BGOELDI. Humanas v11n1

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Boletim do Museu Paraense EmĂ­lio Goeldi CiĂŞncias Humanas

v. 11, n. 1 janeiro-abril 2016


BOLETIM DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. CIÊNCIAS HUMANAS (ISSN 1981-8122) Imagem da capa Milhos Waiãpi. Foto: Joana Cabral de Oliveira

O Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia foi criado por Emílio Goeldi e o primeiro fascículo surgiu em 1894. O atual Boletim é sucedâneo daquele. The Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia was created by Emilio Goeldi, and the first number was issued in 1894. The present one is the successor to this publication.

Editor Científico Hein van der Voort Editores Associados Candida Barros - Museu Paraense Emílio Goeldi - Linguística Claudia López - Museu Paraense Emílio Goeldi - Antropologia Cristiana Barreto - Museu de Arqueologia e Etnologia - Universidade de São Paulo - Arqueologia Edithe da Silva Pereira - Museu Paraense Emílio Goeldi - Arqueologia Flávia de Castro Alves - Universidade de Brasília - Linguística Glenn Harvey Shepard Junior - Museu Paraense Emílio Goeldi - Antropologia Mily Crevels - Universiteit Leiden - Linguística Priscila Faulhaber Barbosa - Museu de Astronomia e Ciências Afins - Antropologia Richard Pace - Middle Tennessee State University - Antropologia

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO Ângela Domingues - Instituto de Investigação Científica Tropical - Lisboa - Portugal Bruna Franchetto - Museu Nacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil Eduardo Brondizio - Indiana University - Bloomington - USA Eduardo Góes Neves - Museu de Arqueologia e Etnologia - Universidade de São Paulo - São Paulo - Brasil Gustavo Politis - Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires - Tandil - Argentina Janet Marion Chernela - University of Maryland - Maryland - USA Klaus Zimmermann - Universidade de Bremen - Bremen - Alemanha Lux Boelitz Vidal - Universidade de São Paulo - São Paulo - Brasil Manuela Carneiro da Cunha - University of Chicago - Chicago - USA Marcos Chor Maio - Casa de Oswaldo Cruz - FIOCRUZ - Rio de Janeiro - Brasil Maria Filomena Spatti Sândalo - Universidade Estadual de Campinas - Campinas - Brasil Michael J. Heckenberger - University of Florida - Gainesville - USA Michael Kraus - Universidade de Bonn - Bonn - Alemanha Neil Safier - The John Carter Brown Library - Providence - USA Nora C. England - University of Texas at Austin - Austin - USA Rui Sérgio S. Murrieta - Universidade de São Paulo - São Paulo - Brasil Tânia Andrade Lima - Museu Nacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil Walter Neves - Universidade de São Paulo - São Paulo - Brasil William Balée - Tulane University - Louisiana - USA

NÚCLEO EDITORIAL Jimena Felipe Beltrão - Co-editora científica Alegria Benchimol - Editora executiva Arlene Lopes e Rafaele Lima - Assistentes editoriais Talita do Vale - Editoração, versão eletrônica e capa deste número Normatização - Núcleo Editorial Boletins Projeto Gráfico - Elaynia Ono


Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação Museu Paraense Emílio Goeldi

Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas

ISSN 1981-8122 Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi

Cienc. Hum.

Belém

v. 11

n. 1

p. 13-339

janeiro-abril 2016


Endereço para correspondência: Museu Paraense Emílio Goeldi Núcleo Editorial - Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Av. Perimetral, 1901 Terra Firme – CEP 66077-830 Belém - PA - Brasil Telefone: 55-91-3075-6186 E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br

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Versão online da revista: http://www.scielo.br/bgoeldi http://www.museu-goeldi.br/editora Submissão de trabalhos: https://mc04.manuscriptcentral.com/bgoeldi-scielo Aquisição: Permuta: mgdoc@museu-goeldi.br Venda: livraria@museu-goeldi.br Não é permitida a reprodução parcial ou total de artigos ou notas publicadas, sob nenhuma forma ou técnica, sem a prévia autorização do editor. Ficam isentas as cópias para uso pessoal e interno, desde que não destinadas a fins promocionais ou comerciais. As opiniões e considerações emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade dos autores, e não refletem necessariamente a posição dos editores ou da instituição responsável pela publicação.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 2016. – Belém: MPEG, 2016. v. 11 n. 1., v. il. Semestral: 1984-2002 Interrompida: 2003-2004 Quadrimestral a partir do v. 1, 2005. Títulos Anteriores: Boletim Museu Paraense de História Natural e Ethnographia 1894-98; Boletim Museu Paraense de História Natural e Ethnographia (Museu Goeldi) 1902; Boletim do Museu Goeldi (Museu Paraense) de História Natural e Ethnographia 1906-1914; Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi de História Natural e Etnografia 1933; Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, série Antropologia 1949-2002; Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, série Ciências Humanas, em 2005. A partir de 2006, Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. ISSN 1981-8122 1. Antropologia. 2. Agricultura. 3. Sociologia. 4. Arqueologia. 5. Linguística. 6. História. I. Museu Paraense Emílio Goeldi.

CDD-21ª.ed. 300 © Direitos de Cópia/Copyright 2016 por/by MCTI/Museu Goeldi


Carta do editor

Este número do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas contém 14 artigos. Os oito primeiros artigos constituem um dossiê de antropologia, Dinâmicas das agriculturas amazônicas, organizado por Laure Emperaire (Institut de Recherche pour le Développement, Brasília) e Claudia Leonor López Garcés (Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém). Tratando de agriculturas indígenas, com ênfase na agricultura amazônica, o dossiê retoma o tema de um dossiê anterior, publicado no Boletim v.7, n.2, de 2012, organizado por Pascale de Robert e Claudia López. Além do dossiê, outros seis artigos são publicados e relatam pesquisas em disciplinas diferentes. O primeiro destes artigos é do antropólogo Felipe Vander Velden e trata sobre o Mapinguari, o monstro lendário da Amazônia, cuja existência é considerada na literatura como crença, mas que faz parte da realidade da vida indígena da região, e que certos cientistas tentam ligar com a possibilidade de animais pré-históricos remanescentes. Qualquer que seja a realidade do Mapinguari, a abordagem do Vander Velden permite um melhor entendimento do seu papel no mundo indígena. O artigo seguinte, dos especialistas em desenvolvimento sustentável Elcio Costa do Nascimento e Gutemberg Armando Diniz Guerra, mostra como vários fatores interdependentes de produção agrícola em uma comunidade quilombola paraense resultam em um aumento da dependência de comércio e geração de renda. A redução de recursos naturais como caça e pesca combinada ao aumento do valor econômico de certos produtos específicos diminui a diversidade da produção agrícola e, consequentemente, a autosufficiência da comunidade. Já o artigo do arqueólogo André Strauss, relata uma investigação pioneira de práticas funerárias no centro-leste do Brasil no período do Holoceno Inicial, aproximadamente 10.000 anos atrás. Achados raros e recentes em um sítio arqueológico em Lagoa Santa (MG) mostram uma diversidade grande de práticas mortuárias e até permitem reconstruir mudanças nestas práticas ao longo dos tempos. O linguista Fernando de Carvalho é autor do artigo que revisa certos aspectos da reconstrução do Proto-Arawak e a hipótese atual sobre a classificação das línguas Arawak com base em uma investigação histórico-comparativo de palavras para ‘mão’ e conceitos relacionados nas línguas do ramo Xinguano da família Arawak. O artigo mostra também a significância da documentação primórdia de línguas Xinguanas por Karl von den Steinen no século XIX. O artigo do historiador Geraldo Mártires Coelho trata da abordagem pelo filósofo de geografia e ensaísta Eidorfe Moreira dos sermões de Padre Antônio Vieira em Belém no século XVII. Moreira, que foi um dos maiores intelectuais paraenses do século passado e a quem foi dedicado um pequeno dossiê no número anterior do Boletim v.10, n.3, de 2015, reivindica a importância política e retórica dos sermões de Padre Vieira na históriografia da Amazônia colonial. VOORT, Hein van der. Carta do Editor. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 5-6. jan.-abr. 2016. DOI: http://dx.doi.org/ 10.1590/1981-81222016000100001.


