórias que ajudaram a constituir a população de Santarém ao longo deste período, a Figura 2 ilustra os fluxos de migração da população de 1995 a 2000. Embora não seja possível replicar este método para o período de 2005 a 2010, os fluxos identificados nesta imagem expõem a diversidade de dinâmicas e as relações do espaço urbano e rural, amparando os resultados seguintes, que dizem respeito aos saldos migratórios. A Figura 2 corresponde somente à população considerada migrante no quinquênio 1995-2000. O grupo de imigrantes, ou seja, formado por aqueles que não residiam em Santarém em 1995, representou, em 2000, o equivalente a 8% da população urbana e somente 4% da população rural. Mesmo tendo o êxodo rural como principal movimento vigente neste meio, somente 8% desta população que em 1995 residia lá emigraram, proporção que atinge 16% da população urbana. O rural de Santarém mostrou ter uma dinâmica migratória menos intensa em comparação ao meio urbano, com menor

atividade de fluxos de entrada e saída e menor impacto no volume da população. Com relação ao êxodo rural em Santarém, o movimento com destino a outro centro urbano foi mais expressivo do que o êxodo para a sede urbana do próprio município. O principal destino dos que realizaram este deslocamento foi o estado do Amazonas (54% do total de fluxos de êxodo rural). A dinâmica intraestadual (Pará) representou somente 24% desta categoria, e os principais destinos foram Itaituba e Belém. O deslocamento rural-urbano intramunicipal ocorreu em menor intensidade e não foi associado ao processo de expansão do perímetro urbano de Santarém. As áreas rurais próximas ao núcleo urbano, e convertidas em setores urbanos, foram compostas por migrantes provindos da própria sede municipal. Quanto à composição da população, o êxodo rural para o centro urbano de Santarém não mostrou predominância de sexo (51% são mulheres). A estrutura etária deste grupo migrante é marcada pela presença expressiva de população com mais de 60 anos (15%). A população com menos de 15 anos representou 11% deste grupo e o

Figura 2. Dinâmica migratória por situação rural e urbana entre os anos de 2005-2010, Santarém, Pará. Fonte: adaptado de IBGE (1991, 2000).

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grupo com idade entre 15 e 59 anos, 74%, configurando, em 2000, a idade média destes migrantes em 37 anos. Em relação à imigração rural de Santarém, os movimentos interestaduais e intraestaduais foram equilibrados; o que diferenciou esses fluxos foi a situação da origem das pessoas. Quando provindas de áreas urbanas, os municípios predominantes foram de outros estados, principalmente do Amazonas, e, quando provindas de áreas rurais, foram municípios paraenses próximos, como Monte Alegre e Alenquer. A população que realizou esses deslocamentos não mostrou predominância de sexo (51% são mulheres), sendo significativamente composta por naturais de Santarém (20% dos imigrantes rurais) e com estrutura etária jovem, idade média de 24 anos (31% do grupo com menos de 15 anos). Quando esse deslocamento teve como origem a sede urbana de Santarém, a composição da população teve maior presença de homens (56% dos migrantes) e idade média de 34 anos (8% com mais de 60 anos). Sob o ponto de vista do volume da população migrante, a conexão com áreas urbanas parece ditar o regime migratório de Santarém. Assim como foi observado na área urbana do município, o espaço rural apresenta forte relação com grandes centros urbanos, como Manaus, Belém e Itaituba. Segundo uma perspectiva regional, a emigração sobrepõe-se à imigração, tanto na área rural como na urbana. Tal atributo de repulsão em Santarém permanece no período posterior, mas com mudanças importantes, como adiante será apresentado. O saldo migratório (-41.201 pessoas) de 1990 e 2000 define Santarém como uma área com maior evasão do que entrada populacional, embora este caráter perca força no período seguinte, de 2000 a 2010 (-8.290 pessoas). Conforme consta na Figura 3, essa mudança decorre da redução do saldo migratório (SM) negativo da população urbana (de -38.859 para -512 pessoas), já que a saída líquida da população rural se intensificou (de -2.341 para -7.998 pessoas). A Figura 3 destaca também a contribuição da população feminina e masculina nos saldos migratórios.

Figura 3. Saldo migratório das décadas de 1990 e 2000, por sexo e situação de residência, Santarém, Pará. Fonte: adaptado de IBGE (1991, 2000, 2010).

Na área urbana, a redução do SM negativo foi consequência da população total, inclusive o SM dos homens passou a ser positivo no período (de -13.604 para +221 pessoas). Na área rural, o aumento do SM negativo ocorreu em decorrência do grupo masculino, que inverteu o SM na última década, de positivo para negativo (de +3.836 para -3.167 pessoas), enquanto a população feminina reduziu o SM negativo, ainda que tenha mantido seu caráter evasivo (de -6.178 para -4.831). Para compreender como os grupos femininos e masculinos influenciaram a intensificação do SM negativo da população rural de Santarém, foi feita uma análise do perfil migratório das duas décadas por estrutura etária

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dos grupos. Na Figura 4, destacam-se os padrões etários da migração nas duas décadas. Os valores em si devem ser relativizados, já que são produtos de um conjunto de pressupostos empregados no método de mensuração. A inversão do SM masculino no meio rural foi resultado da redução do SM positivo dos homens acima de 35 anos e intensificação do SM negativo dos homens com menos de 30 anos. Já a redução do SM negativo na população feminina deve-se à significativa diminuição da saída líquida do grupo etário jovem, sobretudo de 20 a 30 anos. Ao comparar o perfil migratório dos homens e das mulheres para o período de 2000-2010, há praticamente uma sobreposição, convergindo a padrões etários semelhantes – efeito também observado no urbano. Em resposta a essas transformações, a razão de sexo5 da população rural em 2000 caiu de 113 para 111 em 2010. O quadro migratório regional de Santarém indicou a importância do êxodo rural na consolidação do espaço

rural do município, mas revelou a diversidade de categorias de mobilidade, apontando para processos poucos debatidos pela bibliografia, como a migração urbano-rural. A intensificação do SM rural negativo realmente sustenta a percepção de esvaziamento do meio rural, porém a emigração não revelou ser significativa em termos de volume da população. Do ponto de vista da composição da população, os padrões migratórios da emigração apontaram para uma mudança nos diferenciais de sexo dos fluxos. Os resultados obtidos nos levantamentos sociodemográficos, apresentados a seguir, colaboram para debater esses apontamentos.

EVIDÊNCIAS DO LEVANTAMENTO SOCIODEMOGRÁFICO: A PERSPECTIVA INTRAMUNICIPAL As informações dos levantamentos sociodemográficos permitiram construir análises migratórias para dois estratos

Figura 4. Saldo migratório das décadas de 1990 e 2000, por grupo etário da população feminina e masculina residente no meio rural de Santarém, Pará. Fonte: adaptado de IBGE (1991, 2000, 2010). Razão de sexo expressa o número de homens para cada 100 mulheres.

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populacionais: os deslocamentos realizados pelos donos das propriedades analisadas, movimentos que refletem o comportamento da população mais envelhecida; e os deslocamentos realizados pelos filhos dos donos, movimentos que representam o comportamento da população mais jovem. As 311 propriedades entrevistadas em 2003 se transformaram em 392 em 2009, em função do parcelamento fundiário por herança ou venda. Partindo deste conjunto de propriedades nos dois momentos, a análise migratória referente ao estrato populacional dos mais envelhecidos refere-se a 128 dos 311 donos em 2003 que venderam seu patrimônio no período de análise, e a 125 dos 392 donos que permanecem proprietários, mas que não residiam na propriedade amostrada em 2009. Primeiro, foi analisado o destino dos 128 donos que deixaram a propriedade por venderem seu patrimônio no período. A permanência no município foi a opção majoritária, sem preferência por áreas urbanas ou rurais. Optaram por residência na sede municipal urbana de Santarém 34% dos 128 ex-donos, e 32% mudaram para outra propriedade rural. O movimento rural-urbano foi realizado por um grupo mais envelhecido, com idade média do casal6 de 64 anos em 2009, em comparação com a idade média de 51 anos entre os que permaneceram no ambiente rural. A mudança

para outros municípios foi realizada somente por 13% de antigos donos. Em 21% dos casos, não foi possível obter informação sobre o paradeiro do antigo dono. A segunda análise deste estrato populacional refere-se aos deslocamentos notificados entre os 125 donos que residiam em outro local em 2009, permanecendo donos da propriedade amostrada em 2003. A maioria continuou no próprio município e não houve preferência por um domicílio urbano ou rural, já que 38% foram para a sede municipal e 36% trocaram de propriedade rural. A idade média (58 anos) dos casais que optaram por uma residência urbana foi maior em relação aos que permanecem na rural (51 anos). O deslocamento para outro município foi realizado por somente 10% dos 125 donos. Não foi possível identificar a localização da nova residência em 16% dos casos, não sendo descartada a possibilidade de óbito. Para a análise do estrato populacional com estrutura etária jovem, foram analisados os filhos de 327 chefes de domicílios, referentes às unidades domésticas que continuaram existindo em 2009. De um total de 2.892 filhos, somente 372 realizaram algum movimento espacial no período, conforme consta na Tabela 1. As categorias de mobilidade que se conectam a Santarém receberam maior destaque nos resultados.

Tabela 1. Área de origem em 2003 e de destino em 2009 referente aos deslocamentos espaciais realizados pelos filhos dos proprietários entrevistados, levantamento sociodemográfico feito em Santarém, Pará. Fonte: Projeto “Amazonian deforestation and the structure of household”, em cooperação entre a Universidade Estadual de Campinas e a Indiana University, Santarém, Pará, 2003-2009 (dados não publicados). Residência 2003

2009 Propriedade

Santarém

Pará

Outro estado

Total

Propriedade

-

167

28

42

237

64

Santarém

35

-

24

30

89

24

Pará

6

15

-

2

23

6

Outro estado

2

16

5

-

23

6

Total

43

198

57

74

372

100

% Total

12

53

15

20

100

-

Idade média calculada considerando-se o(a) proprietário(a) e cônjuge, quando existente.

6

423

% Total


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A modalidade de deslocamento preponderante foi a saída da propriedade dos pais e a permanência no município de Santarém (45% dos 372 filhos migrantes). Nos casos em que os filhos foram para a sede municipal urbana (61 filhos), a idade média foi de 22 anos, o sexo predominante foi masculino (55%) e não houve predominância de nenhum estado civil. Nos casos em que os filhos foram para outra propriedade rural (106 filhos), a idade média foi de 28 anos, o sexo predominante foi feminino (55%) e a maioria é composta por casado/amasiado, coincidindo o momento de saída da casa dos pais com o casamento. Os filhos que emigraram do município de Santarém somaram 124 casos, parte tendo como origem a propriedade dos pais (70 filhos) e parte emigrando de outras áreas do município, seja de ambiente rural seja de urbano (54 filhos). Do total dos 124 filhos que deixaram Santarém, 58% tiveram como destino outros estados da federação e 42%, outros municípios do estado do Pará, tendo como preferência áreas urbanas. O movimento interestadual foi realizado por um grupo com idade média de 27 anos em 2009, sem predominância de sexo (53% homens) e tendo como destino principal municípios dos estados do Amazonas e do Amapá. O movimento intraestadual (Pará) foi realizado por filhos com idade média de 31 anos, sem predominância de sexo (51% mulheres) e tendo como destino principal municípios próximos, como Monte Alegre e Juruti. A migração de retorno somou 39 casos, em que metade dos filhos deixou outro estado da federação (predominantemente Amazonas) e metade deixou outros municípios paraenses (como Belém, Itaituba, Monte Alegre e Almeirim). O destino no município de Santarém foi primordialmente o meio rural, a idade média dos filhos foi de 31 anos, o sexo predominante foi masculino (66% dos filhos) e o estado civil majoritário foi casado. Aos deslocamentos, associam-se mudanças na estrutura fundiária das 311 propriedades entrevistadas em 2003. A consolidação a outras terras, com propósito de aumentar o tamanho das propriedades, ocorreu em 20

situações. Em metade delas, foi notificada a presença de novos donos, embora a maioria não residisse na área. Já a divisão de propriedades, por questão hereditária ou comercial, foi verificada em 44 casos, em um processo de criação de 69 novas parcelas em 2009 (113 propriedades no total). A divisão territorial foi mais intensa entre as propriedades com menos de dez hectares, intensificando a existência de propriedades com extensões diminutas. Em 2009, 42% das 113 parcelas criadas pós-fragmentação tinham menos de um hectare e 27%, entre um a cinco hectares. A Figura 5 mostra a mudança fundiária, considerando o computo geral das 311 propriedades em 2003 e das 392 propriedades em 2009. A tendência foi de multiplicação de micropropriedades e redução das propriedades com mais de 50 hectares.

Figura 5. Variação no número de propriedades rurais no intervalo de 2003 a 2009, por categoria de tamanho das propriedades entrevistadas no levantamento sociodemográfico em Santarém, Pará. Fonte: adaptado do Projeto “Amazonian deforestation and the structure of household,”, em cooperação entre a Universidade Estadual de Campinas e a Indiana University, Santarém, Pará, 20032009 (dados não publicados).

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Esse efeito potencializou o aumento da densidade populacional nessas áreas, não só pela redução do tamanho da propriedade, mas, sobretudo, pelo potencial que a fragmentação tem para atrair população. Quando considerada a área original da propriedade, em 2009, somando-se as parcelas criadas pós-fragmentação, o número médio de moradores aumentou de oito para dez. A transformação de tais propriedades promoveu pequenas áreas com alta densidade populacional, além da presença de estabelecimentos comerciais, áreas de uso comum (escolas e galpões comunitários) e de elementos referentes à infraestrutrura do lugar (posto de saúde e abastecimento de água). Tais vilas aproximam-se de uma realidade urbana, com maior contribuição das atividades não agrícolas na renda das unidades domésticas. A mudança na estrutura fundiária complementa o entendimento da dinâmica populacional contemporânea em Santarém, na medida em que está vinculada aos processos migratórios descritos nos dados do levantamento sociodemográfico. A perspectiva intramunicipal e uma visão mais detalhada dos processos complementam o quadro regional do censo demográfico e traz elementos que se contrapõem a imagens predominantes em abordagens de fronteira agrícola. Conforme discussão a seguir, a formação de latifúndios e esvaziamento do rural não expressam plenamente o quadro empiricamente observado.

DISCUSSÃO O referencial consultado para discutir a dinâmica populacional na Amazônia foi concebido na conjuntura da expansão da fronteira agrícola em 1970. A narrativa considera o caráter masculino das áreas rurais e o potencial de atração que as áreas urbanas exercem sobre os jovens, especialmente as mulheres. A dinâmica demográfica

interna da fronteira seria regida pela inserção do modo de produção capitalista e a subsequente pressão exercida sobre os pequenos produtores. Intensamente pautado no êxodo rural, tem-se a concepção do esvaziamento do espaço rural e a intensificação da urbanização pelo crescimento dos centros urbanos municipais. Com a recente expansão da soja na região de Santarém, este referencial de senso comum foi novamente evocado para descrição e previsões dessa área. Neste trabalho, questiona-se a pertinência deste modelo teórico diante da complexa configuração dos espaços rurais da Amazônia contemporânea. De uma perspectiva geral, o retrato de Santarém em 2010 parece corroborar aspectos esperados da dinâmica migratória na fronteira agrícola. Com a expansão do agronegócio, a área rural tende a expulsar mais do que atrair população, com forte movimento de êxodo rural. O núcleo urbano cresce, e passa a receber expressivo contingente populacional. A emigração rural é caracterizada por migrantes jovens, sobretudo por mulheres. A população rural é composta, em sua maioria, por homens, assim como por mulheres no meio urbano. Entretanto, a análise temporal das mudanças ocorridas no período indica alterações em tais tendências. O fortalecimento do caráter de evasão populacional das áreas rurais não foi justificado pelo comportamento das mulheres jovens. Esse segmento populacional teve saldo migratório negativo reduzido pelo arrefecimento de suas emigrações, em oposição ao grupo masculino7. Os homens jovens passaram a ter um padrão migratório muito próximo ao das mulheres, incrementando seu saldo migratório negativo, independente do destino urbano ou rural. Em conjunto com o comportamento dos homens mais envelhecidos 8, esse foi o grupo

A mudança no saldo migratório dos jovens adultos pode ter sido ocasionada pela variação na imigração ou na emigração deste grupo etário. A determinação de qual processo é responsável pela oscilação no saldo migratório foi baseada nas análises dos filhos dos proprietários (levantamento sociodemográfico). 8 Não há informações suficientes para atribuir a redução do saldo migratório positivo como efeito do aumento da emigração ou redução da imigração da população rural adulta. 7

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populacional responsável pelo incremento negativo do saldo migratório rural de Santarém. Em relação ao movimento clássico de êxodo rural, tal se confirmou como uma categoria migratória recorrente e expressiva, realizada por fluxos independentes de migrantes jovens e idosos. Entretanto, a associação entre esta categoria migratória e a percepção de esvaziamento rural não é consistente. Esse deslocamento não está necessariamente associado com a dissolução dos vínculos com o rural, como se pressupõe. Em muitos casos, a evasão do rural realizada pelos donos entrevistados ocorreu com a permanência de parentes residindo na propriedade, como irmãos e filhos. Já no êxodo dos jovens, a relação entre parentes pode permanecer após a emigração, pelo efeito de multilocalidade da unidade doméstica, por exemplo, por meio de transferências financeiras (Padoch et al., 2008; Pinedo-Vasquez; Padoch, 2008; VanWey et al., 2012). Os laços de família e a complexa relação entre urbano e rural são elementos necessários na compreensão dos significados e efeitos do êxodo rural. Tendo em vista essas constatações, o estudo reforça a importância de se criar análises migratórias, desagregando-se a composição e a estrutura dos fluxos, de forma a não se ater unicamente aos indicadores sintéticos. De igual modo, esta pesquisa mostra que há processos que só podem ser compreendidos em nível local, tendo na sua essência valores sociológicos. Essas comprovações revelam a complexidade das dinâmicas vigentes em áreas sob expansão do agronegócio na Amazônia – como é o caso de Santarém –, que só foram percebidas pelo conjunto de dados diversificados e técnicas de análises migratórias empregados neste trabalho. A partir dessa abordagem metodológica, que levou em conta algumas dinâmicas socioespaciais, verificou-se que a transição urbana é um processo significativo no curso da fronteira e crucial para contemplar as diferentes faces da Amazônia contemporânea. Destaca-se aqui o processo denominado de urbanização incipiente do

rural, quando alguns pequenos e dispersos aglomerados populacionais estabelecidos em um mosaico de micropropriedades passam a cultuar valores e atividades de caráter urbano. Este fenômeno de urbanização visto em Santarém sustenta o que Monte-Mór (1994) conceitua como urbanização extensiva. Para o autor, a urbanização expande-se para além das cidades, ao disseminar condições urbanas de produção e sentidos de modernidade, fazendo com que as fronteiras entre os espaços rural e urbano sejam cada vez mais difusas (Silva; Del Grossi, 1998; Monte-Mór, 2006). Estar ciente da dissolução da dicotomia rural-urbana é essencial para refletir sobre os elementos averiguados em Santarém e articular, de forma mais coerente, a urbanização no contexto da fronteira agrícola. À medida que o espaço rural se aproxima das condições urbanas, ocorre redução na produção de alimentos notificada em Santarém, associada à expansão da soja por Carvalho e Tura (2006), sendo isto também consequência desta nova configuração rural, com propriedades cada vez menores e atividades não agrícolas mais valorizadas (Silva; Del Grossi, 1998). Essa transformação nos valores rurais ajuda a explicar as mudanças nas tendências de migração de jovens homens e mulheres averiguadas em Santarém, já que os fatores de atração e de repulsão populacional sofrem modificações significativas e alteram a percepção de oportunidades desses jovens. Essa perspectiva prova que o conhecimento sobre a urbanização na Amazônia é ainda incompleto, e que a compreender da forma como o referencial descreve, a partir do número de cidades e do volume de sua população, constrói uma figura equivocada do seu real significado, como já alertava Becker (2005, 2013). Não só a associação entre o êxodo rural e a expansão do perímetro urbano não ocorreu, como também, do ponto de vista demográfico, há uma simplificação das dinâmicas migratórias que explicam a urbanização.

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O reconhecimento do processo de urbanização rural complexifica a visão da fronteira agrícola, mas, sobretudo, revela dinâmicas migratórias latentes nas discussões. Especificamente duas modalidades migratórias destacam-se: a primeira categoria é a circulação intramunicipal, apresentada como mobilidade intrarrural; a segunda é a imigração para o rural de Santarém. Tais movimentos chamam a atenção por contradizerem o caráter esperado das áreas de fronteira, de evasão rural e de esgotamento do espaço para unidades familiares. Em função do volume ou da invisibilidade por questões metodológicas, essas são categorias migratórias usualmente negligenciadas nos estudos, mas que se apresentaram como relevantes no entendimento da dinâmica do munícipio. A mobilidade intrarrural associa-se à redistribuição espacial da população rural, promovendo os microaglomerados populacionais e reformulando os valores socioculturais da área rural, no contexto da urbanização rural. Esta categoria também expõe um conjunto mais diversificado de estratégias criadas frente à expansão da agricultura capitalizada, que não somente o êxodo rural. Adicionado ao fato de que as emigrações têm baixo impacto no volume da população e que o rural não é tão dinâmico quanto o urbano nas migrações intermunicipais, pode-se afirmar que a categoria de mobilidade que dimensiona a configuração do meio rural em Santarém, do ponto de vista populacional, seria a circulação interna. A imigração rural, por sua vez, coloca em questão uma categoria migratória pouco explorada, a migração de retorno. A proporção de um contingente populacional com menos de 15 anos, a presença de naturais de Santarém e a preferência por uma residência rural no regresso da segunda geração dos donos entrevistados reforçam que esta categoria tem um perfil de migração familiar de retorno. Tendo em vista o que outros autores têm buscado discutir, a emigração dos jovens pode não ser permanente, havendo o retorno do membro após um período na cidade (Kruger, 1998; Rudel et al., 2002; Dufour; Piperata, 2004).

Essas duas modalidades apontam para o que Diniz (2003) coloca como necessário na compreensão da fronteira: a importância do vínculo com o espaço rural, a identidade com o lugar, o capital social e o patrimônio familiar. Além disso, reforça a fragilidade na usual ênfase no êxodo rural em análises da dinâmica demográfica da fronteira agrícola, sobretudo no contexto do agronegócio. Os resultados mostram que a evasão do rural não é a decisão majoritária frente à expansão da soja, assim como sugerem a existência de um ciclo em que filhos jovens e solteiros vão em direção aos grandes centros e, depois, retornam do município ao meio rural já casados, com cônjuge e filhos. Com isso, o cenário de esvaziamento populacional ditado pelas referências adquire outros contornos, pelo efeito conjunto de concentração populacional. Por um lado, a inserção do modo de produção capitalista exerce força de expulsão populacional e de concentração de terras; de outro, o adensamento em pequenas áreas consolida povoados com capacidade de atrair novos moradores, oriundos das áreas agrícolas, com soja e com outras áreas, estimulando novas fragmentações e vendas de terras. Do ponto de vista migratório, no centro dessas dinâmicas estão a mobilidade intrarrural e a imigração rural. Lado a lado, as duas dinâmicas estimulam a formação de grandes propriedades e a multiplicação de micropropriedades, efeito denominado de polarização fundiária (D’Antona et al., 2011), e reordenam as práticas sociais dessas áreas. Consequência do amplo conjunto migratório apresentado neste estudo, ocorre a reconfiguração do meio rural, que, ao mesmo tempo, reformula os padrões de migração, criando um modelo retroalimentar e dinâmico. No cerne desse processo, destacam-se as relações de família, o vínculo e a identidade com o rural como elementos centrais no entendimento da consolidação do espaço e da composição das populações – aspectos que merecem investigações específicas.

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CONCLUSÃO Como afirmaram Schmink e Wood (1992), a dinâmica de uma fronteira é gerida pelos condicionantes macroestruturais que se processam no plano regional, mas as transformações do meio ocorrem no nível local desses elementos. O estudo fortalece a importância dessa linha de pensamento. A discussão clássica sobre fronteira agrícola mostrou-se insuficiente do ponto de vista demográfico e fundiário, além de reproduzir uma visão simplificada do meio rural e meramente contraposta ao urbano. A identificação de processos de urbanização incipiente do ambiente rural mostrou a complexidade da transformação em Santarém e confirmou que o referencial de fronteira agrícola na Amazônia elucida somente parte dos processos contemporâneos. Dessa perspectiva, entende-se que o conceito de fronteira permanece válido, embora seu modelo teórico necessite ser ampliado em consonância com as ideias de Becker (2009), a qual prevê a coexistência de múltiplas fronteiras que se processam em diferentes escalas geográficas. Os processos migratórios são culturalmente produzidos e culturalmente expressos, demandando uma perspectiva que seja capaz de captar os significados, motivações e estratégias nas nuanças da mobilidade da população (Diniz, 2003). A partir da adoção de metodologias capazes de capturar os valores e efeitos da diversidade de categorias de mobilidade populacional em Santarém, mostrou-se que a fronteira agrícola na Amazônia contemporânea, neste caso, orientada pela produção em larga escala de grãos, é plural e complexa, de forma a expandir o escopo teórico-metodológico necessário para compreender tais regiões. AGRADECIMENTOS Os autores agradecem à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa concedida à primeira autora, e ao National Institute for Child Health and Human Development, pelo suporte financeiro ao Projeto “Amazonian deforestation and the structure of household” (R01HD035811).

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Agriculture itinérante sur brûlis (AIB) et plantes cultivées sur le haut Maroni: étude comparée chez les Aluku et les Wayana en Guyane française Slash and burn agriculture and plant cultivated on upper Maroni: comparative study among Aluku and Wayana peoples in French Guiana Marie FleuryI I Muséum National d’Histoire Naturelle de Paris. Paris, France

Résumé: Vers la fin du 18e siècle, les Noirs marrons Aluku, descendants d’esclaves rebelles fuyant les plantations hollandaises et les Amérindiens Wayana, arrivant du Brésil, où ils fuyaient les chasseurs d’esclaves, se sont rencontrés sur le haut Maroni, en Guyane française. Ce partage d’un même lieu de vie a été l’occasion d’échanger un grand nombre de techniques, notamment en ce qui concerne l’agriculture itinérante sur brûlis, et les plantes cultivées. Toutefois notre étude montre que le culte des ancêtres chez les Noirs marrons a modifié leur cycle cultural (via la culture du riz), influençant ainsi leur gestion de l’environnement. De même la nature et la diversité des plantes cultivées diffèrent sensiblement en fonction des usages traditionnels et habitudes culinaires des deux sociétés. Les Aluku ont sélectionné de nombreuses espèces et variétés de plantes qui leur sont propres et sont liées à leurs racines africaines. Les Amérindiens cultivent des plantes spécifiques utiles au chamanisme (tabac) et à leur artisanat traditionnel. De plus, leur perception de la nature implique des pratiques cultuelles différentes notamment avant le défrichage. Cette étude illustre l’influence de la diversité culturelle sur la gestion de l’agrobiodiversité et, de manière plus générale, sur l’adaptation de l’homme à son environnement. Mots clés: Agriculture itinérante sur brûlis. Abattis. Guyane Française. Noir marrons aluku. Amérindiens wayana. Plantes cultivées. Agrobiodiversité. Abstract: In the late 18th century, Aluku Maroons, descendants of rebel slaves from Dutch plantations and Wayana Indians, fleeing from Brazilian slave hunters met on the upper Maroni in French Guiana. They shared the river and several techniques of subsistence, including slash and burn agriculture, and cultived plants. However our study shows that ancestor worship among the Maroons impacts their crop cycle (through the cultivation of rice) and influences their environmental management. Similarly the nature and diversity of crops differs significantly based on traditional cooking habits and practices of both populations. Aluku selected a lot of species and varieties of plants that are their own and are linked to their African roots. The Indians grow useful plants specific to shamanism (tobacco) and their traditional crafts. Moreover, their perception of nature involves different cultural practices including before clearing. This study illustrates the influence of cultural diversity on the management of agro-biodiversity and more generally on the adaptation of man to his environment. Keywords: Slash and burn agriculture. French Guiana. Aluku Marrons people. Wayana Amerindians. Crops. Agrobiodiversity.

FLEURY, Marie. Agriculture itinérante sur brûlis (AIB) et plantes cultivées sur le haut Maroni: étude comparée chez les Aluku et les Wayana en Guyane Française, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 2, p. 431-465, maio-ago. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000200006. Autora para correspondência: Marie Fleury. Muséum National d'Histoire Naturelle de Paris, UMR PALOC, Cayenne, Guyane Française. (fleury@mnhn.fr). Recebido em 07/01/2014 Aprovado em 13/07/2016

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Agriculture itinérante sur brûlis (AIB) et plantes cultivées sur le haut Maroni: étude comparée chez les Aluku et les Wayana en Guyane française

AVERTISSEMENT La jouissance et l’exercice de l’ensemble des droits directs et indirects acquis, ou susceptibles de l’être, sur la base de la présente publication se font sous réserve des droits des communautés locales créatrices ou détentrices des savoirs mentionnés dans la présente publication conformément aux différentes règles pertinentes applicables en la matière (entre autres article 8j) de la Convention sur la diversité biologique (CDB) et les multiples décisions subséquentes de la Conférence des parties à la CDB. INTRODUCTION: évolution de l’AGRICULTURE ITINERANTE SUR BRÛLIS dans le sud de la guyane L’agriculture itinérante sur brûlis est la forme d’agriculture la plus ancienne pratiquée dans les forêts tropicales. Son apparition remonterait à 8600 ans BP en Amérique, 8 000 ans BP en Asie, et 5 000 ans PB en Afrique. Elle est pratiquée par 300 à 500 millions de personnes et utilise un tiers des sols exploitables dans le monde (Giardina et al., 2000). C’est un système agraire dans lequel le champ est défriché par le feu1 pour être cultivé pendant une période brève pour être ensuite mis en une jachère le plus souvent forestière à longue révolution (Conklin, 1957). En Guyane, cette forme d’agriculture de subsistance représente la majorité des terres cultivées. Cette tendance se maintient dans le temps, comme nous le montrent les

données chiffrées. En 1997, 90% des exploitations, la plupart situés dans le sud de la Guyane, reposent sur une surface de moins de 5 ha organisée en abattis2 (Grandisson, 1997, p. 57). En 2010 (Agreste, 2011) la configuration est la même comme le montrent les données de la Direction de l’Agriculture et de la Forêt (DAF): 87% des abattis se concentrent dans les huit communes du sud (Agreste, 1996) et y représentent 81% des terres agricoles. A l’inverse, dans le nord du département seulement 5% des terres sont consacrées aux abattis, dont seulement un tiers en culture itinérante. L’agriculture a donc tendance à se sédentariser sur le littoral avec des cultures pérennes (riz, cultures maraîchères, arbres fruitiers, etc.), tandis que le système traditionnel de la culture itinérante sur brûlis persiste dans le Sud. Ainsi sur la commune de Maripasoula, en 1995, sur 322 exploitations agricoles, 316 sont des abattis représentant 451 ha pour 482 ha, soit 93,6% de Surface Agricole Utilisée3. D’une manière globale, la proportion d’abattis par rapport au nombre total d’exploitations est même en augmentation passant de 76% en 1980, à 90% en 2000 (Tsayem Demaze, 2008a). Cette tendance s’est confirmée par la suite, puisque le nombre d’exploitations agricoles continue à croître en Guyane passant d’un peu plus de 2000 en 1980 à près de 6 200 en 2010 avec une hausse de la SAU de seulement 8% (25 133 ha). En bref, la surface agricole a triplé entre 1980 et 2010, tandis que la surface occupée par les abattis a été multipliée par cinq. Cet accroissement est dû à une

La majorité des sols tropicaux sont acides et relativement peu fertiles (Andre, 1998). Plus de 90% des sols amazoniens ont des teneurs insuffisantes en phosphore et azote et 75% en potassium (Hecht; Posey, 1990). Le brûlis permet d’enrichir le sol en éléments minéraux. Le phosphore, en particulier, devient assimilable par les plantes, grâce à l’augmentation du pH du sol par les cendres (Richards, 1985). Le taux de phosphore serait accru de 3280%, celui du calcium de 1200% et celui du magnésium de 1000% (Levang, 1983). La pratique du brûlis présente six effets bénéfiques selon Rambo (1981): la suppression de la végétation indésirable dans le champ; une modification de la structure du sol qui facilite le semis, une amélioration de la fertilité du sol par les cendres; l’abaissement de l’acidité du sol, l’accroissement de la disponibilité des nutriments contenus dans le sol et sa stérilisation qui induit une réduction des populations microbiennes, d’insectes et de mauvaises herbes. Des travaux récents de l’Institut de Recherche pour le Développement (IRD) montrent que, contrairement aux idées reçues, l’agriculture sur brûlis diminuerait l’effet de serre, par stockage de carbone organique dans la terre, suite au brûlis et au lessivage des sols par la pluie (Chaplot et al., 2008). 2 Soit en “parcelle ou ensemble de parcelles obtenues au détriment de la forêt, gérée par une ou plusieurs personnes répondant à la satisfaction continuelle des besoins et dont la pérennité est essentiellement assurée par la pratique de la défriche-brûlis et de la jachère“ (Grandisson, 1997, p. 57). 3 Service central des Enquêtes et Études statistiques (SCEES)-Recensement agricole 1993/1995 1

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augmentation du nombre d’exploitations le long des grands fleuves de l’intérieur, lui-même étant lié à un fort taux de croissance démographique (Lambert, 2011). En effet la population de l’intérieur guyanais, même si elle ne représente que 10% de la population totale, a grandi de 70% entre 2 000 et 2010, soit deux fois plus vite que sur le littoral (Agreste, 2011). Ces données sont peut-être sous-estimées puisque 70% des agriculteurs installés exercent sans titre (IEDOM, 2009). En effet, pour des raisons historiques, 90% du foncier relève du domaine privé de l’Etat (Calmont, 2000) ce qui représente une contrainte forte en termes d’accès au foncier pour les agriculteurs, d’autant que certains d’entre eux n’ont pas de papiers français. Selon les articles R 170-31 à R 170-45 du Code du Domaine de l’État, la demande de terres agricoles peut se faire sous forme de bail emphytéotique, de cession onéreuse, ou de concession. Les articles cités ont toutefois été modifiés par décret le 19 octobre 2007 pour prendre en compte “l’agriculture sur abattis à caractère itinérant“ (Appendice). La superficie maximale accordée par exploitation passe ainsi de 5 à 20 ha pour une durée initiale de 5 ans, reconduite de façon tacite dans la limite de 20 ans. On n’exige plus le défrichement total de la parcelle dès la première année, comme c’était le cas auparavant. Ce décret applicable uniquement dans certaines communes de l’intérieur, représente une avancée notable en termes de reconnaissance officielle de l’agriculture itinérante sur brûlis (AIB) en prenant en compte la jachère dans le système agricole.

PRESENTATION DU CONTEXTE ET problematique LOCALISATION DE L’ETUDE L´étude a été menée sur le haut Maroni, fleuve-frontière avec le Surinam, au sud-ouest de la Guyane (Figure 1). La commune de Maripasoula, la plus grande de France, couvre

18 360 km2 (21, 8 % de la Guyane) et jouxte le Surinam à l’ouest et le Brésil au sud. Sa population estimée à 636 habitants en 1967, 3 710 habitants en 1999, 6 596 en 2008 a atteint 9 970 habitants en 2012, d’où une densité actuelle de 0,54 habitant/km2. Cette forte croissance démographique est liée en partie à la reprise de l’activité aurifère dans la région à partir des années 90, avec un fort impact territorial, social et environnemental. Les Aluku représentent environ 54% de la population, les Amérindiens 20% (Ayangma, 2015) . Couverte de forêt dense tropicale humide, la région est accessible uniquement par avion ou par pirogue en remontant le fleuve Maroni. Y vivent des populations amérindiennes, businenge4, créoles, haïtiennes, surinamaises, brésiliennes, pratiquant presque toutes l’agriculture sur brûlis au sein d’un système pluriactif mêlant activités traditionnelles, salariées et commerciales. Nos enquêtes se sont déployées sur plusieurs sites: le bourg de Maripasoula, les villages wayana de Elahé, Twenké et Antécume pata, situés sur la même commune et, à des fins comparatives, un village traditionnel aluku (konde), Loka sur la commune de Papaïchton, limitrophe de Maripasoula et considérée comme la “capitale“ du pays aluku.

PROBLEMATIQUE Notre étude5 compare les techniques agricoles et la biodiversité cultivée chez deux populations aux systèmes sociaux et culturels contrastés: - Les Aluku ou Boni, descendants d’esclaves rebelles échappés des plantations hollandaises au 18e siècle (Businenge). La société aluku, marquée par ses racines africaines, est matrilinéaire: le système de parenté passe par les femmes et le finage est réparti en fonction des matrilignages. Leur pratique du culte des Ancêtres a pour effet de fixer les villages traditionnels (konde), intégrant les lieux de cultes. Parallèlement, de petits campements (kampu),

Terme utilisé pour désigner les populations de Noirs marrons (ou Quilombolas au Brésil). Elle s’est déroulée dans un premier temps dans le cadre d’un programme européen sur l’avenir des peuples de la forêt (APFT), financé par la DG VIII de l’Union Européenne puis d’un programme de recherche sur l’agriculture traditionnelle et la réduction du temps des jachères (SOFT) financé par le ministère de l’Environnement.

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Figure 1. Carte toponymique de la Guyane. Source: atlas de Guyane, (Barrère, 2001).

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souvent installés près des parcelles cultivées (abattis), servent d’habitats temporaires. - Les Wayana, Amérindiens de famille linguistique karib qui, à l’opposé, avaient jusqu’à une époque récente, un mode de vie traditionnel semi-nomade. En effet, leurs villages étaient régulièrement déplacés: un nombre trop important de décès dans le village, le manque de ressources (gibier, poisson), ou encore l’accessibilité à de nouvelles terres cultivables étaient autant de raisons de déplacer l’habitat et accéder à d’autres territoires. Depuis les années 50, et surtout depuis 1969, date de la création des communes et début de la construction des écoles et des dispensaires, on assiste à une sédentarisation des villages wayana le long du Litani et du Tampok. Les Aluku, quant à eux, ont dû restreindre leurs séjours dans les campements en raison de la scolarité de leurs enfants dans les plus gros bourgs. Ce changement des modes d’habitats, entraîne une concentration de population autour de plus gros villages, ce qui rend parfois l’accès aux terres cultivables problématique avec pour corollaire une diminution du temps de jachère (Renoux et al., 2007). Notre problématique concerne l’influence des choix culturels, sur les plantes cultivées et les pratiques agricoles, et donc plus largement sur la gestion de l’environnement. Un éclairage historique de la situation actuelle est donné par la comparaison de nos relevés effectués entre 1990 et 2000 à celles de Jean Hurault qui a travaillé dans cette région dans les années cinquante (Hurault, 1961, 1965, 1968). Après une description du système agricole et des pratiques cultuelles associées, nous aborderons l’évolution de l’agriculture sur brûlis sous l’influence de l’urbanisation. Nous soulignerons enfin l’importance sociale et culturelle de l’agriculture traditionnelle chez ces populations du haut Maroni, notamment à travers l’étude de la diversité des

espèces et variétés cultivées. Les noms des cultivars sont de précieux indicateurs des échanges et des réseaux sociaux mis en jeu dans cette activité.

PRESENTATION DU CONTEXTE PHYSIQUE ET HUMAIN: LA REGION DE MARIPASOULA La Guyane fait partie du bouclier guyanais qui couvre les trois Guyanes, la partie nord-amazonienne du Brésil et la pointe orientale de la Colombie et du Venezuela. En Guyane, ce socle ancien est constitué de roches magmatiques, volcaniques, volcano-sédimentaires et sédimentaires. Tous les terrains du socle sont recouverts d’une formation latéritique épaisse qui peut atteindre plus de cinquante mètres. La commune de Maripasoula est située dans la ceinture de roches vertes6 qui traverse la Guyane de Maripasoula à Camopi. La région est caractérisée par une association de sols ferralitiques typiques lessivés et appauvris, et de sols hydromorphes minéraux sur terrasses et alluvions fluviatiles de fonds de vallée. La région de Elahé-Twenké (villages wayana) correspond à la juxtaposition de ces deux types de sols. La région de Loka (village aluku) est caractérisée par une association de sols ferralitiques typiques, remaniés et rajeunis sur complexe vulcanosédimentaire de la série Paramaca. En général, les sols sur terres hautes sont peu fertiles. Dans un tel contexte, les qualités physiques de ces sols seront primordiales et déterminent finalement le choix d’utilisation, les sols les plus intéressants du point de vue fertilité chimique étant ceux qui dérivent des massifs basiques de “roches vertes“ (Blancaneaux, 2001, p. 50). En conclusion, la région de Maripasoula se situe sur des terres sont un peu plus fertiles que les terres hautes tout en restant très médiocres. La pluviométrie moyenne y est de 2 500 mm avec une température moyenne annuelle de 26°,6 (Barret, 2001).

C’est une formation volcano-sédimentaire métamorphisée au contact des intrusions néo-transamazoniennes et méso-transamazoniennes (Marteau; Vasquez-Lopez, 2001, p. 40).

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LE SUD DE LA GUYANE A TRAVERS L’HISTOIRE Avant la conquête par les Européens, la région des Guyanes était le point d’aboutissement de différentes migrations amérindiennes venant de l’ouest (Trinidad, Venezuela) et du sud (Brésil). Au début du 17e siècle, environ 30 000 Amérindiens peuplent la région qui deviendra la Guyane française (Figure 2). C’est au cours

de ce siècle que les Français colonisent la Guyane mais, à la fin du 17e, ils ne peuplent encore qu’une petite partie du territoire, au contour encore imprécis. La question de la frontière ne sera réglée que deux siècles et demi plus tard (Hurault, 1971). Les Aluku7 sont un des derniers groupes de Noirs marrons formés dans la colonie hollandaise (actuel

Figure 2. Carte des populations des Guyane. Source: atlas de Guyane, (Barrère, 2001).

Les Boni, se font appeler Aluku depuis les années 1990, du nom d’un de leurs chefs. Boni était un chef de guerre, tandis que Aluku s’occupait de la vie dans les villages. Boni fut tué par les Ndjuka, et le groupe se considère donc comme les descendants d’Aluku. Ils parlent la langue Aluku nenge, créole d’anglais élaboré durant la période de l’esclavage.

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Surinam), au 18e siècle. Jusqu’en 1776 eut lieu une guerre acharnée contre les Hollandais, et contre leurs frères ennemis, les Ndjuka qui avaient signé dès 1760 des traités de paix avec les Hollandais, les engageant à ramener tous les nouveaux fugitifs. En fuite, les Boni traversèrent le Maroni entre 1776 et 1777 et s’installèrent du côté français, sur la crique Sparouine. La guerre continuant, les Boni remontèrent le Maroni et s’établirent le long du Lawa en 1791 tandis que les Ndjuka s’installèrent sur le Tapanahoni. (De Groot, 1984; Hoogbergen, 1985). Soulignons qu’entre 1793 et 1815, les Boni, toujours poursuivis par les Ndjuka, se réfugièrent sur le Marouini, auprès des Indiens Wayana. Cette période de contact fut fertile en échanges de savoir-faire: les Aluku apprenant aux Wayana à fabriquer des pirogues monoxyles par exemple, tandis que les Aluku empruntaient certainement des techniques agricoles aux Amérindiens. En 1815 les Aluku se réinstallèrent sur le Lawa où ils vivent encore actuellement. En 1890, le Lawa fut reconnu comme frontière officielle entre les Guyanes (hollandaise et française), et l’année suivante, en 1891, les Boni choisirent de vivre sous l’autorité française (Hurault, 1961). Le territoire de l’Inini créé en 1930 fut placé directement sous l’autorité du gouverneur de la Guyane. Il s’opposait ainsi au littoral, considéré comme le territoire de la Guyane. La Guyane devint département français en 1946 puis, en 1969, l’ensemble de la Guyane fut divisé en communes (Mam-Lam-Fouck, 1996). Jusqu’en 1969, Amérindiens et Busi-nenge peuplant l’intérieur de la Guyane, n’étaient pas considérés comme des citoyens français, mais comme des hôtes sous protectorat (Hurault, 1971). La création des communes sur tout le département, mettant fin au statut particulier du territoire (puis de l’arrondissement) de l’Inini, modifiera leur

statut, et leur permettra d’obtenir la nationalité française. Si les Aluku se sont de suite mobilisés pour l’obtenir, les Amérindiens Wayana ont attendu les années 2000 pour régulariser leur situation vis-à-vis de l’administration française et demander leur citoyenneté. En 2007 a été créé le plus grand parc national français, de 3,4 millions d’hectares, dans le sud de la Guyane. Les communes de Maripasoula, Papaïchton, Camopi et Saül sont maintenant sur le territoire du Parc Amazonien de Guyane, avec des zones de cœur et des zones de libre adhésion réglementées par la charte du Parc qui détermine les enjeux et les orientations stratégiques. La place de l’abattis y a été reconnue notamment pour renforcer l’autosuffisance alimentaire du territoire en produits agricoles et la transmission des valeurs, savoirs et savoir-faire locaux8.