O último artigo deste número é uma tradução para o português feita pelos arqueólogos Fernando Ozorio de Almeida e Bruna Rocha do famoso artigo de Warren R. DeBoer e Donald W. Lathrap, “The making and breaking of Shipibo-Conibo ceramics”. O artigo tem sido de importância crucial para uma arqueologia comportamental na Amazônia, esclarecendo os processos envolvidos na criação e destruição dos objetos manifestados no registro arqueológico num estudo de caso sobre a cerámica dos Shipibo-Conibo. Apesar dos grandes desenvolvimentos atuais na arqueologia brasileira existe pouca literatura acessível na língua portuguesa sobre o assunto e a tradução deste artigo preenche uma lacuna. É uma honra o Boletim de novo poder contar com tantos trabalhos de significância para as ciências humanas e com a boa vontade dos autores, organizadores e avaliadores, para garantir a qualidade intransigente do conteúdo. Por último, mas não menos importante, agradeço à equipe editorial, reforçada desde março pela co-editora científica, a cientista social e jornalista Jimena Felipe Beltrão; seus esforços foram consideráveis na produção sob circunstâncias difíceis deste novo número. Hein van der Voort Editor científico


CARTA DO EDITOR EDITOR’S NOTE

DOSSIÊ DINÂMICAS DAS AGRICULTURAS AMAZÔNICAS DOSSIER THE DYNAMICS OF AMAZONIAN AGRICULTURAL SYSTEMS Dinâmicas das agriculturas amazônicas Laure Emperaire, Claudia Leonor López Garcés.................................................................................................................................. 13

Mobilidades geográfico-profissionais de duas gerações de agricultores familiares assentados na Amazônia oriental Spatial and professional mobilities of two generations of family farmers in the eastern Amazon Xavier Arnauld de Sartre, Joel Orlando Bevilaqua Marin, William Santos de Assis, Raquel da Silva Lopes, Iran Veiga.............................. 17

Saberes e práticas locais dos produtores de guaraná (Paullinia cupana Kunth var. sorbilis) do médio Amazonas: duas organizações locais frente à inovação Local knowledge and practices of guarana producers (Paullinia cupana Kunth var. sorbilis) on the middle Amazon: two grassroots organizations confronting innovation Solène Tricaud, Florence Pinton, Henrique dos Santos Pereira.............................................................................................................33

Guaraná, a máquina do tempo dos Sateré-Mawé Guaraná, the time machine of the Sateré-Mawé Alba Lucy Giraldo Figueroa..................................................................................................................................................................55

Socialidade e diversidade de pequis (Caryocar brasiliense, Caryocaraceae) entre os Kuikuro do alto rio Xingu (Brasil) Sociality and diversity of pequi (Caryocar brasiliense Caryocaraceae) among the Kuikuro of the Upper Xingu river (Brazil) Maira SmithI, Carlos Fausto.................................................................................................................................................................87

Mundos de roças e florestas Worlds of gardens and forests Joana Cabral de Oliveira..................................................................................................................................................................... 115

O mundo da horticultura Ka’apor: práticas, representações e as suas transformações The world of Ka’apor horticulture: practices, representations and their transformations Claudia Leonor López Garcés........................................................................................................................................................... 133


Redes e observatórios da agrobiodiversidade, como e para quem? Uma abordagem exploratória na região de Cruzeiro do Sul, Acre Networks and observatories of agrobiodiversity, how and for whom? A survey in the Cruzeiro do Sul area, Acre Laure Emperaire, Ludivine Eloy, Ana Carolina Seixas............................................................................................................. 159

Crop domestication in the upper Madeira River basin Domesticação de plantas cultivadas na bacia do alto rio Madeira Charles Roland Clement, Doriane Picanço Rodrigues, Alessandro Alves-Pereira, Gilda Santos Mühlen, Michelly de Cristo-Araújo, Priscila Ambrósio Moreira, Juliana Lins, Vanessa Maciel Reis....................................................................... 193

ARTIGOS ARTICLES Realidade, ciência e fantasia nas controvérsias sobre o Mapinguari no sudoeste amazônico Reality, science and fantasy in the controversies about the Mapinguari in southwestern Amazonia Felipe Ferreira Vander Velden............................................................................................................................................................209

Do avortado ao comprado: práticas alimentares e a segurança alimentar da comunidade quilombola do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará From production to market: food habits and food safety of the quilombola community of baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará Elcio Costa do Nascimento, Gutemberg Armando Diniz Guerra.......................................................................................................225

Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil) The burial patterns in the Archaeological Site of Lapa do Santo (early Holocene, east-central Brazil) André Strauss....................................................................................................................................................................................243

Obscure cognates and lexical reconstruction: notes on the diachrony of the Xinguan Arawak languages Cognatos obscuros e reconstrução lexical: notas sobre a diacronia das línguas arawak xinguanas Fernando O. de Carvalho..................................................................................................................................................................277

Eidorfe Moreira e os sermões de Vieira na Belém Seiscentista Eidorfe Moreira and Vieira’s sermons in 17th century Belém Geraldo Mártires Coelho..................................................................................................................................................................295


MEMÓRIA MEMORY Uma tradução do clássico de DeBoer e Lathrap: “O fazer e o quebrar da cerâmica Shipibo-Conibo” A translation of DeBoer and Lathrap’s classic “The making and breaking of Shipibo-Conibo ceramics” Fernando Ozorio de Almeida, Bruna Rocha....................................................................................................................................... 315