CARACTERISTIQUES DU PAYSAGE SOCIO-ECONOMIQUE Le paysage socioéconomique actuel de la Guyane est caractérisé par une explosion démographique (3,5 % par an), liée d’une part à un taux de natalité très élevé (4 enfants par femme en moyenne) et de l’autre à une immigration très forte avec plus de 25% de la population immigrée. On constate également une économie informelle très développée et une mobilité très forte, en particulier chez les hommes. Un système coutumier qui côtoie le système régalien est toléré par l’Etat sans être reconnu, mises à part les zones de droit d’usage (Piantoni, 2002). Ces Zones de Droit d’Usage (ZDU) (Figure 3) ont été délimitées sur le domaine privé de l’Etat, suite à la promulgation du décret ministériel du 14 avril 1987. Elles constituent une reconnaissance du droit spécial des communautés d’habitants tirant traditionnellement leurs moyens de subsistance de la forêt9.

cf. http://www.parc-amazonien-guyane.fr/assets/labattis-au-coeur-du-developpement-de-la-guyane.pdf. Elles sont actuellement au nombre de quinze couvrant une superficie de 669 686 ha soit 8% du territoire guyanais, dont 84% dans l’intérieur forestier (Fleury et al., 2008; Davy; Filoche, 2014).

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Figure 3. Photo aérienne du bourg de Maripasoula en 2001: on visualise les différents stades de culture et de jachère des abattis, disposés en nids d'abeille autour du bourg. Cliché: Mission pour la création du Parc de la Guyane.

I- l’agriculture chez les aluku CYCLE CULTURAL ABATTAGE ET BRULAGE Les Aluku, comme les autres populations des Guyanes, ont adopté les techniques culturales des Amérindiens

(Figure 4). Ils pratiquent l’abattage et le brûlis de la zone à cultiver dans l’année. On commence par sabrer toute la surface à abattre, puis on coupe à moitié les arbres de moyen et petit diamètre, qui seront entraînés par la chute des plus gros arbres.

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Figure 4. Cycle cultural aluku.

La saison de l’ouverture des abattis va de août à décembre. On laisse sécher environ un mois avant de mettre le feu. Hurault estimait le travail de coupe d’un abattis de 0,8 ha à 20 jours de travail pour un homme seul. Ce travail a été allégé par le remplacement de la hache par la tronçonneuse et actuellement l’abattage d’une parcelle agricole requiert environ une semaine selon sa taille. Nombre de femmes vivent souvent seules avec leurs enfants, les hommes étant la plupart du temps salariés, parfois avec d’autres lieux de résidence. Il est alors fréquent que l’argent des allocations familiales serve à rémunérer des ouvriers, souvent surinamiens, afin de faire les gros travaux d’abattage. A titre d’exemple, il fallait compter, en 1999, un salaire de 3 000 FF (environ 450 €) pour le défrichage d’un abattis, 2 500 FF (375 €) pour le nettoyage, et 1 500 FF (225 €) pour “ouvrir la terre“ (faire les trous pour les plantations). Les plantations s’étendent de novembre (début des pluies) à janvier-février. En novembre ou décembre l’abattis est soigneusement sarclé à la main afin de pouvoir semer le riz à la volée, puis on plante le manioc, puis les courges, les tubercules (ignames, dachines), du maïs et

des cannes à sucre. Les arachides sont plantées à part, dans une parcelle séparée. La plantation du manioc, peut se prolonger jusqu’en février. Hurault précisait que la plantation de l’abattis d’environ un hectare demande 30 à 40 journées de travail (10 à 20 jours de sarclage, et 20 jours de plantation). (Hurault, 1965). Les récoltes commencent en mai, avec les courges et le maïs. Le riz est récolté en mai-juin. Le manioc peut être récolté huit mois après les plantations, vers aoûtseptembre. Mais parfois on continue à exploiter l’abattis de l’année précédente, si bien qu’on ne récolte le nouvel abattis qu’à partir de novembre-décembre, soit douze mois après les plantations et sur une durée d’environ un an. Les dachines10 sont arrachées en juin-juillet, tandis que les ignames sont récoltées d’août à janvier.

JACHERE Hurault (1965) définissait la jachère comme l’intervalle de temps entre deux abattages, justifiant ce fait par l’absence de sarclage et donc le développement d’une brousse en même temps que les plantes cultivées.

Les noms scientifiques des plantes cultivées sont énoncées dans le tableau en Appendice.

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Actuellement les agricultrices de Maripasoula opèrent au moins un sarclage après les plantations, parfois deux. Mais ces sarclages interviennent quand le manioc est encore jeune et que les adventices font concurrence au riz, qui ne supporte pas les mauvaises herbes. Dès que le riz est récolté et que le manioc a atteint une taille suffisante, on cesse tout sarclage: c’est le début de la jachère avec les tous premiers stades de régénération forestière: les rejets de souches, les jeunes “bois canons” (Cecropia spp.) et autres végétaux pionniers héliophiles poussent en même temps que le manioc. Ce système permet une recolonisation rapide de la parcelle par le milieu forestier dès son abandon, ce qui permet de le qualifier d’autorégénérant (Bahuchet; Betch, 2012). Dans les années 60, Hurault distinguait trois cas de figure pour la durée des jachères: - Jachère de très longue durée, dans les régions à très faible densité de peuplement: les habitants coupent un abattis en forêt primaire, ou forêt secondaire très ancienne avec pour avantage une bonne fertilité et absence de sarclage. - Jachère de très courte durée (deux ans). Sur un abattis coupé en forêt primaire deux ans plus tôt, la fertilité est acceptable. Le travail d’abattage est plus facile, et peut être fait au sabre, le brûlage (Figure 5) est également plus aisé et sans résidu. L’inconvénient de cette méthode est l’envahissement rapide par les mauvaises herbes qui oblige à un sarclage régulier. - Jachère de six ans, ce qui constituerait, selon lui, la meilleure méthode si elle pouvait être adoptée régulièrement: elle nécessite moins de travail que l’abattage en forêt primaire. En revanche, elle demande plus de travail de sarclage, car génère davantage d’adventices. Prenant en compte ces différents cas de figure, la durée moyenne de la jachère était alors de 14 ans. Hurault avait calculé qu’avec cette moyenne, la densité limite de population sur un kilomètre de rivière était de 110 personnes, soit 27 familles correspondant à 300 ha de terres cultivables.

Figure 5. Brûlage sur jachère courte, au village aluku de Loka (2000).

Lors de notre étude entre 1998 et 2000, la durée moyenne des jachères sur les parcelles étudiées était de sept ans, ce qui correspond à la méthode qualifiée par Hurault, d’optimale. Cet équilibre semblait impossible dans les années 60 à cause des ravages des fourmis-manioc, et de l’absence fréquente des hommes ce qui menait les femmes à couper sur des jachères courtes pour faciliter la tâche. Les allocations familiales permettent à présent aux femmes seules de payer des journaliers et donc de cultiver l’abattis même en l’absence de leur mari. Cette adaptation a permis l’adoption d’un système de rotation des terres avec une organisation des abattis en nids d’abeilles autour du bourg.

PRATIQUES MAGIQUES LIEES A L’AGRICULTURE SUR BRULIS La pratique de l’agriculture chez les Aluku est régie par un ensemble de règles d’accès à la biodiversité dans lesquelles le magico-religieux tient une place essentielle. En effet, dans leur système de représentation, la nature est sprituellement habitée et des divinités incarnent certains lieux, arbres, pierres ou encore termitières et animaux. Cette cosmovision entraîne un fort respect de la nature sauvage. Le défrichage représente une forme d’appropriation par l’homme d’une parcelle de forêt habituellement sous

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l’influence d’esprits et de divinités: cette appropriation nécessite des rituels complexes, afin d’engager un dialogue avec les esprits du lieu et éviter les conséquences néfastes de leur courroux (Fleury, 1991). Nous allons décrire certains rites observés à l’abattis lors du brûlis. Cette opération est particulièrement risquée selon le système de croyance aluku car l’homme peut détruire par mégarde un serpent boa, incarnation du Dieu Papa Gadu11 (ou Daguwe) ou une termitière lieu d’incarnation de Kantaasi12. On doit donc procéder à des rites propitiatoires pour éviter leur colère. Si une termitière par exemple est présente sur la parcelle à brûler, on la lave avec une décoction de kwasikwasi tiki13, en demandant aux divinités de bien vouloir changer de lieu de résidence. Si, malgré toutes les précautions prises, on brûle un serpent boa (incarné par le Dieu Daguwe (ou Papagadu) à l’abattis, celui-ci est susceptible se venger en entraînant certains désordres pathologiques au sein de la famille ou du lignage. On fait alors des bains avec Daguwe wiwii («les plantes de Daguwe»)14, auxquelles on ajoute éventuellement koto ati15 qui a pour propriété de calmer la colère. Le fait de brûler certaines pierres peut également entraîner une maladie. On doit alors laver les cailloux avec ston wiwii16 («plante pierre») et en frotter le corps du malade en s’excusant auprès de la divinité courroucée. On pratique aussi des bains rituels directement liés à la terre et à sa fécondité. Ainsi, après avoir brûlé

l’abattis, on lave celui-ci «pour refroidir17 la terre qui reste chaude après le brûlage». On peut employer pour cela l’écorce de kwataka man18 et man djadja wiwii19. On écrase les plantes dans un mortier, puis on les met dans une calebasse (gogo). Ensuite on rajoute switi sisibi20 avec de l’eau, puis on “lave l’abattis” (en fait on asperge le sol) avec le mélange: «Tu n’as pas besoin de laver tout l’abattis; tu fais juste une petite parcelle, mais tu laisses la calebasse. Ainsi quand il pleuvra la calebasse se remplira d’eau et ira laver tout l’abattis. C’est ainsi qu’il faut faire pour avoir une bonne récolte», nous a-t-on précisé. J’ai pu observer un rite similaire sur un abattis fraîchement brûlé: on avait disposé une calebasse (gogo) en hauteur sur quatre morceaux de bois croisés. La calebasse pleine d’eau contenait deux plantes: switi sisibi et pilenesi21, et en dessous était dressée une bouteille vide. Ce dispositif nous invite à une lecture symbolique: la forme de la calebasse évoque le ventre de la femme, la bouteille représente le sexe masculin. La présence de pilenesi, plante qui envahit très rapidement les cours d’eau, et celle de switi sisibi, qui envahit les abattis, symbolisent l’abondance et à la fertilité. On avait lavé l’abattis, «pour Goon gadu, (“dieu de l’abattis”) pour qu’il pousse beaucoup de manioc». On peut également utiliser weti namiao22 et lebi namiao23, deux plantes envahissantes réputées pour être dures à arracher, avec de l’argile blanche, pemba. Puis on accroche un petit tissu blanc à un bâton que l’on plante à l’entrée de l’abattis afin de demander protection au Goon gadu.

Le mot papa désigne une tribu au Dahomey (actuel Bénin), ou il existait un culte aux dieux serpents (Hurault, 1961, p. 210). Le serpent est d’une manière générale un symbole de virilité. 12 Les Kantaasi sont des divinités qui résident dans les termitières et ont des plantes propitiatoires spécifiques. 13 Casearia bracteifera Sagot, C. javitensis Kunth 14 Par exemple Geophila cordifolia Miqu. 15 Begonia glabra Aubl. 16 Anthurium gracile (Rudge) Lindl. 17 Refroidir se dit koo qui signifie aussi «calmer», cette plante est utilisée à la fois pour calmer les esprits, et le cœur. 18 Parkia pendula (Willd.) Benth. ex Walp. 19 Rolandra fruticosa (L.) O. Kuntze 20 Scoparia dulcis L., cette plante sert également de balai pour asperger lors des bains rituels. 21 Eichhornia crassipes (Mart.) Solms-Laub. Cette plante est utilisée, par ailleurs, en bain pour donner de la force. 22 Commelina erecta L. 23 Tripogandra serrulata (Vahl) Hand. 11

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Celui-ci est un Dieu local, dont le pouvoir est lié à la fécondité du sol: on doit lui faire des offrandes si on veut obtenir une bonne récolte. Autrefois il existait dans chaque habitation de culture, un lieu de culte formé d’un boucan orné de banderoles de plusieurs couleurs sur lequel, on exposait des offrandes: jus de canne, sirop, et riz finement pilé mais non cuit (Hurault, 1961). Cette pratique a disparu, mais on continue à prier “mama gadu” (Déesse de la fertilité) ou “goon gadu” (Dieu de l’abattis), pour que les plantations soient productives, ou pour attirer le soleil, lorsqu’il pleut trop. Mama Gadu a un temple à Agodé (Boniville). Elle est représentée par une statue en argile blanche, avec des seins généreux, symbole de féminité et de fertilité. C’est elle qu’on implore lorsqu’on coupe l’abattis. Quand on brûle, c’est Papa Gadu qui est invoqué. Ce sont donc les étapes de défrichage et de brûlage qui requièrent le plus d’attention: il s’agit en effet d’un passage du sauvage au cultivé, de l’état de nature à celui de culture. Cette appropriation d’un territoire par les humains sur celui des Dieux est le plus délicat et par conséquent le plus ritualisé. Les Dieux invoqués notamment Papa Gadu incarné dans le serpent symbolisant la virilité, et Mama Gadu, symbole de la féminité soulignent la complémentarité des deux sexes dans la fertilité du sol. La lecture symbolique des différents rituels met également en évidence la place importante du végétal dans le dialogue avec le Divin (Fleury, 1991).

STRATEGIES D’OCCUPATION DU SOL REGLES D’ACCES AUX TERRES Le géographe Jean Hurault, nous décrit en 1961 les règles d’accès aux terres dans le système traditionnel qui sont étroitement liées au système de parenté matrilinéaire: la société aluku est divisée en six lignages ou lo, possédant

chacun des terres collectives. Les droits sur le sol sont indivis à l’intérieur de la fraction d’un lignage dont les membres résident dans le même village. Toute scission d’un lignage en ce qui concerne le village de résidence entraîne une scission des droits sur les terres. La fraction émigrée possède des droits exclusifs sur le terroir qu’elle constitue. Mais elle ne perd pas, au moins en principe, ses droits sur le terroir d’origine. Afin de détourner les difficultés inhérentes au milieu géographique, chaque lignage a divisé son finage en secteurs éloignés les uns des autres, plutôt que de vastes zones d’un seul tenant. Si ces zones deviennent temporairement inutilisables, on crée des habitations de culture (kampu) sur le cours supérieur du fleuve, sans cesser pour autant de résider habituellement au village (kondé) de ses ancêtres. Les abattis sont tous situés le long des cours d’eau constituant les seules voies de communication (Hurault, 1961). Ces droits d’usages collectifs se sont maintenus jusqu’à présent. Cependant le bourg de Maripasoula est un cas particulier: n’étant pas un village traditionnel, il n’est pas soumis à la propriété collective des clans lignagers24. Ainsi, les familles ont pu s’y installer à leur guise, la loi du premier occupant prévaut dans ce cas. Depuis l’apparition des véhicules à moteur, les pistes constituent les nouvelles voies d’accès aux abattis, qui se substituent aux cours d’eau. On peut ainsi observer (Figure 6), une nouvelle stratégie d’occupation des terres autour du bourg de Maripasoula avec l’ouverture des abattis le long des pistes. Ainsi, chaque ouverture de piste ou de route donne aux habitants la possibilité d’étendre leur terroir. Cette tendance s’est confirmée dans le temps comme nous pouvons l’observer sur les cartes produites par le PAG à partir des photos aériennes de 2005 et 2015 (Figure 7 et 8). Il s’ensuit que le facteur limitant l’accessibilité aux terres devient le coût de transport en voiture: les personnes suffisamment aisées pour posséder

Notons toutefois qu’il existait en 1950 lors de la création du poste administratif de Maripasoula, des habitations de culture (kampu) créées sur des initiatives individuelles et non soumises aux règles lignagères (Hurault, 2000).

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figure 6. Localisation des abattis étudiés autour du bourg de Maripasoula en 1999. source M. fleury à partir d’un fonds de carte iGn.

une voiture peuvent se permettre de cultiver des abattis assez éloignés: c’est le cas de Aliki25 par exemple, sur la piste de Papaïchton. non limitée par la surface à cet endroit peu fréquenté, elle en a profité pour faire un très grand abattis d’environ 2 ha. si un membre de la famille possède une voiture qu’on peut solliciter de temps à autre comme c’est le cas de la famille tiki, on peut alors se permettre de faire un abattis éloigné tout en conservant des abattis accessibles à pied (piste de sophie, piste de l’aérodrome). si on ne possède pas de voiture dans la famille, le choix d’un abattis éloigné entraîne des frais important à chaque fois qu’on veut y travailler: de 15 à 25 26

30 € pour se faire déposer en voiture piste de Papaïchton par exemple. on essaye alors de conserver des abattis proches des habitations comme dans le cas de Gabrielle à Abdallah. on peut également observer l’apparition d’une forme d’appropriation foncière aux abords du bourg: Les droits d’usage donnés par l’ouverture d’un abattis en forêt sont parfois réutilisés pour la construction d’habitations permanentes. on voit ainsi d’anciennes terres cultivées identifiées avec des pancartes dans le but de réserver le foncier à la famille pour une construction ultérieure26.

Par souci de confidentialité, les noms ont été modifiés. La commune de Maripasoula n’était pas encore cadastrée lors de notre étude.

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Figure 7. Occupation du sol autour du bourg de Maripasoula en 2005. Source PAG.

Figure 8. Occupation du sol autour du bourg de Maripasoula en 2015. Source PAG.

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SURFACES DEFRICHEES Hurault (1965) avait estimé la surface moyenne plantée chaque année chez les Noirs marrons à 0,81 ha par ménage27. En 1989, l’enquête faite par les services de la DAF recensait pour Maripasoula 252 exploitations dont seulement 2 avaient des baux emphytéotiques. Un numéro de 250 exploitations, occupant une superficie de 421 ha, restaient donc sans titre. L’INSEE (Institut National de la Statistique et des Études Économiques) ayant recensé, en 1990, 433 ménages, on peut estimer que la superficie moyenne exploitée par ménage est de 0,97 ha (avec un nombre moyen de personnes par ménage de 3,93), soit une augmentation de 19% de la surface cultivée par ménage. La surface moyenne cultivée chaque année reste donc légèrement inférieure à 1 ha, ce qui corrobore les résultats de nos relevés d’abattis dans les années 200028. En 1996, la taille moyenne des surfaces en abattis à Maripasoula est estimée par la DAF à 1,3 ha par famille, la majeure partie se situant entre 0,5 et 2,5 ha (SCEESRecensement agricole 1993/1995, 1996, p. 13). On a donc une légère augmentation de la surface des abattis. Il semble que la surface défrichée soit de plus en plus liée au niveau économique des ménages. Ainsi l’abattis le plus vaste que nous ayons visité (2 ha) appartenait à un couple dont les deux membres avaient un travail salarié. C’était toutefois le mari qui avait coupé l’abattis et la femme (Aliki) s’en occupait. La possession d’une voiture leur permettait de s’y rendre dès que besoin, et leur avait permis de choisir une terre éloignée du bourg, sur une forêt non dégradée, et non soumise à la pression agricole (abattis situé le plus au nord sur la Figure 6). Soulignons que le terme “Agriculture itinérante sur brûlis” tel que nous l’avons défini au début de cet article

ne correspond plus à la situation observée autour des gros bourgs, surtout à Maripasoula; le système actuel de rotation des terres cultivées correspond davantage à ce que les anglo-saxons appellent “land rotation”, en alternant les périodes de culture et les périodes de jachère. Le système mis en place autour du bourg de Maripasoula, avec des parcelles en nids d’abeille assurant l’alternance culture-jachère, permet avec un minimum de sept ans de jachère d’assurer un équilibre pour le renouvellement de la fertilité des terres. Ce système peut se maintenir tant que la pression démographique n’augmente pas plus que les revenus, les importations extérieures permettant l’équilibre alimentaire global29. Une certaine spécialisation dans les tâches au sein d’une famille se dessine. Ainsi, dans la famille Tiki, composée du grand-père, de la grand-mère, de cinq filles et leurs enfants, seules trois des filles ont des abattis. L’aînée, Yolande cultive le plus de terres (trois abattis en 1997) et vend le surplus de sa production sous forme de couac. Menisa et Mofina ont également leurs abattis. Mais Clarisse et Gwenti qui ont des activités salariées ne pratiquent l’agriculture que de manière irrégulière, selon les années. Il existe donc un terroir de la famille Tiki que les enfants se partagent selon leurs besoins. Le fait que Yolande produise du couac pour la vente n’augmente donc pas les surfaces cultivées, puisque parallèlement certaines de ses sœurs travaillant à l’extérieur, n’utilisent plus le terroir familial. Le couac produit sert avant tout à nourrir l’ensemble de la famille, et seul le surplus est revendu. Le salariat et les revenus réguliers ont aussi une forte influence sur l’alimentation en la diversifiant par l’achat de produits importés (pain, riz, pâtes, conserves, congelés, etc.), en entraînant de manière corollaire une

Boye (1982) estimait pour Saint Georges, la moyenne pour assurer l’alimentation en produits végétaux de base à 0,7 ha, les surfaces exploitées étant comprises entre 0,5 et 0,8 ha. 28 Le recensement de 1990 donnait 3000 personnes pour la commune y compris les immigrés (environ 20% de la population) qui cultivent rarement l’abattis. Si l’on considère la surface totale défrichée: 426 ha (y compris les baux), cela correspond à 0,142 ha par personne. 29 Or la durée moyenne serait tombée actuellement à 4-5 ans, voire moins, entraînant une diminution du rendement de l’abattis (Belarbi; Touzard, 2009). 27

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diminution de l’importance relative des produits de l’abattis. Toutefois dépenser de l’argent pour acheter de la nourriture, restait encore un luxe dans les années 2000, le souvenir de l’autosubsistance étant encore très prégnant. Actuellement la situation a évolué, l’approvisionnement par fret aérien, avec plusieurs vols journaliers reliant Cayenne à Maripasoula, est devenu habituel. De plus les vols fréquents pour Paramaribo à partir de Lawa tabiki, permettent aussi d’aller s’approvisionner au Surinam voisin. De plus, l’installation depuis les années 2000 d’un nombre croissant d’épiceries sur la rive opposée au bourg de Maripasoula, accentue cette tendance, le prix des biens de consommation y étant nettement plus bas que sur le territoire français. Le système socio-économique et agricole s’oriente vers une spécialisation des tâches. Si l’abattis continue à fournir la base de l’alimentation familiale, la dépendance

aux revenux extérieurs et aux aliments importés est de plus en plus importante.

II - AGRICULTURE WAYANA L’agriculture sur brûlis tient toujours une place essentielle au sein des activités de subsistance dans la société wayana (Figure 9). Ce sont surtout les femmes, là encore, qui y consacrent leur temps, principalement autour du manioc, plante qui fournit la base de l’alimentation. Cependant les travaux très difficiles de défrichage, abattage et débroussaillage, sont réservés aux hommes, qui le font de manière collective, gratifiés par la distribution de bière de manioc (cachiri) que préparent les femmes à cette occasion. De fait, chez les Wayana du Brésil, la tradition orale rappelle que depuis les temps primordiaux les abattis sont le domaine de Surarapanan, mère des abattis, et de Iekara “père du

Figure 9. Cycle cultural wayana.

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manioc”, et doivent donc être cultivés conjointement par les hommes et les femmes (Van Velthem, 2003, p. 339).

CHOIX DE LA TERRE Ce sont les hommes qui font la prospection du terrain pour l’abattis, les femmes ne sortant jamais seules en forêt. Le choix des sites se fait en juillet-août, les hommes repérant les terrains à défricher lors de leurs sorties en forêt, pour la chasse, par exemple. Les principaux critères de sélection sont: - La situation géographique: la proximité de la rivière et du village évitent les longues marches à pied avec le poids des récoltes; - La pente du terrain: les fortes pentes permettent un meilleur ruissellement des eaux de pluies, et évitent les inondations; - Et les caractéristiques physiques du sol. Les Wayana distinguent les sols suivants: • hamunman: sablonneux (correspondant aux terrasses fluviatiles); • tïloptapume: “terre noire”, très bonne pour le manioc, les bananes, et les ignames; • tïpopilem: terre rouge (sols ferralitiques), peu propice aux cultures; • kusilaman = heliumunman (“ressemble au nid de heli, sorte de fourmi qui aime la terre boueuse”): sols boueux, argileux. Ce dernier type de sol est le moins fertile. On reconnaît qu’il peut donner de bons résultats la première année, mais lors de la deuxième mise en culture, les tubercules de manioc ont tendance à pourrir (Fleury, 2000, p. 151). En 1937, selon Grébert, les Roucouyennes (ancienne dénomination des Wayana) défrichaient un à dix hectares la première année. Après la première récolte, si celle-ci s’avérait convenable, ils établissaient leur village

au centre ou à l’avant de l’aire déforestée (Grébert, 2001). L’abattis précédait donc l’établissement du village. Il permettait de tester de nouveaux territoires (Figure 10). Le choix de l’emplacement des villages était motivé principalement par la proximité des lieux de pêches, spécialement des sauts, et celle de bonnes terres cultivables …les terres les plus appréciées étant les anciennes terrasses alluviales hors d’atteinte de l’inondation annuelle,dont le sol meuble convient bien au développement des plantes à tubercules ; mais avant tout, on recherche les zones les plus épargnées par les fourmismanioc, fléau de l’agriculture et cauchemar des Indiens. (Hurault, 1965, p. 22).

Actuellement les Wayana ne déplacent plus leurs villages, sauf rares exceptions, mais quand la densité de population devient trop importante, de petits villages, dits écarts, sont créés comme dans le cas d’Antécume pata. L’apparition dans les années 60 de moteurs pour les pirogues permet de se déplacer plus loin le long des rivières mais le facteur limitant l’accès à ses abattis plus lointains devient le prix de l’essence30, favorisant là encore, les familles ayant des revenus salariés ou sociaux. La gestion des habitats et des terres agricoles a donc beaucoup évolué durant le siècle dernier influençant les critères de choix des

Figure 10. Abattis récemment coupé, brûlé et nettoyé chez les Wayana (Antécume, 2010).

L’essence est chère sur le Litani: il faut compter 30 € pour un tanker de 25 l; le budget essence occupe sans nul doute la part la plus importante du budget des familles.

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terres cultivées et leur exploitation dans le temps. L’entrée dans la société monétarisée a de nombreux impacts sur les configurations territoriales mais aussi sur l’alimentation comme nous le verrons plus loin.

REGLES D’ACCES AUX TERRES Hurault (1965) soulignait que “rien n’est plus éloigné des préoccupations des Indiens que la revendication de la terre. Tant qu’un village est établi à un certain emplacement, ses membres ont des droits exclusifs sur les terres avoisinantes. Ces droits disparaissent entièrement quand le village se déplace”. Cependant, Coudreau (1893) qui a visité les Roucouyennes (ancêtres de Wayana), considère que ce sont des agriculteurs sédentaires. L’abattis, selon lui, serait la base de la propriété transmissible, sur une durée de seulement cinq à six ans, car les lieux de vie sont ensuite déplacés. Il décrit des grands abattis entourant le village qui étaient divisés en lots. En fait le village est construit au milieu de l’abattis. Mais il précise que les Améridiens ouvrent d’autres petits abattis isolés en forêt. En réalité, les Wayana respectent actuellement la règle du primo-arrivant: le fait de défricher la forêt primaire donne des droits d’usage de la terre à l’agriculteur et à ses descendants, droits transmissibles à un autre membre de la communauté, par simple accord. Nous voyons ici encore l’importance du défrichage qui, s’il ne donne pas lieu à des rituels aussi importants que chez les Aluku, attribue néanmoins un statut particulier au défricheur. Cette règle du primo-arrivant était déjà manifeste lors de la création des nouveaux lieux d’habitat autrefois où le fondateur du village est considéré comme le chef du village (Fleury et al., 2016). Soulignons qu’il existe des zones de droits d’usage (ZDU) octroyées par l’Etat français aux Amérindiens et aux Aluku qui leur permettent d’exercer leurs activités traditionnelles sans en référer à l’administration. Ces droits 31

d’usage collectifs, sont assez mal connus et peu pris en compte par les habitants qui ont toujours respecté leurs règles traditionnelles en priorité. Ces ZDU qui couvrent les berges des rivières sur une profondeur de 5 km, recouvrent à peu près tous les territoires exploités pour l’activité agricole, la cueillette, la chasse et la pêche. Ils représentent des droits spécifiques aux populations locales, sans contredire la constitution française31. Les droits fonciers ont été sujets à de nombreux débat lors des réunions pour la création en 2006 du Parc Amazonien de Guyane (PAG), puis lors de la mise en place de la charte entre l’établissement public et les communes. Les chefs coutumiers amérindiens, avaient alors émis la demande de la création d’une commune wayana afin d’accéder à une plus grande autonomie. Mais les élus locaux n’y furent pas favorables, par crainte du développement d’un certain communautarisme. Les droits fonciers des Amérindiens restent donc jusqu’à présent, limités à ces zones de droits d’usage, soit ces bandes de 5 km de large de chaque côté des principaux affluents du haut Maroni. Les droits y sont limités aux activités de subsistance excluant en principe toute activité commerciale (artisanat, tourisme…) avec cependant une certaine tolérance de la part de l’administration.

CYCLE CULTURAL ET EXPLOITATION AGRICOLE La défriche est un travail d’homme, qui se fait le plus souvent de manière collective (mayouri), en début de saison sèche, entre août et octobre. Les arbustes sont coupés au sabre d’abattis. Si de rares personnes utilisaient la hache dans les années 90, actuellement on utilise la tronçonneuse pour abattre les gros arbres. On reconnaît que cet usage est plus dangereux, car le bruit de la machine empêche d’entendre la chute des arbres, entraînant parfois des accidents.

La France n’a pas ratifié la convention 169 de l’OIT, reconnaissant les peuples autochtones, car elle s’opposerait à l’article 1 de sa constitution.

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Après avoir sécher durant deux à trois semaines, l’abattis est brûlé: il ne faut pas attendre trop longtemps, sinon les arbres perdent leurs feuilles et celles-ci pourrissent au sol, empêchant un bon brûlage. Cette opération est faite conjointement par les hommes et les femmes en saison sèche: septembre-octobre, parfois plus tard en fonction des fluctuations des saisons. Aussitôt après le brûlis, commencent les semences et les plantations. On commence par semer le melon d’eau et le maïs, car sinon, dit-on, les rongeurs et les insectes mangent les graines. On plante les bananiers sur les tas de cendre les plus épais, les ignames sur des buttes, les ananas le long des troncs au sol et les patates douces à l’écart. Puis, vers décembre, on plante les boutures de manioc (Figure 11). Celles-ci peuvent être plantées soit horizontalement, soit piquées obliquement dans le sol. Certaines personnes préfèrent faire démarrer les boutures pendant quelques jours, dans l’eau contenue dans des canots, ou à l’ombre, dans des catouris en feuilles de palmiers (Figure 12) avant de les mettre en terre. D’autres les plantent directement de l’ancien abattis au nouveau. Les récoltes débutent en février-mars avec les pastèques, et le maïs. En juillet-août on commence à récolter les patates douces, les ignames et le manioc doux, ceci jusqu’au mois de novembre. La récolte du manioc amer s’étale de 12 à 18 mois. Chez les Wayana, au fur et à mesure de l’arrachage du manioc, on replante une deuxième fois, ce qui augmente la durée de l’exploitation de l’abattis. Parfois l’abattis est retravaillé une deuxième fois, après une jachère de deux ans, puis abandonné la parcelle durant une plus longue période, six ou sept ans voire plus, jusqu’à une trentaine d’années (Renoux et al., 2007). La culture sur brûlis est toujours le pivot de l’activité féminine wayana et rythme, suivant les saisons, les travaux des hommes. L’inventaire des cultivars de manioc nous a permis de relever une grande diversité

Figure 11. Abattis wayana : la taille des rejets et autres plantes adventices, indiquent qu’il s’agit d’une deuxième plantation de manioc.

Figure 12. Les tiges de manioc ont été prélevées (Wayana) sur un ancien abattis pour être plantées après plusieurs jours (on voit la présence de rejets sur les tiges).

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infraspécifique (65 cultivars) qui ne semble pas diminuer au fil des générations. Une forte proportion est réservée à la confection de la bière de manioc (Figures 13 et 14), ciment des relations sociales pour les Amérindiens. La superficie moyenne des abattis est légèrement inférieure à 0,5 ha. Elle s’est peu modifiée depuis les années 60, puisque Hurault l’estimait à 0,42 ha. Parfois deux abattis peuvent se jouxter (Figure 15) et permettre un abattage commun. Le temps de jachère varie de deux ans à plus de trente ans. La question de l’accessibilité des terres autour de villages comme Antecume Pata, situé sur une île au milieu des sauts devient pressante ce qui n’empêche pas certains agriculteurs à couper malgré tout, un abattis en forêt «primaire», chaque année. L’accès à la terre n’est pas aussi aigu qu’à Maripasoula. La diminution du temps de jachère est parfois effective pour les emplacements à proximité du village; la principale conséquence est l’envahissement par les mauvaises herbes et l’épuisement de la terre. Mais ces emplacements sont souvent voués ultérieurement à l’habitat et la proximité de ces réserves sur pied est appréciée.

PRATIQUES MAGIQUES ET CROYANCES LIEES A L’ABATTIS CHEZ LES WAYANA Nous n’avons pas relevé de pratiques magiques chez les Wayana du Litani aussi marquées que chez les Aluku. En revanche, van Velthem (2003) décrit l’utilisation par les femmes wayana du Brésil de plantes propitiatoires dans les travaux agricoles: l’écorce du cacaoyer sauvage ferait grossir les racines du manioc et le bois de turú-turú les rendraient plus longues (van Velthem, 2003, p. 337). Il faut souligner le très grand respect que les Wayana ont pour le manioc, qui est presque considéré comme une personne. En effet, différents mythes32 racontent l’origine humaine du manioc:

Figure 13. Tamisage de la bière de manioc avant cuisson.

Figure 14. Cuisson de la bière de manioc avant fermentation.

Ce Mythe a été recueilli auprès de Siwankë puis traduit par Kupi Aloiké en 1997 au village de Taluwen. Il existe plusieurs versions du mythe que l’on retrouve dans d’autres groupes amérindiens.

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Figure 15. Plan d’un abattis wayana en 1997. Source M. Fleury C’est l’histoire d’une femme appelée ulu (“manioc”), que le gendre surprend à extraire du pus d’une grosse plaie et à fabriquer la cassave avec ce pus. La belle-mère, prise en flagrant délit, et pleine de remords, demande à être enterrée, après sa mort, dans un endroit dégagé (ona). De sa tombe poussera le manioc, car “elle-même était le manioc” (dont le latex jaunâtre peut évoquer le pus dans l’histoire). C’est pour ça qu’il faut toujours bien utiliser le manioc, sinon il te rendra malade dans les trois jours après que tu l’auras maltraité, ça peut faire mal aux bras ; et si tu en oublies à l’abattis, il pleure et se lamente. Quand on est seul, en silence, au milieu de l’abattis, on entend des voix, on dit que c’est le manioc. En effet à l’origine, c’était une femme qui s’appelait ulu ; sa nature était le manioc mais elle avait pris une apparence humaine. C’est elle qui a donné toutes les variétés de manioc existantes, et nous a transmis leur nom.

III - Agrobiodiversité comparée Nous avons vu que les Aluku et les Wayana se côtoient sur le haut Maroni, depuis plus de deux cents ans. Ils ont une partie de leur histoire commune et ont partagé leur vie pendant plus de vingt ans (entre 1793 et 1815) sur le Marouini (Malani), affluent du Maroni, durant la guerre contre les Hollandais et les Ndjuka. Leur chef de guerre Boni ayant été tué, les Aluku se sont alors réfugiés chez les Wayana. Cette période ayant été propice aux échanges, on pourrait penser qu’un grand nombre de plantes cultivées chez les Noirs marrons soient issues des abattis amérindiens. Cependant l’inventaire systématique (cf. Appendice)

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des plantes cultivées par chacun des deux groupes, nous prouve que l’agrobiodiversité est surtout influencée par des choix culturels. Notons d’abord que le nombre d’espèces cultivées dans les abattis des Noirs marrons est supérieur (38) à celui des Amérindiens (28). Si on dénombre tous les taxons cultivés en y intégrant la diversité infraspécifique, ce nombre s’élève à 156 chez les Aluku et 129 chez les Wayana. Les premiers ont un grand nombre de variétés de riz (21) et de manioc (90) et les Amérindiens ont sélectionné de nombreuses variétés de manioc (65), piments (8), cotons (8), bananes et divers tubercules. Cette différence dans le nombre de taxons est toutefois à relativiser car les Aluku sont beaucoup plus nombreux (environ 3 000 au moment de nos enquêtes) que les Wayana qui sont autour de 850 dans les années 2000. Certaines plantes cultivées sont donc spécifiques de chaque groupe.

PLANTES SPECIFIQUES DES NOIRS MARRONS Les Noirs marrons ont conservé l’habitude africaine de cultiver du riz de coteau (Oryza sativa, Oryza glaberrima) qu’ils mélangent aux pieds de manioc. Si le riz tient un rôle important dans l’alimentation, il trouve surtout une place essentielle dans les offrandes aux ancêtres lors des fêtes de deuil (Fleury, 1991). La plupart des variétés de riz appartiennent à l’espèce asiatique Oryza sativa L., mais quelques échantillons récoltés dans les abattis lors de notre étude dans les années 90, appartenaient à l’espèce africaine Oryza glaberrima Steud. Cette présence corrobore une légende qui attribue l’origine du riz aux femmes africaines ayant caché des grains de riz dans leur chevelure, avant de monter sur les bateaux négriers. Cette espèce africaine est considérée comme une simple variété de riz (Fleury, 1996). La diversité infraspécifique du riz était en nette diminution entre les années 90 (nos premières enquêtes) et les années 2000, les femmes ayant tendance à mélanger les variétés, au lieu de les conserver séparément comme autrefois. Un nouvel inventaire (prévu dans un futur

programme), mettrait certainement en évidence une diminution drastique de cette diversité. En effet, le riz du commerce prend une place de plus en plus importante dans l’alimentation, et de nombreuses femmes ont même renoncé à la culture du riz, considérée comme trop contraignante. Tout un cortège de plantes servant à accompagner le riz dans la gastronomie aluku, sont également spécifiques des abattis noirs marrons: l’arachide (Arachis hypogaea), cultivée dans des parcelles à part, le sésame (Sesamum indicum) et le gombo (Abelmoschus moschatus), autant de plantes employées dans la préparation de sauces oléagineuses ou mucilagineuses évoquant les habitudes culinaires d’Afrique occidentale. On note aussi la présence de brèdes qui sont très appréciées, beaucoup plus que chez les Amérindiens (Katz et al., 2012). Une plante particulièrement rare était également présente dans les abattis aluku des années 90: le pois bambara, ou voandzou (Vigna subterranea (L.) Verdc.) qui appartient aux premiers végétaux comestibles du Néolithique africain (Fleury, 2012). La culture du riz influence fortement les surfaces agricoles car elle nécessite de défricher chaque année un nouvel abattis. En effet, cette plante ne supporte pas la concurrence avec les mauvaises herbes, engendrée par la surexploitation d’une même parcelle. Elle nécessite un désherbage régulier de la parcelle jusqu’à ce qu’elle domine les espèces adventices. La culture du riz exerce, par conséquent, une contrainte sur la taille des abattis: les abattis noirs marrons sont de plus grande taille (1ha en moyenne) que ceux des Amérindiens (0,5 ha), puisqu’on n’y fait une seule récolte. L’agricultrice gère donc simultanément trois parcelles: une nouvellement coupée (N), une deuxième sur laquelle commence la récolte du manioc (N-1) et enfin une troisième datant de l’année précédente (N-2), sur laquelle on peut éventuellement poursuivre quelques récoltes. Les surfaces cultivées couvrent ainsi en moyenne 3 ha par famille. Cette surface, deux fois supérieure à celle qu’exploitent les Wayana, s’explique aussi par l’habitude qu’ont acquise les Noirs marrons de vendre les surplus de l’abattis, en

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particulier la farine de manioc, le couac, qui donne lieu à un commerce actif à Maripasoula (Renoux et al., 2007).

PLANTES SPECIFIQUES DES AMERINDIENS La diversité des plantes cultivées par les Wayana, est assez élevée, puisqu’on dénombre 28 espèces différentes, et 136 taxons si on comptabilise les différentes variétés (cf. Appendice). On note la présence de plusieurs plantes à usage artisanal, en effet l’artisanat est une activité encore très vivante chez ce groupe amérindien qui le commercialise pour compléter ses revenus: - le coton, mawu (Gossypium barbadense L.) utilisé par les femmes pour tisser les hamacs; - la plante à fibres kulaiwat (Bromelia plumieri (Griseb.) Mez), utilisée pour confectionner la corde de l’arc ou comme attache très solide dans différents objets de la vie courante; - la plante tinctoriale tali (Arrabidaea chica (Bonpl.) B. Verl.), pour teindre la vannerie; - soulignons l’importance du tabac, tamï (Nicotiana tabacum L.), lié au chamanisme, clé de voûte de la société amérindienne; les chamanes en font des cigares qu’ils fument en quantité lors des séances de guérison. Les Wayana incorporent volontiers de nouvelles espèces, notamment alimentaires, par exemple les pastèques, les concombres et les agrumes cultivés dans les villages et non présents dans les abattis qui n’apparaissaient pas dans les relevés de Hurault (1965). DIVERSITE VARIETALE DU MANIOC CHEZ LES WAYANA Parmi les plantes cultivées, c’est le manioc qui présente la diversité la plus riche: on compte pas moins de 65 cultivars, essentiellement à tubercules de chair blanche (Fleury, 2000). Chaque cultivar a un usage spécifique, en fonction de ses caractéristiques. Ainsi les tubercules durs, difficiles à râper, sont réservés à la confection de la cassave, tandis que les tubercules mous, très aqueux sont préférés pour la bière. Mais de nombreux cultivars à qualité intermédiaire peuvent être employés pour les deux usages.

Chaque abattis peut contenir une douzaine de cultivars dont seulement un à deux sont des maniocs amers jaunes (takpilem), employés pour la fabrication de la farine de manioc torréfiée (couac en Guyane). Le nom attribué à ces cultivars, tel meikolo kwakë (manioc à couac aluku), laisse entendre un emprunt aux Aluku. En effet, si historiquement les Wayana ont enseigné aux Noirs marrons la confection des galettes de cassave, les Aluku ont privilégié la confection et la consommation de la farine de manioc (couac), dont la bonne qualité est très réputée. Ils ont pour cela sélectionné des cultivars ayant un tubercule jaune, car ils préfèrent le couac jaune, contrairement aux Wayana qui font volontiers du couac blanc. Il est donc probable que les rares cultivars jaunes cultivés dans les abattis wayana aient été empruntés aux Aluku. Soulignons que l’on peut retracer les échanges ayant lieu entre agricultrices à travers les noms des cultivars de manioc: échanges avec les Wayana du Paru ou du Jari (dont les Wayana du Litani sont originaires) et avec d’autres Amérindiens comme les Emérillon (Teko), Galibi (Kali’na), Tirio, Wayãpi, les Noirs marrons ou d’autres personnes de leurs relations. En effet le nom de la variété signe souvent l’origine de celle-ci. Le manioc doux est cultivé de préférence à l’entrée de l’abattis (chez les Wayana comme chez les Aluku), la raison invoquée étant la facilité d’accès pour le prélèvement (le manioc doux est récolté plus tôt que le manioc amer), et sa plus grande attractivité pour les prédateurs, expliquant son relatif isolement. • Certains noms génériques peuvent regrouper plusieurs variétés différentes mais présentant des caractéristiques communes. Ainsi, dans chaque abattis, on peut trouver au moins: - un tapakula , manioc doux blanc utilisé pour faire la boisson du même nom; - un mawapë, manioc amer blanc utilisé pour la confection de la cassave (ulu); - un takpilem, manioc amer jaune pour la farine jaune (kwakë);

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- et mainakao, manioc amer blanc pour faire de la bière jaune (kasili). L’étude détaillée d’un abattis (Figure 15), avec la localisation de toutes les variétés de manioc montre que la proportion de variétés servant à préparer la bière de manioc représente plus de la moitié de la superficie de l’abattis. Cet abattis est celui d’une jeune femme de 15 ans, déjà mère de famille. Nous constatons la présence d’une grande quantité de mawapë, manioc blanc utilisé pour la galette de cassave. Le reste de l’abattis est couvert d’un mélange de différentes variétés disposées en petits plots de quatre à cinq pieds: Watiti pour la bière jaune et le couac; Kusi ulu pour la cassave, la bière blanche (hakula) et la bière jaune; Il y a également un “ faux ” kusi ulu (en rose également), variété proche ayant les mêmes usages; Palawa (“Amazone à tête jaune”) pour la bière jaune; Kawai alekan (“ressemblant à la plante kawai33”)pour la bière; Wapu (“palmier Euterpe oleracea”) pour la bière et la cassave; Kumaka halekan (“ressemble à l’arbre fromager34”) pour la bière jaune; Watule pour la bière jaune et le couac; Kasili ulu pour la cassave et la bière jaune. On peut donc constater que plus d’un tiers de l’abattis est imparti à une variété dont le seul usage est la confection des galettes de cassave. Le reste de l’abattis est couvert d’un mélange de variétés en plots pouvant toutes être utilisées pour faire de la bière. Deux de ces variétés peuvent être aussi employées pour confectionner du couac (manioc jaune) et quatre autres pour faire de la cassave. En effet, les femmes wayana aiment mélanger plusieurs variétés de manioc pour confectionner leur bière, d’où ce mélange dans l’abattis. Cela leur permet au moment de la récolte de remplir leur hotte

de tubercules de différentes variétés. L’abattis, qui pourrait paraître à première vue couvert d’un mélange hétéroclite de variétés différentes, nous révèle donc sa rationalité pratique: les pieds de maniocs spécifiquement réservés à la confection des galettes de cassave sont rassemblés à une extrémité de l’abattis. L’autre extrémité est vouée aux variétés à bière, dont certaines pourront être utilisées en cas de besoin pour la confection de cassave ou de couac. Les cultivars de manioc semblent se transmettre de génération en génération, sans perte de diversité. Nous avons en effet comparé plusieurs parcelles de cultures (abattis), gérées par des femmes de différentes générations. Le nombre de cultivars varie de 7 à 11 par abattis, et ne semble pas avoir de lien avec l’âge (10 pour une femme de 20 ans, 7 pour une femme de 55 ans). Le choix d’une grande diversité, tant des cultivars de manioc que des autres espèces cultivées, semble plutôt dépendre de l’intérêt et de la sensibilité personnelle de l’agricultrice (Fleury, 2000). En conclusion, la culture de l’abattis reste une activité valorisée et valorisante dans la société wayana ; la possibilité d’offrir du cachiri aux visiteurs, ou d’organiser de grandes fêtes à cachiri pour tout le voisinage, est un signe de convivialité de richesse et d’opulence, et permet de souligner sa place au sein de la société. L’agrobiodiversité est donc très riche tant au sein des abattis aluku que wayana. La spécificité de chaque groupe culturel est clairement mise en évidence par les plantes de l’abattis: les Aluku continuent à cultiver des plantes d’origine africaine qui leur permettent de préparer des plats typiquement africains, notamment pour honorer les Ancêtres lors des fêtes de deuil. Les Wayana plantent quant à eux, outre du manioc, base de leur alimentation et de leur bière, les végétaux nécessaires à leur artisanat, extrêmement riche et diversifié, mais aussi le tabac , plante importante dans la pratique du chamanisme.

Thevetia peruviana Pers. K. Schum., Apocynaceae. Ceiba pentendra (L.) Gaertn., Bombacaceae

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Si une certaine déperdition dans la richesse infraspécifique est à craindre pour quelques espèces (notamment le riz chez les Noirs marrons), la diversité des cultivars de manioc est quant à elle, plutôt en augmentation, enrichie en permanence par des nouveaux échanges, et apports extérieurs.

DISCUSSION: Les évolutions actuelles Nous avons vu que l’agriculture sur brûlis, loin de disparaître a tendance à se développer en Guyane, particulièrement dans le sud, et le long du Maroni, ou la croissance démographique est la plus élevée. Cette augmentation du nombre d’exploitations, s’accompagne d’une évolution des pratiques en particulier autour des gros bourgs où l’accès à la terre devient problématique. L’augmentation du salariat a un impact direct sur la taille et sur l’emplacement des parcelles, les personnes les plus riches ayant accès aux meilleures terres, grâce à l’usage des voitures ou à la possibilité d’acheter de l’essence pour leur canot. La durée de la jachère est également directement liée à la taille des villages. Autour de Maripasoula, nous avons constaté l’évolution vers une agriculture sédentaire, avec rotation des terres cultivées, incluant une jachère de sept ans en moyenne, voire moins actuellement. D’anciens terrains agricoles servent de réserve foncière à proximité des habitations. Ainsi l’exemple de Maripasoula avec l’organisation des abattis en nids d’abeille, autour du bourg et l’ouverture de nouveaux essarts le long des axes routiers illustre une forme d’adaptation à des nouvelles contraintes. Ailleurs la sédentarisation des villages fait coexister deux types d’abattis. Ceux coupés sur une vieille forêt (jachère très longue, voire forêt ‘primaire’) souvent éloignés des villages et ceux de proximité, autour des zones habitées, avec une jachère très courte. Cette dernière entraîne une diminution de la rentabilité et l’envahissement par les mauvaises herbes, mais cet inconvénient est compensé par la proximité de cette réserve sur pied.

On assiste également à une évolution dans l’organisation du travail autour de l’abattis, en particulier chez les Noirs marrons: l’emploi de journaliers, grâce aux aides sociales ou aux salaires, augmente l’indépendance des femmes, mais aussi le coût de production de l’abattis, les incitant à revendre les surplus sous forme de couac. La spécialisation des tâches peut se constater parfois au sein d’une même famille, la personne non salariée alimentant en couac, la famille élargie. Chez les Wayana, l’apparition du travail salarié commence aussi à entraîner des disparités sociales: l’argent permet de payer l’essence pour aller plus loin, mais aussi d’acheter de la nourriture importée, qui prend une place croissante dans l’alimentation quotidienne. Parallèlement on assiste dans les plus gros villages, à un éclatement de l’habitat, en petits écarts. Cependant les problèmes d’accessibilité aux terres restent les mêmes, puisque les nouveaux villages doivent rester proches des écoles et des dispensaires. Le développement des travaux salariés risque d’entraîner à long terme, comme chez les Aluku, une spécialisation des tâches, avec un risque d’abandon progressif de l’abattis pour les personnes salariées. Il est important de souligner que la cohésion sociale est un facteur aussi important que la qualité des sols en termes de productivité: Grenand (1996, p. 713) relève qu’à chaque fois qu’il y a conjonction entre sols pauvres et tissus social cohérent, les rendements de l’abattis sont aussi importants que sur les sols riches. La diversité des plantes cultivées quant à elle, a plutôt tendance à s’enrichir grâce à l’inclusion d’espèces exotiques et la diversification des variétés cultivées à travers les échanges. En revanche, certaines espèces rares (Oryza glaberrima, Vigna subterranea) tendent à disparaître remplacées par des homologues plus rentables (Oryza sativa, Arachis hypogaea). Soulignons que la formation des jeunes agriculteurs35 a induit une nouvelle perception de l’agriculture: celle d’une activité économique basée sur la rentabilité.

Notamment par le Programme d’Encadrement de l’Agriculture Familiale dans l’Ouest Guyanais (PEAFOG) mis en place en 2002 par la Chambre d’Agriculture dans le but de “faire évoluer l’agriculture sur abattis vers un système productif durable” (Tchansia, 2009).

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Or si l’on compare les moyens financiers (en termes d’emplois salariés) nécessaires à la culture (abattage, brûlage, plantation, récolte) aux revenus issus de la commercialisation de ses produits (essentiellement le couac), l’abattis est peu rentable économiquement. Toutefois, dans le cadre d’une activité familiale sans main d’œuvre extérieure, il peut continuer à faire vivre une famille de dix personnes minimum. Chez les Noirs marrons, par exemple, c’est la femme qui nourrit ses enfants avec l’abattis, l’homme intervenant surtout pour fournir les produits de chasse, pêche et les produits importés de l’extérieur. C’est l’intérêt nourricier de l’abattis plus que l’aspect économique, qui est essentiel dans ce système d’agriculture familiale, le plus souvent pratiqué par les femmes36.

CONCLUSION L’abattis continue sur le haut Maroni à être le pilier des activités féminines, et à fournir la base de l’alimentation familiale, malgré des sols assez pauvres, mais grâce à une cohésion sociale assez forte. Il conserve donc une place essentielle dans un système pluriactif, assurant l’alimentation végétale, tandis que la pêche, la chasse, et de manière croissante les revenus salariés et/ou sociaux assurent les compléments nécessaires. Il joue donc un rôle important dans l’économie familiale Sa place est également essentielle sur le plan culturel et social. La production du cachiri pour les Wayana, ou de couac pour les Aluku affirme la place de la famille dans le tissu social du village et plus largement de la communauté, dans un système d’échange (don, contre-don), ou parfois de commercialisation qui fait son apparition dans les plus gros bourgs. Au-delà de son importance dans l’économie familiale, l’agriculture itinérante revêt donc une fonction sociale importante. Sa valeur culturelle est soulignée également par les pratiques rituelles qui y sont liées et comme support de la transmission des savoir-faire traditionnels. 36

Nous avons vu comment le culte des ancêtres chez les Noirs marrons se répercute sur la gestion de l’environnement, des terres cultivées et de l’agrobiodiversité. Chez les Wayana, c’est la fonction sociale du cachiri qui révèle toute son importance dans les abattis. L’abattis peut donc être considéré comme un véritable marqueur socioculturel dans l’adaptation de l’homme à son environnement.

Remerciements Les travaux sur lesquels s’appuie cet article ont été réalisés dans le cadre du programme APFT (Avenir des Peuples des Forêts Tropicales) financé par la DG VIII de l’Union Européenne, et du programme SOFT (Effets des pratiques culturales traditionnelles sur la fertilité des sols et sur la forêt du sud de la Guyane, le problème de la réduction du temps de jachère), coordonnée par J.-M. Betsch et S. Bahuchet (MNHN) et financé par le ministère de l’Environnement. Je tiens à remercier M. Topo Louis qui a guidé mes pas en pays aluku et accepté de partager son savoir sur les plantes et la culture aluku. Je remercie également tous les Aluku, en particulier les habitants de Loka pour leur accueil. Chez les Wayana, je tiens à remercier la famille Aloïké et la famille Opoya, à Taluwen, André Cognat, et tous les habitants d’Antécume pata, d’Elahé, de Twenké-Taluwen pour leur accueil à chacun de mes séjours. Un grand merci à P. de Robert et à Laure Emperaire (IRD) pour la relecture critique de cet article. Je tiens à rendre hommage à M.-F Prévost, botaniste à l’IRD, qui nous a quittés le 31 janvier 2013, laissant un grand vide derrière elle. Merci pour sa patience et ses encouragements durant toutes mes études. Son aide a été inestimable dans le traitement et la détermination de mes échantillons d’herbier. J.-M. Betsch, professeur au Muséum National d'Histoire Naturelle, nous a quittés également en 2013, au grand regret de tous ceux qui l’avaient côtoyé.

60% des chefs d’exploitation en Guyane selon les chiffres officiels (Agreste, 2011), certainement plus pour les abattis du haut Maroni.

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LAMBERT, J.-C. Agriculture: 2010 – l’année du recensement agricole. Antiane, Guyane, n. 74, p. 20-21, juil. 2011.

458


459 patate douce

CONVOLVULACEAE Ipomoea batatas (L.) Lam.

patata

toloman

toloman (Cr)

nanasi

BROMELIACEAE Ananas comosus L.

CANNACEAE Canna indica L., cultivar

-

BIGNONIACEAE Arrabidaea chica (Bonpl.) B. Verl.

-

-

(Araceae) sp.

Bromelia plumieri (Griseb.) Mez

-

Xanthosoma sp.

ananas

pon taya

su

chou c araïbe

Xanthosoma sagittifolium (L.) Schott.

Xanthosoma cf. atrovirens K.Koch & C.D.Bouché

dasini

dachine

ARACEAE Colocasia esculenta (L.) Schott

Nom aluku

Nom créole ou français

Nom latin

palakaputpë

napi

a baibisi (blanche) patata peliki patu («contient du lait qui tâche la casserole»)

kulaiwat

nana

tali

kutupuli

ëkëimïtpë “le morceau de serpent ”

dasin

Nom wayana

La variété cultivée par les Noirs marrons, donne un tubercule dont on tire une fécule appelé toloman

Variétés cultivées Chez les Aluku

APPENDICE. Liste des espèces et variétés cultivées chez les Aluku et les Wayana.

- akaïna napi: vient de chez les Galibi (Kaliña), variété très foncée qui permet d’obtenir une bière rouge vif; - kalauhpi: rouge-orange. - kopeta: blanche - kaikuiwet: “caca de chien”; - takpilem: “rouge” - tïpulu: noire (violette).

Les Amérindiens cultivent une variété surtout utilisée pour ses jolies graines noires (colliers, bijoux)

Plante à fibre utilisée dans l’artisanat

Plante tinctoriale utilisée dans l’artisanat

“la racine est longue quand on la coupe, ça fait comme un serpent ”

Variétés cultivées Chez les Wayana

(Continue)

Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 2, p. 431-465, maio-ago. 2016


amisoï (Cr)

CRUCIFERACEAE Brassica sp.

masisi

concombre piquant concombre

Cucumis anguria L.

Cucumis sativus L

460 igname indien napi

sopolopo

concombre amer

Momordica charantia L.

DIOSCOREACEAE Dioscorea trifida L.

paampu

giraumon

Cucurbita moschata L.

komukomu

wataamu

amisoy

Nom aluku

melon d’eau

CUCURBITACEAE Citrullus lanatus L.

Nom créole ou français

Nom latin

APPENDICE.

agodeba napi (agodeba = le nom de la personne qui l’a emportée de chez les indiens) babuba (peau rouge) ganga sombo: rouge Maroni napi weti napi: blanc

Variétés cultivées Chez les Aluku

napek (kalastinen en Teko)

asikala

Komukomu (nom aluku)

malasija ou kwatalamu

-

Nom wayana

distinguées par la forme des tubercules: - joiman: tubercule long, à chair blanc-jaunâtre et peau noir-violet; - kaikuiamoman: “qui ressemble à une patte de félin (kaikui)”: les tubercules sont ronds comme des pattes de fauve, et sont disposés de la même manière, ils ont une chair blanche; - pïtëkëi: il est dur, même quand il est cuit, blanc et à la forme du tubercule de manioc - taliliman napek (halahun en Emérilon): “igname noir”, tubercule violet; - tëmnamohulem: “ce qui a un long nez”, à chair blanche. - wakalau: tubercule violet

distingués par la couleur de l’écorce du fruit: - kulimauman: “comme la couleur du pak, Agouti paka”; - taliliman: “noir”; - tïkolokem: “blanc”; - tïtuhtulumahen: “noir, foncé”.

Variétés cultivées Chez les Wayana

(Continue) Agriculture itinérante sur brûlis (AIB) et plantes cultivées sur le haut Maroni: étude comparée chez les Aluku et les Wayana en Guyane française


nyamisi

pinda

wandu

igname pays-nègre

igname piquant manioc

arachide pois d’angole, pois pigeon. haricot

Dioscorea alata L.

Dioscorea cayennensis Lam.

EUPHORBIACEAE Manihot esculenta Crantz

FABACEAE Arachis hypogaea L.

Cajanus cajan (L.) Millsp.

Phaseolus vulgaris L.

461 aluku pesi

kosubenti

haricot chinois, haricot kilomètre pois bambara

Vigna unguiculata (L. ) Walp. subsp. unguiculata

Vigna unguiculata (L. ) Walp. subsp. sesquipedalis (L.) Verdc.

Vigna subterranea (L.) Verdc.

agoobo/ gobogobo

-

Phaseolus lunatus L.

pesi

kasaba

Nom aluku

Nom créole ou français

Nom latin

APPENDICE.

90 cultivars inventoriés

-

kumataimë

kumata

haliko

-

-

ulu

lamisi

wakalau (zapakula en Teko) donne des tubercules comme le lamisi, mais tout blanc. La feuille ressemble à celle du lamisi, mais sans épine, le tubercule pousse au bout d’une longue tige”;

afakoo lebi nyamisi (rouge quand il est mûr) nyami atutan (rouge) saamaka nyamisi (igname saramaka)

maka nyamisi

Nom wayana

Variétés cultivées Chez les Aluku

65 cultivars inventoriés

tige épineuse, donne de gros tubercules

- palawaso: “donne de gros tubercules” - aimala: “donne de gros tubercules comme le wakalau”

Variétés cultivées Chez les Wayana

(Continue)

Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 2, p. 431-465, maio-ago. 2016


grand-basilic

calou, gombo

LAMIACEAE Ocimum campechianum Mill.

MALVACEAE Abelmoschus esculentus L.

462

Myrosma cannifolia L.

Maranta ruiziana Körn.

MARANTACEAE Calathea ovata (Nees & Mart.) Lind.

Gossypium barbadense L.

Nom créole ou français

Nom latin

APPENDICE.

alalutu

pisoy

-

oko

sumee wiwii

Nom aluku

dia tutu gaata siki oko kapuwa oko kumba (devient très gros) seibi wiki (« six semaines » )

Variétés cultivées Chez les Aluku

tulala

pisoy

mawu

-

Nom wayana

distinguées par la qualité du coton qu’il produit: - alawata: “de la couleur du singe hurleur, alawata (Alaoutta seniculus), il n’est pas joli quand on le file, il est jaune; - alimi elï: “les lèvres du singe atèle femelle, alimi (Ateles paniscus), quand les fruits s’ouvrent, c’est à peu près de la même taille que le sexe femelle de ces singes ”; - iliwet: “caca du paresseux, ili, (Bradypus tridactylus)”, tout petit, permet de faire du fil très fin; - jakaman: “il donne de petites graines, avec beaucoup de coton”; - mauluhle: “le vrai coton”; - tëputpïtpïtonkem: “il est utilisé pour tisser les hamacs”; - towoniem: “les graines sont difficiles à retirer”; -mauepï taliliman: “coton noir”.

Variétés cultivées Chez les Wayana

(Continue) Agriculture itinérante sur brûlis (AIB) et plantes cultivées sur le haut Maroni: étude comparée chez les Aluku et les Wayana en Guyane française


463 sésame

barbadine

PASSIFLORACEAE Passiflora quadrangularis L.

PEDALIACEAE Sesamum indicum L. (S. orientale)

banane plantain

bacove, figue

Nom créole ou français

Musa acuminata x balbisiana L.

MUSACEAE Musa paradisiaca L.

Nom latin

APPENDICE.

bongila

gaan maakusa

baana

bakuba

Nom aluku

- a moysia tiki - amisi tiki - Baka baana - Bakuba baana (finga na langa) (« banane bacove ») - Dombeli weti: Lebi Weti - gaan baana (très long) - ingi baana («la banane des Indiens») - lebi baana (alla finga lebi) («banane rouge») - wajalikule baana (la banane des Indiens Oyarikule; la moins bonne) - pantankelle (toujours deux doigts ensembles) - uman baana («banane femelle»)

(a)langa finga bakuba ingi bakuba (rouge) koboto bakuba (comme doigt) wata mamam buba

Variétés cultivées Chez les Aluku

-

-

palu

Nom wayana

- alamapokan - ëwëmho - huhupotkan : “ressemble au bout de sein” - kajan - kuialiputpë: “la tête de l’oiseau kuiali” (colin de Guyane, Odonthophorus gujanensis); - maïkaman - maipuli otkalan: “les côtes du maïpouri (Tapirus terrestris)” “ces bananes sont énormes et le régime a la forme de côtes”; - mekelu: cette variété ressemble à kuialiputpë; - minima: ces bananes ont un goût astringent, désagréable, qui oblige à les manger uniquement quand elles sont très mûres; - palankuta: il faut qu’elles soient très mures pour être mangées; - paluluimë: “grandes bananes plantains, les mêmes que l’on trouve à Cayenne”; - pëli: “toutes petites bananes de 10 cm de long”; - tëpepulu: bananes violettes - ulana: “variété un peu plus petite que paluluimë, qui donne de gros régimes, et qui peut être mangée crue, même verte” - wakaiwakai: onomatopée du bruit caractéristique du vent qui souffle dans les feuilles de ce bananier.

Variétés cultivées Chez les Wayana

(Continue)

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464 canne à sucre

maïs

Zea mays L.

riz

Nom créole ou français

Saccharum officinarum L.

POACEAE Oryza glaberrima Steud. Oryza sativa L.

Nom latin

APPENDICE.

kalu

kien

alisi

Nom aluku

- kumanti kalu: blanc - akuli kalu: orange - ingi kalu: «ce sont les Indiens qui ont apporté le plant».

ehnai

asikalu

-

akienki alulu alulu ayengina baaka saka baka alisi effa kake kamu kasuwini alisi lebi alisi lebi saka monio mama sooda sulente tampu ede telema wata alenki weti alisi weti alulu yenge-yenge

- baaka kien (noire) - ingi kien (la canne à - sucre des Indiens) - kien wowondé - pikin kien (petite)

Nom wayana

Variétés cultivées Chez les Aluku

- ehnai: “c’est le maïs que les Wayana ont depuis toujours, la tige est lisse et jaune; - kalu: “la tige est jaune et hirsute, il a été pris aux Blancs” (sans doute par l’intermédiaire des Aluku, kalu étant le nom du maïs en aluku nenge); - taliliman: “noir”, la tige est lisse, quand on le fait bouillir, l’eau devient noire.

- asikalu: “la vraie canne à sucre”, les entrenœuds sont courts; - kiapok: à tige rayée; - talesi: “les entrenœuds sont très longs (vingt à trente centimètres); - taliliman: “noire”; - tëwamililikhen: “dont le pied a des dessins”, sa tige est rayée, mais de manière irrégulière et plus foncée.

Variétés cultivées Chez les Wayana

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465 tomate aubergine

tabac

curcuma gingembre

Solanum melongena L.

Solanum tabacum L.

ZINGIBERACEAE Curcuma longa L.

Zingiber officinale Roscoe

piment

SOLANACEAE Capsicum frutescens L.

Lycopersicum esculentum Mill.

Nom créole ou français

Nom latin

APPENDICE.

djindja

kikima

tabaka

bulansi

tomati

pepe

Nom aluku

Cultivé au village

- alata kaka (peppe) («crotte de rat») - kumalu peppe («piment coumarou») - nyamandalu (peppe) (très gros) - sika («chique»)

Variétés cultivées Chez les Aluku

walima

tamït

-

-

asi

Nom wayana

Cultivé au village

Cultivé au village

Le tabac est cultivé à l’abattis chez les Wayana, contrairement aux Aluku qui le plantent parfois à proximité des habitations.

- alalawaman: “qui ressemble à l’oiseau alalawa” (ara bleu, Ara ararauna); - alimielï: “sexe du singe atèle femelle”, il est allongé rouge ou jaune - mekuje: “les dents du singe macaque” (sapajou fauve, Cebus apella), cette variété n’existe que chez les Tiryio, on ne le trouve pas sur le Litani; - owoliewu: “les yeux de l’oiseau owoli” (trogon à queue blanche, Trogon viridis), il est arrondi comme une citrouille; - pasiwet: “caca d’acouchi (Myoprocta acouchy)”, ce sont de petits piments rouges; - takpilem: “rouge”, piments rouges, communs - tawaman: “jaune”; - tïhmokoloken: “œufs blancs”, ils sont ronds et blancs.

Variétés cultivées Chez les Wayana

(Conclusion)

Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 2, p. 431-465, maio-ago. 2016



Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 2, p. 467-480, maio-ago. 2016

Mobilidade, subsistência e apropriação do ambiente: contribuições da zooarqueologia sobre o Sambaqui do Bacanga, São Luís, Maranhão Mobility, subsistence and appropriation of the environment: zooarchaelogical contributions on the Sambaqui do Bacanga, São Luís, Maranhão Arkley Marques BandeiraI, Artur ChahudII, Isabela Cristina Padovani FerreiraIII, Mírian Liza Alves Forancelli PachecoIII I

Instituto do Ecomuseu Sítio do Físico. São Luís, Maranhão, Brasil II

III

Universidade de São Paulo. São Paulo, São Paulo, Brasil

Universidade Federal de São Carlos. Sorocaba, São Paulo, Brasil

Resumo: Os padrões humanos de subsistência e/ou mobilidade podem estar refletidos no registro zooarqueológico dos sambaquis de manguezais estuarinos e outros ecótonos litorâneos. Em um domínio biogeográfico, tal como o manguezal e seus ecótonos associados, a disponibilidade de grande parte dos recursos animais pode aumentar em função da sazonalidade e do ciclo de vida dos seres vivos, e tornar-se mais acessível dentro de uma área de captação de recursos. Assim, o registro dos sambaquis, caracterizados por uma grande quantidade de restos de moluscos e peixes, em relação a outros táxons, pode indicar tanto um viés tafonômico, quanto questões relacionadas ao cálculo da biomassa em laboratório e/ou variações na subsistência humana em função das modificações da paisagem no ciclo anual. Este trabalho tem por objetivo contemplar as questões e as hipóteses sobre os padrões de mobilidade atrelados aos modelos de subsistência e à apropriação do ambiente por sociedades humanas pretéritas, nos Sambaquis do litoral maranhense, com especial ênfase ao sambaqui do Bacanga, inserido em um contexto de manguezal estuarino. Até o momento, foi possível concluir que não houve variações taxonômicas significativas ao longo dos estratos arqueológicos. Palavras-chave: Zooarqueologia. Estratégias de subsistência. Forrageamento ótimo. Tafonomia em Zooarqueologia. Abstract: Human patterns of subsistence and/or mobility may be reflected in the zooarchaeological record from estuarine mangrove shell mounds and other coastal ecotones. In a biogeographical domain, such as mangroves and their associated ecotones, the availability of much of the animal resources may increase due to seasonality and life cycle of organisms and become more accessible within an area of resource capture. Thus, the record of shell mounds, characterized by a large number of remains of molluscs and fish in relation to other taxa, may indicate either a taphonomic bias, as well as issues related to the calculation of the biomass in the laboratory and/or changes in subsistencedue to modifications of the landscape in the annual cycle. This work aims to address the questions and hypotheses about patterns of mobility tied to models of subsistence and ownership of the environment by pasthuman societies in coastal shell mounds from Maranhão, with special emphasis on the Sambaqui do Bacanga, inserted in a context of mangrove estuary. So far it could be concluded that there were no significant taxonomic changes over the archaeological strata. Keywords: Zooarchaeology. Subsistence strategies. Optimal foraging. Taphonomy in Zooarchaeology.

BANDEIRA, Arkley Marques; CHAHUD, Artur; FERREIRA, Isabela Cristina Padovani; PACHECO, Mírian Liza Alves Forancelli. Mobilidade, subsistência e apropriação do ambiente: contribuições da zooarqueologia sobre o sambaqui do Bacanga, São Luis, Maranhão. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 2, p. 467-480, maio-ago. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/198181222016000200007. Autor para correspondência: Arkley Marques Bandeira. Rua dos Juritis, lote 2, Ed. Mirela, Apto. 802 – Jardim Renascença. São Luís, MA, Brasil. CEP 65075240 (arkleybandeira@hotmail.com). Recebido em 07/02/2014 Aprovado em 08/03/2016

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Mobilidade, subsistência e apropriação do ambiente: contribuições da zooarqueologia sobre o sambaqui do Bacanga, São Luis, Maranhão

INTRODUÇÃO Estabelecer a sazonalidade das ocupações dos grupos pré-históricos humanos em determinadas regiões é um relevante aspecto para a reconstrução de suas estratégias de subsistência e assentamento. Neste contexto, o estudo do registro zooarqueológico e/ou arqueobotânico, sob a luz dos modelos de forrageamento (MacArthur; Pianka, 1966), revela-se como um importante subsídio para o estabelecimento dos padrões de mobilidade atrelados à alocação de recursos, uma vez que os dados arqueofaunísticos podem refletir as nuances locais de um domínio biogeográfico, ao longo do tempo (Carter, 1976). A ilha de São Luís é uma porção do estado do Maranhão inserida no litoral norte do Brasil (Figura 1), que apresenta elevados índices de riqueza e diversidade biológica, distribuídos nos manguezais, praias, campos

e matas. Este padrão ecológico resulta em uma variada disponibilidade de recursos naturais, distribuída em um gradiente ecológico de intrincados ciclos reprodutivos e ambientais, e em peculiaridades paisagísticas que interferem na distribuição e na acessibilidade/conspicuidade da fauna. Assim, a mobilidade humana pregressa, por enclaves ecológicos, tais como os manguezais estuarinos, deveria estar intrinsecamente relacionada às suas estratégias de alocação de recursos e às outras relações estabelecidas pelos seres humanos com o meio. Sambaquis constituem um marco paisagístico. Quando estes assentamentos foram estabelecidos em um gradiente ecológico de elevada produtividade, como os manguezais, os grupos humanos pretéritos nele assentados percorreram uma área de captação de recursos que pode ser demarcada por meio do registro zooarqueológico.

Figura 1. Inserção do município de São Luís, na ilha de São Luís e estado do Maranhão, onde se localiza o Sambaqui do Bacanga.

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 2, p. 467-480, maio-ago. 2016

Enquanto mosaico ambiental recente constituído em periodicidades astronômicas e ecossistêmicas do Holoceno, o manguezal e sua paisagem de entorno foram, portanto, cenários de sucessivas perambulações humanas no ambiente durante os eventos de subsistência e outras atividades culturais. Diante disso, estes paradigmáticos assentamentos foram utilizados de maneiras diversas por grupos humanos, no passado. Entre outros fatores, estes locais tornaram-se fontes de dados arqueológicos por três razões fundamentais: (1) eles constituem monumentos na paisagem; (2) salvo eventos tafonômicos veementes, conservam, de forma quase constante, os elementos da cultura material, inclusive vestígios zooarqueológicos das ocupações humanas pretéritas; (3) revelam-se importantes fontes de informação para caracterização das áreas de ocupação humana pretérita e como estratégias de captação de recursos. Neste sentido, se um sambaqui, em particular, foi repetidamente utilizado para um propósito ou gama de propósitos específicos, uma longa sequência de vestígios materiais deixou marcadores ocupacionais altamente redundantes ou diferenciados, podendo ser evidenciados no registro arqueológico, possibilitando interpretações sobre o propósito e as características das ocupações humanas que ocorreram nestes sítios (e.g. estratégias de subsistência e diversidade intra e intergrupos humanos). Como outros sítios arqueológicos, a exemplo de abrigos e de cavernas, os sambaquis estão inseridos em um contexto pretérito de captação de recursos em gradientes paisagísticos. Portanto, os estudos voltados para este tema são utilizados para predizer localizações, analisar os contextos ambientais do entorno e determinar função, tamanho e distribuição dos sítios, além das possíveis correlações entre eles. De um modo mais amplo, os estudos sobre áreas de captação de recursos têm por objetivos: descrever o ambiente do entorno dos assentamentos, estudar economias pré-históricas e potenciais recursos dos sítios, analisar padrões de assentamento e desenvolver modelos preditivos sobre localização dos sítios, em uma perspectiva espacial e regional. Portanto, estas pesquisas

podem servir como subsídios para o estabelecimento de modelos explicativos sobre os padrões de mobilidade e/ou subsistência de grupos humanos pré-históricos e/ou pré-coloniais que habitaram determinada região. No Brasil, a aplicação do modelo de forrageamento ótimo e o estabelecimento de áreas de captação de recursos alimentares, por meio da interpretação do registro arqueofaunístico, em sambaquis, já apresentam trabalhos clássicos no âmago da origem da Zooarqueologia praticada no país (Figuti, 1992, 1993; Figuti; Klökler, 1996). Diante disso, este trabalho tem por objetivo contemplar as questões e as hipóteses sobre os padrões de mobilidade atrelados aos modelos de subsistência e à apropriação do ambiente por sociedades humanas pretéritas, nos sambaquis do litoral maranhense, com especial ênfase ao Sambaqui do Bacanga (Figura 2), inserido em um contexto de manguezal estuarino (Bandeira, 2013). Os resultados contemplaram os dados arqueofaunísticos, até agora compilados. Atrelados ao contexto arqueológico, os restos arqueofaunísticos podem servir como subsídios para a elaboração de novas hipóteses e para a aplicação de modelos que ajudem a elucidar algumas questões inerentes às relações ser humano/fauna, nos contextos pretéritos dos sítios arqueológicos do litoral maranhense.

Figura 2. Inserção geográfica do Sambaqui do Bacanga. Composição: Rafael A. Brandi, 2012.

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Mobilidade, subsistência e apropriação do ambiente: contribuições da zooarqueologia sobre o sambaqui do Bacanga, São Luis, Maranhão

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS MOBILIDADE DOS GRUPOS HUMANOS PRETÉRITOS PARA A ALOCAÇÃO DE RECURSOS ALIMENTARES A mobilidade dos grupos de humanos, no passado, podia estar intrinsecamente relacionada à sazonalidade. Variações climáticas e/ou astronômicas (e.g. ciclo de marés e chuvas sazonais) impuseram consideráveis pressões a estes grupos que, ocasionalmente, se movimentaram seguindo as variações espaço-temporais na distribuição dos recursos. Segundo Lieberman et al. (1993), os grupos humanos podem se movimentar quando os custos diários do forrageamento em uma dada região tornam-se maiores do que os custos de se movimentar para outro lugar. Portanto, ainda de acordo com este autor, em áreas com pouca oferta de recursos, esses grupos tenderiam a se mover com frequência e a acampar no centro dos habitats; em ambientes com maior diversidade de recursos, eles seriam, quase sempre, menos móveis e tenderiam a acampar perto de ecótonos, onde os recursos de vários habitats podem ser alocados no mesmo espaço. Diante desta perspectiva, as estratégias de mobilidade dos caçadores-coletores variam amplamente, mas, conforme Binford (1980), podem ser classificadas com base na distribuição e na disponibilidade de recursos, além de também serem baseadas nas relações sociais de produção, como residencial (circular) ou logística (radial). A mobilidade residencial é típica dos forrageadores que dependem da alocação diária de recursos. É caracterizada por frequentes movimentos residenciais de um campo sazonal para o outro em um movimento circular anual e por curtas incursões logísticas (e diárias) de forrageamento. A movimentação logística é típica dos coletores (assim denominados por Binford) que se baseiam na organização logística, aquisição, estocagem e distribuição de recursos. É caracterizada por uma base de acampamentos, relativamente permanente, ocupada durante mais

de uma estação e situada perto dos ‘recursos-chave’ e por longas incursões logísticas de forrageamento. Portanto, segundo Binford (1980), as diferenças entre forrageadores e coletores não residem na frequência ou na amplitude das movimentações, mas nas relações organizacionais entre as movimentações de pequenos grupos de indivíduos e de todo o grupo. Neste contexto, as diferenças entre esses dois tipos de mobilidade são importantes para um entendimento mais detalhado do seu potencial social e dos efeitos ambientais. Desse modo, as atividades e as ocupações em sítios arqueológicos podem ser, usualmente, identificadas pela presença de animais ou de plantas cuja estação de morte ou de coleta/pesca podem ser determinadas, tais como espécies migratórias, restos do esqueleto de animais jovens e de animais com ciclo de vida determinado por marés e sementes ou pólen de plantas utilizados pelos ocupantes do sítio (Carter, 1976; Lieberman et al., 1993). No subitem a seguir, os padrões de mobilidade serão discutidos no âmbito dos modelos e/ou estratégias de subsistência de grupos humanos. A subsistência humana per se não é a única explicação para os padrões de mobilidade das sociedades pré-históricas e/ou pré-coloniais. Todavia, somados a outras interpretações, estes modelos de subsistência ajudam a compreender, de forma mais detalhada, questões intrinsecamente relacionadas aos padrões de mobilidade, tais como a extensão das áreas de captação de recursos e os efeitos da sazonalidade e dos demais ciclos ambientais sobre os grupos humanos.

Modelos de subsistência humana aplicados ao estudo do registro arqueológico Os modelos de subsistência humana foram produzidos no âmbito da interdisciplinaridade entre a Arqueologia e a Ecologia Evolutiva/Humana, com o objetivo de entender o comportamento humano na procura, obtenção e escolha de recursos para consumo. Estes modelos analíticos permitem fazer previsões sobre alguns aspectos do comportamento humano em determinadas regiões. Assim, conforme

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supramencionado, os modelos advindos do forrageamento ótimo são os mais utilizados em estudos de Ecologia Humana (López, 2002). Em Arqueologia, os resultados resgatados no registro são comparados com os resíduos preditos deste modelo (Shennan, 2002; Preucel; Hodder, 1996). Assim como na versão biológica, a visão antropológica dos modelos sucedidos do forrageamento ótimo presume que as decisões dos seres humanos, enquanto predadores, são feitas em função da maximização da obtenção de energia. Adaptado ao contexto humano de alocação de recursos, este modelo de otimização da dieta é utilizado para acessar custos e benefícios entre diferentes estratégias de forrageamento, que definem: (1) a gama de escolhas disponíveis (e.g. manchas e presas); (2) a avaliação dessas escolhas (em função do local, do tempo e do tamanho do grupo); (3) as metas presumíveis do organismo; e (4) as restrições que limitam os benefícios das diferentes escolhas. No contexto destas definições, a amplitude assume que um forrageador procura por todas as presas simultaneamente e as encontra randomicamente e sequencialmente dentro do ambiente (assumindo-se um ‘ambiente grão-fino’1). O tempo de forrageamento é baseado nas decisões dos forrageadores na ocasião da procura e do encontro com a presa: persegui-la, capturá-la, subjugá-la e consumi-la ou continuar procurando. A decisão que maximiza a taxa média de ganho, por unidade de tempo, depende de qual alternativa tem a maior probabilidade de maior retorno energético. Isso é feito pela adição (hierárquica) de recursos de maior para a menor taxa de retorno energético na dieta (Lupo, 2007). Conforme Hawkes e O’Connell (1992), os recursos podem ser hierarquizados pelos benefícios obtidos do consumo relativo aos custos do forrageamento. Recursos de baixo valor energético podem ser comuns, mas os forrageadores os exploram apenas quando não conseguem

esperar um elevado retorno da procura e da captura por presas de maior retorno. Se os encontros com presas de maior retorno energético são suficientemente frequentes, os forrageadores tendem a ignorar aquelas de menor retorno. Por outro lado, se os encontros com as presas de maior valor energético declinam em frequência, os forrageadores tendem a investir menos nesta procura e mais na captura dos recursos de menor retorno. A distinção entre a procura e as ações após o encontro da presa torna-se essencialmente relevante durante as predições sobre as modificações na abundância/ conspicuidade/acessibilidade dos recursos. Ainda de acordo com os pesquisadores supracitados, a relação entre a amplitude da dieta e a proporção do tempo de forrageamento devotado à procura versus captura tem implicações nas transições de subsistência, incluindo a domesticação de plantas e animais. Em uma situação em que a dieta ótima torna-se relativamente limitada e a procura representa uma ampla parte dos custos de forrageamento, o aumento na eficiência de procura pode ter um considerável efeito na eficiência total, ainda que não ocorra um aumento similar na eficiência de captura. Bettinger (1987) e Hawkes e O’Connell (1992) argumentaram que, enquanto a abundância total de recursos altamente energéticos declina e o tempo de procura aumenta, a amplitude da dieta também tende a aumentar. Do mesmo modo como descrito para os demais predadores, entre os humanos, sob circunstância alguma, a amplitude da dieta diminui como resposta à escassez. Em alguns casos, os forrageadores tendem a maximizar taxas de retorno médio pela completa eliminação do esforço de procura. Por outro lado, a seletividade é a resposta apropriada ao aumento na abundância de recursos. Se, por um lado, Bettinger (1987) e Hawkes e O’Connell (1992) enfatizaram a importância da abundância

O “grão” do ambiente sempre vai depender da perspectiva do organismo em questão. No caso de um organismo grande, como o ser humano, uma paisagem de cerrado pode ser vista como um ambiente “grão-fino”. Neste caso, os organismos vão se mover frequentemente entre os tipos de habitats e percebê-lo na proporção em que eles ocorrem no ambiente (Begon et al., 2006).

1

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de recursos nos padrões de forrageamento entre os grupos de caçadores-coletores (e aqui estendem-se as estratégias de pesca), por outro, Kelly (1983) refletiu sobre a diferença entre os conceitos de abundância e acessibilidade de recursos. Este autor definiu acessibilidade como a quantidade de tempo e esforço requeridos na aquisição de recursos faunísticos e vegetais do ambiente. A dispersão, o tamanho, a localização dos recursos em diferentes estratos e os custos do processamento são os primeiros constituintes da acessibilidade de recursos. Em um ambiente de manguezal, por exemplo, algumas espécies de animais apresentam distribuição bem demarcada ao longo do ano, muitas vezes em função de seu ciclo reprodutivo (e.g. algumas espécies de tubarões e camarões), tornando-se, deste modo, mais acessíveis e previsíveis na paisagem. Neste contexto, Kelly (1983) e Lupo (2007) argumentaram que as estratégias de mobilidade são apenas mais uma alternativa no modo como os pescadorescoletores e caçadores se organizam para resolver os problemas sobre a aquisição de recursos. Para estes autores, os modelos de forrageamento ótimo estão mais explicitamente concentrados na natureza de suas estratégias (e.g. coleta massiva de frutos e pequenos roedores e/ou pesca por meio de redes), em detrimento das estratégias de mobilidade dentro das quais os padrões de subsistência podem ser explicados. Esses modelos desempenham um papel crucial no entendimento da função do comportamento de forrageamento para as estratégias de mobilidades das populações humanas pretéritas. Dois outros modelos também utilizados no âmbito das pesquisas sobre forrageamento ótimo são o da escolha de manchas e os de lugar central de forrageamento (LCF). O primeiro assume que um ‘ambiente grão-fino’ não deve ser universalmente aplicável a todos os tipos de presa dentro da gama de escolhas dos caçadores humanos. Estudos etnográficos demonstraram que os caçadores frequentemente exploram microhabitats específicos durante a procura de particulares tipos de presas e antecipam estes encontros com tecnologias apropriadas para a obtenção

dos recursos. Uma vez que os recursos estão distribuídos em manchas, os forrageadores devem decidir que gama de manchas deve incluir durante os eventos de forrageamento. O LCF é um termo voltado a abranger diferentes modelos que examinam o comportamento de forrageadores não humanos que transportam recursos para um lugar central para consumo ou alimentação da prole, provisionamento e outras atividades. Esta gama de modelos considera como os custos de transporte de um recurso podem influenciar na escolha do mesmo, a exemplo do tamanho da presa, das distâncias entre as manchas de forrageamento, da inserção dos lugares centrais na paisagem e a da intensidade/grau de processamento da presa. As aplicações dos modelos LCF mostraram que os organismos tornam-se mais ou menos seletivos para o transporte de presas de maior/menor porte em função das distâncias dos lugares centrais (Kaplan; Hill, 1991; Lupo, 2007). Diante do exposto, o forrageamento ótimo é um modelo importante para uma compreensão mais detalhada dos padrões de subsistência e mobilidade em sociedades humanas pretéritas. Contudo, não é a única explicação para estes padrões. Ainda de acordo com Lupo (2007), os grupos humanos também respondem à religião, a rituais, à hierarquia, à arte e a obrigações pessoais, além de toda uma gama de aspectos presente no universo simbólico e mítico-ritualístico (Trigger, 2004). Portanto, nem todos os movimentos de grupos humanos são diretamente controlados pela subsistência. As populações humanas pretéritas podem ter se movimentado em função do acesso à lenha, matéria-prima para produção de ferramentas ou devido à intolerância aos insetos. Movimentos podem, ainda, ser socialmente ou politicamente motivados.