Dossiê

Dinâmicas Agriculturas Amazônicas



Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 13-16, jan.-abr. 2016

Dinâmicas das agriculturas amazônicas Laure Emperaire Institut de Recherche pour le Développement -IRD Claudia Leonor López Garcés Museu Paraense Emílio Goeldi -MPEG A Juliana Santilli (1965-2015) In memoriam As agriculturas da Amazônia e seus componentes foram desde sempre modelados por jogos de forças, quer se trate de suas dinâmicas internas feitas também de inovações, quer se trate de pressões externas. Um sistema agrícola pode se reproduzir apenas se for aberto, integrando e produzindo inovações. É o que atesta esse conjunto de oito artigos que constituem o segundo dossiê sobre agriculturas amazônicas produzido pelo Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. O primeiro dossiê Agriculturas amazônicas: cultivando plantas, saberes, paisagens e ideias publicado em 2012 e coordenado por Pascale de Robert e Claudia López, registrava a eficiência dos sistemas agrícolas tradicionais em termos de autonomia alimentar das populações, de conservação e produção de uma alta diversidade de plantas cultivadas, e da continuidade de um patrimônio cultural onde mitos, narrativas, saberes, práticas, redes sociais, cultura material, alimentação, formas de transmissão e outros elementos se entremeam. Nesse segundo dossiê, abordamos sob vários ângulos as dinâmicas de sistemas agrícolas, muitas vezes agrupados sob a denominação genérica de agricultura familiar, sejam essas agriculturas de tipo campesina, tradicional ou indígena. Os temas debatidos mobilizam disciplinas, com seus instrumentos e conceitos, em um leque que vai da genética às ciências humanas e sociais, e promovem um diálogo interdisciplinar. Associam também referências temporais múltiplas ancoradas na memória - ou no porvir - dos indivíduos, dos coletivos ou cuja marca está integrada no genoma das plantas domesticadas. Os instrumentos metodológicos mobilizados nos artigos são vários: etnografias, biografias, trajetórias coletivas, familiares ou individuais, fontes históricas, levantamentos da agrobiodiversidade, análises genéticas, mas todos têm em comum a característica de entremear leituras do passado e do presente. O objetivo do dossiê é propor uma leitura sob vários ângulos das dinâmicas de sistemas agrícolas em um contexto marcado por mudanças socioculturais, econômicas, ambientais e de políticas públicas que impactam os sistemas locais e ainda pouco abrem caminhos para propostas diferenciadas. Com o reconhecimento da importância dos conhecimentos indígenas e das sociedades locais para a conservação da biodiversidade e da diversidade cultural, e a relevância socioambiental da região a escala planetária, o interesse na realização de pesquisas sobre esse tema é mobilizado também pela urgência de suprir com evidências os formuladores e responsáveis pela implantação, acompanhamento e avaliação de políticas que repercutem no presente e futuro desses sistemas. Os artigos apresentados EMPERAIRE, Laurie; LÓPEZ GARCÉS, Claudia Leonor. Dinâmicas das agriculturas amazônicas. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 11, n. 1, p.13-16, jan.-abr. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000100002.

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Dinâmicas das agriculturas amazônicas

a seguir poderiam ser categorizados em dois grandes blocos, um ancorado no tema agriculturas e mundialização e outro no rema agriculturas tradicionais e agrobiodiversidade, mas tal organização não daria conta da complexidade das situações analisadas pelos autores. Optamos aqui por uma breve análise dos artigos sob a ótica das novas conexões desenhadas por suas próprias dinâmicas. Mobilidade social e mobilidade geográfica, tal é o tema do artigo de Xavier Arnauld de Sartre, Joel Bevilaqua Marin, William Santos, Raquel da Silva Lopes e Iran Veiga. Os autores colocam em perspectiva os itinerários de vida dos agricultores de três assentamentos e os de seus filhos, sejam esses realizados, esboçados ou projetados, dependendo da faixa etária. Menos da metade desses, homens ou mulheres, continuam na agricultura, os outros estão na cidade. A conexão com a cidade se dá principalmente pela busca ou continuidade da escolarização e depois, pela procura de um espaço num mercado de trabalho principalmente urbano. As estratégias de mobilidade geográfica e social dos pais se reproduzem com os filhos, porém, com novos objetivos que não têm mais como prioridade o acesso à terra. São processos complexos de reprodução social que são analisados e que se desenham em um horizonte de tempo curto. A pluralidade das estratégias desenvolvidas por associações caracteriza o mercado emergente do guaraná, produto emblemático da região de Maués no médio Amazonas. Solène Tricaud, Florence Pinton e Henrique Pereira dos Santos desenvolvem uma abordagem comparativa das estratégias de dois grupos de produtores, ‘guaranacultores’ relativamente recentes ou tradicionais. Um dos temas debatidos pelos autores é o dos modos de intervenções das instituições de fomento à agricultura, e das formas de apropriação das inovações propostas. O uso de um material vegetal selecionado ou nativo é um ponto chave das estratégias implementadas, em termos não só de itinerários técnicos como também de direitos de propriedade. O embate se situa entre dois modelos de desenvolvimento rural que apostam na comercialização de um produto ancorado em um território: um valoriza essa tipicidade, outro aposta na produtividade. Porém, o guaraná não é apenas um produto comercializado como o indica Alba L. G. Figueroa, o guaraná é passado, presente e futuro do povo Sateré-Mawé. Sua trajetória é documentada desde sua origem mítica até os atuais desdobramentos do seu comércio justo. Planta da palavra, ela consubstancia, entre os Sateré-Mawé, um contrato social portador de um bem-viver. Seu comércio é atestado desde o século XVIII; seus princípios ativos são identificados no século XIX; o século XX é o da expansão de seu cultivo e da entrada de novos atores. Uma das perguntas colocadas pelo artigo é como, e até que ponto dialogam e são negociadas as dimensões identitária e comercial desse guaraná produzido pelos Sateré-Mawé, hoje conectado a uma ampla rede nacional e internacional de instituições que promovem tanto sua produção e comércio quanto outras iniciativas socioambientais. A força de coesão social, veiculada por essa planta fundada numa rede de significados, de atores e propósitos encenados no seu mito de origem, se projeta também para os complexos e desafiadores cenários das relações comerciais e políticas da contemporaneidade e as incertezas do futuro. Outra planta reveladora de socialidade é o pequi cultivado pelos Kuikuro no Alto Xingu. Em um contexto global de mudanças sociais, econômicas e ambientais, Maira Smith e Carlos Fausto, propõem uma leitura dos processos socioculturais na origem da diversidade dos pequis. Os autores abordam essa planta lenhosa, de transmissão intergeneracional, como “objeto constituído por relações sociais”, uma característica extensiva ao agroecossistema ao qual pertence. As relações se revelam na constituição do pomar de pequis a partir de sementes oriundas dos diversos locais que marcaram a história de vida dos grupos familiares, na origem mítica que mobiliza humanos e não-humanos, nos cuidados que se deve ter com os donos do pequi e nos tratos culturais e simbólicos das árvores. Em conclusão,