O GRADIENTE ECOLÓGICO DAS ÁREAS DE MANGUEZAL DO LITORAL NORDESTE DO BRASIL: A ILHA DE SÃO LUÍS EM FOCO No Brasil, o domínio dos manguezais abrange uma superfície total de mais de 10.000 km², ocupando uma

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fração significativa do litoral brasileiro: cerca de 92% da linha de costa (± 6.800 km), entre o extremo norte no Oiapoque, no estado do Amapá (Latitude 4o 30’ N), até seu limite sul na praia do Sonho, em Santa Catarina (Latitude 28o 53’ S). Este ecossistema desempenha papel fundamental na estabilidade da geomorfologia costeira, na conservação da diversidade biológica e na manutenção de amplos recursos pesqueiros, geralmente utilizados pela população local (Monteiro et al., 2011; Rodrigues, 2010). Os manguezais destacam-se pela grande abundância das populações que neles vivem e, por isso, podem ser considerados os mais produtivos ambientes naturais do Brasil (Figuras 3 e 4). A fauna é composta por caranguejos e camarões de diferentes espécies, ostras, moluscos e uma grande variedade de peixes que penetra nos manguezais na maré alta. Muitos dos peixes que constituem o estoque pesqueiro das águas costeiras dependem das fontes alimentares do manguezal, ao menos na fase jovem. Diversas espécies de aves piscívoras e insetívoras nidificam nas árvores do manguezal e forrageiam na maré baixa, quando os fundos lodosos estão expostos (Por et al., 2005).

A alocação de recursos nos ambientes de manguezal: implicações nas estratégias humanas de forrageamento A preferência por recursos em função da abundância e da disponibilidade, evidenciadas no registro arqueológico, pode ser atribuída a caçadores-coletores e pescadores generalistas. Embora, no decorrer do tempo, em um contexto ambiental subjugado aos ciclos ecossistêmicos (e.g. marés e ciclos de vida da fauna) (Figura 5), os grupos humanos que ocuparam os sambaquis possam ter estabelecido diferentes estratégias e áreas de captação de recursos de dimensões distintas, são profícuos os trabalhos que delinearam estratégias generalistas de pesca, caça e/ou coleta, evidenciadas no registro destes sítios arqueológicos (Figuti, 1992, 1993; Figuti; Klökler, 1996).

Figura 3. Espécies florísticas do manguezal do Igarapé do Coelho, nas proximidades do Sambaqui do Bacanga. Foto: Arkley Bandeira, 2010.

Figura 4. Manguezal às margens do rio Bacanga, possível área de captação de recursos pelos ocupantes do Sambaqui do Bacanga. Foto: Arkley Bandeira, 2008.

Figura 5. Baixa-mar em uma praia na ilha de São Luís, onde é exposto um cordão arenoso favorável à captação de recursos. Foto: Arkley Bandeira, 2014.

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Os padrões humanos de subsistência e/ou mobilidade podem estar refletidos no registro zooarqueológico dos sambaquis de manguezais estuarinos e outros ecótonos litorâneos. De acordo com Kelly (1983), muitos recursos animais e vegetais estão disponíveis apenas durante determinadas estações, ciclos astronômicos ou por períodos de tempo delimitados. Portanto, em um domínio biogeográfico, tal como o manguezal e seus ecótonos associados (e.g. mata atlântica), a disponibilidade de grande parte dos recursos animais pode aumentar em função da sazonalidade e do ciclo de vida dos seres vivos, podendo ainda tornar-se mais acessível dentro de uma área de captação de recursos (Figura 6). Mamíferos de médio a grande porte conferem um maior retorno energético, para os forrageadores, do que plantas ou pequenos mamíferos. No entanto, quando há maior disponibilidade de recursos vegetais e/ou invertebrados e peixes, mamíferos de médio a grande porte tendem a produzir menor retorno energético por tempo total investido nestes eventos de forrageamento (Hawkes et al., 1982). Além disso, em uma estação chuvosa, a acessibilidade às presas (consideradas) de maior retorno energético (animais de grande porte, por exemplo) pode diminuir em função de outro fator que não se explica pela abundância destes animais: a menor conspicuidade em função do aumento da capacidade de suporte do ambiente e, consequentemente, da maior dispersão destes animais em períodos sazonais favoráveis. No contexto das variações cíclicas ou sazonais dos estuários, enquanto os recursos considerados de alta qualidade tornam-se escassos (ou inconspícuos) na área do sítio, e requerem maior tempo e energia em sua aquisição, outros recursos, que requerem menor tempo de forrageamento, coleta massiva e processamento, tornam-se mais atrativos (Figura 6). Assim, o registro dos sambaquis (em especial o Bacanga), caracterizado por uma grande quantidade de restos de moluscos e peixes, em relação a outros táxons

(e.g. crustáceos, pequenos roedores e mamíferos maiores) (Figuras 7, 8 e 9), pode indicar tanto um viés tafonômico quanto questões relacionadas ao cálculo da biomassa em laboratório e/ou variações na subsistência humana, em função das modificações da paisagem no ciclo anual.

MÉTODOS E TÉCNICAS APLICADOS AO ESTUDO DA ARQUEOFAUNA Foram analisados os vestígios da arqueofauna inerentes às campanhas de escavação arqueológica realizadas no Sambaqui do Bacanga, no ano de 2006, coletadas, principalmente, em fogueiras ou próximas a recipientes cerâmicos.

Figura 6. Armadilhas de pesca feitas em pedra denominadas camboas ou gamboas, que são referenciadas na literatura como de origem indígena. Foto: Arkley Bandeira, 2013.

Figura 7. Escavação arqueológica no Sambaqui do Bacanga. Foto: Arkley Bandeira, 2006.

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Figura 8. Sambaqui do Bacanga. Fogueira evidenciada no sambaqui com restos faunísticos, carvões e recipientes cerâmicos. Foto: Arkley Bandeira, 2006.

Figura 9. Sambaqui do Bacanga. Variedade dos restos faunísticos, evidenciados no interior das fogueiras. Foto: Arkley Bandeira, 2006.

ESTUDO SOBRE A ARQUEOFAUNA Tendo em vista a relevância dos estudos de Biogeografia, Ecologia e Zoologia regional aplicados à Zooarqueologia, os resultados de levantamentos faunísticos e de planos de manejo serviram como subsídios para as análises da arqueofauna resgatada na campanha arqueológica realizada no Sambaqui do Bacanga, no ano de 2006. Contudo, outros métodos básicos também foram utilizados durante o processo de identificação dos vestígios faunísticos em questão: a) comparação de características taxonômicas – por meio da coleção osteológica de referência do Laboratório de Zooarqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP); b) consultas a compêndios, livros e artigos da área (Chahud, 2001, 2005; Reitz; Wing, 2001).

contexto, para verificação da correlação entre a biomassa de vertebrados terrestres e aquáticos, e possível viés tafonômico, foi realizada uma regressão linear simples, plotada no programa estatístico INSTAT. Também foi utilizado o cálculo da razão tetrápode/peixe em observância aos diferentes números de peças esqueletais em cada um desses táxons, diminuindo o enviesamento das quantificações para o número mínimo de indivíduos das amostras analisadas. O cálculo da razão tetrápode/peixe foi estabelecido pelos autores deste artigo. Optou-se por utilizar a contabilidade de peças esqueletais em detrimento do peso, uma vez que processos tafonômicos (grau de decomposição diferencial e perda de massa óssea) podem ter interferido no peso real dos ossos resgatados nesse sítio.

QUANTIFICAÇÃO DOS DADOS Durante a quantificação dos vestígios arqueofaunísticos resgatados neste sambaqui, foram contabilizadas partes esqueletais essenciais ao cálculo de biomassa para diferentes espécimes. Para o efeito das quantificações, as assembleias arqueofaunísticas de peixes e vertebrados terrestres foram discriminadas por conjunto estratigráfico. Neste

TAFONOMIA Os vestígios arqueofaunísticos compuseram um espectro tafonômico suficiente para diminuir o viés tafonômico2 sobre as identificações da fauna (Pacheco, 2009, 2012). Foram discriminados entre componentes da alimentação e elementos pós-deposicionais. Também foi compilada a presença de adornos e artefatos. A verificação e a captura

A expressão ‘espectro tafonômico’ se refere à premissa de que estudos taxonômicos sobre fósseis (e aqui especificamente sobre amostras zooarqueológicas) devem estar fundamentados no maior número amostral possível, para que seja identificado o maior espectro de variações tafonômicas (e.g. deformações) e morfológicas decorrentes (que podem enviesar as análises).

2

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de imagens foi realizada sob estereomicroscópio Zeiss, modelo SV6, com câmera digital JVC acoplada a um microcomputador PC e por meio do software AxioVision. Esta técnica permitiu alcançar alta resolução e ampliação das imagens e possibilitou a obtenção das principais feições tafonômicas, tais como marcas de uso, de corte e fragmentação, abrasão, corrosão, ação do fogo e da água, bem como de outros agentes naturais e/ou humanos sobre os vestígios orgânicos, inerentes à zona tafonomicamente ativa.

PROTOCOLO DE ANÁLISE E COMPILAÇÃO DOS DADOS Os resultados do estudo da arqueofauna foram compilados em fichas de análise, desenvolvidas perante as características da arqueofauna e das questões levantadas neste trabalho. Uma vez que este estudo zooarqueológico esteve estruturado na compreensão da variação dos padrões de dieta das sociedades humanas pretéritas, este trabalho

priorizou a identificação do viés tafonômico, com ênfase na razão representatividade esqueletal versus biomassa, e suas implicações na interpretação do registro arqueofaunístico.

RESULTADOS E DISCUSSÃO Até o momento, os dados compilados revelaram que a arqueofauna de vertebrados do Sambaqui do Bacanga não era endêmica e corresponde aos animais ainda hoje característicos dos manguezais estuarinos e dos ecótonos associados (Tabela 1 e Figura 10). Nesse contexto, a arqueofauna revelou uma amostragem com maior número de partes esqueletais de táxons da ictiofauna em comparação ao de tetrápodes terrestres, representados, em sua maioria, por espécimes da mastofauna e escassos restos da ornito e da herpetofauna (Figura 11). Esta discrepância foi evidenciada nas razões entre ossos de tetrápodes e peixes3, que variaram de zero a 0,26 (Tabela 2).

Tabela 1. Arqueofauna resgatada no Sambaqui do Bacanga. Osteichthyes

Bagres e baiacus

Condrichthyes

Tubarões e arraias

Mamíferos

Rodentia (equimídeos, cavídeos, dasiproctídeos, agoutídeos, hydrochaerídeos), cervídeos, taiassuídeos, dasipodídeos e didelfídeos

Aves

Aves pequenas e médias

Lepidossaurídeos

Teiús

Testudinas

Quelônios

Lissamphibia

Anuros

Tabela 2. Agrupamento das assembleias arqueofaunísticas por conjunto estratigráfico.

3

Estratigrafia

Peixes

Tetrápodes

Razão tetrápode/peixe

Conjunto estratigráfico

Limpeza

174

4

0,02

A

Sup-10

454

27

0,06

A

10 a 20

306

5

0,016

A

60

63

9

0,14

B

90-110

256

13

0,05

B

119-138

834

45

0,05

B

Estes táxons foram agrupados em assembleias arqueofaunísticas, em conjuntos estratigráficos para compilação das razões em programa estatístico.

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figura 10. Espécimes da arqueofauna resgatada no sambaqui do Bacanga: A) mandíbula de cavídeo; B) parte mesodistal de rádio de dasipodídeo com quebra pretérita; C) detalhe de fêmur esquerdo de cavídeo jovem (sem epífises), com marcas de abrasão; d) tálus de artiodáctilo com marca de abrasão e ação térmica; E) placa de arraia em processo de oxidação pela umidade; f) fragmento mesial de tíbia de paca com marca de quebra pretérita para possível retirada de tutano. Legendas: seta azul = marca de quebra pretérita; seta vermelha = marca de abrasão; seta branca = oxidação; seta verde = marca de quebra recente. Escala: 1 mm.

A arqueoictiofauna foi caracterizada por partes esqueletais de baixo potencial de fragmentação. Quase todos os componentes do esqueleto encontravam-se inteiros e com raras marcas de abrasão. Contudo, os espécimes da arqueoictiofauna mostraram baixa especificidade taxonômica para identificações e quantificações de indivíduos e populações (e.g. raios de nadadeiras, vértebras e partes do crânio também de baixa especificidade taxonômica). Por outro lado, os ossos de tetrápodes (e.g. aves, mamíferos, répteis e anuros) apresentaram alto potencial de especificidade taxonômica (incluindo o esqueleto pós-crânio), ao mesmo tempo em que revelaram um alto potencial de fragmentação.

Assim, a assembleia rica em partes esqueletais de peixes em relação a tetrápodes, que caracteriza o sambaqui do Bacanga, pode revelar tanto escolhas humanas quanto disponibilidade de recursos na paisagem ou, ainda, um viés quantitativo e tafonômico. determinante no grau de fragmentação de uma amostra arqueofaunística, o processo de preservação dos ossos requer condições ambientais peculiares, atribuídas a agentes bióticos e abióticos, intrinsecamente correlacionados e antagônicos aos processos de decomposição da matéria orgânica. Estas condições podem não ser estabelecidas de modo imediato nos sambaquis durante os processos de formação e os eventos pós-deposicionais.

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As carcaças de animais constituem um substrato para a ação dos microrganismos e de vertebrados decompositores. Como resultado da ação da biota do solo, os ossos continuam a compor outro estágio de substrato para outras classes de decompositores. A interferência humana, a ação de decompositores, as bioturbações e a ciclagem de nutrientes constituem, entre outros, os processos que levam ao estabelecimento do registro zooarqueológico, tal qual os arqueólogos encontram e investigam. Nesse sentido, estudos recentes revelaram que pode haver uma conservação diferencial de ossos e esta discrepância também pode ser responsável pela maior representatividade de determinado táxon no registro, em detrimento de outros. Os ossos de mamíferos, por exemplo, são menos resistentes à ação química e microbiológica dos ambientes de deposição, se comparados aos ossos das aves (Pacheco et al., 2012). Por outro lado, embora sejam menos resistentes aos efeitos da diagênese e dos fatores químicos pós-deposicionais, os ossos dos mamíferos mostraram-se mais resistentes a ações mecânicas (e.g. desarticulação e fragmentação) quando comparados aos das aves (Pacheco, 2009; Pacheco et al., 2012). Assim, em determinadas condições, os mamíferos podem prevalecer no registro zooarqueológico (e.g. menor umidade e ambientes de deposição a céu aberto, sujeitos a pisoteamento), enquanto que em outros contextos as aves podem ser mais abundantes (abrigos com maior umidade). Contudo, não há registros suficientes para explicar a resistência (ou não) dos ossos dos peixes em sítios arqueológicos. Um dos fatores que pode explicar a conservação dos ossos da arqueoictiofauna remete às condições químicas de tamponamento e pH característicos dos sambaquis, onde esses ossos são comumente mais abundantes (ver Figuti, 2000). Por outro lado, também foram observados restos de arqueoictiofauna em melhor estado de conservação e abundância em relação a outros táxons em sítios estabelecidos em aldeias Tupiguarani, no

alto curso do rio Paraná, em Mato Grosso do Sul (Pacheco, comunicação pessoal). Do mesmo modo que as aves, os ossos dos peixes apresentam pouca área interna esponjosa e maior número de ossos planos e compactos. Esta conformação diminui a absorção de umidade do meio e tampona a atividade de microrganismos que podem utilizar os poros dos ossos e o colágeno neles imbricado como meio de cultura para propagação e consequente decomposição do osso. Além dos fatores tafonômicos, existe o viés das quantificações. Sabe-se que apenas o crânio dos peixes pode ser composto por cerca de duas vezes mais ossos que o crânio de um primata, por exemplo. Além disso, os peixes realmente possuem mais partes esqueletais repetitivas (e.g. raios de nadadeiras e vértebras) do que a grande maioria dos tetrápodes (Pough et al., 2004). Esta conformação anatômica pode levar a uma falsa interpretação de que existem mais peixes do que tetrápodes em determinado registro arqueológico. Neste tipo de assembleia arqueofaunística, a aplicação de índices de quantificação comumente utilizados em Zooarqueologia (e.g. Número Mínimo de Espécimes e/ou de Indivíduos atribuídos a um táxon) torna-se inútil para a evidenciação de possíveis variações e/ou preferências na dieta das sociedades humanas pretéritas. Diante disso, com vistas a eliminar um possível viés interpretativo, a arqueofauna do Bacanga foi compilada em modelos estatísticos de função, correlação e comparação. Nesse sentido, buscou-se evidenciar possíveis relações quantitativas e/ou equitabilidades de representação esquelética entre tetrápodes e peixes. Conforme a Tabela 2 e a Figura 12, embora a disparidade da razão de ossos de tetrápodes e peixes seja extremamente elevada, o aumento dos ossos dos peixes parece vir acompanhado de um aumento linear dos ossos dos tetrápodes nos diferentes conjuntos estratigráficos do Sambaqui do Bacanga. A Figura 12 corrobora o modelo proposto na Figura 11: além de haver um aumento linear correlativo

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Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba, e ao Instituto de Geociências, da Universidade de São Paulo, pela estrutura para a realização deste trabalho.

REFERÊNCIAS

Figura 11. Regressão linear simples para verificação da correlação entre partes esqueletais de peixes e tetrápodes terrestres (p = 0,0082, relação considerada muito significativa).

BANDEIRA, A. M. Ocupações humanas pré-coloniais na Ilha de São Luís – MA: inserção dos sítios arqueológicos na paisagem, cronologia e cultura material cerâmica. 2013. Tese (Doutorado em Arqueologia) – Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. BEGON, M.; TOWNSEND, C. R.; HARPER, J. L. Ecology from individuals to ecosystems. 4. ed. Oxford: Blackwell, 2006. Bettinger, R. L. Archaeological approaches to hunter-gatherers. Annual Review of Anthropology, v. 16, p. 121-142, 1987. Binford, L. R. Willow smoke and dogs’ tails: hunter-gatherer settlement systems and archaeological site formation. American Antiquity, v. 45, n. 1, p. 4-20, 1980. Carter, P. L. The effects of climatic change on settlement in eastern Lesotho during the Middle and Later Stone Age. World Archaeology, v. 8, n. 2, p. 197-206, 1976.

Figura 12. Teste t para comparação de médias e desvios padrão entre as razões de tetrápodes terrestres e peixes nos conjuntos estratigráficos A e B (p = 0,4, diferença considerada não significativa).

entre ossos de peixes e tetrápodes do Sambaqui do Bacanga, as razões entre as partes esqueletais dos diferentes táxons permanecem quase constantes ao longo da estratigrafia (ver Tabela 2). Desse modo, até o momento, foi possível concluir que não houve variações taxonômicas significativas ao longo dos estratos arqueológicos. Embora ainda sejam necessárias análises e elaboração de protocolos tafonômicos mais acurados sobre a arqueofauna, também é possível inferir que a representatividade dos tetrápodes na dieta não assumiu um caráter tão secundário, se interpretada sob a perspectiva de modelos lineares de correlação.

AGRADECIMENTOS Ao Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, pela disponibilização da coleção osteológica de referência para consulta. Também agradecemos à

CHAHUD, A. Paleomastozoologia do Abismo Ponta da Flecha, Iporanga, SP. In: CONGRESSO LATINO-AMERICANO DE PALEONTOLOGIA DE VERTEBRADOS, 2., 2005, Rio de Janeiro. Resumos... Rio de Janeiro: UFRJ, 2005. p. 76-78. CHAHUD, A. Caracterização tafonômica da assembléia de vertebrados fósseis (Pleistoceno-Holoceno) do Abismo Ponta de Flecha, Iporanga, SP. Projeto PIBIC – CNPq. Relatório Científico. São Paulo, 2001. 45 p. Disponível em: <http://www. bibliotecadigital.gpme.org.br/bd/wp-content/uploads/eco/pdf/bdgpme-0242.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2011. FIGUTI, L. Economia/Alimentação na pré-história do litoral de São Paulo. In: TENÓRIO, Maria Cristina (Org.). Pré-história da terra Brasilis. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000. p. 223-233. FIGUTI, L. O homem pré-histórico, o molusco e o sambaqui. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, v. 3, p. 67-80, 1993. FIGUTI, L. Les sambaquis COSIPA (4200 à 1200 ans AP): étude de la subsistance chez les peuples préhistoriques de pêcheursramasseurs de bivalves de la cote centrale de l’état de São Paulo, Brésil. 1992. Tese (Doutorado em Arqueologia) – Museum National D’Histoire Naturelle, Paris, 1992. FIGUTI, L.; KLÖKLER, D. M. Resultados preliminares dos vestígios zooarqueológicos do sambaqui Espinheiros II (Joinville, SC). Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, n. 6, p. 169-188, 1996.

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Adornos corporais em Carajás: a produção de contas líticas em uma perspectiva regional Body ornaments from the Carajás region: stone bead production in a regional perspective Catarina Guzzo FalciI, Maria Jacqueline RodetII I II

Universidade de Leiden. Leiden, Holanda

Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Resumo: O sítio arqueológico MMA-02, encontrado na Serra dos Carajás, Pará, e associado à variante amazônica da tradição Tupiguarani era um local especializado na produção de adornos corporais em uma matéria prima lítica, a caulinita silicificada. Principalmente, contas discoides estariam sendo produzidas, o que está evidente na predominância de suas pré-formas e restos brutos de debitagem. Para o presente artigo, foi feita a análise tecnológica de uma amostra do material, centrada no estudo da cadeia operatória das contas, com o objetivo de acessar as escolhas feitas por aqueles que frequentaram o sítio: quais as técnicas utilizadas e como se encadeavam em sucessivas operações no trabalho do material. Ao mesmo tempo, procuramos entender o sítio, tanto dentro do padrão observado para as ocupações Tupiguarani no sudeste amazônico, quanto no contexto mais amplo da região amazônica durante a Nossa Era, na qual a referência à circulação de adornos corporais é uma constante. Palavras-chave: Contas líticas. Adornos corporais. Tecnologia lítica. Tupiguarani. Amazônia. Abstract: The archaeological site MMA-02, found in the Serra dos Carajás region (state of Pará, Brazil) and associated with the Amazonian variant of the Tupiguarani tradition, was a specialized place for the production of body adornments in raw stone material, known as silicified kaolinite. Stone disc beads were the main goal of production, as evidenced by the predominance of bead preforms and cutting products among the collected assemblage. For this paper, a technological analysis was conducted on a sample of the pieces, focused on the ‘operational chain’ involved in the production of beads, with the aim of assessing choices made by those that used to frequent the site: which techniques were used and how were these enchained in successive operations for working the material. At the same time, an effort was made to understand the site both in relation to the settlement pattern observed for Tupiguarani occupations in the Southeastern Amazon, and to the Amazonian context during our Current Era, in which there is continuous reference to the circulation of bodily ornaments. Keywords: Stone beads. Body ornaments. Lithic technology. Tupiguarani. Amazonia.

FALCI, Catarina Guzzo; RODET, Maria Jacqueline. Adornos corporais em Carajás: a produção de contas líticas em uma perspectiva regional. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 2, p. 481-503, maio-ago. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/ 1981.81222016000200008. Autora para correspondência: Catarina Guzzo Falci. Universidade de Leiden. Faculdade de Arqueologia, Einsteinweg 2, 2333 CC Leiden, Países Baixos. (catarinafalci@gmail.com). Recebido em 16/04/2015 Aprovado em 28/06/2016

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INTRODUÇÃO A abundância de artefatos de adorno corporal e sua circulação nos diferentes setores da bacia amazônica têm sido apontadas como evidências das mudanças que, a partir do início da Nossa Era, marcam o registro arqueológico da região (e.g., Neves, 2006; Barreto, 2005). Entretanto, muitos desses objetos não apresentam contexto definido, não sendo possível afirmar qual a região exata de que seriam provenientes, nem em que período cronológico teriam sido produzidos, utilizados e descartados. Ademais, em sua maioria, são exemplares isolados e já terminados, o que, pelo menos nas peças em material lítico, normalmente significa que suas faces estão recobertas por polimento, dificultando a identificação da forma como se deu a sua confecção (Costa et al., 2002). Tendo em vista esse panorama, o presente trabalho se propõe a analisar a produção de contas em material lítico do sítio MMA-02 (Mina de Manganês do Azul), no sudeste da região amazônica. Neste sítio, de modo excepcional no território brasileiro, predominam vestígios da produção de possíveis adornos corporais, especialmente na forma de contas líticas e suas préformas e restos brutos de debitagem. O estudo tecnológico desta coleção, na medida em que procura entender como as contas teriam sido produzidas em termos de operações, técnicas e escolhas, permite refletir acerca da importância que teria sido conferida às contas. Ademais, os atributos da indústria cerâmica do sítio apontam para sua associação à tradição Tupiguarani (Scientia Consultoria Científica, 2007), o que permitiu relacioná-la a outros sítios arqueológicos da Serra dos Carajás, alguns dos quais apresentaram contas semelhantes. Os dados levantados neste artigo, portanto, parecem estar de acordo com o contexto regional amazônico, uma vez que apontam para grande dedicação na produção desses artefatos de adorno corporal, e, por consequência, para a sua importância, aliada à sua posterior circulação regional, ainda que aparentemente restrita a um setor da região de Carajás.

CONTEXTO ARQUEOLÓGICO DA AMAZÔNIA A forma como as ocupações tardias da Amazônia précolonial são entendidas têm passado, nas últimas décadas, por mudanças significativas. Na medida em que as interpretações diretamente baseadas no modelo de ‘culturas de Floresta Tropical’ (Steward, [1949]) têm sido deixadas de lado, fala-se em grande pluralidade cultural, fortes indícios de integração regional e instabilidade política em longo prazo, com períodos alternados de maior e menor centralização (Heckenberger; Neves, 2009; Neves, 2006). Evidências da crescente complexificação das formas sociopolíticas têm sido percebidas em um período que vai de 500 a. C. a 1.500 d. C., em diferentes setores da bacia amazônica. Com relação aos assentamentos, diferentes atributos são mencionados como indícios das mudanças características do período: sítios com pacotes espessos de terra preta arqueológica, que podem se estender por quilômetros; montículos para habitação; terra mulata; e alta densidade populacional, por exemplo, na Amazônia Central (Heckenberger, 2010; Heckenberger; Neves, 2009; Neves, 2006, 2010) na ilha de Marajó (Roosevelt, c1992, 2009). Na cultura material, por sua vez, destacam-se artefatos de cunho cerimonial, além de representações humanas e elementos geométricos que evocam animais amazônicos ou que abarcam temas relacionados ao xamanismo (e.g., Fonseca, 2010; Barreto, 2005, 2014; Gomes, 2010, 2012; Schaan, 2007). Nota-se também uma multiplicação dos tipos de artefatos (tangas, bancos, estatuetas e ídolos) e a constante presença de adornos (contas, pingentes, auriculares e tembetás). Em alguns setores, onde predominam bacias sedimentares, a presença de artefatos em rochas ígneas e em pedras semipreciosas polidas aponta para trocas de longa distância (Roosevelt, c1992, 1993). A cultura material deste período, principalmente cerâmica, é composta por representações mais naturalistas e com enfoque na figura humana, o que, apesar da grande variedade de estilos, poderia indicar a existência de uma linguagem regional, um “estilo pan-amazônico” (Barreto, 2005, 2008). De fato, pesquisadores têm chamado a

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atenção para a possibilidade de redes de comunicações, trocas inter-regionais, provavelmente ligadas à circulação de bens de prestígio, como adornos corporais (Boomert, 1987; Rostain, 2006). Isto parece ressaltar a importância da construção dos corpos humanos na constituição das relações políticas e econômicas, como sugerido a seguir: […] the primary capital in Amazonian political economies was sociopolitical and symbolic, in the sense that surplus and wealth orbited around human bodies, constructed through ritual and social interaction, rather than the other way around. […] Ritual performance in highly structured public ceremonial spaces and material culture, notably prestige goods and bodily adornment, were primary mechanisms of social communication – a symbolic language – within multiethnic and, in some cases, multilingual regional sociopolitical systems (Heckenberger; Neves, 2009, p. 259).

Diversos estudos têm apontando para a intensa circulação de adornos corporais na bacia amazônica, no Orenoco e no Caribe (e.g., Barata, 1954; Boomert, 1987, 2000; Costa et al., 2002; Falci, 2015; Gassón, 2000; Hofman et al., 2007; Hofman; Hoogland, 2011). A profusão de adornos é evidência da circulação de bens valorizados em uma área ampla, e também de contatos culturais já apontados pela familiaridade entre as diferentes indústrias cerâmicas. Mais recentemente, foram recuperados em Santarém restos de produção de muiraquitãs na forma de adornos inacabados e furadores, possibilitando um estudo mais aprofundando de sua cadeia operatória (Moraes et al., 2014). Ademais, adornos de matérias-primas variadas foram constatados em várias regiões da Amazônia, como diferentes tipos de pedras, vidro, dente, cerâmica e ossos (Prous, 1992). Materiais perecíveis, como plumária e sementes, seriam também utilizados no período Pré-Colonial, como sugerido por sua abundância entre grupos etnográficos (Ribeiro, 1988). Assim como as miçangas e contas de vidro ‘venezianas’, após o contato, as contas em material lítico são geralmente encontradas em contextos funerários, junto a urnas (Barbosa, 2011; Barreto, 2008; Meggers; Evans, 1957). No presente artigo, por outro lado, serão apresentadas

contas em matéria prima lítica recuperadas em contextos não funerários, associados às ocupações Tupiguarani na Amazônia Oriental, nas quais, a princípio, estão ausentes os indícios de complexidade social crescente acima apontados.

TUPIGUARANI NO SUDESTE DA AMAZÔNIA No sudeste amazônico, no baixo curso dos rios Tocantins e Xingu e no interflúvio entre ambos, vários sítios arqueológicos vêm sendo identificados e associados à tradição ceramista Tupiguarani desde a década de 1960 e, principalmente, a partir da década de 1980 (Simões; Lopes, 1983). De fato, várias fases ceramistas ligadas à tal tradição foram criadas com base no estudo de sítios localizados às margens dos rios Tocantins, Itacaiúnas, Parauapebas e afluentes. Em sua maioria, tratava-se de ‘sítios-habitação’, próximos aos rios, com pacotes estratigráficos de espessura significativa e, em alguns casos, terra preta, indícios de certa permanência em cada local. Tal ocupação parece ter se estendido por um período bastante amplo, com datações que vão dos primeiros séculos da Nossa Era até o século XVIII (Almeida; Neves, 2015; Costa; Lopes, 1985; Pereira et al., 2010; Silveira et al., 2015). Fala-se, portanto, de uma subtradição Tupinambá da Amazônia, com presença de material cerâmico cujas características específicas seriam a decoração policroma, motivos incisos, apliques modelados e decoração corrugada restrita a alguns setores dos vasilhames, além de bordas vazadas e antiplásticos minerais (Almeida, 2008, 2013; Almeida; Neves, 2015; Costa; Lopes, 1985; Pereira et al., 2010; Scientia Consultoria Científica, 2008). No que diz respeito às influências de outras tradições nesta cerâmica (principalmente da tradição Inciso Ponteada) e à heterogeneidade entre suas fases, chama-se atenção para a plasticidade por parte de seus portadores, influenciados pelos grupos vizinhos. Sendo assim, tal área geográfica é considerada um centro em que culturas diferentes teriam entrado em contato, o que teria levado à miscigenação e a influências culturais, mais claramente vistas nas técnicas decorativas (Pereira et al., 2010; Simões; Costa, 1987).

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Uma tipologia foi criada para os assentamentos na área: 1) sítios de habitação ou ‘aldeia’; e 2) sítios de ocupação temporária ou “acampamentos” (Almeida; Garcia, 2008; Silveira et al., 2009a). De fato, esta mesma oposição é sugerida para sítios Tupiguarani de outras áreas do país, embora possa ser problemática, tendo em vista o número pequeno de estudos com enfoque em espacialidade e inserção na paisagem dos sítios (Prous; Rocha, 2011). Por outro lado, Assis (1997), com base em fontes etnohistóricas sobre os Tupinambá, trata da mesma dicotomia entre o assentamento de habitação, com praça e casas comunais, e os diferentes acampamentos, voltados a atividades especializadas, como o cultivo, a caça e a pesca. Estes estariam localizados no espaço de modo a aproveitar os recursos disponíveis em cada ambiente, fosse a mata, os rios, o mar ou as fontes de matérias-primas (Assis, 1997). Um exemplo de tal tipologia está na área do Projeto Salobo, na região de Carajás (Silveira et al., 2009a, 2015). Nas três sub-bacias pesquisadas, foram encontrados vários sítios Tupiguarani (igarapé Salobo e rio Cinzento) e sítios

de cerâmica diferente, com elementos da tradição Inciso Ponteada (igarapé Mirim). Os sítios Tupiguarani encontram-se geralmente em baixas vertentes, delimitadas por meandros dos igarapés ou por grotas e por um morro, ou pelo menos em suas proximidades. Foram observados ‘acampamentos’, isto é, sítios cerâmicos pequenos com pouca profundidade e baixa densidade de material, e ‘sítios de habitação’, com terra preta ou solo marrom escuro com até 60 cm de profundidade, material abundante, buracos de estacas e fogueiras, além de polidores fixos às margens dos igarapés. Em alguns desses sítios, foram encontrados possíveis adornos corporais em material lítico: contas e pingentes inacabados, feitos em quartzo, hematita e uma matéria- prima singular, a caulinita silicificada. Restos brutos de debitagem diretamente associados à confecção desses adornos foram também observados (Rodet; Duarte-Talim, 2009; Rodet et al., 2014b). A presença desses artefatos em tais sítios é interessante, na medida em que esta caulinita parece ser a mesma trabalhada a aproximadamente 50 km de distância, no sítio aqui apresentado (Figura 1).

Figura 1. Mapa de Carajás com a localização da Mina de Manganês do Azul, da Mina de Ametista do Alto Bonito e a região do Cobre Salobo. Mapa: A. Leite (2016).

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A MINA DE MANGANÊS DO AZUL O Manganês do Azul (Figura 1) encontra-se na porção leste da Serra Norte de Carajás, no conjunto de platôs na borda nor-ocidental do Granito Central (Costa et al., 2005). A área das minas do Azul, a aproximadamente 70 km a oeste da cidade de Parauapebas, é delimitada pelas barragens dos igarapés Kalunga, a sul, e Azul, a norte, apresentando 5 x 1 km de extensão. Com altitudes que não ultrapassam 600 m, os platôs são cobertos tanto no topo quanto nas encostas por árvores de grande porte, com dossel uniforme e denso, sem penetração de raios solares nas camadas mais inferiores (Scientia Consultoria Científica, 2007). Os trabalhos de prospecção e salvamento arqueológico na área da Mina de Manganês do Azul foram realizados em 2007 pela Scientia Consultoria Científica, no âmbito do projeto “Arqueologia preventiva na área da Mina de Manganês do Azul, Complexo Minerador de Carajás, PA”. Em terreno de mata a céu aberto foi encontrado o sítio MMA-02, com extensão aproximada de 100 x 100 m, sendo atravessado por uma estrada de acesso e delimitado a oeste pelo igarapé Boa Sorte. Quadras de 1 m² foram escavadas segundo uma malha geométrica regular, com espaçamento de 10 m e níveis artificiais de 10 cm, tendo a escavação sido expandida nos setores de maior concentração de vestígios. O material arqueológico distribuía-se desde a superfície até 220 cm de profundidade, estando concentrado entre 20 a 50 cm (89%). Houve predominância do material lítico, com mais de 23 mil peças, seguido pelo cerâmico, associado à tradição Tupiguarani, cujos números não ultrapassaram 2 mil fragmentos. Foram ainda identificados 30 sementes carbonizadas e 9 mil fragmentos de carvão, mas ainda não foram realizadas datações (Scientia Consultoria Científica, 2007). Uma avaliação inicial dos vestígios líticos deixa clara a existência de uma matéria prima preferencial (caulinita silicificada) e o aparente intuito de produzir adornos corporais, em especial contas. Embora parte deste material lítico (aproximadamente 15 mil peças) já tenha sido analisada (Falci, 2012; Rodet et al., 2014a; Rodet;

Duarte-Talim, 2011), neste trabalho será discutida uma amostra do material em caulinita silicificada proveniente de uma das áreas de expansão da escavação, junto à estrada de acesso. Dentro desta, 50% das peças do nível 40-50 cm de quatro unidades foram analisadas. Seguindo uma metodologia de coleta mais intensa de dados para cada peça lítica individualmente, buscou-se entender, em detalhe, as cadeias operatórias de produção das contas, as operações e escolhas aí implícitas.

CONCEITOS E METODOLOGIA De modo a reconstituir as escolhas dos indivíduos e suas atividades cotidianas ligadas ao trabalho da pedra, o conceito de cadeia operatória (Leroi-Gourhan, 1964) pode ser usado como instrumento de observação, descrição e análise dos processos técnicos através do material arqueológico (Balfet, 1991). A proposta deste conceito é englobar todos os estágios sucessivos da vida de um objeto: sua concepção mental, a seleção das matérias-primas, os diferentes momentos que compõem sua manufatura, seu uso, reavivamento e descarte. Procede-se pela organização hierárquica de todos os vestígios líticos, em uma perspectiva morfotecnológica, de modo a acessar como as diferentes operações se encadeavam no tempo e se inseriam no espaço (Cahen et al., 1980; Inizan, 1982; Karlin, 1992; Pelegrin, 1991; Tixier, 1980). Isto é feito através da leitura tecnológica dos esquemas diacríticos presentes nas peças arqueológicas e da remontagem mental (Tixier, 1980); dito de outra maneira, pela observação e identificação da origem, da direção e da ordem dos lascamentos, expressas em seus produtos (instrumentos, núcleos, lascas e pré-formas). Pode-se, assim, entender como o trabalho era organizado no sentido de uma economia da debitagem, daquilo que era constante em termos da adaptação ao material trabalhado e dos hábitos e preferências sociais (Cahen et al., 1980; Inizan, 1982). É também possível chegar a uma organização espacial da produção lítica que vai além de um único sítio (Geneste, 1991), seguindo a

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distribuição da cadeia operatória no espaço, segundo o custo de aquisição e transporte do material, e as necessidades e desejos do grupo, ou seja, uma economia da matéria prima (cf. Perlès, 1980). Esta abordagem põe em evidência a existência de diferentes tipos de sítios: de extração de matéria-prima, de produção lítica, de habitação, de caça etc. (Pelegrin, 1995; Rodet, 2006). O ponto de partida da análise tecnológica, entretanto, deve ser o objeto técnico (Geneste, 1991), isto é, o objetivo final, pois ele é o projeto e o desejo subjacente a toda a cadeia operatória. Neste caso, tratam-se das contas em caulinita silicificada, objetos arredondados, com perfuração única situada em seu centro, no eixo de rotação. A variação em sua morfologia se dá a partir de

duas dimensões: o diâmetro, medido na face da conta, e a espessura, medida na conta vista em perfil, paralela ao eixo de perfuração (Figura 2). De fato, ‘perfil’ faz referência à secção longitudinal das contas, enquanto ‘geometria’ se refere à secção transversal, ao formato da face de perfuração (Barge, 1982; Watters; Scaglion, 1994). O tipo predominante de conta na coleção é ‘discoide’, cujo perfil caracteriza-se pela presença de duas extremidades largas, retilíneas e paralelas, separadas por duas extremidades curtas e retilíneas (Barge, 1982; Falci, 2012).

A CAULINITA SILICIFICADA Estudos que permitam a identificação da matéria-prima utilizada para as contas do MMA-02 ainda não foram

Figura 2. Pré-formas de contas discoides em diferentes etapas da produção, com geometrias quadrangular (esquerda), circular irregular e regular (centro), e contas quebradas ao meio (direita). No alto à esquerda: em (A), a face de perfuração, com geometria circular; em (B), o perfil da conta; e (C) corresponde ao diâmetro. Fotos fora de escala.

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conduzidos. Sendo assim, foi tomado como referência o estudo feito para as contas e os adornos dos sítios da bacia do igarapé Salobo (Silveira et al., 2009a, 2015), pois, além de os materiais e as cadeias operatórias serem similares, as duas áreas são próximas entre si. Através das análises feitas nas peças do Salobo, pôde ser confirmado que a matéria-prima utilizada na produção dos adornos era a caulinita silicificada de tipo ‘flint’ (Rodet et al., 2014b). Constatou-se grande homogeneidade entre as peças analisadas, sendo constituídas principalmente por SiO 2, Al 2O 3 e P 2O 5, predominando a caulinita {Al2(Si2O5)(OH4)} e o quartzo (SiO2), o que sugere uma mesma fonte de extração para peças encontradas em diferentes sítios desse igarapé (Pantoja, 2012, 2013). De fato, a caulinita não só é um mineral que tem ocorrência comum na região de Carajás, mas também faz parte da estratigrafia da Mina de Manganês do Azul, podendo mesmo ser encontrada em superfície (Costa et al., 2005). Este dado sugere que, caso seja a mesma matéria-prima, poderia ter sido extraída ou coletada nas proximidades do sítio MMA02, para, então, ser utilizada na confecção dos adornos. Por outro lado, como ressalta Pantoja (2013), esta variedade de ‘caulim flint’ com fosfato ainda não foi cartografada, o que não permite identificar uma área de proveniência certa. Trata-se de uma matéria-prima homogênea, com granulometria fina, coloração esbranquiçada e fosca. Diferente da caulinita comum, de baixa dureza, esta tem dureza média 3-4 na escala de Mohs (Pantoja, 2013), provavelmente em função de ação térmica durante sua formação e da presença de camadas com pequenos cristais de quartzo e microelementos incrustados, denominadas, neste estudo, de “córtex de caulinita silicificada”. Isto possibilita um lascamento com alto grau de controle; por outro lado, diferentemente de outras rochas ricas em sílica, pode também ser facilmente alisada ou polida, sem que haja grandes riscos de quebra, uma vez que perde matéria rapidamente. Por outro lado, recentemente (junho, 2016) foi realizada uma visita ao setor denominado Alto Bonito,

situado 20 km a nordeste da Mina de Manganês do Azul, local de produção de ametista. Durante a visita, foi observado nos veios de ametista a presença da caulinita do tipo ‘flint’, com micro quartzos ou cristais de ametista. De acordo com Clovis Maurity e Carlos Teles (comunicação pessoal), pesquisadores da empresa Vale, o ambiente de formação dessa matéria-prima foi hidrotermal, o que fez com que a mesma se precipitasse, endurecesse e, finalmente, fosse aprisionada pelos cristais; diferentemente da caulinita do Manganês do Azul, que é de origem sedimentar (podendo ter hidrotermalismo em sua formação). Atualmente, C. Maurity analisa a assinatura química das amostras coletadas para uma comparação entre as matérias-primas provenientes das duas minas.

APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO Das quatro unidades do sítio mencionadas, foram coletadas 1.461 peças em caulinita silicificada, das quais serão discutidas 907 peças, por estarem diretamente associadas à cadeia operatória das contas discoides (Tabela 1). Alguns elementos dificultaram a leitura tecnológica das peças, por exemplo, estigmas de contato térmico e a presença de superfícies alisadas por água. Estas são provavelmente resultantes da intensa passagem de água durante o período das chuvas, que arredondou arestas e superfícies, deixando um aspecto brilhoso e de difícil leitura. Apesar disso, grande parte da coleção encontra-se em bom estado de conservação, com poucas quebras, arestas em geral vivas e superfícies legíveis. Tabela 1. Peças em caulinita ligadas à cadeia operatória das contas.

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Tipos

Quantidade

Contas Suportes para contas

37 Lascas Plaquetas

29 17

Núcleos

26

Lascas

798

Total

907


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Tabela 2. Características das contas em caulinita silicificada.

ANÁLISE TECNOLÓGICA AS PRÉ-FORMAS DE CONTAS Entre as 37 contas identificadas (pré-formas e fragmentos), o perfil discoide pôde ser observado em 26, apresentando diâmetros geralmente entre 1,6 cm e espessuras entre 0,2 e 0,6 cm. As contas inacabadas podem apresentar geometrias circular irregular, quadrangular, retangular e facetada, enquanto as mais próximas da finalização já têm geometria circular regular (Figura 2, Tabela 2). As 11 contas com perfil não identificado são mais espessas do que as discoides, e apresentam geometrias facetadas, retangulares e quadrangulares. Trata-se provavelmente de contas discoides inacabadas. Ademais, 27 contas sofreram quebras, das quais sete foram ao meio e três foram quebras maiores, restando apenas ¼ da peça. TÉCNICA DE LASCAMENTO Uma técnica de lascamento predominou na coleção: a percussão sobre bigorna (PSB). Trata-se, porém, de um lascamento apoiado/oblíquo, e não da fratura axial (90º) comumente associada a esta técnica: o núcleo é apoiado sobre a bigorna em um ângulo levemente inclinado ou simplesmente o gesto efetuado durante o golpe é oblíquo, não direcionado para o ponto de apoio (Prous et al., 2010; Rodet et al., 2013). Esta variedade da técnica permite a retirada de lascas menos invasivas do núcleo, possibilitando mesmo adelgaçar uma peça, de modo a façoná-la, sem correr o risco de fragmentar a peça inteiramente. De acordo com van der Drift (2009), as lascas resultantes desta técnica frequentemente apresentam bulbos difusos e talões lisos e largos, o que faz com que sua diferenciação das lascas de percussão direta dura seja dificultada. Além disso, embora o esmagamento distal produzido pelo ponto de contato com a bigorna seja visível nos núcleos, ele geralmente não está presente nas lascas, assim como o contragolpe muitas vezes é inexistente (van der Drift, 2009). No caso da caulinita silicificada, pudemos observar estigmas característicos associados à PSB: tanto a presença

Estado

Razão = espessura/ diâmetro

Geometria

Perfil discoide

Perfil desconhecido

Inacabadas

16

10

Quebradas

10

01

Espessas (1,5-3,0)

08

11

Finas (3,1-4,6)

17

7,5

01

Circular

12

Circular irregular

08

Retangular

01

01

Quadrangular

02

01

Facetada

03

07

Desconhecida

02

de esmagamento na face inferior, próximo ao talão (este geralmente ‘de aresta’, esmagado, côncavo ou linear), quanto de contragolpes nas partes distais de várias lascas. Nos núcleos, por sua vez, identificamos de modo sistemático a presença de áreas opostas entre si, com intenso esmagamento (correspondendo ao plano de percussão e à área de apoio sobre a bigorna), e esmagamento na superfície de debitagem, logo abaixo do ponto de impacto. O esmagamento nos núcleos e na face inferior das lascas de PSB pode estar associado a vários fatores, como a densidade e o peso do percutor, a força aplicada, o gesto e a resistência da matéria-prima que será fragmentada, sendo que tais microesmagamentos característicos corresponderiam ao início da fratura (Duarte-Talim, 2012; Falci, 2012; Rodet, 2008; Rodet et al., 2013). Nestas mesmas lascas, por outro lado, foi observada a presença de bulbos (mais ou menos marcados ou difusos), ondas e, ocasionalmente, de talões lisos e corticais, características mais comuns na técnica da percussão direta dura. Tais elementos, em conjunto com os estigmas mencionados acima (contragolpes e esmagamentos), apontam para a utilização da percussão sobre bigorna em sua modalidade oblíqua na maior parte

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das lascas da coleção (770 lascas; 96,5%). Apesar disso, não foram coletadas durante a escavação peças que pudessem ter servido como percutores ou bigornas para a execução desta técnica.

CADEIA OPERATÓRIA DAS CONTAS Pode-se falar de quatro grandes operações que teriam composto as cadeias operatórias das contas discoides: debitagem, façonagem, alisamento e perfuração (Figura 3). Deve-se ressaltar que, apesar de tais operações seguirem uma tendência linear, esta não é obrigatória, podendo haver oscilações entre as diferentes operações, de acordo com o julgamento daquele que trabalha a matéria-prima. Debitagem Na debitagem, fratura-se um bloco de matéria-prima de modo a produzir os suportes a partir dos quais serão feitas as contas (Inizan et al., 1999). Esta operação parece ter se dividido em fases sucessivas, sendo que as lascas resultantes podem ser classificadas de acordo com seu papel na cadeia operatória (Cahen et al., 1980). Os 26 núcleos da amostra são pequenos (poucos ultrapassam 4 cm), de coloração esbranquiçada, homogêneos e com granulometria que vai de fina a média. Todos foram trabalhados por percussão sobre bigorna, como sugere a presença constante de faces e arestas com esmagamento intenso. Muitos apresentam

superfícies corticais ou, pelo menos, córtex vestigial, podendo tais superfícies ser usadas como planos de percussão ou áreas de apoio na bigorna (Figuras 4A e 4B). Outra possibilidade, menos comum, é o uso de uma antiga superfície de debitagem (antigos negativos) como plano de percussão, gerando lascas com talões lisos. O uso de superfícies lisas ou corticais como plano de percussão, somado à presença de contrabulbos e ondas, sugere o uso do lascamento oblíquo na PSB. Houve, porém, preferência por um tipo de plano de percussão específico: o encontro entre duas ou três arestas de diferentes negativos. O seu uso teria permitido a retirada de lascas mais padronizadas, com espessuras adequadas para a transformação em conta, e um talão característico, aqui denominado de ‘de aresta’. Foram debitados até quase se esgotarem, deixando peças pequenas, com número alto de negativos, uso de vários planos de percussão diferentes, sugerindo reorientação constante do núcleo ao longo do lascamento. Alguns negativos se encontram interrompidos, porém não há outras evidências de que os núcleos tenham sido muito maiores, uma vez que as lascas também apresentam dimensões reduzidas. A debitagem foi dividida em algumas etapas, de acordo com os produtos resultantes encontrados no sítio. As Tabelas 3 e 4 incluem um sumário dos produtos de debitagem resultantes desta etapa da cadeia operatória.

Figura 3. Cadeia operatória idealizada das contas de caulinita silicificada.

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Tabela 3. Produtos de debitagem (lascas e núcleos) da cadeia operatória das contas discoides. Operações Descorticagem Plena debitagem Lascas com FS mais ou Lascas com parte da face menos lisa e com acidentes superior (FS) cortical e/ refletidos na face inferior (FI): ou talão cortical lascas-suporte

Produtos de debitagem

Final da debitagem

Lascas espessas com muitos negativos em diferentes direções e muitos refletidos na FS (limpeza)

Pequenas lascas, muito finas, com FS bem lisa, com um ou dois negativos unipolares

Lascas com FS parcialmente cortical

Lascas com arestas na FS, negativos unipolares e opostos e/ou perpendiculares ao eixo de debitagem

Lascas com antigos talões de aresta na FS (limpeza)

Lascas pequenas, mais ou menos espessas, com negativos bipolares ou perpendiculares

Núcleos médios e grandes com muitas faces corticais, pouco esmagamento e com menor número de planos de percussão

Lascas longas com arestas esmagadas ou com pequenos negativos perpendiculares ao eixo de debitagem na FS (limpeza)

Núcleos pequenos ou médios com arestas e faces esmagadas e arredondadas; uso de diferentes planos de percussão

Núcleos menores do que 2 cm, com esmagamento, 2 a 5 planos de percussão diferentes, opostos e perpendiculares, e até 10 negativos de retiradas

Tabela 4. Atributos das lascas de debitagem. Descorticagem Lascas-suporte

Plena debitagem

Final de debitagem

Limpeza do núcleo

Máx.

3,3 x 1,5 x 0,5

2,6 x 2,3 x 0,7

3,9 x 2,6 x 1,4

1,9 x 2,0 x 0,9

1,5 x 1,4 x 0,2

Mín.

0,6 x 1,1 x 0,3

1,0 x 0,9 x 0,3

1,6 x 1,4 x 0,4

0,4 x 0,6 x 0,3

1,3 x 1,1 x 0,3

Tipos de talão

Liso Linear ‘De aresta’ Diedro Esmagado

Liso ‘De aresta’ Facetado

Linear Liso Esmagado

Esmagado Côncavo Facetado Liso

Linear

Bulbo

Difuso Ausente

Marcados Presentes Difusos

Difuso Ausente

Ausente

Marcado Ausente

Acidentes

Refletido Quebra

Refletido Quebra

Refletido Quebra

Ausente

Refletido Quebra

Dimensões (cm)

Descorticagem A primeira etapa refere-se à retirada do córtex, de modo a possibilitar a debitagem dos suportes. As lascas desta etapa (69, 8,64% das 798 lascas) são as maiores da coleção e têm muito córtex na face superior, inclusive no talão (16, 23,18% das 69), evidência do uso de planos de percussão corticais. Mesmo no início da debitagem, os núcleos são girados, havendo uso de diferentes planos de percussão (Figuras 4D e 4E). Nas faces inferiores, são observados esmagamentos próximos ao talão.

Não é possível, entretanto, considerar a descorticagem uma etapa sistemática, pois o córtex está presente em diferentes lascas e núcleos, mesmo nos quase esgotados. Isso significa que o córtex não é completamente removido nesta primeira etapa. Além disso, o córtex pode ser facilmente retirado durante o alisamento, não sendo necessariamente um impedimento à confecção das contas. Por outro lado, os núcleos estudados não parecem ser de início de debitagem, pois são pequenos e apresentam poucas superfícies corticais.

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Plena debitagem Nesta etapa, desenvolve-se não somente a retirada das lascas-suporte, que serão transformadas em contas, mas também a limpeza das superfícies dos núcleos, na medida em que o prosseguimento do lascamento as deixa irregulares. Lascas-suporte Os produtos de primeira escolha da debitagem dos núcleos, mais próximos aos padrões culturais e técnicos de um suporte desejado, seriam lascas com características específicas, consideradas adequadas para a transformação em conta. Seu comprimento e largura apresentam geralmente valores próximos em cada lasca, dando-lhes uma forma regular (Figura 4C). Além disso, de modo geral, tais lascas apresentam dimensões próximas ou superiores às das contas. Em sua maioria, as lascas-suporte apresentam pelo menos uma face lisa e sem irregularidades (sejam negativos, acidentes refletidos ou córtex), o que as aproxima do desejado nas faces das contas finalizadas. De modo geral, foram debitadas por percussão sobre bigorna (22, 84,61%), como indicado pelo esmagamento próximo ao talão e pela presença de contragolpe. Muitas delas apresentaram faces inferiores levemente convexas, em função da presença de bulbos e de acidentes refletidos. Outro acidente comum são as quebras nas extremidades, as quais talvez fossem procuradas como início de delimitação do bordo. Limpeza do núcleo Este momento seria marcado pela ‘limpeza’ das superfícies do núcleo, através das retiradas de áreas muito irregulares. A primeira subcategoria abrange lascas geralmente espessas, mais longas do que largas, relacionadas à limpeza das superfícies de debitagem (Figuras 4F e 4G). As faces superiores são muito irregulares, com até dez negativos. Além disso, estão presentes refletidos intensos e arestas sobrepostas por esmagamento, associado ou não à saída de pequenas lascas.

A segunda categoria abrange as lascas de limpeza do plano de percussão. Estas são arredondadas, com intenso esmagamento na face superior e vários negativos, os quais se distribuem radialmente de seu centro (Figura 4H). Durante o lascamento dos núcleos, várias áreas são utilizadas como planos de percussão ou áreas de apoio sobre a bigorna, ficando isoladas e em relevo no núcleo, sendo depois retiradas para ‘limpar’ o plano de percussão. Trata-se de uma limpeza de locais de antigos encontros de arestas (que apresentam morfologia mais ou menos cônica), sendo retirados de forma a abrir novos planos de percussão lisos.

Final da debitagem Finalmente, quando o núcleo já está quase esgotado, são retiradas lascas bem menores e pouco espessas, podendo apresentar face superior lisa ou com muitos negativos, dependendo da forma como o núcleo foi trabalhado. Neste momento, os núcleos são menores do que 2 cm, apresentando áreas de intenso esmagamento. O trabalho até o ‘esgotamento’ dos núcleos geralmente indica um aproveitamento de uma matéria-prima altamente desejada, porém escassa. Neste sentido, o uso da PSB seria compreensível, na medida em que permite trabalhar peças com dimensões muito pequenas. Entretanto, a presença abundante de caulinita silicificada na área e a grande quantidade de peças no sítio vão em sentido contrário à ideia de carência de matéria-prima. É possível que as pequenas lascas desses núcleos também fossem suportes adequados para contas, uma vez que não exigiriam uma façonagem intensa; ademais, os próprios núcleos, como sua morfologia sugere, poderiam ser transformados em pré-formas, a partir do alisamento. De forma alternativa, outros suportes utilizados para a produção de contas no sítio são plaquetas de caulinita silicificada. Estas apresentam naturalmente duas faces corticais achatadas e paralelas, separadas por um bordo pouco espesso. Elas foram usadas como suportes

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graças à tal morfologia singular, não havendo, portanto, necessidade de debitar um núcleo. Alguns dos possíveis suportes sobre plaqueta apresentam córtex em parte de seu bordo. De fato, a ausência do córtex nas laterais

sugere uma façonagem inicial, criando pré-formas com geometrias variadas. Em sua maioria, apresentam faces achatadas e sem irregularidades, com dimensões que podem variar de 5,7 x 2,0 x 0,8 cm a 1,0 x 0,7 x 0,2 cm.

Figura 4. Núcleos em caulinita silicificada com presença de contragolpes (A) e vários setores esmagados (B), e lascas de debitagem (C, D, E, F, G e H).

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Façonagem A operação seguinte na cadeia operatória é a façonagem, cuja função principal é dar forma ao suporte (seja uma lasca ou uma plaqueta), de modo a aproximá-lo do artefato desejado, com volume e morfologia específicos

(Inizan et al., 1999). A façonagem dos suportes gera pré-formas de contas com negativos sucessivos de lascamento em suas laterais, delineando o bordo da conta e dando-lhe uma geometria mais próxima à circular (Figura 5A).

Figura 5. Façonagem das contas discoides: (A, B e C) façonagem típica (em C, detalhe dos negativos no bordo de uma pré-forma, com esmagamento proximal e contragolpes); (D) retirada na espessura da pré-forma; (E) retirada no bordo da pré-forma.

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O número de retiradas no bordo das pré-formas de conta da amostra varia bastante, embora predominem de seis a oito negativos. Em sua maioria, foram feitos por percussão sobre bigorna oblíqua, havendo preferência pelo método bipolar, retirando lascas de ambas as faces das pré-formas alternadamente, embora algumas retiradas possam sair do próprio contragolpe. As dimensões dos negativos variam geralmente entre 0,2 e 1,0 cm, tanto no comprimento quanto na largura. Grande parte das lascas analisadas neste artigo está associada à façonagem dos suportes (269, 33,7% das 798 lascas). Diferentes categorias de lascas de façonagem foram identificadas, mas estas não se referem a uma progressão

dentro desta operação, e ,sim, a variações nas formas como ela pode ser feita. Tais categorias são descritas a seguir e sumarizadas nas Tabelas 5 e 6. Lascas típicas As lascas mais típicas da façonagem (206 lascas, 76,57% das 269) são pequenas e pouco espessas. Apresentam poucos negativos bipolares na face superior, além de uma superfície paralela e oposta ao talão, que pode estar alisada ou não (Figura 5B). O talão e esta superfície correspondem às faces da pré-forma, de modo que seu comprimento é, na verdade, a espessura da pré-forma. Podem, ainda, apresentar esmagamento na face inferior, próximo ao talão e contragolpes

Tabela 5. Lascas de façonagem de contas discoides. Operações Façonagem de lascas-suporte

Subcategorias de lascas

Façonagem de plaquetas-suporte

Lascas pequenas, pouco espessas, geralmente com negativos bipolares na FS e uma superfície distal, paralela ao talão

Lascas pequenas, pouco espessas, com talão cortical, negativos bipolares na FS e uma superfície distal cortical, paralela ao talão

Lascas com talão facetado e FS lisa (plana, com um único negativo), retiradas a partir do bordo da pré-forma, diminuindo sua espessura

Lascas mais espessas, com talão e superfície paralela ao talão corticais

Lascas com uma lateral da FS lisa e outra lateral com vários negativos perpendiculares, retiradas a partir do bordo da conta nele mesmo Lascas espessas, com talão liso e superfície distal paralela ao talão, retiradas na face da pré-forma

Tabela 6. Atributos das lascas de façonagem de contas discoides. Lascas típicas

Acidentais

Retiradas do bordo

Máx.

0,6 x 0,9 x 0,3

1,1 x 2,8 x 0,8

1,4 x 1,7 x 0,5

Mín.

0,3 x 0,7 x 0,2

0,3 x 1,3 x 0,4

0,5 x 1,0 x 0,3

Tipos de talão

Liso Linear Cortical ‘De aresta’

Liso Linear Cortical ‘De aresta’

Linear Facetado Esmagado

Bulbo

Difuso Ausente

Difuso Ausente

Ausente

Acidentes

Esquilha bulbar

Quebra

Refletido Esquilha bulbar

Dimensões (cm)

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(Figura 5C). Tais lascas concordam claramente com os negativos presentes no bordo das pré-formas de contas. Quando apresentam o talão e a superfície oposta corticais, é geralmente um indício de que o suporte era sobre plaqueta. Após o alisamento das faces das pré-formas sobre plaqueta, dependendo de sua intensidade e da espessura do córtex, já não é possível diferenciar as lascas de cada um dos suportes, uma vez que o córtex não está mais presente. Os estigmas observados nas lascas também indicam o uso da percussão sobre bigorna, na qual a peça a ser trabalhada (ou o gesto) é inclinada. Isto poderia ter sido realizado sobre uma aresta da bigorna, ao invés de sobre a face, uma vez que proporcionaria maior precisão ao trabalho e menor risco de acidentes, tendo em vista o pequeno tamanho do suporte a ser lascado (van der Drift, 2009; Prous et al., 2010). Lascas acidentais A retirada destas lascas (57, 7,14% das 798) também foi feita na face de pré-forma de conta, porém em área mais próxima de seu centro. Isto gerou lascas mais largas do que longas e espessas, com face superior semelhante às descritas acima. Sua retirada parece ter se dado em função de um erro do lascador, que, durante a retirada de lascas, como as anteriores, teria batido muito no centro da pré-forma, retirando mais matéria do que o necessário e estragando sua geometria, o que provavelmente o teria levado a abandonar a peça. Lascas retiradas do bordo Estas seriam lascas de façonagem retiradas a partir do próprio bordo – isto é, usando-o como plano de percussão (25, 3,13% das 798). Neste caso, têm-se duas possibilidades: 1) retiradas cuja superfície de lascamento é a face das pré-formas de contas; e 2) retiradas cuja superfície de lascamento é o próprio bordo. No primeiro tipo, as lascas apresentam face superior lisa, que corresponde a uma face da conta, e talão facetado, representando o bordo. Neste caso, a intenção parece ter sido reduzir a espessura da pré-forma (Figura 5D). No segundo tipo, as lascas apresentam talão e face superior com várias retiradas

perpendiculares, que são os negativos bipolares do bordo da conta (Figura 5E). Negativos das retiradas de façonagem feitas a partir do bordo, independente da variedade (1 ou 2), foram observados em dez pré-formas de contas. Mesmo nestas peças, entretanto, prevalece o método bipolar na façonagem, sendo raras as retiradas a partir do bordo.

Alisamento O alisamento das contas discoides é o momento de regularização das superfícies, dando-lhes acabamento, o que deixa feixes de estrias lineares. Das 37 contas, somente nove não foram alisadas, sendo que, nas demais, as estrias podem ser vistas em ambas as faces e no bordo ou em somente um destes setores. Ademais, as estrias podem tanto ocupar tais setores inteiramente, como somente partes de cada um deles. A distribuição das estrias nas faces sugere que não havia uma sistemática rígida na execução dos gestos do alisamento (Figura 6A). Em somente uma conta, os feixes se dispõem em uma única direção em ambas as faces. Na maior parte das pré-formas, quando se comparam as duas faces, há diferenças na inclinação dos feixes de estrias, o que mostra que a peça foi girada levemente ou que o gesto sofreu uma modificação discreta. Há ainda contas em que os feixes se sobrepõem em duas ou três direções diferentes na mesma face, também devido a modificações na posição da peça ou da direção do gesto. Quanto ao alisamento do bordo, este pode se encontrar em toda a sua circunferência ou se restringir a alguns setores. Geralmente feito de uma face à outra, deixou feixes de estrias ‘perpendiculares’ ao diâmetro ou levemente inclinados (na diagonal). Porém, também estão presentes estrias em direções variadas na mesma peça, apontando para diferenças nos gestos: no sentido da curvatura do bordo e na diagonal, em diagonais opostas, ou perpendiculares e diagonais. Em algumas contas, ainda que os feixes estejam na mesma direção, eles não são contínuos, sugerindo que o alisamento de cada setor do bordo foi feito individualmente (Figura 6B).

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Figura 6. Conta alisada na face (A) e no bordo (B) com estrias destacadas por cor diferente; (C e D) possível furador em quartzo e detalhe da ponta arredondada; (E) detalhe do perfil de uma conta quebrada, com furo cônico inacabado e com estrias circulares.

Perfuração A perfuração é uma das técnicas centrais na confecção de adornos, uma vez que é ela quem cria o furo de suspensão. Várias modalidades de perfuração foram observadas em diferentes sociedades tradicionais, envolvendo o uso de um instrumento com ponta (encabado ou não). Este pode ser girado alternadamente com a mão, girado pela fricção entre as palmas das duas mãos, girado com a mão contra a coxa, ou preso a um arco ou a um sistema mais complexo, conhecido como pump drill. Uma revisão de todas as possíveis modalidades de perfuração está além dos objetivos do presente artigo, mas descrições básicas podem ser encontradas em Barge (1982), Haudricourt (1987) e Leroi-Gourhan (1971). Descrições acerca do uso de sistemas de perfuração nas terras baixas da América do

Sul podem ser encontradas em, por exemplo, KochGrünberg (2005), Lévi-Strauss (c1988), Miller (2007), Moi (2007), Ribeiro (1988) e Roth (1924). Furadores em matéria prima lítica recuperados em Santarém foram descritos por Moraes et al. (2014), que sugerem que teriam sido presos a um extensor de madeira e utilizados para perfurar muiraquitãs. No caso das contas discoides aqui estudadas, a perfuração foi feita iniciando-se o furo em uma face e continuando-o a partir da face oposta, de modo que os dois ‘cones’ provenientes das faces se encontrassem no centro da peça (furo com perfil bicônico), ou iniciando-se o furo em uma face e prosseguindo até a face oposta (cônico) (Tabela 7). Em seguida, um novo alisamento das faces poderia ser feito para uniformizar as irregularidades deixadas pela perfuração.

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Tabela 7. Perfurações em contas de caulinita. Perfuração completa

Cônica

4

Bicônica

4

Perfuração incompleta

3

Sem perfuração Dimensões dos furos (Diâmetro x Espessura)

26 Máx.

0,5 x 0,5 cm

Mín.

0,1 x 0,1 cm

É possível observar, no interior dos furos, estrias circulares deixadas pela ação rotatória de um instrumento massivo de ponta triangular (Figura 6E). Não é possível, entretanto, saber ao certo qual foi o gesto efetuado sem que sejam realizadas análises traceológicas nas peças. A maioria das contas perfuradas (10) está fragmentada, o que pode indicar que a quebra se deu no momento da perfuração. De fato, embora seja possível alisar uma peça com intrusões de elementos minerais, não seria possível perfurá-la sem correr grande risco de fratura, pela pressão exercida pelo furador. Além disso, foram constatadas peças com furos desencontrados no nível 30-40 cm (nº 20987 e 21403), o que demonstra a dificuldade da perfuração, situando-a como um momento em que várias peças poderiam ser descartadas. Embora o presente artigo não se proponha a analisar as peças do sítio em outras matérias-primas, é importante mencionar pequenos instrumentos em quartzo, presentes em vários níveis e quadras. São pequenos cristais de quartzo leitoso ou hialino lascados por percussão sobre bigorna, com comprimento variando entre 1,0 e 2,5 cm, largura menor do que 1,0 cm e espessura de até 0,5 cm. Apresentam uma extremidade mais espessa, natural (raiz do cristal) ou fragmentada, oposta a uma extremidade lascada em forma de ponta. Passam por duas sequências de lascamento: uma primeira que dá à peça sua morfologia geral, com longas retiradas em quase todo o seu comprimento, as quais são interrompidas por retiradas menores, também mais longas do que largas, que se restringem à área da ponta. Em muitos casos, as arestas entre os negativos da ponta estão arredondadas, indicando que tais instrumentos foram

utilizados (Figuras 6C e 6D). Este desgaste das arestas, aliado ao seu alto número no sítio, parece sugerir que seriam os furadores das contas. Além disso, as pontas desses possíveis furadores (0,2 cm de largura) encaixam-se na maior parte dos furos das pré-formas de contas discoides da coleção. Estão também presentes fragmentos de cristais de quartzo e pequenos cristais não trabalhados, o que sugere que a manufatura dos furadores era realizada no próprio sítio, de forma a responder a uma necessidade criada pela cadeia operatória das contas. Os furadores seriam, portanto, produtos de uso doméstico e imediato, cuja produção seria fruto da busca por uma morfologia e um movimento específico, tendo em vista a matéria prima a ser perfurada e a força necessária (Karlin; Julien, 1994). Por exemplo, estes apresentam pontas robustas, o que pode estar relacionado à maior eficácia das peças com secções triangulares ou quadrangulares, com arestas vivas, em comparação às pontas mais finas e afiadas, cujo desgaste se dá mais rapidamente (Barge, 1982). Isto se liga ao fato de que a perfuração é ocasionada, em grande medida, pela pressão perpendicular e pelo movimento rotatório do furador. Suas pequenas dimensões de difícil manuseio, por sua vez, podem ser indícios de que teriam sido fixados em algum tipo de estrutura (Quinteiro et al., 1999). Porém, não foram observados estigmas macroscópicos sistemáticos que apontem nesse sentido.

DISCUSSÃO O sítio MMA-02 pode ser considerado um sítio de finalidade específica, voltado à produção de adornos corporais líticos: ainda que não se possa afirmar se outros materiais teriam sido trabalhados, a dedicação ao lítico está visível na abundância de vestígios e no grande aproveitamento da matéria prima. A cadeia operatória descrita acima apresenta alto grau de elaboração, envolvendo diferentes técnicas, como o lascamento, o alisamento e a perfuração. Além disso, há grande dedicação a cada pré-forma, o que é expresso na sua façonagem e em seu alisamento, no qual diferentes gestos são empregados de modo a ‘aperfeiçoar’ cada setor. Tendo

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em vista que dezenas de contas poderiam compor um só adorno, o trabalho dedicado a cada uma é notável. Pode-se observar certa complexidade e recorrência na façonagem, com retirada de inúmeras lascas não somente no bordo das pré-formas, mas também em sua própria espessura. Além disso, a possibilidade constante de acidentes, como lascas muito espessas e quebras, associada ao pequeno tamanho dos suportes, aponta para a existência de um alto nível de savoir-faire (Pelegrin, 1991; Rodet; Duarte-Talim, 2013). Este se reflete na opção pela percussão sobre bigorna oblíqua e em seu uso controlado. O alisamento, por outro lado, pode retirar muita matéria- prima sem o risco de quebras, o que nos faz pensar que poderia mesmo substituir a façonagem em suportes pouco trabalhados. Isto, porém, não é observado na maior parte da coleção, na qual as lascas de façonagem são abundantes e as pré-formas de contas discoides sempre apresentam estigmas dessa etapa. Nesse sentido, houve uma escolha pelo lascamento, deixando ao alisamento um papel secundário na criação da geometria das peças, tornando-se mais próximo a um ‘acabamento final’. A existência de uma cadeia operatória paralela de produção dos furadores, ao mesmo tempo em que as contas provavelmente estavam associadas a cadeias operatórias de adornos compostos (como colares, por exemplo), chama atenção para o sistema técnico amplo em que tais operações se inseriam (Geneste, 1991), no qual diferentes cadeias operatórias estariam integradas. Este envolveria a transmissão de conhecimentos e a prática destas técnicas, visando à produção das peças através de um ‘esquema operativo conceitual’ (Karlin; Julien, 1994), que teria guiado a execução do trabalho de acordo com o projeto, os desejos, as restrições impostas pela matéria- prima e pelas leis de fratura (Karlin et al., 1991; Pelegrin, 1991), permitindo a oscilação entre diferentes operações, na medida em que isto se mostrasse adequado. Sendo assim, ainda que as sequências nas

cadeias operatórias sejam apresentadas de forma linear, na prática elas não se dão de tal modo. A presença de lascas de façonagem com estrias de alisamento em alguns setores sugere que tais operações não se davam obrigatoriamente na ordem proposta anteriormente. Isso chama atenção para os riscos de impor uma ordem linear e rígida a um trabalho que é humano e, por isso mesmo, sujeito a situações variadas. Um dos principais motivos da ocupação do sítio MMA-02 foi a produção de adornos, na qual as contas discoides teriam sido uma constante. Outra evidência de uma ‘vocação’ do sítio estaria na ausência de terra preta e das ‘manchas de terra escura’, constantes nos sítios ‘de habitação’ Tupiguarani. Isto sugere um tipo de ocupação diferenciado, no qual o consumo e o descarte de matéria orgânica teria sido distinto, provavelmente menos intenso, mais semelhante ao encontrado em um sítio de ocupação temporária. Tal ocupação poderia estar associada à disponibilidade de matéria prima (caulinita silicificada) e de outros recursos em suas proximidades (Assis, 1997). Porém, os demais vestígios encontrados – instrumentos simples e sobre brutos de debitagem1 em matérias primas líticas variadas, sementes carbonizadas e uma cerâmica pouco numerosa – não fornecem pistas suficientes acerca das demais atividades realizadas no sítio. De fato, o MMA-02 teria sido um sítio de produção lítica, que seria visitado mais rapidamente, visando uma tarefa específica, cuja necessidade, mais do que o regime sazonal, determinaria sua ocupação. Neste tipo de sítio, os vestígios líticos seriam produzidos, reavivados e, muitas vezes, também abandonados, quando gastos ou quebrados (Pelegrin, 1995). Faz sentido, portanto, que o objeto técnico (a conta finalizada) raramente seja encontrado no sítio, uma vez que teria sido levado para ser utilizado em outro local, permanecendo somente os elementos fragmentados ou que fossem abandonados durante as operações, seja por um erro ao longo do lascamento ou por uma irregularidade e defeito no

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material. É provável que as peças finalizadas e inteiras encontradas no sítio sejam ‘testemunhos ruins’ daquilo que se buscava ao longo do trabalho, sendo mais comum a presença de restos brutos de debitagem (lascas e núcleos esgotados), lascas de façonagem e fragmentos de suportes e de pré-formas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma das propostas iniciais do presente trabalho era pensar o sítio MMA-02 dentro de um espaço maior, regional, no qual matérias-primas e artefatos são distribuídos e gerenciados (Perlès, 1980). Com base nesta análise, assim como nas demais feitas para o material lítico do sítio (Falci, 2012; Rodet et al, 2014a; Rodet; Duarte-Talim, 2011), algumas hipóteses puderam ser elaboradas acerca do seu papel dentro de um sistema de assentamento mais amplo. Como já apontado, o sudeste amazônico e, em especial, a Serra dos Carajás são marcados durante a Nossa Era por ocupações atribuídas à tradição Tupiguarani, à qual o sítio MMA-02 foi associado. Ademais, em área próxima a este, são registrados sítios que, além do material cerâmico filiado à mesma tradição, apresentam artefatos líticos em caulinita silicificada, também vinculados à produção de contas e outros possíveis adornos corporais (Rodet; Duarte-Talim, 2009; Rodet et al., 2014b). Tendo em vista a singularidade desta matéria-prima e os mesmos estágios na cadeia operatória de produção das contas, é impossível não tentar estabelecer uma relação entre a área do Projeto Salobo e a Mina de Manganês do Azul. Os sítios arqueológicos pesquisados no Projeto Salobo foram entendidos dentro de uma oposição entre ‘sítios de ocupação temporária’ e ‘sítios de habitação’. Os adornos e outros produtos associados à cadeia operatória das contas são encontrados nos dois tipos de sítio, e predominam nos sítios da sub-bacia do Salobo, considerados de ocupação Tupiguarani (Silveira et al., 2009b, 2015). Por outro lado, em um sítio do igarapé Mirim, no qual se encontra indústria cerâmica diferente, mais próxima da tradição Inciso Ponteada, foi encontrada uma pré-forma de conta e um

possível furador sobre lasca de cristal de quartzo leitoso. Esses elementos, associados ao compartilhamento de alguns atributos entre as duas indústrias cerâmicas, apontam para um cenário complexo, de contatos interculturais no Salobo ou mesmo para sítios com indústrias diferentes, mas associados a um mesmo grupo. Tais hipóteses são também reforçadas pelas análises químicas feitas sobre a caulinita silicificada proveniente desses sítios, que sugerem uma mesma fonte de extração e um mesmo ‘polo de produção’ para estes artefatos (Pantoja, 2012). Alguns dos adornos se encontram ainda em estágio de confecção, o que indica que teria havido trabalho de produtos brutos de debitagem de caulinita nas áreas de habitação prolongada e em alguns ‘acampamentos’ do Salobo. Entretanto, comparando tais dados com os provenientes do sítio MMA-02, é notável neste a quantidade superior de peças associadas à cadeia operatória das contas discoides, o que está de acordo com a ideia de que seria um local especializado na sua produção. Os brutos de debitagem presentes nos sítios do Salobo constituiriam, portanto, uma produção minoritária, possivelmente associada a situações de perda ou de quebra de algumas contas. Nesse sentido, teria havido uma circulação destes elementos de adorno pela região, do Manganês do Azul para o Salobo e, neste, entre as diferentes sub-bacias, ainda que não seja possível afirmar se estaria associada somente a um ou a vários grupos étnicos. É possível que outras etapas da cadeia operatória das contas, como seu encordoamento e organização em adornos compostos, se desse no Salobo, entretanto o registro arqueológico não apresenta vestígios dessa etapa em nenhuma das duas áreas. As análises traceológicas feitas até o momento sobre o material proveniente dessa área não puderam identificar estigmas deixados pelo seu uso, o que deixa a questão em aberto (M. Alonso Lima, comunicação pessoal). A presença de caulinita nas proximidades do MMA-02 deixa-nos pensar que poderia haver outro polo de coleta de matéria-prima além do Manganês do Azul (o Alto Bonito). Entretanto, a proximidade dos dois setores não modifica o

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raciocínio aqui proposto, somente alarga a área das jazidas. Infelizmente, o garimpo do Alto Bonito destruiu grandes porções de terra, não sendo possível afirmar a presença de sítios de coleta ou de produção. As análises químicas em curso nos darão novos dados sobre a questão. Em conjunto, as evidências, ainda que preliminares, parecem concordar com o observado em outras áreas da bacia amazônica no período em questão: a importância de elementos associados ao corpo humano e à sua construção no estabelecimento de relações entre diferentes grupos. Enquanto nas outras áreas essa dimensão estaria mais clara na profusão de representações antropomorfas, principalmente em material cerâmico, neste setor da Serra dos Carajás isto estaria explícito na intensa produção de adornos corporais e em sua posterior distribuição pela área. Embora não se trate de um contexto em que evidências de crescente hierarquização social sejam encontradas, é ainda provável que tal ‘linguagem comum amazônica’ (Barreto, 2005) fosse também partilhada pelos habitantes da área, mesmo que à sua própria maneira.

AGRADECIMENTOS Agradecemos à Scientia Consultoria Científica, por ter disponibilizado o material para estudo; à Universidade Federal de Minas Gerais e ao Museu de História Natural, pelo espaço e equipamento fornecidos para análise; ao professor André Prous, por seus conselhos; e a Ângelo Pessoa, pelos textos disponibilizados. Aos geólogos Maurity e Teles. A A. Leite, pela produção do mapa. Por fim, agradecemos também aos dois pareceristas anônimos, por seus comentários. REFERÊNCIAS

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Belém e o mundo natural: olhares de viajantes sobre plantas e animais na urbe amazônica (1840-1860) Belém and the natural world: viewsof travelers about plants and animals in the amazon urban areas (1840-1860) Luciano Demetrius Barbosa Lima Secretaria de Estado de Educação (SEDUC). Capanema, Pará, Brasil

Resumo: Conhecida por diversos viajantes durante a primeira metade do século XIX, a cidade de Belém não representou somente um lugar de estadia ou ‘porta de entrada’ para a realização de pesquisas e observações no mundo natural amazônico. Muitos estudiosos, seduzidos pela fauna e pela flora existentes no ambiente interno e nas cercanias da capital do Grão-Pará, também se preocuparam em descrever aspectos da natureza presentes no respectivo núcleo urbano ou em suas proximidades. A partir desses pressupostos e por acreditar que os espaços social e urbano não podem ser dissociados do natural, desenvolve-se neste artigo uma reflexão sobre as experiências de alguns estrangeiros, envolvidos na descrição de plantas e de animais na cidade do Pará. Palavras-chave: Belém. Viajantes. Natureza. Plantas. Animais. Abstract: Known tomany travelers during the first half of the nineteenth century, the city of Belem was not only a place to stay or gateway to conduct research and observations in the natural world of the Amazon. Many scholars, seduced by the fauna and flora of the internal environmentand the outskirts of the capital of Grão-Pará, also occupied themselves with describing aspects of the nature present in their urban core or in its vicinity. Keeping with this approach and believing that the social and urban spaces cannot be separated from the natural environment, this article reviewsthe experiences of some foreigners involved in the description of plants and animals in the city of Belém, Pará, Brazil. Keywords: Belém. Travelers. Nature. Plants. Animals.

LIMA, Luciano Demetrius Barbosa. Belém e o mundo natural: olhares de viajantes sobre plantas e animais na urbe amazônica (1840-1860). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 2, p. 505-519, maio-ago. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.15 90/1981.81222016000200009. Autor para correspondência: Luciano Demetrius Barbosa Lima. Secretaria de Estado de Educação (SEDUC) - PARÁ. Travessa Veiga Cabral – Centro. Capanema, PA, Brasil. CEP 68700-130 (dehistoriador@yahoo.com.br). Recebido em 25/03/2014 Aprovado em 09/06/2016

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Durante o século XIX, mais especificamente após a ruptura com o império português, a cidade de Nossa Senhora de Belém do Grão-Pará, capital da mais extensa província brasileira e principal núcleo populacional da região Norte no período, foi visitada por diversos cronistas e naturalistas estrangeiros, sendo em grande parte provenientes da Europa. Esses estudiosos, seduzidos pelo mundo natural amazônico e, ao mesmo tempo, responsáveis pela produção de obras que “engendram uma história de pontos de vista, de distâncias entre modos de observação, de triangulações do olhar” (Belluzzo, 1994, p. 8) em várias situações, foram atraídos pelas flora e fauna presentes na própria urbe ou em suas cercanias, estabelecendo registros que também envolviam a interação entre cidade e natureza. Assim, ao lado das informações pontuais, voltadas para aspectos de caráter estrutural e arquitetônico direcionados a casas, ruas, praças e demais espaços que compunham a área urbana da capital provincial, muitos viajantes1 também optaram por registrar percepções direcionadas à natureza circundante ou interna do respectivo centro urbano, pois, no olhar ‘aguçado’ de alguns estrangeiros, os animais e plantas que compõem a gigantesca riqueza biológica da Amazônia não podiam

ser dissociados da vida cotidiana da principal urbe da região, interagindo ininterruptamente com as experiências humanas em todas as suas nuanças. Fundada pelos portugueses em 1616, nas margens da baía do Guajará, com o objetivo de propiciar o controle econômico e militar na Amazônia, Belém, ou cidade do Pará, como era conhecida desde seus primórdios, se constituiu durante os séculos XVII e XVIII em um pequeno, mas promissor, centro urbano na América portuguesa. Sua localização privilegiada, situada na ‘porta de entrada’ do grande rio, favoreceu a partir da época colonial a implementação do comércio das chamadas ‘drogas do sertão’ e de outros produtos retirados da floresta, servindo também como uma das vias de acesso para a penetração de mão de obra escrava africana no Grão-Pará, aspectos que ajudaram a “assegurar a presença da administração metropolitana e serviram de referência para a irradiação da cultura civilizatória europeia” (Mourão, 2007, p. 37) na região. Mesmo com uma “grande concentração de eventos, rupturas e rearranjos políticos nas quatro primeiras décadas” (Augusto, 2009, p. 71) do século XIX, cujo mais importante momento foi a Cabanagem (1835-1840)2, Belém manteve sua condição de principal rota de acesso

São diversos os estudiosos que, sob as mais diversas perspectivas, realizaram estudos sobre a literatura de viagem no Brasil. Alguns dos principais trabalhos sobre o tema são: Belluzzo (l994); Lisboa (2000); Leite (1997); Peixoto (1988); Manthorne (1996). 2 A Cabanagem (1835-1840) hoje pode ser compreendida como um movimento político e social, deflagrado na província do Grão-Pará, com forte participação de caboclos, negros e índios, que ameaçou a manutenção do poder imposto pelo governo central sobre a região. Os cabanos eram um grupo heterogêneo. Em sua maioria, pleiteavam uma guerra contra os brancos (especialmente portugueses) e os maçons, mas muitos cabanos lutavam por terras e liberdade política e social. As lutas foram iniciadas na madrugada dos dias 6 para 7 de janeiro de 1835, quando o quartel e o palácio do governo em Belém foram conquistados pelos revolucionários, sob liderança dos irmãos Vinagre (Antônio e Francisco). Durante esse processo, o então presidente da província Lobo de Souza foi assassinado e substituído por José Clemente Malcher. Porém, em razão de divergências internas, Malcher foi rapidamente deposto, sendo sucedido na presidência por Francisco Vinagre, seu antigo comandante de armas. Depois de muitos revezes da chegada de uma tropa imperial comandada pelo marechal Jorge Rodrigues, os cabanos negociaram sua saída de Belém, deixando o poder. Todavia esta retirada foi provisória. Com a tomada da vila de Vigia e a prisão de Francisco Vinagre, seu irmão Antônio decidiu retomar Belém. Em agosto de 1835, há uma sangrenta luta onde morreram duas lideranças importantes: Antônio Vinagre e o filho e herdeiro do comandante Manoel Jorge Rodrigues. Finalmente, assumia a liderança cabana o jovem Eduardo Angelim, que comandou os cabanos, retomou e governou Belém até 13 de maio de 1836. O marechal Rodrigues foi destituído e teve início uma dura repressão inaugurada pelo segundo emissário, enviado pelo governo central, o marechal Francisco José Soares Andréa. Com a suspensão dos direitos constitucionais, Andréa prendeu Angelim e Francisco Vinagre, remetendo-os para o Rio de Janeiro. Ele ainda reprimiu duramente o movimento cabano, através de acordos informais, perseguições políticas e prisões. O comandante anticabano também empreendeu a retomada de Belém e criou várias expedições repressoras para o interior. A cidade de Belém foi retomada em maio de 1836, mas o interior do Pará continuou em guerra até pelo menos 1840, com um saldo de aproximadamente 30 mil mortos. Para maiores informações ver estudos clássicos, como os de Raiol (1970); Hurley (1936); Cruz (1942); Rocque (1984); Chiavenato (1984); Di Paolo (1990); Ricci (1993, 2001); Harris (2010). 1