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 13-16, jan.-abr. 2016

os autores colocam a necessidade de implementação de estratégias de conservação da agrobiodiversidade. Essa contribuição, bem como aquelas sobre o guaraná, (ou outras da literatura científica) evidencia o quanto a existência das plantas cultivadas está ligada às relações sociais mobilizadas em torno delas e o quanto essas plantas são a própria expressão ou materialização de conhecimentos tradicionais nelas embutidos. O conhecimento é assim intrínseco a elas. O artigo de Joana Cabral de Oliveira explora as relações entre roça e floresta, desconstruindo, na perspectiva dos Wajãpi, a clássica oposição entre esses dois espaços. Ambos se configuram como espaços plantados, os primeiros como roças dos humanos “plenos”, os segundos como cultivos de diversos donos ou seres da floresta (não-humanos mas que se percebem eles mesmos como humanos) em uma lógica multinaturalista. Ter plantações, plantar, é um atributo de todos os seres e plantas, a floresta é constituída de plantações de outrem. A roça é o fundamento da vida social como espaço construído na consanguinidade, que supre os alimentos da família e que permite a realização de festas. A autora propõe caracterizar as relações floresta e roça, como de um dos suportes da ação, o que torna os dois elementos indissociáveis, porém seus contornos permanecem flexíveis e são redefinidos em função da posição do sujeito. Baseada em pesquisas de caráter etnográfico entre o povo indígena Ka’apor, mas também considerando o enfoque da etnobotânica, Claudia Leonor López Garcés faz uma caracterização contemporânea da horticultura praticada por este povo, considerando-a como expressão cultural que abrange aspectos da cosmologia indígena, assim como expressões rituais, aspectos éticos, estéticos e organizativos, além do econômico e da diversidade agrícola, proporcionando uma visão ampla e diversa. Por outro lado, e ainda que de forma incipiente, o artigo busca refletir sobre as transformações na agrobiodiversidade, por comparação com estudos anteriores, e nas formas organizativas do trabalho hortícola influenciadas pelos conflitos socioambientais em torno da exploração ilegal de madeira e pelas políticas públicas. Os estudos sobre a agrobiodiversidade selecionada e conservada pelas populações indígenas e tradicionais da Amazônia são bastante numerosos. No entanto, não permitem, pela heterogeneidade dos métodos mobilizados, traçar uma cartografia das dinâmicas da agrobiodiversidade na escala regional. Algumas publicações diacrônicas apontam para uma perda rápida de diversidade; políticas de modernização da agricultura estão sendo implementadas, mas seus impactos sobre saberes, práticas, relações sociais e diversidade biológica não estão ainda bem avaliados. A partir de uma pesquisa realizada na região de Cruzeiro do Sul (Acre) junto a pequenos agricultores, Laure Emperaire, Ludivine Eloy e Ana Carolina Sousa Seixas argumentam a favor da criação de dispositivos compartilhados entre populações locais e pesquisadores que dêem conta das dinâmicas de uma biodiversidade criada pela ação humana, mas paradoxalmente mal conhecida. A segunda parte do artigo examina, segundo uma análise qualitativa e quantitiva, a agrobiodiversidade manejada por 52 desses agricultores. A última questão colocada nesse dossiê é a dos processos em andamento no tempo longo. O artigo de Charles Clement, Doriane Picanço Rodrigues, Alessandro Alves-Pereira, Gilda Santos Mühlen, Michelly de Cristo-Araújo, Priscila Ambrósio Moreira, Juliana Lins, Joana A. Maia Salomão e Vanessa Maciel Reis mostra a importância do alto Madeira, região de alta compexidade ecológica e sociocultural, como foco de uma domesticação, única ou múltipla, de plantas hoje difundidas a toda a Amazônia ou além desse bioma. Se os estudos analisados apresentam resultados consolidados para a mandioca, o amendoim, a pupunha e uma espécie de pimentas (Capsicum baccatum), não permitem concluir de modo formal sobre o foco de origem do urucu, das taiobas e da outra espécie de pimenta, C. frutescens. Em conclusão, essa série de estudos evidencia a diversidade das formas de tradição e de inovação social, agronômica e econômica que assegura a continuidade das pequenas agriculturas e sua inscrição em um mundo em rápida

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Dinâmicas das agriculturas amazônicas

reconfiguração. Conservar recursos implica conservar a diversidade dos processos cognitivos, culturais e biológicos que estão na origem desses recursos. Nosso objetivo será atingido se esse dossiê contribuir a um melhor entendimento das múltiplas trajetórias de alguns dos sistemas agrícolas da Amazônia, a consolidar a interdisciplinaridade das pesquisas e a se abrir para pesquisas colaborativas com as populações locais. Agradecemos ao Editor científico do Boletim e a sua equipe que acolheram a proposta desse segundo dossiê, aos autores pelas riqueza de suas contribuições científicas e aos leitores pareceristas pela minúcia de seus comentários. Cabe-nos ainda indicar que deste dossiê deveria constar o artigo de Laura Santonieri e Patrícia Bustamante Conservação in situ, ex situ e on farm de recursos genéticos: desafios para promover sinergias e complementaridades, assim como o artigo de Marie Fleury Agriculture intinérante sur brûlis (aib) et plantes cultivées sur le Haut Maroni: étude comparée chez les Aluku et les Wayana en Guyane Française, que, infelizmente, por imprevistos nos trâmites editoriais, não puderam ser publicados. Por último, dedicamos esta obra a Juliana Santilli (in memoriam), colega, amiga e companheira em diversas empreitadas acadêmicas, em reconhecimento a suas grandes contribuições na reflexão sobre conhecimentos tradicionais, agrobiodiversidade e direitos dos agricultores. Saudades.

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 17-32, jan.-abr. 2016

Mobilidades geográfico-profissionais de duas gerações de agricultores familiares assentados na Amazônia oriental Spatial and professional mobilities of two generations of family farmers in the eastern Amazon Xavier Arnauld de SartreI, Joel Orlando Bevilaqua MarinII, William Santos de AssisIII, Raquel da Silva LopesIV, Iran VeigaIII I II

Centre national de la recherche scientifique. Paris, França

Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil III IV

Universidade Federal do Pará. Belém, Pará, Brasil

Universidade Federal do Pará. Altamira, Pará, Brasil

Resumo: A mobilidade social de agricultores familiares em áreas de frentes pioneiras da Amazônia, durante muitos anos, esteve associada à migração geográfica, em busca de uma terra para trabalhar. O afastamento cada vez mais importante das terras, a modernização do comportamento dos jovens e o aumento do nível médio de estudo implicaram mudanças importantes nestas estratégias, uma vez que os agricultores preferem atingir a mobilidade social por meio dos estudos escolares e da migração para a cidade. Se esses dados são conhecidos, a quantificação do fenômeno (em particular, com questionários biográficos) no caso de três assentamentos da Amazônia oriental e a diferenciação interna ao grupo dos agricultores (segundo o tipo de família e o lugar de moradia) constituem as principais inovações deste artigo. Palavras-chave: Agricultura familiar. Amazônia oriental. Mobilidade social. Migração. Juventude. Assentamentos rurais. Abstract: This article is about the new patterns of migration among farmer families in the eastern Amazon. These patterns were commonly framed as a strategy of social mobility, where moving was a way to acquire land. However, recent studies have shown that migration drivers are evolving because of social modernization and the rise of educational standards. While farmer families’ new strategies are well known, such as investing in education and moving to cities, little attention has been given to their quantification. By examining three “projetos de assentamento” (settlement projects) in the eastern Amazon, we wish to highlight the diversity of strategies that are used, and examine the way they relate to existing geographical and social settings. Keywords: Family farming. Eastern Amazon. Social mobility. Migration. Youth. Settlement projects.

ARNAULD DE SARTRE, Xavier; MARIN, Joel Orlando Bevilaqua; ASSIS, William Santos de; LOPES, Raquel da Silva; VEIGA, Iran. Mobilidades geográfico-profissionais de duas gerações de agricultores familiares assentados na Amazônia oriental. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 17-32, jan.-abr. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000100003. Autor para correspondência: Xavier Arnauld de Sartre. Centre national de la recherche scientifique. Univ Pau & Pays Adour, UMR 5603 – SET – Société Environnement Territoire. IRSAM – Avenue du Doyen Poplawski – PAU, F- 64000, France (xavier.arnauld@cnrs.fr). Recebido em 22/11/2014 Aprovado em 02/12/2015

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Mobilidades geográfico-profissionais de duas gerações de agricultores familiares assentados na Amazônia oriental

INTRODUÇÃO Os projetos de assentamento da Amazônia oriental enfrentam um forte desafio para integrar a diversidade dos agricultores familiares desta região. Sobretudo suas áreas de frente pioneira são povoadas por agricultores que, mesmo estando presentes na Amazônia há muitos anos, vêm de diferentes regiões do Brasil, têm diferentes tradições familiares e projetos diferentes no que diz respeito à permanência no campo. Estas diferenças influem em seu comportamento. No entanto, a diversidade dos assentados é frequentemente tratada unicamente a partir de seus diferentes sistemas de produção. Proceder dessa maneira equivale a considerar que as histórias de vida e os projetos dos assentados de uma dada região são homogêneos: supõe-se que eles estão em busca de terra para, enfim, tornarem-se proprietários rurais e instalarem a família em uma área onde esta se ‘fixaria’. Esta perspectiva tem sua origem em parte em uma tradição dos estudos sobre o campesinato, a qual considera que o vínculo estável com um determinado pedaço de terra é central à condição de camponês. Podemos considerar esta perspectiva como sendo a de um paradigma ‘fixista’. Neste texto argumentamos que, ao contrário, a mobilidade, geográfica (a migração) e profissional, faz parte das estratégias de reprodução social do campesinato da Amazônia oriental; e que o acesso à terra tem significados diferentes para diferentes camponeses, dependendo de seus projetos de vida. Argumentamos ainda que os significados da mobilidade geográfica e profissional, assim como do acesso à terra, são ainda mais diversos se considerarmos os projetos de vida dos jovens filhos de agricultores familiares assentados. Uma boa maneira de estudar essa diversidade de significados da posse da terra e da mobilidade é analisar como o acesso à terra em um dado projeto de assentamento se insere no itinerário do agricultor familiar assentado. A noção de itinerário vem da sociologia da experiência, a qual considera que os indivíduos constroem suas biografias a partir de uma acumulação de experiências, aproveitando oportunidades, mas inserindo-as em uma lógica que dá sentido a essas trajetórias. É este sentido

que explica a maneira como uma pessoa atua em uma determinada situação. Considerar a diversidade dos agricultores familiares a partir de seus itinerários pessoais, utilizando uma perspectiva que enfatiza a dimensão temporal das estratégias de reprodução social, permite identificar e dar sentido às eventuais transformações que podem marcar esses itinerários. Essas transformações revelam-se em momentos-chave das vidas dos indivíduos: na mudança de profissão, do lugar de residência ou na chegada dos filhos à idade adulta. Neste texto, utiliza-se a noção de itinerário para estudar duas gerações das mesmas famílias de agricultores familiares assentados, o que nos permite analisar em particular a continuidade do processo de mobilidade profissional e/ou geográfica após o alcance de uma situação (a posse da terra) que supostamente deveria ‘fixar’ os agricultores. Para tanto, realizamos um estudo quantitativo e qualitativo em três projetos de assentamento de agricultores familiares na Amazônia oriental (dois deles próximos a Marabá e um próximo a Altamira, todos no estado do Pará). Este estudo procura caracterizar as diferentes dimensões das mobilidades desses agricultores, entender as lógicas que as motivam e compreender como elas se inserem nas estratégias de reprodução social das famílias. Após haver apresentado, na primeira parte, os debates sobre a mobilidade nas áreas de colonização e de reforma agrária na Amazônia, assim como o marco metodológico que desenvolvemos para este estudo, analisaremos, na segunda parte, a diversidade dos agricultores familiares assentados e seus filhos e, na terceira parte, as transformações sofridas, nos últimos anos, por suas estratégias de reprodução social.

CARACTERIZANDO A MOBILIDADE DE AGRICULTORES FAMILIARES ASSENTADOS Mobilidade e itinerários As áreas de frente pioneira da Amazônia oriental são profundamente marcadas por migrações, seja pelo fato