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e estadia para diversos viajantes que, ‘favorecidos’ pela “mudança da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, [...] [com] a abertura dos portos” (Leite, 1996, p. 34) e a posterior ruptura política do Brasil com o império lusitano, realizaram sem muitos entraves diversas pesquisas e observações direcionadas a aspectos do vasto espaço amazônico e, ao mesmo tempo, elaboraram relatos sobre a flora e a fauna que integravam os núcleos urbanos do Grão-Pará, confirmando a tese segundo a qual foi “grande a frequência com que os viajantes [...] mencionam as ‘coisas da natureza’ e se sentem atraídos pelos animais e vegetação estranha e exótica” (Belluzzo, 1996, p. 16). No decorrer do século XIX, os estrangeiros que visitavam a cidade do Pará sob os mais diversos fins alcançaram a urbe através dos caminhos marítimos e fluviais, vislumbrando, a partir de um olhar panorâmico e privilegiado, o casario, igrejas e as edificações governamentais do núcleo populacional nas margens da baía do Guajará, “colaborando na tarefa de configurar e identificar o mundo através da construção da forma dos seres da natureza” (Belluzzo, 1994, p. 28). A visualização de construções entrecortadas por diversos canais, que possuíam como cenário de fundo um cinturão verde, ainda pouco habitado naquele período, ocasionou reações inesperadas nos forasteiros que, muitas vezes, não separavam em seus relatos o ambiente urbano da natureza ao redor. Além desse ponto, a penetração do meio natural no ambiente da própria cidade,

exemplificado na presença de animais dos diversos canais e da vegetação, constituiu-se em aspecto que despertou fortes impressões em muitos estrangeiros que, mesmo naturalistas, não estavam habituados com a existência de conexões tão intensas entre homem e natureza em um centro populacional, ao considerarem que só “com muito trabalho conseguiu-se, com a vegetação tropical, abrir um pequeno espaço entre o rio e a floresta para encaixar a capital de uma imensa província” (Adalberto, 2002, p. 215). Por outro lado, é importante ressaltar que referências sobre presença e interação do mundo natural em Belém não estiveram limitadas aos relatos de viajantes, encontrando-se também inseridos em trabalhos produzidos com apoio oficial, como nos ensaios corográficos3, cuja produção estava em voga no Brasil durante a primeira metade do século XIX. De acordo com um desses estudos, publicado em 1833 por Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva4, a cidade de Santa Maria de Belém era, no passado, “quase circulada de um grande pântano, conhecido por Piri, o qual ora está convertido em um formoso passeio de três estradas, tiradas em linha reta, bordadas de árvores plantadas para fazer sombra” (Cerqueira e Silva, 1833, p. 236), e seus moradores sofriam com questões de abastecimento e de falta de água potável, pois na urbe “ainda não existe um único chafariz, bebe-se de poços” (Cerqueira e Silva, 1833, p. 236). Em outro trabalho lançado na mesma década, o militar e estudioso incumbido pelo levantamento estatístico do Grão-Pará em 1832, Antonio Ladislau Monteiro Baena5,

Segundo Leal (2009, p. 5), o termo corografia, originalmente entendido como a “descrição de regiões ou ainda escrita das regiões”, foi amplamente utilizado entre os séculos XVII e XVIII, tendo em Varenius um dos principais responsáveis por sua divulgação. Ao usar este termo, Varenius pretendia reforçar, sobretudo, a característica de delimitar e descrever regiões individuais da Terra. 4 Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva nasceu em Coimbra (Portugal) em 1808, filho do desembargador Miguel Joaquim Cerqueira e Silva. Estudou na Universidade de Coimbra, mas não concluiu o curso. Ainda criança, veio para o Brasil em companhia de seu pai, se estabelecendo inicialmente no Pará, onde ficou por aproximadamente 13 anos, fixando depois residência na Bahia. Entre suas principais obras, destacam-se a “Corografia paraense...” (1833), “Memorias historicas, e politicas da provincia da Bahia” (1835), “Informação ou descripção topographica e politica do rio de São Francisco” (1847), “Ensaio Chorographico do Imperio do Brazil” (1853). Faleceu no Rio de Janeiro em 1865. 5 Antonio Ladislau Monteiro Baena nasceu em Lisboa entre 1781 e 1782, e faleceu no Pará em 29 de março de 1850. Ele chegou ao Grão-Pará em setembro de 1803, em companhia do Conde de Arcos, na função de segundo tenente de artilharia. Durante o processo de emancipação política, apoiou o Império brasileiro, alcançando posteriormente o posto de tenente-coronel. Estudioso da história do Brasil, ele tornou-se sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e Cavaleiro da Ordem do S. Bento de Aviz. Foi autor de diversos estudos sobre o país. Para maiores informações, ver Blake (1883). 3

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expressa em relação ao palácio do governo em Belém que ele foi erguido em um terreno “alagadiço por onde corria um esteiro ou pequeno Igarapé, que do mar entrava no Piri” (Baena, 2004, p. 185). Baena (2004, p. 186) complementa em relação a essa questão que “pelo lado da higiene e da mobilidade pública é mau por se não evitar o bafo maligno das valas do Piri sempre ocupadas de águas estagnadas, e por se empedrar as ruas escavadas pelas chuvas”. Embora não se constituam em objeto de análise desse artigo, as obras desses estudiosos, elaboradas a partir de “‘encomendas’ feitas pelos conselhos gerais das províncias, e depois pelas Assembleias Provinciais” (Baena, 2004, p. 142), possibilitam interessantes exemplos sobre as preocupações, ainda na primeira metade do século XIX, em traçar esboços do espaço urbano e econômico de Belém, englobando constantes referências ao meio natural da região. Esses trabalhos, geralmente conhecidos na época pela denominação de “Corographicos”, tinham como característica mesclar informações de cunho histórico e geográfico, buscando “descrever a nova nação em seus diferentes aspectos” (Figueiredo, 2008, p. 142). Os ensaios elaborados por esses estudiosos, muito além de serem observados como “simples descrição estatística” (Figueiredo, 2008, p. 143), apresentam exposições históricas e geográficas fundamentais para conhecimento sobre a interação do mundo natural com a cidade do Pará, auxiliando na análise das percepções dos viajantes sobre o respectivo tema, a ser realizada nos tópicos seguintes. Considerando que os “relatos de exploradores, viajantes e naturalistas europeus [...] são outra fonte fundamental da história ambiental” (Drummond, 1991, p. 6), e acreditando que as necessidades do homem em relação ao mundo natural ganham uma conotação ainda mais evidente em uma cidade circundada pela imensidão de um rio e de uma floresta como a amazônica, onde a relação dos moradores com o meio natural nunca esteve ausente, o presente estudo almeja investigar as percepções e observações de diversos estudiosos estrangeiros sobre as interações do mundo natural na cidade de Belém, mais

especificamente a fauna e a flora, entre as décadas de 1840 e 1860, momento crucial para a história da urbe amazônica e da nação, fixado entre o processo de lutas regenciais e o boom da economia gomífera no Grão-Pará, deflagrado no último quarto do século XIX. Os principais argumentos a favor do contexto temporal escolhido encontram-se nas limitações de espaço em um artigo, na dispersão dos registros de viajantes direcionados a aspectos do mundo natural em Belém e na opção pela análise dessa temática no período pós-Cabanagem. É importante também ressaltar que, embora o presente estudo trate de analisar um “‘ambiente social’, [...] cenário no qual os seres humanos interagem uns com os outros” (Drummond, 1991, p. 4), a natureza não está ausente ou se encontra constituída apenas como um ‘pano de fundo’ passivo, mas interfere constantemente no meio urbano, seja em virtude da presença de animais domesticados ou selvagens, do uso de plantas como alimento ou de árvores cultivadas para embelezar o espaço da cidade. Além disso, o respectivo texto, embora não tenha a finalidade de “construir uma tipologia diferenciada quanto à formação e aos objetivos de cada viajante” (Pádua, 2009, p. 321) especificado, é consubstanciado por relatos provenientes de estudiosos pertencentes às mais diversas funções e atribuições que, em suas experiências, produziram “informes preciosos, mesmo que leigos, sobre aspectos naturais (fauna, flora, plantas cultivadas, paisagens etc.)” (Drummond, 1991, p. 7), cujos relatos “têm mais a dizer sobre os aspectos naturais do que sobre as sociedades” (Drummond, 1991, p. 7), pois seus “olhos eram treinados para identificar novas espécies animais e vegetais, independentemente de sua utilidade econômica” (Drummond, 1991, p. 7) ou área de exploração. Assim, se os “seres humanos participam dos ecossistemas tanto como organismos biológicos aparentados com outros organismos quanto como portadores de cultura” (Worster, 1991, p. 9), as experiências sociais, de maneira geral, em um núcleo populacional não podem ser dissociadas da multiplicidade de plantas e animais que as

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integram ou circundam, pois se, em linhas gerais, grande parte desses registros estabelecidos através de olhares estrangeiros direcionava-se à grande floresta, aos rios e aos povos nativos, não foram poucos os naturalistas e viajantes que expuseram em seus escritos a presença do mundo natural amazônico na capital do Grão-Pará, destacando elementos da flora ou da fauna presentes na cidade, que, hoje, constituem-se em informações importantes para um estudo direcionado à história ambiental. Não obstante, admitindo que esse estudo agrega um “terceiro nível para o historiador ambiental” (Worster, 2003, p. 4), o qual se constitui em um “tipo de encontro mais intangível, puramente mental, em que as percepções, ideologias, ética, leis e mitos tornaram-se parte de um diálogo de indivíduos e de grupos com a natureza” (Worster, 2003, p. 4), constitui-se em tarefa relevante conhecer, a partir do próximo tópico, como alguns viajantes, portadores de concepções e visões de mundo diversificadas, expuseram a presença da fauna amazônica em Belém na primeira metade do século XIX.

UMA CIDADE E SEUS ANIMAIS: RELATOS DE VIAJANTES SOBRE A PRESENÇA DA FAUNA AMAZÔNICA EM BELÉM Durante grande parte do século XIX, a presença de viajantes e naturalistas estrangeiros em solo amazônico, particularmente na cidade de Belém, transformou-se em uma situação recorrente. Eles foram marcados pelo “dever de captar o maior número de eventos, características e informações sobre os lugares por que passavam” (Silva, 2010, p. 1) e influenciados, na conjuntura oitocentista e imperialista, pela adoção de “procedimentos científicos apoiados no colecionismo, na atenção especialmente voltada para a diferença e para a exceção, na taxonomia do mundo natural, na inventariação dos tipos humanos” (Silva, 2010, p. 1). Muitos estrangeiros, embora experimentados em relação à diversidade do mundo natural, ficaram surpreendidos já em seu desembarque, quando mantiveram os primeiros contatos com a capital

do Grão-Pará, que possuía em suas ruas, habitações e adjacências uma vasta diversidade natural proveniente da imensidão amazônica circundante. Nesse sentido, foi significativa a importância de Belém como espaço de pesquisas e descobertas realizadas por muitos estudiosos, que consideravam a cidade e suas cercanias como lugares que abriam a possibilidade de principiar suas experiências em relação ao mundo natural da região. Para esses viajantes, antes de explorar um espaço florestal considerado estranho ou inóspito, era prudente realizar as primeiras excursões nos “arredores da cidade, [...] situada num canto de terra formado pela junção dos rios Guamá e Pará” (Bates, 1979, p. 14), sendo considerada por muitos naturalistas do século XIX como um lugar constantemente “ameaçado” pela natureza amazônica, pois a “floresta que cobre toda a região chega quase até as ruas da cidade; [...] construída numa clareira aberta na mata, e unicamente os cuidados constantes do governo impedem que a selva torne a tomar conta dela” (Bates, 1979, p. 14). A inseparável ‘proximidade’ ou ‘conexão’ da cidade de Belém com o mundo natural amazônico trazia para as ruas e habitações da urbe uma fauna muitas vezes desconhecida aos olhos dos viajantes, que, provenientes de regiões com padrões biológicos distintos, como a Europa e os EUA, ficavam em diversas situações surpreendidos com a constante presença de animais e insetos no interior da capital do Grão-Pará. Assim, extrapolando muitas vezes seus próprios objetivos iniciais, os registros desses estudiosos também englobaram aspectos da fauna encontrada na urbe amazônica, que deixava de se constituir apenas em uma espécie de ‘estada’ na vastidão da floresta, mas também constituindo-se como um espaço não dissociado das diversas espécies de seres vivos nela existentes. Nesse sentido, em 1842, momento imediatamente posterior ao término da Cabanagem, o Príncipe Adalberto da Prússia, nobre, estudioso e integrante de uma das famílias imperiais mais poderosas da Europa no século XIX, conheceu a cidade de Belém no intercurso de seu trajeto entre o Amazonas e o Xingu. Os registros

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sobre a urbe amazônica publicados em sua obra não ficaram caracterizados apenas por descreverem aspectos urbanísticos e populacionais, mas, em algumas situações, também envolveram referências a variados aspectos da fauna e da flora existentes nas proximidades da capital do Grão-Pará, um dos últimos destinos de sua expedição. Como pode ser percebido no fragmento a seguir: A província do Pará é, com seu clima equatorial quente e sempre igual – que, porém, é amenizado pela monção que penetra do oceano no rio Amazonas pela sua vasta embocadura, e pelas umbrosas florestas que protegem o solo úmido e fértil dos raios abrasadores do sol [...] nenhuma cidade do Império tem tão rica lista de artigos de exportação, como a capital desta província, que possui nada menos que quarenta; entre eles encontramos também alguns produtos do reino animal (Adalberto, 2002, p. 214).

Apesar da ênfase a uma perspectiva econômica que considerava o meio natural circundante da cidade, particularmente os gêneros provenientes do mundo animal, através de sua importância para a exportação, a citação anterior privilegia uma linha de pensamento baseada na concepção de observar a “natureza devido ao seu valor intrínseco” (Pádua, 2002, p. 18), por meio de um “paradigma ocidental de progresso econômico” (Pádua, 2002, p. 18), muito comum no século XIX. As palavras do príncipe prussiano possibilitam uma interessante visão da presença do mundo natural amazônico em Belém, urbe que, em sua descrição, estava encravada em uma região próxima de várias “ilhas cobertas de florestas, dentre as quais a ilha das Onças é a mais importante” (Adalberto, 2002, p. 214). Alguns anos depois, mais especificamente em 1848, Belém foi conhecida por dois dos “mais renomados cientistas a visitarem o Brasil” (Vainfas, 2002, p. 711), os naturalistas Alfred Russel Wallace (1823-1913) e Henry Walter Bates (1825-1892). Apresentando uma sensibilidade maior do que o príncipe prussiano sobre a presença do mundo natural na cidade, Wallace expôs, desde o momento de sua chegada à cidade do Pará, referências à fauna existente na urbe, expressando que os “urubus

voavam lá no alto, ou então, indolentemente, caminhavam na praia. Em bandos numerosos, as andorinhas passavam voando ou iam pousar nos telhados das casas e das igrejas” (Wallace, 2004, p. 36). Apesar desse registro, Wallace (2004, p. 39) não escondeu sua decepção ao não encontrar de imediato outros animais nos arredores do núcleo urbano, afirmando: “durante a primeira semana de nossa residência no Pará, embora constantemente embrenhado nas florestas de seus arredores, eu não vi sequer um beija-flor, um papagaio ou um macaco”. Contudo, possivelmente em razão de ter tido êxito em explorações posteriores nos arredores da cidade do Pará, o estudioso britânico alterou sua opinião, ao expressar: “como eu depois verifiquei, os beija-flores, os papagaios e os macacos são muito numerosos ali” (Wallace, 2004, p. 39). As percepções de Wallace em relação à presença da fauna amazônica nas proximidades da cidade de Belém demonstram primeiramente que, para muitos viajantes, a capital do Grão-Pará não estava dissociada do mundo natural circundante e, em segundo, que a própria urbe também funcionou, em algumas ocasiões, como uma espécie de ‘laboratório’ inicial, onde alguns estudiosos estrangeiros experientes realizavam suas primeiras observações, marcadas geralmente por sentimentos de estranhamento frente a animais não existentes em solo europeu, como pela própria floresta, que podia ser vislumbrada a partir da capital provincial. Henry Walter Bates, naturalista e etnólogo inglês que esteve na Amazônia a serviço do Museu de História Natural de Londres, cuja função era coletar material zoológico e botânico permanecendo na região até 1859” (Silva, 2011, p. 380), inseriu nas páginas de sua obra, intitulada “Um naturalista no rio Amazonas”, um interessante registro da fauna encontrada na capital do Grão-Pará. Suas descrições voltadas para a botânica e a zoologia, acompanhadas da busca por alimentar “coleções para vários museus de história natural” (Vainfas, 2002, p. 711), foram também realizadas durante suas caminhadas pela área urbana e redondezas da cidade, constituindo-se em

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um indício revelador da importância do respectivo centro populacional como espaço de observações e reflexões sobre a fauna da região, superando a perspectiva na qual Belém representava apenas um ponto de partida/chegada de estudiosos, ou local para estada, visando à exploração da grande floresta. Ao contrário de vários viajantes que o antecederam ou precederam, Bates considerava a existência de diferenciações entre os seres vivos que habitavam as cidades ou suas proximidades daqueles que existiam nas florestas distantes dos centros populacionais, por isso achava importante a realização de pesquisas sobre o mundo natural a partir de núcleos urbanos ou de suas cercanias, chegando a argumentar que no “Brasil, as terras nas vizinhanças das cidades e as clareiras cultivadas e batidas de sol abrigam espécies de animais e plantas bastante diferentes das encontradas nas densas florestas primitivas” (Bates, 1979, p. 14). Foi a partir dessas perspectivas que esse naturalista defendeu a necessidade de produzir um registro de suas observações “sobre o mundo animal durante as exposições que fizemos nos arredores da cidade do Pará” (Bates, 1979, p. 14). Assim, desde o momento em que vislumbrou a capital paraense, a partir da baía do Guajará na mesma embarcação que trazia Wallace, esse estudioso preocupou-se em expor a fauna amazônica presente nas águas e nas florestas adjacentes à urbe. Tais características podem ser observadas no fragmento a seguir:

de diversas espécies de aves visualizadas durante o momento de chegada dos estudiosos em Belém, como os urubus e os tentilhões que sobrevoavam os céus da cidade. Também pode ser assinalado por conter aspectos diferenciados, ao expor, em detalhes, outros grupos de pássaros observados nas proximidades da capital do GrãoPará, por exemplo, os sanhaços. Demonstrando uma forte sensibilidade em relação à fauna existente na cidade do Pará, Bates passou a realizar, no tempo em que permaneceu em Belém, diversas caminhadas e explorações nas matas adjacentes à urbe, investigando e descrevendo, a partir de olhares específicos, vários animais que existiam nas proximidades da capital do Grão-Pará. Suas observações direcionadas a esses seres, geralmente caracterizadas por misturar sentimentos de estranhamento com perspectivas de descoberta, eram sensíveis aos mais simples ruídos apresentados na floresta, como é possível observar em: Enquanto seguíamos o nosso caminho o crepúsculo desceu rápido, e o mato ao nosso redor se encheu dos variados sons da vida animal. O chiado das cigarras, o estridular de uma imensa variedade de grilos e gafanhotos, cada espécie fazendo soar a sua nota particular, e o plangente coaxar das pererecas arborícolas misturavam-se para formar um som contínuo e estridente – a expressão sonora da fervilhante e multifária Natureza. Quando a noite caiu, várias espécies de sapos e rãs dos alagados juntavam-se ao coro, e o seu matraquear, tão alto como eu ainda não ouvira em nenhum outro lugar (Bates, 1979, p. 13).

Só vimos urubus à distância, voando em círculos a grande altura por sobre os matadouros públicos. Nos arredores da cidade avistamos bandos de papa-moscas, tentilhões e de papa-formigas, bem como numerosos pássaros de plumagem comum e de estrutura intermediária entre a dos papamoscas e a dos tentilhões, alguns dos quais deixam pasmado o forasteiro com os extraordinários pios que soltam de seus esconderijos no meio do denso matagal; havia também sanhaços e outros passarinhos (Bates, 1979, p. 15).

Caracterizadas pela ênfase ao deslumbramento com os sons e a diversidade da fauna encontrada em áreas próximas da cidade de Belém, as palavras direcionadas por Bates aos diversos seres vivos encontrados em suas primeiras explorações nas cercanias da urbe constituemse em um interessante documento para a compreensão da mescla de sentimentos de fascínio e estranhamento, sentimentos contagiantes para grande parte dos viajantes que pisavam na capital do Grão-Pará durante aquele contexto. Assim, diferentemente de outros centros

Esse trecho pode ser caracterizado por repetir parcialmente a descrição de Wallace, ao expor a presença

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urbanos visitados, onde possivelmente as relações político-sociais e a cultura dos grupos humanos seriam mais enfatizadas, na cidade do Pará, o que fascinava muitos estudiosos eram outros fenômenos originados pelo mundo animal e vegetal. Além dos sons produzidos por diversas espécies de animais nas redondezas de Belém, o mundo natural amazônico também foi percebido nas ruas da cidade, onde, segundo Bates (1979, p. 13), os “pirilampos surgiam em grande profusão, pisca-piscando no escuro da mata e até mesmo nas ruas movimentadas. Recolhemo-nos às nossas redes, encantados com o que havíamos visto”. Essa passagem, que faz lembrar, em seu entusiasmo, a experiência de Fernand Braudel quase um século depois com os pirilampos no sertão da Bahia, possibilita uma interessante reflexão sobre como aspectos aparentemente corriqueiros para os nativos, como o piscar de vagalumes, podiam transformar-se em momentos especiais ao olhar estrangeiro. Entusiasmado com suas experiências nas matas adjacentes e nas vias públicas de Belém, Bates (1979, p. 16) também registrou aspectos da fauna amazônica, presentes no interior das habitações da cidade, como é possível verificar no fragmento a seguir: As lagartixas domésticas pertencem a uma espécie particular, a dos gecos, e são encontradas até mesmo nas casas mais bem cuidadas, geralmente nas paredes e no teto, onde permanecem grudadas e imóveis, durante o dia, já que só se tornam ativas à noite. [...] Os que vivem nas casas são pequenos, mas já vi alguns de grande tamanho em ocos de árvore, na floresta.

Não é difícil constatar, nessa descrição de Bates sobre as lagartixas observadas no interior das residências em Belém, a existência de alguns aspectos centrais do olhar desse viajante sobre a fauna existente na cidade. Primeiramente, o fato de a presença desses animais integrar as habitações em geral, independentemente da condição socioeconômica ou de higiene das casas. Em segundo lugar, a existência nas percepções desse

estudioso do “pressuposto dos ‘parentescos naturais’ entre as espécies dos três reinos da natureza, nomeadas segundo o sistema de classificação de Lineu” (Vainfas, 2002, p. 711). Essas imagens, que podiam ser obtidas através de procedimentos aproximativos, também cediam à “representação visual dos seres da natureza por meio da forma, instância capaz de permitir a análise e o discernimento desses entes naturais. Para defini-los seria necessário situá-los em um determinado lugar, encontrar a posição ocupada por cada um deles” (Belluzzo, 1994, p. 30). Ao mesmo tempo em que realizava observações nos arredores e edificações da capital do Grão-Pará, Bates (1979, p. 16) analisou e coletou espécies da fauna amazônica nos quintais domésticos da urbe, onde era “encontrado um variado número de lindas e vistosas borboletas” e nos “trechos descampados e cobertos de mato rasteiro”, que, segundo ele, “eram geralmente muito diferentes [...] das que habitavam a penumbra da floresta”. Embora não seja objetivo do presente estudo analisar as supostas diferenças atribuídas por Bates entre os animais encontrados em áreas urbanas ou proximidades e aqueles que habitam as áreas florestais mais isoladas, essa argumentação se constitui em um indício revelador de que o cientista britânico não realizava seus experimentos em Belém acidentalmente, ele seguia possivelmente um cronograma de investigações previamente estabelecido. Por meio de suas explorações no espaço urbano da cidade do Pará, Bates (1979, p. 14) demonstrou entusiasmo em seus contatos com a fauna existente em Belém, efetivando um estudo sistemático das diversas espécies de seres vivos encontradas nas ruas, casas, quintais e cercanias da capital provincial, urbe cuja própria localização é em um “terreno [...] ligeiramente ondulado, de forma que as áreas se alternam com trechos pantanosos”, o que propiciava, segundo ele, diferenças “nestes e naquelas a vegetação e a vida animal”. Além disso, percebe-se que a realização dessas experiências em um núcleo urbano

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não se constituía em grande novidade para o cientista europeu, possivelmente habituado com a realização de experimentos em ambientes com maior fluxo populacional. Além das observações direcionadas às espécies pertencentes à fauna amazônica, encontradas no interior e cercanias da capital do Grão-Pará, muitos viajantes também se preocuparam em descrever aspectos da flora (local ou não) que integrava o espaço da cidade, a partir de múltiplas percepções e objetivos. Alguns desses registros, caracterizados por possibilitar outro olhar sobre a respectiva capital provincial, serão analisados no tópico a seguir.

PLANTAS PARA CURAR, ALIMENTAR E EMBELEZAR: OLHARES DE VIAJANTES SOBRE A FLORA NA CIDADE DO PARÁ Em 1891, quando o estudioso paraense José Veríssimo repetiu, em um discurso comemorativo da restauração do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia (atual Museu Paraense Emílio Goeldi), as palavras de Henry Bates, nas quais Belém era vislumbrada como o “paraíso do naturalista, que, desde Lacondamine até Carlos Hartt, foi perlustrada por sábios e viajantes do mais alto valor, como Rodrigues Ferreira, [...] Humboldt, Martius, Castelnau, o célebre Wallace, e Chandless, e Orton, e Keller e Agassiz” (Veríssimo, 1896, p. 6), já existia uma percepção consolidada entre diversos seguimentos do meio intelectual brasileiro e mundial quanto à importância da urbe para a realização de múltiplos estudos direcionados ao imenso mundo natural, particularmente aquilo que Veríssimo chamou de “opulência verdadeiramente maravilhosa da sua flora” (Veríssimo, 1896, p. 6). Neste ponto, mesmo admitindo que alguns estudiosos estrangeiros, ao visitarem a cidade de Santa Maria de Belém no Segundo Reinado, tenham se utilizado desse núcleo urbano apenas como uma ‘parada de descanso’, visando à concretização de viagens mais extensas direcionadas à pesquisa da grande floresta e de seus habitantes, são

diversos os relatos que direta ou indiretamente envolvem referências à diversidade do mundo vegetal, integrante do ambiente interno ou próximo da capital paraense. Assim, a cidade do Grão-Pará era também considerada naquela conjuntura como uma espécie de ‘apêndice’ da imensidão amazônica, possuindo, ao longo de seu traçado urbano e nas áreas próximas, muitos espaços verdes que, em algumas situações, possibilitavam uma ‘experiência’ inicial de contato com a mata, realizada por vários viajantes antes de adentrar na grande floresta. A dinâmica de uma capital, povoada em grande parte por mestiços e índios, que constantemente traziam elementos pertencentes à flora da região para seus ambientes internos, seja na forma de alimentos, seja como remédios, ou pelas autoridades que visavam a embelezar algumas áreas da cidade através do plantio de árvores e construção de jardins, configurava-se como uma experiência de contato fascinante para viajantes estrangeiros, conhecedores ou não da diversidade natural amazônica. Além desses pontos, o fato de Belém se constituir durante o início do Segundo Reinado em uma urbe de proporções reduzidas, que parecia constantemente ameaçada de ser ‘engolida’ pelo rio e matas que a circundavam, tornou-se mais um atrativo para a efetivação de observações por parte de diversos estudiosos. Nesse sentido, ao visitar a cidade de Belém em 1842, o príncipe Adalberto da Prússia fez diversas referências à presença e à interação da vegetação amazônica circundante à urbe, expressando já de forma inicial em seu estudo originalmente publicado na Europa que a mesma fixava-se em uma “ponta de florestas do continente [...] logo abaixo da embocadura do Guamá, no rio Pará” (Adalberto, 2002, p. 214-215), estendendo-se por “mais um quarto de milha pela margem plana de rio acima, até extremar-se novamente num ângulo obtuso com as florestas da terra firme” (Adalberto, 2002, p. 215). O nobre prussiano, em suas observações da natureza circundante da capital do Grão-Pará, também deixou transparecer percepções envolvendo aspectos

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econômicos ou utilitários relacionados ao mundo natural, ao argumentar que “em nenhum ponto da terra, pois que nem num milênio se acabará aqui a madeira de construção” (Adalberto, 2002, p. 215). Além de expor percepções que mesclavam sentimentos de deslumbramento e pensamentos imperialistas em relação ao potencial econômico do mundo natural próximo de Belém, o príncipe Adalberto (2002, p. 215) fez menções à área verde presente no espaço interno da cidade, expressando que na capital existe uma: Magnífica aleia de umbrosas mangueiras, entre dois canais por trás da cidade, através de campos atravessados por numerosos fossos alimentados pelas águas do preamar. Na outra extremidade desta belíssima avenida fica uma pequena praça livre com uma igreja, ao lado da qual vi erguerem-se no ar as primeiras palmeiras-leque (Miriti, Mauritia flexuosa*). Por perto é tudo só floresta virgem.

Por meio da descrição do nobre prussiano, é possível verificar que, em seu espaço interno, a capital do Grão-Pará, já na primeira metade do século XIX, possuía uma flora diversificada, mesclando plantas nativas e provenientes de outras partes do mundo. Além disso, as palavras de Adalberto da Prússia também ajudam a revelar que havia uma estreita conexão entre o espaço urbano e o natural na conformação da cidade. Essas observações, caracterizadas por envolver aspectos do mundo natural, também foram estabelecidas a partir de conhecimentos da flora local. Além desse aspecto, outro ponto a ser ressaltado nesse fragmento corresponde à preocupação do príncipe em expor a cidade como uma espécie de prolongamento da natureza amazônica, misturando características do espaço urbano de Belém com o mundo natural da região, como a floresta e os rios que circundavam a capital do Grão-Pará.

Os argumentos do príncipe prussiano em relação ao meio florestal circundante e à área verde interna da capital paraense também podem ser enquadrados no contexto científico internacional, caracterizado, já nas décadas iniciais do século XIX, pela expansão do conhecimento relacionado ao mundo natural e biológico. Nesse sentido, por mais que não envolvessem diretamente as percepções de um naturalista ou cientista europeu, as observações de um importante representante das elites dominantes de um emergente reino alemão sobre a flora amazônica nas proximidades de Belém não podem ser dissociadas daquela conjuntura marcada por viagens e explorações científicas. Em 1846, o Conde de Suzannet, viajante francês que percorreu várias regiões do Brasil, esteve na capital do Grão-Pará durante alguns dias. Seu registro direcionado à cidade, embora mais sucinto do que o do príncipe Adalberto, também possui diversas citações ao mundo natural existente nos arredores e à parte interna da cidade, como é possível verificar em: Pour arriver à Sainte-Marie-de-Belem, capitale de la province du Para, située à quinze lieues de l’embouchure, nous admirâmes les belles forêts qui en couvraient les bords. Quelques rares habitations s’élevaient çà et là au milieu des arbres. Les terrains qui bordent la rivière n’ont aucune valeur; nous passâmes près d’une île qui avait plus d’une lieue carrée; elle n’avait été vendue que 5000 francs; pourtant on y remarquait quelques maisons recouvertes en tuiles, et la valeur des bois qui s’y trouvaient excédait dix fois cette faible somme (Suzannet, 1846, p. 425)6.

Muito além das descrições rotineiras, direcionadas à localização e às dimensões da cidade de Belém, o fragmento retirado da obra do Conde de Suzannet possui várias referências ao mundo natural circundante da capital,

“Para chegar a Santa Maria de Belém, a capital da província do Pará, situada quinze léguas da boca, nós admiramos as belas florestas que cobriam as margens. Poucas casas estavam aqui e ali entre as árvores. A terra margeando o rio não tem valor, passamos por uma ilha que tinha mais de um quilômetro quadrado, que foi vendida por apenas 5.000 francos; ainda notei algumas casas cobertas com telhas, e o valor da madeira que estava lá excedeu dez vezes aquela pequena quantia” (tradução nossa).

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onde são exaltadas as “belas florestas” existentes nas proximidades da urbe, e principalmente as atribuições econômicas desses recursos naturais, como os valores de uma ilha próxima e da madeira existente nas matas adjacentes ao núcleo populacional. A visão economicista dispensada pelo nobre francês ao mundo natural presente nos arredores da capital do Grão-Pará possui muitas proximidades com os argumentos do príncipe Adalberto da Prússia, que conheceu os espaços florestais existentes nas cercanias da cidade na mesma conjuntura. Em fins da década de 1840, Belém recebeu a visita do viajante e naturalista Alfred Russel Wallace (1823-1913). Este estudioso, como já foi destacado no tópico anterior, além de realizar uma longa expedição no percurso da bacia amazônica, também se notabilizou por registrar na sua obra diversas observações sobre aspectos da fauna e da flora presentes no interior e nas proximidades da capital provincial, enfatizando a existência de uma grande diversidade natural na parte interna e nas cercanias da urbe, como é possível observar no fragmento a seguir: O vigor da vegetação evidencia-se por toda parte. As platibandas e cornijas das casas revestem-se de pequenas plantas, e nos altos das paredes e nichos das igrejas veem-se musgos, relvas e mesmo arbustos ou árvores de pequeno porte. Para cima, para baixo e para além da cidade, tanto quanto a vista pode alcançar, estende-se a floresta virgem. Em todas as ilhotas do rio, veemse árvores até a beira da água, e as pequenas praias, agora atingidas pela cheia, são cobertas de arbustos ou árvores baixas, cujas grimpas estão apenas acima da superfície das águas. O aspecto geral da vegetação pouco difere do da Europa, excetuando-se as palmeiras, de abundante folhagem, e que ostentam graciosas formas (Wallace, 2004, p. 37).

As palavras de Wallace, direcionadas à presença de aspectos da flora em Belém, demonstram mais uma vez que os olhares de muitos viajantes estrangeiros em relação ao mundo natural amazônico não ficavam limitados à observação das florestas ou rios existentes na região, mas abarcavam um “leque” muito extenso de

possibilidades a serem analisadas. Para esse estudioso, as ruas, casas, jardins e quintais da cidade do Pará eram capazes de oferecer uma variedade de pontos da natureza dignos de observação. Assim, tanto as pequenas plantas localizadas nos altos das paredes das habitações e das igrejas, possuidoras de diversas espécies de musgos, relvas e arbustos, como as árvores presentes ao longo de toda a área urbana da capital do Grão-Pará forneciam possibilidades de averiguação do mundo natural, não devendo ser desprezadas. O olhar atento de Wallace, direcionado à presença do mundo natural nas ruas, habitações e arredores de Belém, possibilita uma nova percepção específica sobre a cidade, com destaque para os elementos pertencentes à flora, presentes ao longo de todo o núcleo populacional. Nessa percepção, a própria atribuição de degradação direcionada à cidade pelo viajante e naturalista estrangeiro era marcada pela interação com a natureza, pois, segundo ele, as “migalhas de jardim e terrenos baldios entre as casas, separados por cercas de madeira já apodrecida, os quais estão tomados por verdadeiros capinzais, vendo-se também, de permeio, algumas bananeiras” (Wallace, 2004, p. 40-41), contribuíam para enfear a capital provincial. Henry Walter Bates, estudioso que acompanhou Wallace em parte de sua expedição pela Amazônia, também apresenta impressões relacionadas à flora de Belém. Logo ao desembarcar na cidade, ele expressa que o “ar quente e úmido [...] parecia desprender-se do chão e das paredes, fez-me lembrar das estufas tropicais de Kew” (Bates, 1979, p. 12), e no decorrer da “tarde caiu um forte aguaceiro” (Bates, 1979, p. 12). Além de considerações relacionadas às mudanças climáticas ocasionadas em Belém, esse estudioso também argumenta que em seu primeiro passeio pela urbe adentrou em “um campo relvado [...] que ia dar na floresta virgem” (Bates, 1979, p. 12). Em seguida, Bates (1979, p. 13) traça um registro diversificado das árvores que compunham o ambiente interno da cidade do Pará, ao expressar:

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Esplendorosa beleza da vegetação. As copas sombrias e espessas das mangueiras eram vistas em toda parte, surgindo por entre as casas, em meio à fragrância das laranjeiras, limoeiros e outras árvores frutíferas tropicais, algumas em floração, outras apresentando frutos em vários graus de maturidade. Aqui e ali, projetando-se acima das árvores de copa escura e arredondada, viam-se as hastes eretas e lisas das palmeiras, exibindo no alto o seu magnificente tufo de folhas finalmente franjadas. No meio delas chamava especialmente a atenção o esguio açaí, em grupos de quatro ou cinco, com sua haste lisa e levemente recurva elevando-se a vinte ou trinta pés de altura e terminando num penacho de plumosa folhagem, de contornos indescritivelmente leves e graciosos. Nos ramos das árvores mais altas e de aspecto mais comum enganchavam-se tufos de parasitas de curiosas folhas. Delgadas lianas pendiam dos galhos, formando guirlandas, ou caíam como fitas do alto das árvores, ao passo que trepadeiras de exuberante folhagem invadiam tudo o que encontravam pela frente, troncos de árvores, telhados, muros, ou se derramavam por sobre as cercas numa incrível profusão de folhas. A soberba bananeira (Musa paradisiaca), a qual, conforme diziam todos os livros a respeito, constituía um dos maiores encantos da vegetação tropical, crescia ali com grande viço, suas verdes e luzidias folhas de doze pés de comprimento debruçando-se sobre o telhado das varandas, nos fundos de todas as casas.

Assinalada por destacar os aspectos naturais presentes na cidade de Belém, a descrição de Bates expõe a urbe amazônica a partir de múltiplos elementos pertencentes à flora nativa da região ou não. Para o viajante europeu, a capital do Grão-Pará, não era formada apenas por construções feitas de pedra, constituindo-se também a partir de uma grande diversidade de espécies vegetais, integrada por árvores frutíferas tropicais originárias de várias regiões do mundo, onde se destacam mangueiras, laranjeiras e limoeiros, ao lado de vegetais oriundos da Amazônia, como açaizeiros e bananeiras. Assim, muito mais do que os aspectos estruturais e populacionais da cidade do Pará, a presença de espécimes vegetais era composta por diferentes tonalidades de verde, que fascinavam a percepção e hipnotizavam o experiente olhar do naturalista. Além das referências à vegetação das ruas e de quintais de Belém, Bates (1979, p. 16) também se

preocupou em descrever aspectos da flora existentes nas cercanias da cidade, ao expressar que nas proximidades da estrada das Mongubeiras havia “uma das estreitas veredas [...] cercada dos dois lados por tapumes cobertos de trepadeiras folhudas e de soberbas flores”, que “ia desembocar numa grota úmida, onde ficava localizada uma das cisternas públicas num pitoresco nicho escondido sob uma moita de palmeiras Mucajás” (Bates, 1979, p. 16-17). Ainda de acordo com o estudioso, os “troncos das árvores, cercas e paliçadas estavam tomados por trepadeiras do gênero Pothos, de grandes folhas acetinadas em forma de coração” (Bates, 1979, p. 17). Por meio dessa exposição, é possível verificar que, na percepção do naturalista britânico, a capital do Grão-Pará era muito mais do que um núcleo urbano encravado na Amazônia, sendo parte da própria floresta. Em 1858, cerca de uma década depois da passagem de Bates, Belém foi visitada pelo médico e explorador germânico Robert Avé-Lallemant, que, após ter residido no Rio de Janeiro na década de 1830, realizou várias expedições pelo país com apoio do governo imperial. Em sua passagem pela capital do Grão-Pará, além de apresentar uma visão inicial perceptivelmente contraditória da cidade, ao argumentar que ela dava uma “boa impressão, vista do rio, embora tudo nela pareça velho” (Avé-Lallemant, 1980, p. 29) e das corriqueiras descrições urbanísticas, onde se destacam “vestustas igrejas; a Alfândega, [...] o magnífico palácio do presidente” (Avé-Lallemant, 1980, p. 29), o viajante também se preocupou em expor um interessante quadro sobre a presença do mundo natural na urbe, expressando que:

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Na verdade, o estado de primitividade da Natureza, mesmo nos arredores da cidade, atingidos pela civilização avassaladora, já recuou várias vezes, embora, triunfando igualmente por toda a parte sobre a arte e a cultura, ela tenha deixado seus soberbos representantes e plantado outros. Quando se sai das ruas pacatas do Pará, nas quais, por causa do calor equatorial, se evitam todo movimento e esforço desnecessários, para o campo, para a chamada “rocinha”, encontra-se


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aí quase tudo transformado num vasto parque. Maravilhosas aleias cruzam-se em ângulos, orladas de terminálias, cujos ramos, sobrepondo-se em camadas, dão uma sombra refrigerante, ou de eriodendros, cujos troncos gigantescos, não obstante muitos parecem seculares, estão ainda em idade infantil. [...] As viçosas bananeiras ensombram lindas casas de campo [...]. E mais mangueiras, artocarpos e numerosas anomáceas, laranjeiras, cafeeiros e tudo o mais que a viçosa vegetação tropical pode apresentar; tudo isso se aglomera em redor das bonitas casas de campo, nas quais o paraense procura escapar à canícula tropical (Avé-Lallemant, 1980, p. 30-31).

Caracterizada pela riqueza de detalhes sobre a presença do mundo natural em Belém, a descrição de Robert Avé-Lallemant proporciona alguns aspectos ausentes nas obras de viajantes expostas anteriormente. Primeiramente, pode-se ressaltar a preocupação do estudioso em ressaltar as mudanças sofridas no meio natural da cidade e adjacências, ocasionadas, segundo ele, pelo triunfo da “civilização”. Em segundo, o autor ressalta que nas cercanias da urbe, mais especificamente nas chamadas “rocinhas”, subsistia uma natureza modificada pelas mãos humanas, que transformaram o espaço em um “vasto parque”, com uma flora cultivada, servindo para embelezar, proteger do calor ou alimentar, nas proximidades daquilo que ele considera como belas “casas de campo”, com destaque para o espaço próximo à igreja de Nazaré. As reflexões de Avé-Lallemant sobre a presença e usos da flora em Belém permitem verificar que a observação de diversas espécies vegetais na cidade não apenas relacionava-se a interesses científicos em relação aos viajantes, como também se adequava a múltiplas finalidades por parte de seus habitantes. Evidentemente, a capital do Grão-Pará, analisada por estudiosos como Suzannet, Wallace, Bates e Avé-Lallemant, não era a mesma que moradores e autoridades vislumbravam em suas vivências cotidianas. Para grande parte dos viajantes que pisaram na região durante o Segundo Reinado, a cidade do Pará era muito mais que um amontoado de edificações, um centro administrativo ou um espaço de relações econômicas

situado no meio de uma floresta, representando também uma espécie de extensão urbanizada do mundo natural amazônico, mesclando aspectos da flora e da fauna nativas com a de várias regiões do mundo.

FECHANDO ALGUNS PONTOS A análise dos relatos de naturalistas realizada nesse estudo possibilitou outras percepções sobre a relação desses visitantes com a cidade de Belém. Esta, muito além de se constituir unicamente em um ‘espaço de descanso’, ‘porta de entrada para a floresta’ ou ‘lugar de estadia’ para experiências ‘mais profundas’ na bacia amazônica, representou, na prática, um ambiente de estudos, experiências e descobertas que, em várias situações, pouco deixou a desejar às investigações efetivadas nas selvas e nos rios mais longínquos da região. Assim, embora a passagem desses estrangeiros tenha sido marcada por uma multiplicidade de experiências, foi no espaço urbano ou nas adjacências da capital do Grão-Pará que muitos viajantes realizaram seus primeiros contatos e pesquisas específicas com bichos e plantas, que, em muitas situações, não poderiam ser reproduzidas em áreas mais isoladas de floresta fechada. No olhar de vários naturalistas experimentados, a cidade de Belém do Pará era mais do que um espaço urbano situado em uma grande floresta, significando também um lugar onde o mundo natural interferia e se relacionava diretamente com os grupos humanos que nela habitavam. Diante dessa constatação, a fauna e a flora existentes na urbe, ou em suas proximidades, também, em algumas situações, poderiam servir aos interesses científicos desses estudiosos, que, como foi observado ao longo do artigo, preocuparam-se em coletar amostras e colher informações sobre o lugar, tirando conclusões sobre aspectos do mundo natural na respectiva capital provincial. Assim, a Belém vista pelos viajantes se constituiu em diversas circunstâncias em um núcleo urbano que contribuiu para o conhecimento científico, propiciando ‘detalhes’ muitas vezes imperceptíveis ou desprezados pelos seus moradores,

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Belém e o mundo natural: olhares de viajantes sobre plantas e animais na urbe amazônica (1840-1860)

como a presença de insetos, animais e plantas, nas ruas, habitações, quintais e adjacências, um interessante campo de investigação e observação para diversos estudiosos, em sua busca de compreensão do complexo mundo natural e social, atualmente conhecido como mundo amazônico. Por fim, o presente texto demonstrou, por meio da presença e das experiências de diversos viajantes estrangeiros na cidade de Belém, entre 1840 e 1860, que, na percepção de grande parte desses estudiosos, não havia qualquer separação consistente entre a capital do GrãoPará e a grandiosa floresta que a circundava. A partir desse pressuposto, a urbe paraense e a floresta amazônica eram observadas como lugares distintos, mas intrínsecos de um mesmo ambiente natural e social.