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de serem áreas de chegada de camponeses de outras regiões, seja pelas dificuldades que eles têm em estabilizarse nas localidades das frentes pioneiras. Esse fenômeno, característico do campesinato (Brumer et al., 1991; Wanderley, 1998), é mais forte ainda nas frentes pioneiras (Le Borgne-David, 1998; Musumeci, 1988; Velho, 1984; Woortmann, 1995), em particular na região da Amazônia oriental (Araújo, 1993; Arnauld de Sartre, 2006; Arnauld de Sartre e Sebille, 2008; Veiga, 1999). A mobilidade é tão generalizada no campesinato de frente pioneira que pode se aceitar a existência de um “paradigma da mobilidade” (Tarrius, 1989), em vez de uma visão “fixista” desse campesinato. A importância da mobilidade não significa que ela seja vivida pelos camponeses migrantes como algo normal. As mobilidades dos camponeses têm sua lógica social. A busca por um lugar de vida para exercer a agricultura de forma autônoma é o ponto comum dos itinerários de muitos assentados. Mas esse destino comum desenvolveu-se diferentemente no tempo e nos ciclos familiares, o que permite encontrar uma diversidade de motivações para os itinerários profissionais e migratórios. As migrações seguem, em geral, lógicas familiares (e não individuais). Vários fatores, de ordem objetiva e subjetiva, contribuíram para desencadear os processos migratórios para a frente pioneira amazônica, entre os quais podemos destacar: a falta de terra, os problemas ambientais, as transformações tecnológicas e sociais, e os diferentes ciclos da vida familiar. O somatório desses fatores, cujas repercussões variavam no tempo e no espaço, dificultava a continuidade da reprodução social desses agricultores, enquanto que a possibilidade de migração para a Amazônia permitia encontrar terras férteis para trabalhar, plantar e colher, com vistas a assegurar a sobrevivência e a continuidade dos grupos familiares. De acordo com Woortmann (1995), as migrações de camponeses, tanto para os espaços urbanos como para os rurais, são processos derivados não apenas da inviabilidade de suas condições de existência, mas também integram suas práticas de reprodução social. Sob esse

enfoque, a migração dos agricultores para as frentes pioneiras pode ser interpretada como uma estratégia de garantir a continuidade da reprodução social do grupo familiar, significando lutas de resistência contra a expropriação, a violência e o empobrecimento, bem como o sonho da conquista da terra para trabalhar, produzir e reproduzir seus meios e modos de vida. A noção de itinerário migratório, profissional e familiar é útil para caracterizar essas histórias. Existem várias dimensões nos itinerários de pessoas, dentro das quais três são consideradas na bibliografia como centrais (Courgeau e Lelièvre, 1990): a dimensão espacial (com as migrações), a social (em particular, o estatuto profissional) e a familiar (a história da família). A lógica das trajetórias é uma combinação entre essas dimensões. Cada pessoa faz, ao longo de sua vida, diversas escolhas que levam a mudar de situação familiar, geográfica ou profissional. A soma dessas escolhas, até um determinado momento, desenha um itinerário pessoal. Além das dimensões pessoais, os itinerários são marcados, sobretudo no caso do campesinato, por escolhas familiares ou por um destino coletivo. Assim, as estratégias de reprodução social (dimensão social) dos camponeses brasileiros passam, muitas vezes, pela migração (dimensão espacial), a qual pode vir acompanhada de mudanças nos ofícios exercidos (dimensão profissional). Esse destino faz com que a mobilidade espacial e profissional se torne parte da história de muitos camponeses e se reproduza por várias gerações. Neste texto, analisamos essas dimensões pessoais, familiares e coletivas das migrações a partir do estudo dos itinerários, durante duas gerações, dos agricultores familiares assentados em diferentes projetos de assentamento da Amazônia oriental. O fato de estudar duas gerações pode nos informar sobre a continuidade do processo de mobilidade profissional e/ou geográfica após o alcance de uma situação (a de proprietário rural), que supostamente deveria fixar os assentados. Pesquisar todos os residentes de um mesmo lugar, e de lugares diferentes, significa reconhecer a dimensão coletiva dos itinerários.

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Uma amostragem baseada na escala da localidade A localidade é uma escala importante na socialização dos camponeses e na construção dos territórios rurais (Albaladejo et al., 1996; Albaladejo e Veiga, 2000). Uma localidade é uma entidade espacial na qual interagem pessoas construindo um destino comum, de maneira mais ou menos coletiva. As localidades da frente pioneira são, mais do que quaisquer outras, lugares onde se mesclam pessoas de origens, histórias, visões e modos de vida diferenciados. Isto as torna uma escala interessante para analisar como se mesclam itinerários diversos.

Para entender as lógicas por trás das migrações dos agricultores familiares da Amazônia oriental, estudamos três localidades de frentes pioneiras representativas da diversidade das situações de colonização agrária (Figura 1) na região. Apesar de processos de criação diferentes, todas as três são atualmente projetos de assentamento da reforma agrária do governo federal: • ‘Travessão 338 Sul’ (situado no município de Pacajá, Pará) é, mais especificamente, a área compreendida entre os km 12 e 24 dessa estrada vicinal que tem sua origem na rodovia Transamazônica (BR-230). A definição dessa ‘fatia’ da estrada vicinal se deu pela

Figura 1. Localização dos espaços de estudo. A) Localização da Amazônia oriental; B) áreas de fronteira no Brasil; C) localização dos espaços de estudo no estado do Pará; D) Sítio de Palmares; E) Sítio de Maçaranduba; F) Sítio de Pacajá.

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homogeneidade de sua história de colonização, isolamento geográfico e redes sociais. Trata-se de uma área de colonização inicialmente não oficial e, portanto, que não foi beneficiado por políticas públicas nos seus primeiros anos. No momento da coleta de dados para este estudo, as famílias sequer recebiam os subsídios de programas nacionais de redistribuição de renda, como o Bolsa Família. Isoladas, essas famílias são confrontadas com as dificuldades típicas da Transamazônica (Arnauld de Sartre, 2006); ‘Maçaranduba’ (município de Nova Ipixuna, Pará) é um projeto de assentamento agroextrativista que teve sua origem em um antigo castanhal. Quando esse espaço foi ocupado pelos ex-castanheiros, as lideranças locais solicitaram o apoio do Conselho Nacional de Seringueiros, para implantar um sistema de organização fundiária comparável ao das reservas extrativistas: propriedade coletiva da terra, com atribuição de concessão de uso sobre as parcelas, limitação das autorizações de desmatamento para a implantação de pasto, entre outros. Isto explica, em parte, porque a zona de Maçaranduba, embora esteja situada em uma frente pioneira relativamente

antiga, encontra-se bem preservada em comparação com as localidades vizinhas; • ‘Palmares’ (município de Parauapebas, Pará) é um projeto de assentamento de reforma agrária, criado após o Massacre de Eldorado dos Carajás, a partir da desapropriação de uma fazenda, então ocupada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O contexto de criação do Projeto de assentamento (PA) explica que os agricultores tenham chegado à área no mesmo momento e que os lotes sejam do mesmo tamanho. Parte dos agricultores deste projeto de assentamento é composta de exgarimpeiros, que se instalaram em Parauapebas após o fechamento do garimpo de Serra Pelada. Estas localidades poderiam ser pontos finais de itinerários de mobilidade profissional e geográfica, sendo que quase todos os entrevistados têm garantida sua posse da terra. Mas, para alcançar tal condição, foi necessário migrar. Podemos identificar as etapas da ocupação das localidades estudadas pelas famílias que se encontravam aí estabelecidas no ano de 2007 (Figura 2). Se levarmos em conta que não há diferenças significativas na idade dos agricultores assentados em cada localidade,

Figura 2. Ano de chegada dos colonos dos três assentamentos estudados.