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Memória social e patrimônio cultural: a transmissão de práticas científicas em um herbário brasileiro Social memory and cultural heritage: scientific practices transmission in a Brazilian herbarium Sonia Maria PiccininiI, Lucas GraeffII, Patrícia Kayser Vargas ManganII I

Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil II

Centro Universitário La Salle. Canoas, Rio Grande do Sul, Brasil

Resumo: O artigo explora o papel do Herbário ICN, vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na transmissão de práticas científicas próprias à área da botânica, tomando por orientação os conceitos de memória social e patrimônio cultural. Trata-se de uma pesquisa interdisciplinar, pautada por observação participante e entrevistas, resultando em como se dá o fazer ciência e a divisão do trabalho por meio do Herbário, bem como o seu papel como laboratório e espaço de consulta e referência. Como conclusão, sugere-se que Herbário ICN é o nódulo de um sistema de objetos e práticas que garante a continuidade de modos de fazer e saberes científicos nas ciências da vida. Seu valor de patrimônio científico não se restringe, portanto, aos aspectos materiais de sua coleção. Palavras-chave: Herbário ICN. Memória social. Patrimônio cultural. Patrimônio científico. Abstract: This paper explores the role of ICN Herbarium in the transmission of scientific practices, specifically those in the field of Botany, taking the concepts of social memory and cultural heritage as a guideline. The ICN Herbarium belongs to the FederalUniversity of Rio Grande do Sul. Our research is interdisciplinary and based on participant observation and in depth interviews. The results show how science is done and how labor is divided in the Herbarium and its role as laboratory and space of reference and consultation. In conclusion, we believe that ICN Herbarium is at the heart of a system of objects and practices that ensures the continuity of the ways of doing and of scientific knowledge in life sciences. Therefore, the value of its scientific heritage is not restricted to the material aspects of its collection. Keywords: ICN Herbarium. Social memory. Cultural heritage. Scientific heritage.

PICCININI, Sonia Maria; GRAEFF, Lucas; MANGAN, Patrícia Kayser Vargas. Memória social e patrimônio cultural: a transmissão de práticas científicas em um herbário brasileiro. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 2, p. 521-533, maio-ago. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000200010. Autor para correspondência: Lucas Graeff. Centro Universitário La Salle. Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Bens Culturais. Av. Victor Barreto, 2288. Canoas, RS, Brasil. CEP 92010-000 (lucasgraeff@gmail.com). Recebido em 08/02/2016 Aprovado em 10/07/2016

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Memória social e patrimônio cultural: a transmissão de práticas científicas em um herbário brasileiro

INTRODUÇÃO Este artigo tem por objetivo analisar descritivamente as práticas sociais do fazer científico na área da botânica, explorando o papel do Herbário ICN1, vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na transmissão de práticas científicas próprias à área da botânica. Sob um ponto de vista conceitual, toma-se por orientação os conceitos de memória social e de patrimônio cultural. A memória social é compreendida aqui como uma matriz de interlocução entre o passado, o presente e o futuro (Gondar, 2005; Bosi, 1994). Ela enquadra o cotidiano e, por extensão, as práticas dos diferentes sujeitos de pesquisa, sejam eles professores, pesquisadores, alunos ou técnico-científicos envolvidos nas atividades cotidianas do Herbário. Operada por intermédio do conceito de patrimônio cultural, essa interlocução faz com que a análise descritiva das práticas científicas se interesse também pelos artefatos, seu processamento, suas técnicas de fabricação, que especificam “o saber-fazer envolvido e a divisão técnica do trabalho e suas condições operacionais”, como sugere Meneses (1998, p. 91). Ao relacionar práticas científicas, memória social e patrimônio cultural, o que se propõe aqui é uma reflexão interdisciplinar, colocando em interação o patrimônio reconhecido do Herbário ICN – suas coleções de espécimes de flora coletadas e arquivadas ao longo do tempo – e os sentidos e significados atribuídos a essas coleções pelos usuários do Herbário. O texto organiza-se em cinco partes. Após esta introdução, a segunda seção aborda o processo metodológico que levou os autores deste trabalho a desvelar o papel do Herbário ICN na sustentação dos saberes e fazeres científicos próprios à área da botânica. Em seguida, na terceira seção, apresenta-se como se dá o fazer ciência e a divisão do trabalho por meio do Herbário. Por meio dessas práticas, dá-se o mapeamento e o inventário da flora, a reconstituição ecológica,

geográfica e histórica de fungos e vegetações em determinados locais e regiões e, sobretudo, organiza-se o Herbário como depositário de testemunhos que garantem a materialidade das provas científicas. A quarta seção discute o papel do Herbário ICN: por um lado, concentra atividades típicas da vida de laboratório; por outro, é considerado pelos entrevistados como uma biblioteca ou arquivo de consulta e referência. Na conclusão, sugere-se que o estudo de caso do Herbário ICN, na interface entre redes de colaboração e saberes e fazeres do patrimônio cultural, permite compreender como se dá a transmissão das práticas científicas no âmbito das ciências da vida. Nesse sentido, o Herbário ICN pode ser considerado como o nódulo de um sistema de objetos e práticas, que garante a continuidade do fazer científico. Seu valor de patrimônio científico localiza-se aí, não se restringido, portanto, aos aspectos materiais de sua coleção.

Descobrindo e descrevendo o Herbário ICN: a constituição de um universo de pesquisa A pesquisa que dá origem a este artigo teve duração de nove meses e foi pautada por uma metodologia mista, com técnicas de coleta e análise de dados, de caráter qualitativo e quantitativo. A proposta foi incorporar tanto “a questão do significado” (Minayo, 2001) quanto a possibilidade de “descrever, representar ou interpretar a multidiversidade de formas vivas e suas possíveis inter-relações” (Minayo; Sanches, 1993, p. 241). Nesta seção, apresenta-se uma narrativa do que foi efetivamente realizado, tomando por orientação as técnicas de observação participante, entrevistas temáticas e análise de redes de pesquisa. Ao mesmo tempo, apresentase o Herbário ICN sob um ponto de vista institucional, em contraponto com as experiências e o campo. O Herbário ICN está localizado na Av. Bento Gonçalves, nº 9500, no campus do Vale da Universidade

O Herbário ICN é o Herbário do Instituto de Biociências da UFRGS. A sigla ICN significa Instituto de Ciências Naturais, que deu origem ao acervo na década de 1950. Com a reforma universitária, houve mudança no nome do Instituto: hoje, Instituto de Biociências. Da feita que surgem, os acrônimos são mantidos, mesmo mudando a denominação dos centros de origem. Essa é conduta para identificar os herbários.

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Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na cidade de Porto Alegre. Trata-se de um repositório de material botânico, que recebeu recentemente o credenciamento de fiel depositário por parte do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), do Ministério do Meio Ambiente (MMA). A condição de fiel depositário indica a necessidade de conservar o material testemunho – subamostras – recebido ao longo dos anos, além de garantir a identificação taxonômica correta em instituição reconhecida pelo governo brasileiro e podendo permitir o rastreamento do patrimônio genético acessado por instituição devidamente autorizada por aquele órgão. O Herbário iniciou suas atividades, em 1937, com a coleção de Alarich R. Schultz, professor e pesquisador de Botânica da Faculdade de Filosofia da UFRGS. Nascido no Brasil, fez a maior parte de sua formação em Biologia na Europa, tendo feito o doutorado na Universidade de Marburg. Ao voltar ao Brasil, o professor Schultz foi catedrático de Botânica na Faculdade de Filosofia, atuando no Curso de História Natural. Ele é apresentado como uma espécie de pioneiro ou herói por parte das pessoas que, hoje em dia, utilizam-se do Herbário ICN. Conta-se que um de seus maiores legados foi o de implementar as saídas de campo, além de ser o responsável pelo rico acervo de plantas secas que resultaram das saídas. Afirma-se, ainda, que suas metodologias de saídas de campo são tradição nas aulas de Botânica da UFRGS. Ademais das contribuições do professor Schultz, o Herbário também reúne coleções de outros botânicos importantes, como a de João Dutra – médico e botânico –, do Irmão Teodoro Luís e do coletor e pesquisador Karner Hagelund, já falecidos. Conforme consta em um manuscrito do Departamento de Botânica: Durante o ano de 1943 foi adquirido pela Reitoria da Universidade de Porto Alegre a herança científica do eminente cientista gaúcho Dr. João Dutra [...]. Este ato da Reitoria preservou aos rio-grandenses um valioso patrimônio cultural (Homrich et al., 2014, p. 43).

O Herbário ICN contém cerca de 160.000 exemplares (Herbário ICN, 2016), podendo ser encontrado e consultado no bloco IV do campus do Vale, prédio 43433. O Herbário ICN, do antigo Instituto de Ciências Naturais, atualmente faz parte do Instituto de Biociências da UFRGS, e dispõe de toda a estrutura administrativa do departamento, inclusive de funcionários. Atualmente, o Herbário é conduzido pela curadora e professora Mara Rejane Ritter, além de dois professores pesquisadores que compõem a Comissão Curadora – Lilian Eggers e João Fernando Prado. No quadro funcional, encontram-se os biólogos Alexandre Uarth Christoff, Camila Rezendo Carneiro, Márcia Cristina Pinheiro e Mateus de Oliveira Negreiros, além de alguns acadêmicos bolsistas. A entrada dos pesquisadores no Herbário ICN deuse após um conjunto de leituras de embasamento teórico prévio, bem como reuniões da equipe de pesquisa. O primeiro passo foi iniciar a observação participante, com o objetivo de familiarizar-se com o local. Gradativamente, foram feitos contatos com os biólogos e com o pessoal técnico-administrativo que desenvolve trabalhos no local, além de realizar entrevistas informais com professores, alunos e pesquisadores. Nesse processo, a bióloga Camila Rezendo Carneiro tornou-se uma interlocutora fundamental. Familiarizar-se com o local significa obter informações sistemáticas sobre os frequentadores, além do conhecimento da dinâmica do Herbário ICN. Aos poucos, identificaram-se suas múltiplas funções: a de repositório de material botânico; a de lugar de referência para redes de colaboração; a de fiel depositário de materiais de testemunho e a de garantidor da materialidade das provas que fundamentam descobertas e publicações científicas. Nesse cenário, passou-se a conhecer como os frequentadores do Herbário definem suas práticas e relações, interpretando-as sob a ótica do patrimônio cultural e da memória social. Em termos de infraestrutura, as dependências do herbário da UFRGS consistem em: 1) uma sala administrativa,

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onde são feitos os procedimentos de entrada e saída das amostras, assim como o gerenciamento e a análise das espécies, o cadastro e a alimentação do banco de dados; 2) uma sala denominada de almoxarifado, em que ficam as exsicatas2 que estão aguardando devolução ao herbário de origem; 3) uma sala específica para os alunos guardarem os materiais coletados; 4) uma sala de apoio, onde ficam os bolsistas e os pesquisadores que vêm de fora para trabalhar com as plantas; 5) uma antessala, onde se encontra a estufa para a secagem das plantas; 6) uma sala refrigerada com freezers, nos quais são colocados todos os materiais recebidos antes de passarem definitivamente para o acervo. O Herbário é composto, principalmente, por amostras catalogadas e não catalogadas – as quais estão esperando seu processamento e catalogação. Neste caso, aguardam um número de classificação, para entrarem no arquivo e serem disponibilizadas aos demais pesquisadores. O mesmo procedimento vale para as doações e coletas efetuadas por alunos, que precisam ser tombadas, recebendo um número de classificação. A manutenção e a preparação das plantas exigem uma série de procedimentos e cuidados locais. O zelo na coleta garante as informações necessárias aos pesquisadores. Além disso, são tomados cuidados específicos para afastar as pragas e garantir a qualidade das amostras. A pesquisa durou várias semanas. Ao longo dos dias, em horários diferentes, foi possível participar do cotidiano do Herbário. Ora ficava-se na secretaria, ora na sala do acervo, ora na sala dos pesquisadores e bolsistas. Muitas vezes, acompanhava-se algum profissional em seu trabalho. Aos poucos, foi possível tomar ciência do que se fazia lá e o que representava a preservação e o manuseio das exsicatas, importantes testemunhos da flora brasileira. Embora aquelas plantas não estivessem vivas, compõem uma coleção científica – ou uma ‘biblioteca’, como alguns dos sujeitos de pesquisa costumavam dizer. As exsicatas eram utilizadas

por pessoas de diferentes áreas do conhecimento, como Farmácia, Química, Agronomia, além da própria Biologia. Possui um viés multidisciplinar e interdisciplinar, portanto. Outro espaço de pesquisa foi o virtual: o site do Herbário da UFRGS, que remeteu à página do Instituto de Biociência e, finalmente, ao da Pós-Graduação em Botânica. Ali, obtiveram-se dados sobre o corpo docente do departamento de Pós-Graduação. Essa lista foi importante, considerando a intenção de mapear professores, alunos e pesquisadores relacionados ao Herbário. Até que ponto essas pessoas o frequentavam assiduamente? Quais tipos de ligação dispunham entre si? Como o Herbário colaborava ou não no sentido de colocá-las em rede? Seria o Herbário uma espécie de centro de pesquisa? Um laboratório? Um local de estudo de pesquisadores ligados à área da Botânica? Ao longo da investigação, o Herbário ICN mostrouse muito próximo da Pós-Graduação (PPG) em Botânica. Isso não estava claro no início. No transcorrer da pesquisa, percebeu-se que o local se reportava sistematicamente aos alunos e professores do PPG. Assim, foi tomada a decisão de realizar entrevistas temáticas com alunos e professores da Botânica. A primeira visita foi com a curadora, Mara Regina Ritter, que indagou sobre os objetivos da pesquisa e das observações in loco. Aproveitando este encontro, foi possível obter a permissão para manusear cadernos de controle de visitantes, solicitações de empréstimo, as cadernetas de campo do professor Schultz e a documentação histórica do Herbário. Além disso, Mara indicou o professor Luís Baptista como “a memória viva do herbário”. Após essa primeira entrevista, ocorreram encontros com o professor Rodrigo Singer, Coordenador da Pós-Graduação em Botânica, e com a professora Tatiana Chies, que é uma das pessoas com o maior número de alunos orientados para pesquisas no Herbário. Gradualmente, construiu-se uma rede de relações com entrevistas encadeadas umas às outras. Com alunos e alunas, inclusive.

Exsicatas são espécies coletadas por pesquisadores que, após desidratadas, passam por processamento técnico e são armazenadas e disponibilizadas para consulta. Em alguns casos, são mantidas em meio líquido.

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O roteiro de entrevista em profundidade foi construído com a proposição de perceber como os pesquisadores e alunos que frequentam o Herbário pensam suas práticas científicas, e a importância das redes e do Herbário. Mais especificamente, foi estruturado em três temas. O tema 1 relacionou-se à ciência e à tecnologia: o que é ciência? Como se faz? Para que (ou quem) serve? No tema 2, tomando por objeto o Herbário ICN, havia questões como: um lugar como Herbário se inscreve nesse fazer ciência? Trata-se de um lugar que favorece relações com pessoas e grupos? Como? Por quê? O tema 3, por fim, enfocava a indicação de redes: com quem o entrevistado trabalhou ou foi colaborador de quem? Assim, esperava-se replicar a entrevista com essas pessoas, cruzando dados e compreendendo as relações de uns com os outros ao longo do fazer ciência. As entrevistas foram realizadas no ambiente de trabalho dos pesquisadores: suas salas e gabinetes. No caso dos alunos, realizaram-se em salas de estudo ou nos laboratórios em que desenvolviam seus trabalhos práticos. A entrevista que fugiu desse padrão foi a da professora Hilda Wagner: aposentada, não dispunha mais de um gabinete. Assim, a entrevista foi realizada na sala de acervo do Herbário. Em média, as entrevistas duraram entre 40 min e 1 h 46 min. Todas ocorreram sem maiores obstáculos, sendo gravadas e transcritas com o consentimento expresso dos entrevistados. De todas as solicitações para a entrevista, somente duas professoras não aceitaram. Uma se disse muito ocupada e a outra afirmou não utilizar sistematicamente o Herbário para suas pesquisas.

coleção do Herbário. No entanto, essas etapas elementares do cotidiano desse ambiente de trabalho surpreendem cientistas de disciplinas cuja imagem dominante é a do pesquisador-autor, que divide seus dias entre livros e artigos e nem sempre opera em redes sistemáticas de colaboração. Em termos acadêmicos, a divisão do trabalho científico nas ciências da vida é de caráter “orgânico” (Durkheim, 2004): o pesquisador é um indivíduo agrupado pelo perfil e pela função de sua atividade na área, disciplina e especialidade em que se inscreve. Isso não significa dizer que as descobertas científicas que ocorrem nessa área sejam anônimas. A autoria se faz presente, mas é coletiva. E, sobretudo, refere-se sempre ao conjunto das pesquisas realizadas pela comunidade científica. Os trechos de entrevistas abaixo apresentam essa visão do fazer ciência, que caracteriza os saberes e fazeres ancorados no Herbário ICN:

O fazer ciência e a divisão do trabalho científico no Herbário ICN As atividades de observação participante e entrevista favoreceram um entendimento amplo dos modos de fazer característicos do Herbário ICN, da UFRGS. Em discussões com biólogos e profissionais que passaram pelo local, algumas das descobertas dos autores deste artigo foram consideradas corriqueiras. Para eles, é natural organizar-se em redes, realizar saídas de campo e agregar materiais à

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Toda a vez que alguém acrescenta um tijolo no conhecimento frequentemente se descobre, então, algo novo [...]. Aqui na biologia, mais especificamente na botânica, o que a gente faz é uma parte muito descritiva. Nós quase não trabalhamos com a parte de hipóteses, por exemplo. É uma ciência mais descritiva, mas que também tem um valor tremendo. Então, na verdade, o que a gente hoje sabe, ou descreve, é uma forma assim de conhecimento geral, total, como sistemática, principalmente esta parte de Herbário (João André Jarenkow, professor titular da UFRGS, entrevista realizada em 30 mar. 2015). Ciência para mim é descobrir o novo, investigar a natureza no nosso caso das ciências biológicas, os seres vivos então, a natureza, tentando desvendar os seus mistérios, dizendo de uma forma bem poética, tentando então entender os processos que estão por trás daquilo que se observa hoje na natureza. O conhecimento científico hoje se faz de uma forma muito diferente de tempos atrás. Pensando muito também nesta parte de colaboração... A gente tem registro de cartas de Darwin que foram trocadas com outros pesquisadores, mas eram raras e difíceis naquele momento. Hoje em dia, a ciência com certeza é muito mais colaborativa e hoje se tem muito mais colaboração e eu acho ótimo e eu sou totalmente adepto das colaborações (Cassiano Aimberê Dorneles Welker, recém-doutor pela UFRGS, entrevista realizada em 17 abr. 2015).


Memória social e patrimônio cultural: a transmissão de práticas científicas em um herbário brasileiro

Hoje, dificilmente um pesquisador faz um trabalho sozinho, só ele. Eu não trabalho de forma alguma sozinha, eu tenho alguns grandes colaboradores, né? Eu tenho minha colega Lilian Eggers. Ela é a principal especialista na família de plantas que eu trabalho. Foi ela quem coordenou a lista de toda a flora do Brasil. Tenho uma grande colaboradora também, ali no departamento de genética, Eliane Kaltchuk. Nós também trabalhamos muito juntas porque nossos trabalhos são, na medida do possível, multidisciplinares. Nossos trabalhos são realizados em conjunto. Porque a gente faz essa abordagem mais ampla; pra mim ciência só se faz discutindo em grupo e buscando as respostas em grupo (Tatiana Chies, professora associada da UFRGS, entrevista realizada em 7 abr. 2015).

Em termos simples, as exsicatas são exemplares de plantas. Podem ser secas, desidratadas, higienizadas, liberadas de fungos ou pragas e coladas em um pedaço de cartolina, ou guardadas em fluídos que as conservam ao longo do tempo. O processo de produção delas segue padrões internacionais, com número, carimbo e sigla da instituição. Desse modo, fornecem um grande número de informações para os pesquisadores: Uma exsicata com etiqueta dá uma infinidade de informações, seja sobre biodiversidade de uma região. Porque, depois que você tem toda essa informação catalogada no herbário, no banco de dados individual, [você] consegue saber qual é o número de espécies estimadas no Rio Grande do Sul, ou na Amazônia, ou no que for. Ao mesmo tempo, tu tem fontes de dados pra trabalhos mais morfológicos, mais anatômicos. Dá para entender por que essa semente tem duas cores, qual a função ecológica dela na dispersão, enfim. Você tem os dados de quando essa planta floresce, quando ela frutifica, a partir do período que foi coletada. Você vê se ela tem flor ou frutos. Geralmente, a gente coleta plantas férteis de flores ou frutos. E, com isso, associado com a informação geográfica, tu consegues planejar uma futura viagem. Porque se você precisa ver aquela planta no campo, tem dúvida da identidade daquela espécie, então com essas informações você consegue voltar no campo: consegue saber mais sobre a ecologia dessa espécie, consegue extrair linhagem de uma folha... E então tem informações de parentesco dessa espécie, de evolução daquela espécie ao longo do tempo – já pensando evolutivamente. E a gente faz cada vez mais isso junto com a taxonomia clássica. Tem essa parte de estudo molecular junto, estudos anatômicos, ecológicos, enfim. Uma infinidade [de dados] geográficos de conservação para saber se uma espécie é... se a distribuição geográfica dela é ampla ou restrita. Então, a gente tem uma infinidade de dados que podem ser retirados do herbário (João Ricardo Vieira Ignácio, professor de Botânica da UFRGS, entrevista realizada em 13 abr. 2015).

Então, neste grupo de pesquisa, principalmente na parte da taxonomia, é que se vai descobrir novos “taxons” [de taxonomia]. E este material todo fica referenciado na bibliografia internacional. Então, qualquer dúvida acerca de uma determinada espécie nova, em geral, se recorre ao material que está depositado neste Herbário. Ele é a fonte de referência daquela espécie nova. Então, quanto maior o corpo de pesquisadores que está por trás de um herbário, mais importante ele é. Consequentemente, ele também vai ser grande, em termos numéricos, em números de exsicatas (João André Jarenkow, professor titular da UFRGS, entrevista realizada em 30 mar. 2015).

Enquanto prática, a ciência não é feita por um único cientista. Precisa de pares, de uma comunidade de cientistas que referendam os resultados e quadros metodológicos (Ziman, 1979). É uma atividade eminentemente social. Diferentemente da imagem do pesquisador-solitário, desenvolvendo seus trabalhos em uma sala, um escritório ou em laboratórios cheios de pipetas, a pesquisa se desenvolve através de redes de relações (Latour, 2000). O contato informal entre cientistas e as conversas com os colegas compõem o ambiente onde a ciência acontece. No fazer ciência dos pesquisadores reunidos em torno do Herbário ICN, a coleta de plantas redunda na armazenagem de um tipo particular de material: as exsicatas, verdadeiros testemunhos dos saberes e fazeres desses pesquisadores.

Na lógica de colaboração orgânica entre cientistas e instituições relacionadas ao Herbário ICN, infere-se uma preocupação coletiva com o fazer da pesquisa e o respeito pela fonte primária dela – o material coletado e armazenado. Essa prática remonta às origens das ciências

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da vida, com os primeiros coletores e colecionadores dos séculos XVI e XVII3.

fazer essa parte de coleta de material, a gente faz amostragem. Tem um aspecto mais quantitativo, que é justamente para descrever a vegetação. [...] Por exemplo: se a gente for trabalhar no pampa, as florestas do pampa, que espécies a gente vai encontrar lá? [...] Quanto encontra de cada um? Então, tem que saber como reconhecer essas espécies, mas também quantificar. [...] O olhar, digamos, “clínico” do botânico, justamente dado pela experiência, é que é fundamental. Ele sai para o campo e traz aqueles materiais que são pouco conhecidos, ou são raros. É muito mais isso que vai dar importância ao herbário. Basicamente, é a experiência do pesquisador. E tem [que ter] um bom olho para trazer justamente aqueles materiais que são mais raros, mais importantes (João André Jarenkow, professor titular da UFRGS, entrevista realizada em 30 mar. 2015)

Antigamente se tinha um naturalista que ia para campo sozinho, ou numa grande viagem, ou trabalhava sozinho no seu laboratório, muitas vezes com um ou poucos pupilos, estudantes e era uma pesquisa muito solitária. Se escreviam grandes obras, grandes tratados. Às vezes sobre uma vida inteira de pesquisa, daquele pesquisador em especifico, sem muito contato com outros, existem cartas que eram trocadas na época... (Cassiano Aimberê Dorneles Welker, recémdoutor pela UFRGS, entrevista realizada em 17 abr. 2015).

Nesse sentido, destaca-se uma segunda prática relevante na divisão do trabalho científico: a saída a campo. Trata-se de uma atividade sistemática de coleta que fundamenta a Botânica.

[...] Não é um conhecimento estático que a gente vai lá pro campo, coleta, dá um nome e fica no herbário. Precisa pesquisar o máximo de evidências possível. [...] O trabalho é feito assim, na busca em campo, da gente ir pro campo, buscar essas plantas, coletar essas plantas, coletar informações sobre essas plantas. O que tu estás vendo ali no campo, tu coletas essa informação para que não se perca. Então, por exemplo: cor da flor, uma coisa que se perde. Várias outras informações ecológicas, ou morfológicas mesmo, que se perdem. Elas ficam registradas nas cadernetas, assim como a data, o local da coleta, muito especificamente registrado, dados de georreferência, pra se localizar com precisão essa coleta. E todas as informações são concentradas em uma etiqueta, numa exsicata que vai para o herbário (João Ricardo Vieira Ignácio, professor de Botânica da UFRGS, entrevista realizada em 13 abr. 2015).

Como eu faço ciência? Eu vou muito a campo. Agora, nem tanto. Mas sempre fui muito. Agora, os meus alunos é que vão. Porque tu tens alunos mais autônomos, outros nem tanto, e eu vou com quem tem mais dificuldade. Vou a campo para ver as plantas que nascem umas em cima das outras, que são as orquídeas. E elas muitas vezes são tão pequenas que passam despercebidas entre as demais plantas. Coletei muito, não só o que estou trabalhando hoje, mas fiz muita coleta quando trabalhava mais com taxonomia (Jorge Luiz Waechter, professor associado da UFRGS, entrevista realizada em 30 abr. 2015). Bom, então: enquanto sistemática, o pessoal sai muito a campo, para coletas. Antigamente, basicamente se faziam coletas. Eram pedaços ou partes dos vegetais, ou até inteiros. Eram coletados e prensados e se trazia para a universidade. Pela comparação com outros materiais já conhecidos, se verificava se era novo para a ciência. Mais modernamente, seriam pedaços de material, porque às vezes se faz coletas de material que é preservado ou já coletado especificamente para análises posteriores, vinculado a análises mais completas e complexas [como as] de DNA. [...] Eu trabalho bastante com campo. Além de

Entre as saídas a campo e a produção das exsicatas, as plantas são comparadas entre si por meio da observação, da coleta e da análise; pode surgir a partir disso uma descoberta, a qual consistirá em uma descrição de uma planta ou espécie jamais descrita por outro cientista. Este é o coroamento desse fazer da ciência, em particular do taxonomista, como se depreende das falas da professora Silvia Miotto e do professor João André Jarenkow:

Informações registradas de palestra proferida pelo pesquisador Márcio Ferreira Rangel, intitulada “As coleções de ciência e tecnologia no mundo contemporâneo: sobre acervos e museus de ciências”, realizada em 11 jun. 2015, no Museu da UFRGS.

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Ela me mostrava e eu dizia: “eu não sei, porque não bate com a chave, tá aqui a chave” [...], a chave para as espécies. E tinha que aparecer. Seguíamos a chave e não aparecia em lugar nenhum. O que significa isso? Viu o material do herbário? Foi atrás da bibliografia e o que aconteceu? Não tinha nada parecido com aquele material. Certo? Então o que significa isso? Uma espécie nova para a ciência. Então olha só que legal. Isso foi publicado [...]. Lathyrus ibicuiense, que é da região de Ibicuí. Ela descobriu espécie nova. Está descrevendo a espécie nova. Ela dá o nome, bem legal (Sílvia Teresinha Sfoggia Miotto, professora associada do Departamento de Botânica da UFRGS, entrevista realizada em 29 abr. 2015). Mas, mais modernamente, [...] certas análises são feitas [de formas] mais complexas em laboratório, justamente para se tentar desenhar de forma mais cientifica, mais replicável, esta planta em relação a outras, como se dá o parentesco entre elas, na busca do que a gente trabalha, na biologia, naquilo que Darwin tenta descrever: sempre semelhanças entre plantas ou diferenças na construção de um parentesco mais real entre as várias plantas e organismo de que a gente trabalha. Leva-se em consideração o parentesco entre elas, na construção de um sistema, de uma coisa assim mais [...] o que se leva em consideração é a parte mais evolutiva do parentesco geral entre as plantas (João André Jarenkow, professor titular da UFRGS, entrevista realizada em 30 mar. 2015).

coletado em vários locais. Então ele tinha ali todos os dados geográficos, que podiam ser lugares que eu já podia ir e tentar falar com a comunidade local. Dentro do processo, a gente entrou em contato com a SEMA [Secretaria Estadual do Meio Ambiente], o órgão ambiental, pra tentar dar uma olhada dentro dos parques também. [...] Então, quando a gente chegou para uma primeira conversa, eles [da SEMA] já conheciam o cravo. Eles foram os nossos primeiros informantes, que nos levaram a outros informantes e aí foi no sistema bola de neve (Isabel Cristina de Borba, doutoranda em Botânica da UFRGS, entrevista realizada em 8 abr. 2015).

As redes também levam os pesquisadores a se relacionarem com pares. É por meio dessas relações que se projetam os resultados do trabalho individual na comunidade científica e, eventualmente, nas políticas públicas.

A ciência praticada pelos sujeitos de pesquisa envolve trocas entre pesquisadores. Ao mesmo tempo em que cada entrevistado exerce sua função particular na organização do trabalho científico, ele se insere em redes de colaboração com colegas de departamento, órgãos públicos ligados a estudo da biodiversidade e outras instituições de pesquisa. Quando comecei a trabalhar com essa espécie, o cravo do campo vermelho, a gente já conhecia uma professora na UFRGS que trabalhava com essa espécie lá na farmácia. Então, ela citou que na propriedade dela tem a planta e mora um senhor lá, que esse senhor poderia ser nosso primeiro informante no caso. [...] Depois, claro, eu fui ao Herbário dei uma olhada nas plantas que estavam lá, olhei os pontos geográficos, a gente já sabia também pelo trabalho anterior de taxonomia do Eduardo Fascine [...]. Ele já tinha

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Eu vou atrás dessas pessoas que trabalham com a mesma coisa que eu. Procuro estabelecer contatos, parceria e discussão. Para isso, o computador ajuda tanto: a gente acaba muitas vezes conversando muitas coisas por e-mail. Porque um trabalha aqui, um trabalha no Rio, outro trabalha em outro lugar... Então, a gente procura fazer reuniões semanais ou quinzenais dependendo do período, né? Os laboratórios acolhem pessoas de diferentes grupos e, com certeza, quanto mais livre for a rede, melhor vai ser (Lilian Eggers, professora associada do Departamento de Botânica da UFRGS, entrevista realizada em 9 abr. 2015). Estes grandes herbários que eu passei, no Reino Unido, em Washington, em Nova York, em Saint Louis e os demais, nos Estados Unidos, são os maiores herbários dos Estados Unidos e têm muito essa colaboração, por receber muitos pesquisadores de diversos locais do mundo (Cassiano Aimberê Dorneles Welker, recémdoutor pela UFRGS, entrevista realizada em 17 abr. 2015). Em 1º de dezembro de 2014, foi lançado decreto da nova lista da flora ameaçada. Ela passou por um processo de análise de informações. A gente fez parte, junto com a Fundação Zoobotânica. Aqui, na UFRGS, vários professores, e professores de outras universidades também, colaboraram para a edição dessa nova lista. Além disso, há o grupo de estudos em agrobiodiversidade, chamado GEA. Ele tem ligação com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que financia encontros.


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A gente se encontra a cada mês, seja em Brasília, seja em outros locais, para a gente discutir temas da agrobiodiversidade (Paulo Brack, professor da UFRGS, entrevista realizada em 20 abr. 2015).

Herbário ICN: entre laboratório e biblioteca Se o contato informal entre pesquisadores e as conversas com os colegas compõem o ambiente científico imediato dos pesquisadores do Herbário ICN, o trânsito dessas pessoas em outros locais de referência amplifica “a busca pela descoberta cientifica [...], tornando o cientista fiel à sua comunidade e ao colégio ‘invisível’ a que pertence” (Vanz, 2009, p. 25). Como sugere Solla Price (1976), a ciência é feita por grupos e estes mantêm trocas constantes de informações a respeito de suas pesquisas, mesmo quando os cientistas estão localizados em instituições e países diferentes. Um local de referência que aparece nas entrevistas é o laboratório. Além do Herbário, os laboratórios também aparecem como espaço onde as redes são movimentadas. Eles também cumprem um papel de articulador de relações entre pesquisadores e alunos de graduação, mestrado e doutorado. Como destaca Ana Paula Rodrigues:

conhecimento e também para a consolidação de redes de colaboração. Tal como o Herbário ICN, os laboratórios são locais que favorecem as descobertas, as relações de mestre e aprendiz e as trocas entre pares. Nesse espírito de cooperação, de investimento pessoal, mobilizam-se redes inteiras. [...] o local permite, o laboratório permite isso, permite que você tenha contato com qualquer tipo de pessoa que se estabelece e poder perguntar sobre aquilo que tu tens dúvidas, que você tire dúvidas, você pode me ajudar, sugerir, e aí você vai e outras pessoas podem ajudar você, quando tu tens dúvidas (Mabel Rocio Bácz Lizarozo, aluna de Doutorado da UFRGS, entrevista realizada em 9 abr. 2015). [...] pensando em laboratório, né, pensando com nosso trabalho, nosso laboratório aqui a gente trabalha com o pampa, né? Uma vegetação campestre, e tem o apelo, né [...] por ser um, só existe no Rio Grande do Sul e tal, isso estimula o trabalho, né, em cima desse bioma, que é pouco pesquisado, isso fortalece, e esse é um bioma muito importante, então fortalece a pesquisa [...] e o sucesso do laboratório, então, tem essa importância, né, nessa questão de dar esse valor que é esse conhecimento botânico, né, então tem valor, então isso faz com que tenha o sucesso (Diober Borges Lucas, aluno de Mestrado da UFRGS, entrevista realizada em 17 abr. 2015)

Então tudo que eu faço aqui [no laboratório] eu não faria em outro lugar. E eu não tenho o conhecimento pra fazer isso por mim. Então, tipo, ter a Camila e ter a Lilian pra me orientar foi muito importante e ter o Herbário como material para eu me guiar. Eu falo muito com a Camila e com a Lilian, por exemplo, quando a gente tem uma dúvida muito grande. Não envolve só o nosso gênero: todo mundo do laboratório ajuda, né? A gente que trabalha com outros grupos [precisa desse apoio]. Os colegas dizem “eu classificaria esse assim”; os professores, “eu acho que tu deveria classificar desse jeito” (Ana Paula Rodrigues, aluna de graduação em Biologia da UFRGS, entrevista realizada em 9 abr. 2015).

Além das interações entre pesquisadores e alunos, os laboratórios favorecem trocas entre “humanos e não humanos”, pensando como Latour e Woolgar (1997). As pessoas e os objetos interagem na construção do

[...] então, por exemplo, essa experiência que eu tive de dois meses no laboratório lá, fazendo a parte básica de extração de DNA, que eu achava o máximo colocar aquele nitrogênio líquido, aquela fumaceira que saía [...] mas aquilo foi muito importante pra mim até, não me tornou uma especialista em molecular, eu não sei fazer uma extração sozinha, mas eu aprendi a [...], eu entendi como eu poderia analisar trabalhos, analisar projetos de outras áreas, então se eu não tivesse tido essa experiência de laboratório, eu não saberia avaliar um projeto que usa, por exemplo, ferramentas moleculares, agora eu sei avaliar; assim, eu sei ler trabalhos, eu sei avaliar trabalhos (Hilda Maria Longhi Wagner, professora titular aposentada da UFRGS, entrevista realizada em 9 abr. 2015).

Como destaca Callon (1980, p. 176, tradução nossa), “o laboratório é o agente desta universalização de conhecimentos em que se consiste precisamente na

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construção dos fatos científicos” . Nesse sentido, os sujeitos desta pesquisa indicam a importância dos laboratórios do Instituto de Biociências no recebimento e na análise de amostras. A fala de Mariath é significativa nesse sentido:

não significa nada. [...] Por exemplo, se a gente faz um estudo de [...] um remédio a partir de uma planta. Se não se tem um registro de que planta é essa, com total certeza, de nada adianta aquilo. E que perigo que possa ser tu dizer que é uma espécie, que na verdade não é (Cassiano Aimberê Dorneles Welker, recém-doutor pela UFRGS, entrevista realizada em 17 abr. 2015).

Então: tem desde o sangue de um indígena reservado em nitrogênio, lá da parte genética, de tribos até extintas. Você ainda tem sangue desses indígenas, feito pelo professor Salzano. Tu sabes o que é ter o sangue, o paliosangue?! Até coleção de laminário histológico, como tem aqui no nosso laboratório, o LAVEC vegetal. Então, tem a coleção do LAVEC, a coleção de peixes, de crustáceos... O que tu imaginares. Nós temos treze coleções, tudo catalogado. As coleções que temos de pólen são testemunhos [...]. O que tem exporodérmico, o expolenproteína que é preservado. Então, para tu reconstituíres a flora, tu estudas uma flora como se tivesse em um único lugar, passando milhões de anos, como se fosse uma vitrine de uma TV (Jorge Mariath, professor titular da UFRGS, entrevista realizada em 23 abr. 2015).

Na ciência, o laboratório também é um lugar da materialidade das provas. Apresenta-se, sobretudo, pela diversidade de relações – de autoridade, de sociabilidade e de reciprocidade. Os cientistas trabalham criando e combinando uma série de recursos heterogêneos de tipo conceitual, físico, econômico, humano.

Os projetos do nosso laboratório mostram os projetos de Ecologia. A maioria deles é inserido num contexto maior, ou dentro de um projeto maior. Esses projetos grandes, como SISBIOTA, como o PPBIO, que são pesquisas ecológicas de grande duração, onde a gente não trabalha só com vegetação; em projetos que têm muitos pesquisadores trabalhando com outros grupos de organismos – por exemplo, insetos ou aves. Então, aí o objetivo principal é levantamento da biodiversidade, dos ecossistemas campestres. Nossa parte é vegetação, mas a ideia desses projetos é ligar a diversidade de diferentes grupos. Ou seja, já tem uma relação entre riqueza de plantas e riqueza de aves, então a gente trabalha em grupos de pesquisa, o que, eu acho, é muito importante no nosso caso (Gerhard Ernst Overbeck, professor adjunto da UFRGS, entrevista realizada em 13 abr. 2015).

Esse tipo de colaboração, já destacada no caso do Herbário ICN, apresenta-se como uma estratégia de cooperação que facilita descobertas e avanços nas especialidades de cada um dos sujeitos de pesquisa.

Eu tenho colaboradores que trabalham comigo desde os primeiros artigos que eu publiquei, há quinze anos. Depende da tua área de pesquisa, dos trabalhos em laboratório, em campo [...] E do teu interesse. Eu utilizei [laboratórios e o Herbário] de forma muito intensa durante toda a minha iniciação cientifica e mestrado. Eu trabalhava com morfologia, com as plantas secas. Cada amostra que a gente usa, que faz a extração do DNA, a gente tem que ter um voucher, tem que ter uma planta ou um testemunho desse registro. [...] Pelo simples motivo que se possa identificar errado a planta, então talvez se faça um estudo extremamente elaborado, com técnicas muito avançadas a partir de um fragmento daquela planta, de um DNA, seja para medicamento, seja para qualquer coisa. Mas se a gente não tem o registro físico da planta, que possa então fazer a identificação deste material, isso

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Em Sant Louis, no Missouri, nos Estados Unidos, fui para um laboratório que trabalhava especificamente com um grupo de plantas em que eu já tinha interesse. Era o projeto do meu doutorado. [Lá, encontrei] técnicas moleculares muito avançadas e uma orientadora de reconhecimento mundial, Elizabeth Kellogg. Então, eu fui para este local que foi extremamente positivo por ter contato inicialmente com essa orientadora e, de certa forma, com a rede de colaboração que ela já tinha. O laboratório dela tem pesquisadores de vários locais do mundo, sejam alunos da pós-graduação, pós-doutorandos [...] Lá eu tive contato com vários alunos dela, vários colegas, [que me deram] ajudas informais no dia a dia do laboratório. [...] Um pós-doutorando do laboratório dela me ajudou muito nas análises filogenéticas que eu precisava. Era algo bastante novo pra mim. Acabou se tornando um coautor da minha tese e de todos os artigos. Seu nome é Michael Mckain. [...]


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Além dessas colaborações, por ocasião de meu doutorado aqui, eu entrei em contato com uma pesquisadora da Argentina, de Corrientes, que tinha trabalhado com um dos grupos de plantas que eu estudava. Eu tinha interesse em coletar lá na Argentina. Então, entrei em contato com ela, convidei-a para ser colaboradora, coautora de meus artigos. Marcamos então uma saída juntos e eu fiquei uma semana e pouco lá na Argentina. A gente viajou e coletou juntos. [...] Hoje, eu acho que a gente tem uns dez trabalhos ou projetos de trabalhos em colaboração para os próximos anos. Assim que surgiu: de uma viagem de coleta juntos, que propiciou então todas essas colaborações (Cassiano Aimberê Dorneles Welker, recém-doutor pela UFRGS, entrevista realizada em 17 abr. 2015).

Considerando as semelhanças entre o Herbário ICN e um laboratório, qual a diferença entre eles? Ambos são locais de referência na organização de saberes e fazeres dos profissionais da área da botânica. Mas será que os entrevistados concordam em considerá-los como similares? Qual seria a especificidade do Herbário para as pessoas que atuam através e em torno dele? Em linhas gerais, as falas dos entrevistados convergem para quatro ideias sobre a essência e a função do Herbário: é como um arquivo, que documenta a diversidade de plantas e de fungos de uma dada região por meio de espécimes de referência; é um apoio para a comparação entre espécies; é uma ferramenta no mapeamento e inventário da flora de uma determinada área, com a finalidade de reconstituição da vegetação ou de fungos de uma região; e, por fim, é um acervo de provas científicas, que garantem a materialidade das provas e, por extensão, fundamentam descobertas e publicações científicas. As entrevistas a seguir pautam essas linhas gerais: [...] seria impossível eu realizar o meu doutorado sem o Herbário, porque eu preciso ter acesso às plantas para confirmar a identificação. Eu não poderia fazer o meu doutorado se não tivesse um herbário, onde eu pudesse depositar as plantas e ter então o registro das plantas que eu coletei, sem ter plantas das espécies próximas para eu comparar e ter a certeza da identificação das minhas plantas [...] Então, o Herbário é essencial no meu trabalho e em todos os trabalhos dessa grande área que

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a gente faz aqui... (Cassiano Aimberê Dorneles Welker, recém-doutor pela UFRGS, entrevista realizada em 17 abr. 2015). São plantas que foram coletadas já há muito tempo. Embora o Herbário não tenha ainda talvez nem 100 anos, ali há plantas de ambientes que não existem mais. Tem coletas feitas por botânicos no bairro Bela Vista [em Porto Alegre]. [...] Ou os trabalhos de campo da época do professor Schultz: pegavam um bonde em frente à reitoria e iam até o final da linha. Fazia seu trabalho de campo nos bairros. Hoje, a gente tem que andar quilômetros, talvez até o litoral, longe para mostrar plantas e cada vez está mais difícil. Então, o Herbário ainda congrega uma coleção de plantas que têm valor histórico, porque são plantas de local que já não existe mais. [...] O Herbário continua sendo extremamente importante como um registro, como um local para se depositar e ter a certeza então da identificação das plantas que se estão utilizando (João André Jarenkow, professor titular da UFRGS, entrevista realizada em 30 mar. 2015). Cada material que é incorporado ao Herbário traz uma série de informações que são utilizadas em vários outros estudos. Basicamente, para os taxonomistas, eles são referência para estes trabalhos de taxonomia [...]. São medidas folhas e vários dados diretamente do material que lá está. Mas também do ponto de vista geográfico ou fitogeográfico: ele serve para se ver qual é a amplitude de distribuição de uma determinada espécie. Então, o geógrafo, ou fitogeógrafos, consulta as bases do Herbário para saber qual amplitude dessa distribuição de “taxons”. Além disso, tem os sistemas e os ecólogos, que consultam para saber o nome dessas espécies e suas áreas correlatas. Por exemplo, se uma determinada planta ou determinado grupo de plantas apresenta certos compostos químicos, então isso pode levar ao interesse do pessoal da farmácia para o desenvolvimento de novos fármacos e extensão de substância. Se querem saber onde ocorre uma determinada planta, como é que a gente vai saber isso? Eles vêm ao Herbário e veem esse grupo de plantas, onde ele foi coletado e por quem, para saber mais ou menos a distribuição e voltar a estes lugares. E outros trabalhos também: em relação à agronomia principalmente, na questão da pastagem, o pessoal que trabalha com forrageiras, gramíneas e leguminosas, que são dois grupos importantes [...] Todas as ciências mais ou menos correlatas que trabalham com plantas utilizam basicamente as informações que constam nas etiquetas de plantas que estão no Herbário (João André Jarenkow, professor titular da UFRGS, entrevista realizada em 30 mar. 2015).


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Outra interpretação do papel do Herbário evoca a sua função como banco de conhecimento e de prova: é através das amostras armazenadas que se pode, por exemplo, obter informações sobre as dinâmicas de degradação ambiental e “poluição” de uma área especifica [...]. Porque esse é o conhecimento que vem de diversas gerações de pesquisadores, desde os primeiros cientistas que vinham da Europa naquelas grandes expedições de naturalistas. Alguém que trabalha com biologia molecular, mesmo sem ter um vínculo direto com a taxonomia, vai trabalhar com o Herbário. Porque eles precisam depositar testemunhos dessas plantas para ficar na coleção. Para indicar “essa planta que eu extraí”, “é essa espécie aqui”, “eu tô provando isso com esse material que eu depositei aqui no herbário” [...]. Esse conhecimento é provado (João Ricardo Vieira Ignácio, entrevista realizada em 13 abr. 2015).

A síntese das diferentes interpretações sobre o papel dos herbários para os entrevistados pode ser, afinal, a metáfora da biblioteca. Seriam locais com funções arquivísticas e de consulta, dispondo de uma organização baseada em critérios de empréstimo e de aquisição de materiais em relação com outros herbários e instituições que dispõem dos conhecimentos acumulados por todas as gerações de cientistas. Eu considero o Herbário como um acervo. É mais ou menos como um acervo bibliográfico, só que é de plantas. Lá tem um acervo, mas é de plantas, nas bibliotecas é de livros. Que nem na biblioteca: armazena ou tu aprende. E daí isso te gera questionamentos e tu vais pra alguma outra rede dividir. [...] Mas todas as minhas coletas são depositadas aqui. A gente tem trabalho em parceria: eu fui ao Peru coletar, trouxe as plantas, umas ficaram lá e outras vêm para cá. Como duplicata, para ser depositada aqui. Então, enriquece. É como eu comprar mais livros pra minha biblioteca, outras pessoas no futuro vão poder usar o que até agora não tinha. [...] Uma biblioteca fantástica, independente. Ele é um local não só de espécies para conservação do patrimônio genético, biológico das plantas. Serve também nesse viés. O Herbário é um acervo. Constitui um acervo muito importante para esse conhecimento da flora (Lilian Eggers, professora associada, entrevista realizada em 9 de abr. 2015).

A metáfora da biblioteca contrasta com as experimentações dos laboratórios. Talvez o saber e o fazer dividam-se prototipicamente entre esses dois lugares de referência para os profissionais da Botânica – o que não impede que o Herbário seja vivido como um espaço rico em práticas e, sobretudo, como um nódulo de redes de relações que organiza a divisão do trabalho científico.

Conclusão Neste trabalho, buscou-se explorar o papel do Herbário ICN, vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na transmissão de práticas científicas próprias à área da Botânica. Para tanto, partiu-se de uma pesquisa composta por observação participante e entrevistas em profundidade, tomando por orientação os conceitos de memória social e patrimônio cultural. Munidos dessas técnicas de pesquisa e conceitos, propõe-se que o Herbário ICN opera como o nódulo de um sistema de relações, o qual estrutura a continuidade da transmissão dos saberes e fazeres científicos dos entrevistados. O valor de patrimônio científico do Herbário não se restringe às suas coleções, portanto. Por um lado, o Herbário consolida um sistema de objetos – as exsicatas, antes de tudo, e outros materiais, como estufas, arquivos etc. Por outro, afirma-se como um lugar de pesquisa e de colaboração, dinamizando redes e práticas científicas. A análise proposta neste artigo destacou também: 1) a importância da divisão do trabalho nos modos de fazer ciência dos entrevistados; e 2) o papel do Herbário como laboratório e biblioteca, indicando o seu peso na transmissão dos modos de fazer ciência, seja por oferecer uma visão sobre o passado, isto é, o que já foi coletado e descrito, seja por garantir a materialidade das ‘descobertas’, que redundam em publicações e diálogos científicos. Em guisa de conclusão, cabe destacar as redes de colaboração como uma realidade no universo do Herbário ICN. Na verdade, o Herbário é um nódulo de diferentes redes, que pauta trocas científicas, ao mesmo

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tempo em que incorpora testemunhos de realizações passadas. Sob esse ponto de vista, é justo afirmar que ele é um lugar antropológico operado sistematicamente por uma comunidade científica, que extrapola os muros da universidade e se perpetua pela transmissão de seus conhecimentos e seus modos de fazer.

AGRADECIMENTOS As autoras e o autor deste artigo agradecem a todos e a todas que participaram diretamente da pesquisa: Mara Ritter, Lilian Eggers, João Fernando Prado, Alexandre Christoff, Camila Rezendo Carneiro, Márcia Pinheiro e Mateus Negreiros, Rodrigo Singer, Tatiana Chies, Hilda Wagner, João Jarenkow, Cassiano Welker, João Ricardo Ignácio, Jorge Luiz Waechter, Sílvia Miotto, Isabel de Borba, Paulo Brack, Ana Paula Rodrigues, Mabel Lizarozo, Diober Lucas, Jorge Mariath, Gerhard Overbeck, Camila Dellanhese Inácio, Ethiene Guerra, Ilsi Boldrini, Lionel Roth, Luis de Moura Baptista, Maria Luisa Lorscheitter, Marlon G. Facco, Náthali Schuster, Paulo Windisch e Pedro J. da Silva Filho. Referências BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. CALLON, Michel. “L’agonie d’un laboratoire.” In: CALLON, Michel (Org.). La science et ses réseaux: genèse et circulation des faits scientifiques. Paris: La Découverte, 1980. p. 173-214.

HERBÁRIO ICN. Herbário do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em: http:// inct.florabrasil.net/participantes/herbarios-curadores/icn-herbariodo-instituto-de-biociencias-universidade-federal-do-rio-grande-dosul/ . Acesso em: 06 jan. 2016. HOMRICH, Maria Henriqueta; BAPTISTA, Luis Rios de Moura; LORSCHEITTER, Maria Luisa; PORTO, Maria Luiza. O legado de Schultz: uma vida dedicada à Botânica. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2014. LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora UNESP, 2000. LATOUR, Bruno; WOOLGAR, Steve. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997. MENESES, Ulpiano T. Bezerra. Memória e cultura material: documentos pessoais no espaço público. Estudos Históricos, v. 11, n. 21, p. 89-103, jul. 1998. MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 18. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2001. MINAYO, Maria Cecília de Souza; SANCHES, Odécio. Quantitativoqualitativo: oposição ou complementaridade. Cadernos de Saúde Pública, v. 9, n. 3, p. 239-262, 1993. Disponível em: <http://dx.doi. org/10.1590/S0102-311X1993000300002>. Acesso em: 03 mar. 2015. SOLLA PRICE. Derek J. de. O desenvolvimento da ciência: análise histórica, filosófica, sociológica e econômica. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1976. VANZ, Samile Andréa de Souza. As redes de colaboração científica no Brasil (2004-2006). 2009. 204 f. Tese (Doutorado em Comunicação e Informação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs. br/handle/10183/17169>. Acesso em: 23 abr. 2014. ZIMAN, John. Conhecimento público: a dimensão social da ciência. São Paulo: EDUSP, 1979.

DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. GONDAR, Jô. Quatro proposições sobre memória social. In: GONDAR, Jô; DODEBEI, Vera (Org.). O que é memória social? Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, UNIRIO, 2005. p. 11-27.

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RESENHAS



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Acabou o tempo dos mitos? Uma historiografia caxinauá moderna Por Sabine Reiter

Universidade Federal do Pará (sabine_reiter@yahoo.com)

CAMARGO, Eliane; VILLAR, Diego (Org.). Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos. La historia de los cashinahuas por ellos mismos. São Paulo: Edições SESC, 2013. 304 p. ISBN 97885-7995-071-1

O livro “Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos” é uma coletânea trilíngue (em caxinauá1, português e espanhol) de textos com relatos sobre o passado remoto e mais recente dessa etnia indígena que vive na região fronteiriça entre o Brasil e o Peru. Foi organizado por Eliane Camargo e Diego Villar, uma linguista e um antropólogo, em colaboração com Texerino Capitán e Alberto Toríbio, dois caxinauás de diferentes comunidades do rio Purus, localizadas no lado peruano da fronteira. Com cerca de 2.400 integrantes, o grupo étnico no Peru é menos extenso em número do que seus mais de 7.500 parentes no lado brasileiro, mas – devido ao maior isolamento na primeira metade do século XX – todos ainda falam a língua nativa, comparados aos caxinauás brasileiros, entre os quais há uma parte que fala apenas português2. Apesar da presença de missionários em suas aldeias, a partir dos anos 1960, os caxinauás peruanos também conseguiram manter viva maior parte da cultura tradicional,

enquanto, no Acre, os caxinauás – que conviviam com uma população não indígena nos seringais desde a época da borracha – perderam quase por completo os antigos costumes. Foi nesse grupo peruano que Camargo começou a pesquisar há mais de 25 anos e, principalmente, entre 2006 e 2011, quando levantou e arquivou dados de língua e cultura desse povo no âmbito do programa Documentation of Endangered Languages (DOBES, 2000-2016), com projeto de documentação sediado no Instituto Max-Planck de Antropologia Evolutiva (MPI-EVA), em Leipzig, e na Université X de Paris, em Nanterre (DOBES, 2000-2016). Neste livro, publicado em 2013, Camargo foi responsável pelas transcrições e traduções ao português dos textos orais, em boa parte provenientes do acervo digital do projeto DOBES. Villar, que é pesquisador adjunto do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas na Argentina e especialista de culturas pano, por sua parte, responsabilizou-se pela versão espanhola dos textos. Além disso, os dois organizadores restringiram-se a elaborar algumas frases introdutórias e comentários aos textos narrativos em notas de rodapé, onde explicam ao leitor o contexto narrativo, construções linguísticas e conceitos culturais. A escolha dos textos assim como a sua edição para formato escrito, no entanto, coube a uma equipe de jovens caxinauás, coordenada por Texerino Capitán, professor de escola bilíngue, e Alberto Toríbio, principal assistente de pesquisa do projeto DOBES. O livro, como informa Bernard Comrie, então diretor do departamento de linguística do MPI-EVA, na apresentação, é um dos produtos do projeto de documentação da iniciativa DOBES, que, através da perspectiva própria de um povo, “nos fornece uma visão diferente do mundo e a compreensão de nós mesmos” (Comrie, 2013, p. 23-25). Até hoje, é uma das poucas publicações que deixa falar –

O caxinauá pertence à família linguística pano. Esses são os números oficiais do Instituto Socioambiental (Ricardo, B.; Ricardo, F., 2011, p. 12), que divergem consideravelmente de números informados em outras fontes, por exemplo, no site Ethnologue (Lewis et al., 2016). Segundo o Ethnologue, atualmente todos os caxinauás adquirem a língua nativa. Como o nível de conhecimento da língua indígena é uma questão política no Brasil, há diferenças entre os números oficiais em relação ao que se pode observar in situ.

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na sua totalidade – os próprios integrantes de um povo indígena amazônico. O livro consiste em cinco partes principais. Nelas, os caxinauás informam sobre os hábitos dos seus antepassados, lembrados por alguns idosos e presentes na memória coletiva. Eles falam sobre os encontros com outras etnias pano, inclusive com aquelas encontradas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 2008, celebradas pela mídia internacional como “os últimos selvagens” 3, e sobre os primeiros contatos com os ‘nauás’, os outros, não indígenas de origem europeia. Relatam sobre as suas experiências em território alheio e nas grandes cidades, e sobre a história de migração e dispersão do próprio grupo, que se iniciou nos tempos míticos com uma briga entre o criador Txi Wa e seu parente Apu, e continuou com acontecimentos em consequência dos primeiros contatos com brasileiros nos seringais. O anexo que segue as partes principais do livro apresenta uma nota sobre a grafia utilizada e um léxico trilíngue extraído dos textos em caxinauá e de termos significativos. As fontes das narrativas são diversas: cinco dos 25 textos provêm do livro “Rã-txã hu-ni kuï: grammatica, textos e vocabulário caxinauás. A lingua dos caxinauás do rio Ibuacú, affluente do Murú (Prefeitura de Tarauacá)”, de João Capistrano de Abreu (1914), o historiador brasileiro que – em inícios do século XX – montou uma primeira coletânea de mitos, textos históricos e de outros gêneros, em conjunto com dois jovens caxinauás da região do rio Murú, no Acre. A grande maioria dos textos é composta por depoimentos e memórias polifônicas, gravadas dos anos 1990 para cá, e informações obtidas por meio de entrevistas com pessoas mais idosas – todas do grupo peruano, um segmento da população caxinauá que fugiu de um seringal brasileiro no início do século XX. No Peru, esses caxinauás e seus descendentes viviam afastados da sociedade e só foram ‘redescobertos’ ao final dos

anos 1940; contato que foi documentado pelo fotógrafo Harald Schultz, em 1951, constituindo um acervo de aproximadamente 80 fotografias, com imagens de uma pescaria e de uma festa. Uma variedade de trabalhos desse fotógrafo teuto-brasileiro, mostrando cenas cotidianas daquela época, assim como imagens de objetos coletados por ele – que hoje se encontram no acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) –, ilustra o livro, junto com fotografias recentes e desenhos feitos por integrantes do grupo especialmente para esta publicação. Entre eles encontramos os kene, grafismos tradicionais reproduzidos na tecelagem, na pintura corporal, em objetos e desenhos de cenas das narrativas, da vida cotidiana e de rituais. O que chama a atenção é que esses desenhos, produzidos em várias épocas, têm uma estilização própria: veem-se pessoas e objetos ‘deitados’ em uma vista de pássaro, para poder mostrar mais do que seria perceptível por meio do simples olhar de um espectador humano. Todo o material recolhido neste livro foi selecionado pela equipe caxinauá, com o intuito de informar aos seus descendentes (filhos, netos) sobre a própria cultura, sendo veiculado na própria língua, a fim de manter viva a memória e uma identidade própria, como os dois colaboradores caxinauás escrevem no seu prefácio, que termina assim: “por esse motivo quisemos elaborar este livro. Dessa forma podemos todos juntos ler e aprender claramente a tradição” (Capitán; Toribio, 2013, p. 31). Ao mesmo tempo, o livro é um passo importante em direção a uma verdadeira participação dos povos indígenas na sociedade moderna através dos seus próprios discursos. Em uma época em que presenciamos ameaça cada vez mais forte à vida tradicional de povos indígenas em toda a América Latina, é essencial que um público maior tome conhecimento da história desse grupo, a qual reflete, de maneira exemplar, desenvolvimento ocorrido em

Veja, por exemplo, Seidler; Lubbadeh (2008).

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muitos outros grupos, repetindo-se até hoje. Isso ocorreu desde o primeiro contato desses povos com a sociedade nacional, representada notadamente por bandeirantes/ coronéis, soldados da borracha, viajantes, missionários e pesquisadores, resultando em interferência cultural. Nas palavras dos caxinauás (traduzidas para o português), essa interferência se lê assim: “já nos tornamos nauás com suas roupas e comida. [...] já não somos mais caxinauás! [...] O governo diz que somos todos peruanos. É assim que falam” (2013, p. 227). Ao mesmo tempo, a citação deixa bem claro que essa é uma visão de fora, a qual não reflete necessariamente a opinião do falante. A língua pano consegue expressar essas diferentes perspectivas de maneira elegante, através de marcadores de evidencialidade (no caso, -ikiki em akikiki, 2013, p. 226) que indicam, para os membros da comunidade de fala, o compromisso epistemológico com a informação dada. Essa técnica linguística pode até ser interpretada aqui como relevante indício de uma resistência clandestina e de uma mera adaptação superficial. Uma atitude de ‘acostumação’, longe de ser assimilação por completo, também se manifesta em outro depoimento. Um caxinauá descreve como chegou a trabalhar como mecânico para um missionário americano: “um dia quebrei um parafuso e ele ficou furioso. [...], achava que iria me bater. Achei isso porque me tratava assim. [...] Depois eu me acostumei com ele. [...] com suas palavras fortes” (2013, p. 203). Este trecho mostra mais um aspecto interessante do livro, a abertura para uma perspectiva intercultural: nós, os nauás, ficamos sabendo algo sobre como somos percebidos pelos caxinauás – como pessoas ameaçadoras pelo simples tom da voz! Ao passo que as narrativas exibem, em diferentes partes, uma visão caxinauá, o livro em si já é uma manifestação aberta da luta para a preservação de uma identidade própria.

Comparado com outras manifestações escritas na língua caxinauá, principalmente com a obra do grande historiador brasileiro do começo do século XX, este livro se destaca como marcador de uma mudança na percepção e no tratamento do elemento ‘indígena’ na sociedade. Enquanto o livro de Capistrano possui, sobretudo, relatos míticos, este é uma historiografia, em grande parte, de fatos vividos pelos caxinauás nos últimos 100 anos. Quem escolheu o material de “Rã-txã hu-ni ku-ï” foi o próprio Capistrano, tendo os dois caxinauás como fornecedores de informação e tradutores; aqui, os agentes principais são caxinauás, que selecionaram os textos baseados em critérios de informatividade a um público caxinauá atual e jovem4. Os textos de Capistrano também já eram traduzidos para o português na época, e existia uma explicação de ortografia destinada ao leitor brasileiro erudito. Porém, aquela tradução palavra por palavra deixou o texto original parecer ‘desajeitado’ ao leitor brasileiro monolíngue. Certamente, não fornece uma base para ser elaborada hoje em dia na educação bilíngue indígena, já que a ortografia desenvolvida pelo historiador autodidata em linguística não reflete bem a estrutura morfofonêmica da língua, não sendo legível para os caxinauás de hoje. A mesma crítica da ortografia inadequada pode se fazer a várias publicações recentes nessa língua indígena no Brasil. A maioria dos livros em caxinauá publicada, tanto no Brasil como no Peru, porém, é dirigida ao ensino nas escolas bilíngues, enquanto este livro pode ser de interesse de um público diversificado, mono e bilíngue, jovem e adulto, estudante e professor, leigo e acadêmico, voltado aos caxinauás e a cada pessoa que tenha curiosidade de conhecer outra perspectiva do mundo. Além de valorizar a cultura caxinauá, ele representa uma restituição ao grupo de coleta de relatos históricos, efetuada por pesquisadores, contribuindo igualmente para a difusão da diversidade do patrimônio cultural imaterial da Amazônia indígena.

Neste contexto, pode-se questionar se o resultado realmente representa o ‘olhar caxinauá’, já que a equipe consiste de caxinauás escolarizados, parcialmente trabalhando na educação infantil, que, portanto, internalizaram um discurso padrão para texto escrito.

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REFERÊNCIAS CAPISTRANO DE ABREU, João. Rã-txa hu-ni-ku-ï: grammatica, textos e vocabulário caxinauás. A lingua dos caxinauás do rio Ibuacú, affluente do Murú (Prefeitura de Tarauacá). Rio de Janeiro: Sociedade Capistrano de Abreu, 1914. CAPITÁN, Tescerino Kirino; TORIBIO, Alberto Roque. Prefácio. In: CAMARGO, Eliane. VILLAR, Diego (Org.). Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos. La historia de los cashinahuas por ellos mismos. São Paulo: Edições SESC, 2013. p. 31. COMRIE, Bernard. Apresentação. In: CAMARGO, Eliane. VILLAR, Diego (Org.). Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos. La historia de los cashinahuas por ellos mismos. São Paulo: Edições SESC, 2013. p. 17-19.

LEWIS, M. Paul; SIMONS, Gary F.; FENNIG, Charles D. (Ed.). Ethnologue: languages of the world. 19. ed. Dallas, Texas: SIL International, 2016. Disponível em: <http://www.ethnologue. com>. Acesso em: 8 abr. 2016. RICARDO, Beto; Ricardo, Fany (Ed.). Povos indígenas no Brasil: 2006-2010. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2011. SEIDLER, Christoph; LUBBADEH, Jens. Neuentdeckter Indianerstamm: “Das kann der Anfang vom Ende sein”. Spiegel Online, 30 maio 2008. Disponível em: <http://www.spiegel.de/ wissenschaft/natur/neuentdeckter-indianerstamm-das-kann-deranfang-vom-ende-sein-a-556720.html>. Acesso em: 8 abr. 2016.

DOCUMENTAÇÃO DE LÍNGUAS AMEAÇADAS (DOBES). Cashinahua. A documentation of Cashinahua language and culture. [S.l.]: Projeto DOBES, 2006-2011. Disponível em: <http://dobes. mpi.nl/projects/cashinahua/?lang=pt>. Acesso em: 8 abr. 2016.

REITER, Sabine. Acabou o tempo dos mitos? Uma historiografia caxinauá moderna. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 2, p. 537-540, maio-ago. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000200011.

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BOLETIM DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. CIÊNCIAS HUMANAS INSTRUÇÕES AOS AUTORES

Objetivos e política editorial O Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas tem como missão publicar trabalhos originais em arqueologia, história, antropologia, linguística indígena e disciplinas correlatas. A revista aceita colaborações em português, espanhol, inglês e francês para as seguintes seções: Artigos Científicos – textos analíticos originais, resultantes de pesquisas com contribuição efetiva para o avanço do conhecimento. De 15 até 30 laudas. Artigos de Revisão – textos analíticos ou ensaísticos originais, com revisão bibliográfica ou teórica de determinado assunto ou tema. De 15 até 30 laudas. Notas de Pesquisa – relato preliminar mais curto que um artigo, sobre observações de campo, dificuldades e progressos de pesquisa em andamento, enfatizando hipóteses, comentando fontes, resultados parciais, métodos e técnicas utilizados. Até 15 laudas. Memória – seção que se destina à divulgação de acervos ou seus componentes que tenham relevância para a pesquisa científica; de documentos transcritos parcial ou integralmente, acompanhados de texto introdutório; e de ensaios biográficos, incluindo obituário ou memórias pessoais. Até 20 laudas. Debate – ensaios críticos sobre temas da atualidade. Até 15 laudas. Resenhas Bibliográficas – texto descritivo e/ou crítico de obras publicadas na forma impressa ou eletrônica. Até cinco laudas. Teses e Dissertações – descrição sucinta, sem bibliografia, de dissertações de mestrado, teses de doutorado e livre-docência. Uma lauda.

Apresentação de artigos O Boletim recebe contribuições somente em formato digital. Os arquivos digitais dos artigos devem ser submetidos online na plataforma ScholarOne via o site do Boletim <http://www.museu-goeldi.br/editora/humanas/index.html>, ou diretamente via o link <https://mc04. manuscriptcentral.com/bgoeldi-scielo>, fornecendo obrigatoriamente as informações solicitadas pela plataforma.

Cadastramento O(s) autor(es) deve(m) realizar o cadastro (Login/Senha) criando uma conta pessoal na plataforma online, na seção “CREATE AN ACCOUNT” ou “NEW USER” e preencher corretamente o perfil. O cadastramento/criação de uma conta precisa ser feito somente uma vez. Após isso, a conta deve ser usada para todas as submissões de trabalhos, revisões e pareceres.

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Preparação de originais Todas as submissões devem ser enviadas por meio da plataforma de submissão online ScholarOne. Os originais devem ser enviados 1.

Em Word, com fonte Times New Roman, tamanho 12, entrelinha 1,5, em laudas sequencialmente numeradas. Os trabalhos de linguística indígena devem utilizar fonte compatível com o padrão Unicode, como Arial, Calibri, Cambria, Déjà Vu, Tahoma e outras que incluam todos os símbolos fonéticos da IPA. Times New Roman é preferível, mas inclui IPA em Unicode somente a partir das últimas edições de Windows. Nunca deve-se improvisar símbolos do IPA usando letras comuns com tachamento

2.

(imitando ɨ, ʉ, etc.).

Da primeira página, devem constar: a. título (no idioma do texto e em inglês); b. resumo; c. abstract; d. palavras-chave e key words.

3.

Os originais não podem incluir o(s) nome(s) do(s) autor(es) e não podem incluir agradecimentos.

4.

Deve-se destacar termos ou expressões por meio de aspas simples.

5.

Apenas termos científicos latinizados e palavras em língua estrangeira devem constar em itálico.

6.

Os artigos deverão seguir as recomendações da ABNT para uso e apresentação dos elementos bibliográficos: resumos NBR 6028; citações em documentos NBR 10520; referências NBR 6023.

7.

Tabelas devem ser digitadas em Word, sequencialmente numeradas, com claro enunciado.

8.

Ilustrações e gráficos devem ser apresentados em páginas separadas e numeradas, com as respectivas legendas, e submetidos na plataforma online em arquivos à parte. Imagens devem ter resolução mínima de 300 dpi, e tamanho mínimo de 1.500 pixels, no formato JPEG, ou TIFF. Devem ter, no máximo, 16,5 cm de largura e 20 cm de altura (para uso em duas colunas), ou 8 cm de largura e 20 cm de altura (para uso em uma coluna). As informações de texto presentes nas figuras devem estar em fonte Arial com tamanho entre 7 e 10 pts.

9.

Figuras feitas em programas vetoriais podem ser enviadas, preferencialmente, em formato aberto, na extensão .cdr (X5 ou inferior), .eps ou .ai (CS5 ou inferior).

10. O texto do artigo deve, obrigatoriamente, fazer referência a todas as tabelas, gráficos e ilustrações. Quando for necessário o uso de mapas, dê preferência na identificação com símbolos (devido a limitações com cores, em versões impressas). 11. Somente numeração de páginas e notas de rodapé deve ser automática. Textos contendo numeração automatizada de seções, parágrafos, figuras, exemplos, ou outros processos automatizados, como referenciação e compilação de lista de referências, não serão aceitos. 12. Observar cuidadosamente as regras de nomenclatura científica, assim como abreviaturas e convenções adotadas em disciplinas especializadas. 13. Notas de rodapé devem ser numeradas em algarismos arábicos e utilizadas apenas quando imprescindíveis, nunca como referências. 14. Referências a manuscritos, documentos de arquivo ou textos não publicados (relatórios, cartas etc.) devem ser feitas em notas de rodapé. Citações e referências a autores no decorrer do texto devem subordinar-se à seguinte forma: sobrenome do autor (não em caixa alta), ano, página(s) (exemplo: Goeldi, 1897, p. 10). 15. Todas as obras citadas ao longo do texto devem estar corretamente referenciadas ao final do artigo, e todas as referências no final do artigo devem ser citadas no texto.


16. Citações de obras como “apud” também devem estar corretamente referenciadas ao final do artigo. Os nomes de múltiplos autores ou organizadores citados como “et al.” devem todos aparecer nas referências no final do artigo.

Estrutura básica dos trabalhos 1.

Título – No idioma do texto e em inglês (quando este não for o idioma do texto). Deve ser escrito em caixa baixa, em negrito, centralizado na página.

2. Resumo e Abstract – Texto em um único parágrafo, verbo na voz ativa e terceira pessoa do singular, ressaltando os objetivos, método, resultados e conclusões do trabalho, com no mínimo 100 palavras e, no máximo, 200, no idioma do texto (Resumo) e em inglês (Abstract). A versão para o inglês deverá ser feita ou corrigida por um falante nativo (preferivelmente um colega da área), o que é de responsabilidade do(s) autor(es). 3. Palavras-chave e Keywords – Três a seis palavras que identifiquem os temas do trabalho, para fins de indexação em bases de dados. 4. Texto – Deve ser composto de seções NÃO numeradas, e sempre que possível com introdução; marco teórico; desenvolvimento; conclusão e referências . Evitar parágrafos e frases muito longos. Optar pela voz passiva, evitando o uso da primeira pessoa do singular e do plural ao longo do texto. Siglas devem inicialmente ser escritas por extenso. Exemplo: “A Universidade Federal do Pará (UFPA) prepara novo vestibular”. Citações de até três linhas devem estar dentro do parágrafo e entre aspas duplas (“); citações com mais de três linhas devem ser destacadas do texto, com recuo de 4 cm da margem esquerda, com fonte menor e sem aspas. Com efeito, a habitação em cidades é essencialmente antinatural, associa-se a manifestações do espírito e da vontade, na medida em que se opõem à natureza. Para muitas nações conquistadoras, a construção de cidades foi o mais decisivo instrumento de dominação que conheceram. Max Weber mostra admiravelmente como a fundação de cidades representou para o Oriente Próximo e particularmente para o mundo helenístico e para a Roma imperial, o meio específico de criação de órgãos locais de poder, acrescentando que o mesmo fenômeno se encontra na China, onde ainda durante o século passado, a subjugação das tribos Miaotse pode ser identificada à urbanização das suas terras (Buarque de Holanda, 1978, p.61). 5. Agradecimentos – Devem ser sucintos: créditos de financiamento; vinculação a programas de pós-graduação e/ou projetos de pesquisa; agradecimentos pessoais e institucionais. Nomes de pessoas e instituições devem ser escritos por extenso, explicando o motivo do agradecimento. Note que a primeira versão submetida é para avaliação anônima e deve estar sem agradecimentos. 6. Referências – Devem ser listadas ao final do trabalho, em ordem alfabética, de acordo com o sobrenome do primeiro autor. No caso de mais de uma referência de um mesmo autor, usar ordem cronológica, do trabalho mais recente ao mais antigo. Todas as referências devem seguir as recomendações da NBR 6023 da ABNT. Evita-se o uso indevido de letras maiúsculos nos títulos de artigos ou livros. Somente nomes próprios, substantivos alemães e as palavras de conteúdo de títulos de revistas e de séries devem começar por uma letra maiúscula. Obs: A utilização correta das normas da ABNT referentes à elaboração de referências (NBR 6023/2002) e o uso adequado das novas regras de ortografia da Língua Portuguesa nos artigos e demais documentos encaminhados ao “Boletim” são de responsabilidade dos autores. A seguinte lista mostra vários exemplos de referências nas suas categorias diferentes: Livro: VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1906.


Livro: WIECZOREK, Alfred; ROSENDAHL, Wilfried; SCHLOTHAUER, Andreas (Org.). Der Kult um Kopf und Schädel. Heidelberg: Verlag Regionalkultur, 2012. Série/Coleção: GOELDI, Emílio. Escavações arqueológicas em 1895: executadas pelo Museu Paraense no Litoral da Guiana Brasileira entre Oiapoque e Amazonas. Belém: Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, 1900. (Memórias do Museu Goeldi, n. 1). Capítulo de livro: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Política indigenista no século XIX. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 133-154. Capítulo de livro e Série/Coleção: VUILLERMET, Marine. Two types of incorporation in Esse Eja (Takanan). In: DANIELSEN, Swintha; HANNSS, Katja; ZÚÑIGA, Fernando (Org.). Word formation in South American languages. Amsterdam: John Benjamins, 2014. p. 113-142. (Studies in Language Companion Series, n. 163). Artigo de periódico: GURGEL, C. Reforma do Estado e segurança pública. Política e Administração, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 15-21, set. 1997. Artigo de periódico: TERSIS, Nicole; CARTER-THOMAS, Shirley. Investigating syntax and pragmatics: word order and transitivity in Tunumiisut. International Journal of American Linguistics, Chicago, v. 71, n. 4, p. 473-500, out. 2005. Artigo de periódico em meio eletrônico: VELTHEM, L. H. V. O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 7, n. 1, p. 51-66, jan./abr. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-81222012000100005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 06 mar. 2015. Artigo e/ou matéria de jornal: NAVES, P. Lagos andinos dão banho de beleza. Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 jun. 1999. Folha Turismo, Caderno 8, p. 13. Artigo e/ou matéria de jornal em meio eletrônico: SILVA, Ives Gandra da. Pena de morte para o nascituro. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 19 set. 1998. Disponível em: <http://www.providafamilia.org/pena_morte_nascituro.htm>. Acesso em: 19 set. 1998. Trabalho apresentado em evento: BRAYNER, A. R. A.; MEDEIROS, C. B. Incorporação do tempo em SGBD orientado a objetos. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE BANCO DE DADOS, 9., 1994, São Paulo. Anais... São Paulo: USP, 1994. p. 16-29. Trabalho apresentado em evento em meio eletrônico: SILVA, R. N.; OLIVEIRA, O. Os limites pedagógicos do paradigma da qualidade total na educação. In: CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UFPe, 4., 1996, Recife. Anais eletrônicos... Recife: UFPe, 1996. Disponível em: <http://www.propesq.ufpe.br/anais/anais.htm>. Acesso em: 21 jan. 1997. Documento eletrônico: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010. 2011. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm>. Acesso em: 23 jan. 2012.


Documento jurídico: SÃO PAULO (Estado). Decreto no 42.822, de 20 de janeiro de 1998. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São Paulo, v. 62, n. 3, p. 217-220, 1998. Documento jurídico: BRASIL. Congresso. Senado. Resolução no 17, de 1991. Coleção de Leis da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, v. 183, p. 1156-1157, maio/jun. 1991. Documento jurídico: BRASIL. Medida Provisória nº 1.569-9, de 11 de dezembro de 1997. Estabelece multa em operações de importação, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 14 dez. 1997. Seção 1, p. 29514. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): MORGADO, M. L. C. Reimplante dentário. 1990. 51 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização)–Faculdade de Odontologia, Universidade Camilo Castelo Branco, São Paulo, 1990. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): ARAUJO, U. A. M. Máscaras inteiriças Tukúna: possibilidades de estudo de artefatos de museu para o conhecimento do universo indígena. 1985. 102 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)–Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, 1986. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): BENCHIMOL, Alegria. Resgate e ressignificação da pesquisa no Museu Paraense Emílio Goeldi: presença e permanência de cientistas estrangeiros (1894-1914) na produção científica de autores atuais (1991-2010). Tese (Doutorado em Ciência da Informação)–Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): MOORE, Denny. Syntax of the language of the Gavião Indians of Rondônia (Brazil). 1984. 200 f. Tese (Doutorado em Antropologia)–University of New York, Nova York, 1984.

Avaliação inicial Será feita uma avaliação inicial da submissão pela administração editorial, seguindo um checklist de critérios básicos. No caso que a submissão está incompleta ou as imagens não estão conforme as especificações dadas acima, o artigo será devolvido via a plataforma online como “UNSUBMITTED”. Isso significa que o artigo volta para a fase de ainda não estar submetido, com uma explicação das pendências. Após de resolver as pendências o autor pode ressubmeter o artigo, escolhendo a opção “RESUBMIT”.

Revisão de artigos Após receber os pareceres anônimos, o Editor decide se o artigo será aceito para publicação. Se aceito, o autor é convidado a revisar o artigo com base nos pareceres e nas observações do Editor. O autor deve explicar como a revisão foi realizada, dar justificativa se um conselho do parecerista não foi seguido e, obrigatoriamente, usar a ferramenta “Controle de alterações” do Word para realizar as mudanças. O artigo revisado deve ser enviado através da plataforma online, usando o link de revisão em “AUTHOR RESOURCES”, clicando em “CREATE REVISION”.


Provas Os trabalhos, depois de formatados, são encaminhados através do sistema de e-mail do ScholarOne, em PDF, para a revisão final dos autores, que devem devolvê-los com a maior brevidade possível. Os pedidos de alterações ou ajustes no texto devem ser feitos por comentários no PDF. Nessa etapa, não serão aceitas modificações no conteúdo do trabalho ou que impliquem alteração na paginação. Caso o autor não responda ao prazo, a versão formatada será considerada aprovada. Os artigos são divulgados integralmente no formato PDF no sítio da revista, no DOAJ e na SciELO.

Endereço para correspondência: Museu Paraense Emílio Goeldi Editor do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas Av. Perimetral, 1901 - Terra Firme CEP 66077-830 Belém - PA - Brasil Telefone: 55-91-3075-6186 E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br

Lembre-se: 1- Antes de enviar seu trabalho, verifique se foram cumpridas as normas acima. Disso depende o início do processo editorial. 2- Após a aprovação, os trabalhos são publicados por ordem de chegada. O Editor Científico também pode determinar o momento mais oportuno. 3- A revista não aceita resumos expandidos, textos na forma de relatório e nem trabalhos previamente publicados em anais, CDs ou outros suportes.


BOLETIM DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. CIÊNCIAS HUMANAS INSTRUCTIONS FOR AUTHORS Mission and Editorial Policy The mission of the Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas is to publish original works on Archaeology, History, Anthropology, Indian Languages, and related fields. The journal accepts contributions in Portuguese, Spanish, English and French for the following sections: Articles – scientific and original analytical papers stemming from studies and research, which effectively contribute to building knowledge in the field. Maximum length: 30 pages. Review Articles – analytical texts or essays, with theoretical and/or literature review on a certain subject or topic. Maximum length: 30 pages. Short Communications – short preliminary reports (shorter than an article) on field observations, challenges faced and progress made in on-going research emphasizing hypotheses, mentioning sources, partial results, materials and methods. Maximum length: 15 pages. Memory – this section includes texts on collections or items of collections considered relevant for scientific research; documents transcribed in whole or in part submitted with an introduction; and biographical essays, including obituaries or individual memories. Maximum length: 15 pages. Debate – critical essays on current issues. Maximum length: 15 pages. Book Reviews – descriptive and/or critical reviews of printed or electronic publications. Maximum length: 5 pages. Thesis and Dissertations – thesis and dissertations abstracts, with no references section. Maximum length: 1 page.

Submitting a manuscript Manuscripts should be sent to the Scientific Editor by email (boletim.humanas@museu-goeldi.br), with a letter containing: title, full name (no abbreviations) of the main author and other authors, mailing address (complete address, zip code, phone number, fax, e-mail), and a declaration stating the main author is responsible for the inclusion of the remaining co-authors. The journal has a Scientific Board. The manuscripts are first examined by the Editor or by one of the Associate Editors. The Editor has the right of recommending alterations be made to the papers submitted or to return them when they fail to comply with the journal’s editorial policy. Upon acceptance, the manuscripts are submitted to peer-review and are reviewed by two specialists who are not members of the Editorial Commission. In the event of disagreement, the manuscript is submitted to other(s) referee(s). In the event changes or corrections need to be made, the manuscript is returned to the author(s) who have thirty days to submit a new version. Files related to not accepted manuscripts will be deleted. Publication means fully assigning and transferring all copyrights of the manuscript to the journal. The Liability Statement and Assignment of Copyrights will be enclosed with the notice of acceptance. All the authors must sign the document and return it to the journal.

Preparing manuscripts The manuscripts must be sent in Word for Windows format, in Times New Roman, font 12, 1.5 spacing between lines, and pages must be numbered. Papers on Linguistics must use a font that is compatible with the Unicode standard, such as Arial, Calibri, Cambria, Déjà Vu,


Tahoma and others that include the IPA extended set of phonetic symbols. Times New Roman is preferred, but it includes IPA in Unicode only in the latest editions of Windows. The cover page must contain the following information: title (in the original language and in English); full name of the author(s); affiliation (no abbreviations); complete address(es); and e-mail(s) for all authors. Page two must include: title, abstract, and keywords (in the original language and in English). Do not mention the name(s) of the author(s). Tables should be in Word format, numbered in sequence, and with clear captions. Images and graphs should be on separate and numbered pages, with their respective captions. They should also be sent in separate files. Digitalized images should have minimum resolution of 300 dpi., minimum size of 1500 pixels, and be in TIFF (preferably) or JPEG format. All tables, graphs and images must be necessarily mentioned in the body of the text. To highlight terms or phrases, please use single quotation marks. Only foreign language words and phrases, and Latinized scientific names should be in italics. Texts must fully comply with naming rules, abbreviations and conventions adopted in specific fields. Footnotes are to be used when strictly necessary, never for references, and are to be indicated in Arabic numbers. To quote or mention authors throughout the text, please use the following format: author’s last name, year, page(s) (example: Goeldi, 1897, p. 10). All quotations in the body of the text must be accurate and listed at the end of the paper. Use footnotes to quote or mention previously unpublished archive documents and texts (reports, letters etc.).

Basic text structure Title – The title must appear both in the original language of the text and in English (when English is not the original language). Title must be centralized and in bold. Do not use block capitals. Abstract – This section should be one paragraph long and highlight the goals, methods and results of the research. Minimum length: 100 words. Maximum length: 200 words. The abstract should be presented both in the original language of the text and in English. The English version must either be composed or corrected by a native speaker, which is the responsiblity of the authors. Keywords – Three to six words that identify the topics addressed, for the purpose of indexing the paper in databases. Body of the text – Papers should preferably be divided in the following sections: introduction, theoretical background, development, conclusion, and references. Lengthy paragraphs and/or sentences should be avoided. Acronyms should be preceded by the word or phrase to which it refers to when appearing for the first time. Example: “The Universidade Federal do Pará (UFPA) is preparing a new admission exam”. Quotations under three lines should be included in the body of the text between quotation marks (“). Quotations over three lines are separated from the text and indented in block, with no quotation marks, and the font must be smaller than the font used in the text. Acknowledgements – Should be brief and can mention: support and funding; connections to graduate programs and/or research projects; acknowledgement to individuals and institutions. The names of the individuals and institutions should be written in full together with what motivated the acknowledgement. References – Should appear at the end of the text in alphabetical order according to the last name of the first author. In the event of two or more references to a same author, please use chronological order starting with the most recent work. References should comply with ABNT recommendation NBR 6023, following the examples below: Books: VERÍSSIMO, José. A Educação Nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1906. Chapters: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Política indigenista no século XIX. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (Ed.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, FAPESP, 1992. p. 133-154.


Papers in journals: GOELDI, Emílio. O estado atual dos conhecimentos sobre os índios do Brasil, especialmente sobre os índios da foz do Amazonas, no passado e no presente. Boletim do Museu Paraense de Historia Natural e Ethnographia, Belém, v. 2, n. 4, p. 397-417, 1898. Series/Collections: GOELDI, Emílio. Escavações arqueológicas em 1895: executadas pelo Museu Paraense no Litoral da Guiana Brasileira entre Oiapoque e Amazonas. Belém: Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, 1900. (Memórias do Museu Goeldi, n. 1). Thesis and Dissertations: MOORE, Denny. Syntax of the language of the Gavião Indians of Rondônia (Brazil). 1984. 200 f. Thesis (PhD Anthropology thesis) – University of New York, New York, 1984. Electronic document: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Demográfico 2010. 2011. Available at: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm>. Accessed on: Jan. 23, 2012.

Proofs Authors will receive their paper in PDF format for final approval, and must return the file as soon as possible. Authors must inform the Editors in writing of any changes in the text and/or approval issues. At this stage, changes concerning content or changes resulting in an increase or decrease in the number of pages will not be accepted. In the event the author does not meet the deadline, the formatted paper will be considered approved by the author. Each author will receive two printed copies of the journal. The papers will be disclosed in full, in PDF format in the journal website, DOAJ, and SciELO.

Mailing address: Museu Paraense Emílio Goeldi Editor do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas Av. Perimetral, 1901 - Terra Firme CEP 66077-530 Belém - PA - Brazil Phone: 55-91-3075-6186 E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br

Please note: 1- Before submitting your manuscript to the journal, please check whether you have complied with the norms above. For the editorial process to begin, submitters must comply with the policy. 2- After acceptance, the papers will be published according to order of arrival. The Scientific Editor may also decide on the most convenient time for publication. 3- The journal does not accept expanded abstracts, reports, and works previously published in Proceedings, CDs, and/or other media.



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