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pode-se notar claramente neste gráfico que as formas de colonização são profundamente diferentes entre elas. A forma muito particular da curva da localidade de Palmares tem a ver com a forma de criação do projeto de assentamento, a partir de uma ocupação do MST. Ao contrário, as localidades do Travessão 338 Sul e Maçaranduba foram ocupadas de forma gradual, ao longo de vários anos, antes de serem transformadas em projetos de assentamento. O gráfico da Figura 2 mostra somente as famílias que permaneceram nas localidades. Mas existem casos de famílias que se instalaram por um tempo e, posteriormente, migraram: nas localidades do Travessão 338 Sul e Maçaranduba, as famílias que permaneceram ou chegaram ao longo do tempo foram adquirindo as terras das famílias que partiam. Não há memória sistemática dessas famílias, mas elas são frequentemente mencionadas nas entrevistas. Podemos, assim, observar que estes projetos de assentamento não são pontos finais de uma trajetória de migração. Muitas famílias que aí se instalaram em algum momento, migraram novamente; e as que aí estão são suscetíveis de continuar sua migração. A migração que levou as famílias à localidade onde as encontramos não foi a única feita pelas famílias, já acostumadas em mudar de lugar de vida. Ao contrário, elas viveram muitas migrações. Para analisar as migrações passadas e futuras das famílias, estudamos: (1) os itinerários dos chefes de família e (2) a situação dos filhos dessas famílias.

localidades de estudo. O questionário aplicado teve como objetivo caracterizar, por ano de vida, os lugares de residência e as atividades profissionais realizadas pela pessoa entrevistada, bem como a sua história familiar (Courgeau e Lelièvre, 1990). Esse questionário era ligado a outro, com o propósito de conhecer a situação atual dos filhos do entrevistado. Em uma segunda etapa, fizemos entrevistas biográficas semiestruturadas com uma amostra de nove agricultores por localidade. A metodologia usada foi a proposta por Demazière e Dubar (1997), que permite compreender as lógicas dos itinerários das pessoas entrevistadas. Nessas entrevistas, também houve uma parte dedicada à situação e aos projetos dos filhos dos entrevistados. Elas foram feitas em 2009, um ano depois da realização dos questionários. Essa dupla metodologia possibilitou caracterizar diferentes dimensões dos itinerários migratórios e profissionais dos agricultores. Com efeito, caracterizamos os itinerários de indivíduos específicos. Agrupando esses itinerários em tipos, chegamos a qualificar as suas dimensões coletivas, as quais apareceram também nas entrevistas semiestruturadas. Como levantamos dados quantitativos e discursos sobre os filhos dos entrevistados, também foi possível analisar o caráter transgeracional desses itinerários.

Métodos de coleta dos itinerários pessoais A noção de itinerário é bastante discutida na sociologia e na demografia. Courgeau e Lelièvre (1996), entre outros, participaram deste movimento que fez mudar o paradigma da demografia do estudo de massas de indivíduos ao estudo de itinerários pessoais. A metodologia usada para estudar os itinerários pode ser tanto quantitativa quanto qualitativa e, neste trabalho, usamos ambas. Em termos quantitativos, aplicamos um questionário biográfico a todos os moradores de certos setores das

Itinerários migratórios e profissionais dos agricultores familiares assentados Cada questionário biográfico desenhou um itinerário pessoal particular. Contudo, esses itinerários podem ser agrupados em perfis de migrantes. Para desenhar o perfil de migrantes dos agricultores familiares da frente pioneira a partir dos itinerários individuais, fizemos uma análise multivariada a partir das informações recolhidas por ano de vida das pessoas, cujo objetivo era agrupar os agricultores que têm os itinerários biográficos os mais

ITINERÁRIOS E DESTINOS DOS AGRICULTORES FAMILIARES ASSENTADOS

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próximos possíveis (que fizeram, na mesma época, as mesmas coisas); e diferenciá-los de outros, com itinerários diferentes. A análise multivariada por tipo de mobilidade por ano de vida foi, em seguida, sintetizada por uma análise harmônica qualitativa (Barbary e Pinzon Sarmiento, 1998), o que já havia sido feito em outro contexto amazônico (Arnauld de Sartre e Sebille, 2008). Analisamos separadamente os itinerários profissionais e os itinerários migratórios dos agricultores, para depois agrupá-los. Os resultados são apresentados nas Tabelas 1 e 21. Para ajudar a leitura desta tabela, colocamos variáveis que resumem algumas das dimensões dos itinerários pessoais, mas que não foram utilizadas na análise. Esses itinerários mostram que a maior parte dos entrevistados é de pessoas instaladas há muito tempo na Amazônia (99 dos 137 entrevistados), o que os diferencia dos agricultores

dos outros períodos de colonização da região. Mesmo se 38% dos agricultores familiares passaram um tempo em cidades, somente 8% deles viviam em cidades antes de chegarem às localidades estudadas. Em termos profissionais, 38% (53 dos 137 entrevistados) dos entrevistados eram proprietários antes de estar nas localidades de estudo; 22% eram assalariados agrícolas que se tornaram proprietários graças ao programa de reforma agrária. A mesma proporção de entrevistados era constituída por assalariados em vários setores de atividade antes de se tornarem proprietários. Os outros entrevistados não dão informações sobre os percursos profissionais (mulheres) ou são ex-garimpeiros. Se combinarmos os tipos profissionais (Tabela 2) e migratórios (Tabela 1), observa-se que a metade dos informantes tem uma forte experiência rural na Amazônia

Tabela 1. Itinerário migratório dos informantes. Por ano de vida

Número de pessoas

Idade média

Número de migrantes

No meio rural

Na região

Rurais antigos na região

99

49

0.09

78%

64%

Rurais recém-chegados nos PA

15

47.5

0.12

70%

53%

Urbanos recém-chegados nos PA

11

41

0.15

50%

72%

Rurais recém-chegados na região e nos PA

12

47

0.08

83%

26%

Número de pessoas

Idade média

Agrônomos proprietários

53

54

0.03

77%

68%

Mobilidade profissional em todos os setores

32

47

0.09

60%

57%

Ex-assalariados agrícolas

31

43

0.04

79%

15%

Ex-garimpeiros

13

46

0.07

37%

2%

Mulheres que não informaram

8

35.5

0.01

12%

22%

Tabela 2. Itinerário profissional dos informantes. Por ano de vida profissional Número de profissionais No setor agrícola Como autônomo

Esse tipo de análise requer um tratamento preliminar dos dados, em particular para definir qual tipo de dado migratório utilizar e quais variáveis escolher. Para os dados migratórios, usamos como variável anual o ano civil, agrupado em décadas – e não a idade do migrante. Para as variáveis de residência, usamos três tipos de variáveis binomiais: 1) o fato de ter vivido uma migração ou não; 2) o fato de viver na cidade ou no campo; 3) o fato de estar na região ou fora da região. Para as variáveis profissionais, distinguimos por setor de atividade (sete modalidades: agricultura, ajudante familiar, garimpo, não agrícola, não sabe, sem atividade, sem dado), por tipo de atividade (sete modalidades também: ajudante familiar, estudos, trabalho por porcentagem, independente, assalariado, sem atividade e sem dado) e pelo fato de entrar ou sair de uma atividade. Esses tratamentos possibilitaram identificar itinerários migratórios pessoais.

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(ou, às vezes, em outras regiões) e que, na sua maioria, já havia sido antes proprietária de terras. Os itinerários desses agricultores são marcados pela busca de uma melhoria na posse da terra (ter mais terra ou terra de melhor qualidade). A outra metade da amostra é composta por entrevistados que têm itinerários mais complexos: 32 tiveram itinerários marcados por uma forte mobilidade profissional e geográfica, enquanto 13 são ex-garimpeiros que tiveram os itinerários típicos dos ex-garimpeiros de Serra Pelada (experiência rural antes da chegada ao garimpo e, depois do seu fechamento, a instalação na região, na proximidade do garimpo). Esses entrevistados se encontram, sobretudo, em Palmares (Parauapebas). Uma terceira classe é composta por mulheres ou jovens que vivem sozinhos no mundo rural, após passar por experiências de assalariamento agrícola ou de ajudante familiar; a quarta classe (16 entrevistados) é composta por ex-assalariados agrícolas que se tornaram proprietários graças à migração para a área de frente pioneira. Poucos assentados, finalmente, entram no esquema clássico da reforma agrária, o qual pressupõe que eles sejam ex-assalariados agrícolas. Muitos agricultores são de famílias que continuam um itinerário de migração iniciado em outros lugares. No entanto, a Tabela 1 mostra que há um grupo de ‘urbanos’, com mais migrações e mais jovens, que tiveram acesso à terra. Esse perfil de assentados pode ser um efeito da política de reforma agrária. Com efeito, se não fosse essa política, eles não teriam possibilidade de acesso à terra, por não conformar uma família relativamente estável necessária para garantir os processos ‘clássicos’ de migração e posse. Apesar de possuírem uma história antiga no meio rural, eles não teriam caminhado para uma ‘carreira’ de agricultor se a reforma agrária não lhes tivesse dado uma oportunidade de acesso à terra. No caso deles, a política de reforma agrária está criando uma categoria de potenciais agricultores que não existia antes. Também constatamos que os perfis de agricultores não são muito diferentes entre as localidades, com seus diferentes modos de constituição: os agricultores de Maçaranduba têm um perfil comparável aos agricultores

de Palmares (exceto os ex-garimpeiros), que são próximos aos agricultores do Travessão 338 Sul. As histórias de vida dos agricultores que ocuparam Maçaranduba, Travessão 338 Sul e Palmares estão marcadas pelas diversas experiências migratórias, seguindo diferentes caminhos de idas e vindas entre campo e cidade. Eles têm em comum, no entanto, a busca por um lugar de vida e de trabalho, aproveitando-se das alternativas abertas pelas frentes pioneiras no Pará.

Situação dos filhos dos informantes A pesquisa sobre as escolhas profissionais e migratórias dos filhos de agricultores das localidades de estudo foi feita a partir da aplicação de questionários aos entrevistados. Por esse meio, tivemos informações sobre os filhos de 137 famílias de moradores das localidades de Palmares, Maçaranduba e do Travessão 338 Sul. Descrever a situação desses filhos requer delimitar melhor esse grupo, que está composto por pessoas de idades muito diferentes, e definir as categorias de estudo. O grupo de filhos de assentados é composto por 603 pessoas (50,6% de mulheres), cuja idade vai do recém-nascido ao filho de 58 anos. Decidimos dividir essa amostra por grupos de idade conforme apresentamos na Tabela 3 Analisamos cada faixa etária em função: (1) da sua composição em termos de gênero e de vida conjugal; (2) do nível de estudo; (3) da residência em relação à casa dos pais; (4) do setor de atividade e; (5) da situação profissional na qual se encontravam no momento da entrevista. A Tabela 2 apresenta dados gerais, que dizem respeito a todos os filhos de assentados e a situações que parecem ser mais características das novas gerações. Na Tabela 4 é possível observar que em torno de 40% dos filhos de assentados são agricultores, e 40% estão em outros setores de atividades (os 20% restantes são compostos por mulheres donas de casa). A proporção de ajudantes familiares (Tabela 5) vai diminuindo no decorrer do tempo, enquanto a proporção de proprietários vai aumentando, até chegar a um quarto de filhos de mais de 35 anos que são proprietários. A proporção

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de dependentes (assalariado, meeiro) na agricultura se mantém estável segundo as faixas etárias (15%); o mesmo não acontecendo com a proporção de assalariados nas cidades, a qual é maior (aproximadamente 30%) nas faixas etárias entre 20 e 35 anos. Os filhos de agricultores familiares assentados localizam-se preferencialmente na proximidade dos pais, seja na mesma região ou na mesma localidade (Tabela 6). Observa-se, no entanto, uma diferença importante

segundo as gerações: se mais de 60% dos filhos de assentados estão em cidades, essa proporção é bem maior nas gerações mais novas (20-30 anos). O fato de residir em cidades está relacionado aos estudos escolares: o desejo de estar na cidade para estudar e para alcançar bons empregos com maior nível de escolaridade pode explicar tal fenômeno. O nível de estudo (Tabela 7) é a principal variável de distinção entre as gerações, sendo que os mais jovens estudaram bem mais do que os mais velhos.

Tabela 3. Situação matrimonial do(a)s filho(a)s de informantes.

Tabela 4. Setor de atividade do(a)s filho(a)s de informantes. Sem atividade

Agricultura

Setor 2o ou 3o

Do lar

J_0-14

77%

17%

1%

5%

J_15-19

29%

41%

9%

20%

43%

J_20-24

10%

40%

27%

22%

50%

J_25-29

3%

37%

32%

28%

69%

J_30-34

0%

39%

37%

24%

82%

J_35-plus

7%

43%

22%

28%

Número de pessoas

Feminino

Solteiro

Em união

J_0-14

133

50%

98%

2%

J_15-19

111

53%

78%

18%

J_20-24

110

52%

55%

J_25-29

103

41%

43%

J_30-34

67

48%

21%

J_35-plus

79

61%

10%

Tabela 5. Situação profissional do(a)s filho(a)s de informantes. Ajudante familiar

Estuda

Proprietário ou posseiro

Dependente

Assalariado

Autônomo (cidade)

Do lar

Outro

J_0-14

75%

13%

0%

3%

1%

0%

2%

6%

J_15-19

28%

32%

2%

13%

7%

2%

16%

1%

J_20-24

6%

21%

5%

11%

27%

5%

22%

4%

J_25-29

3%

15%

5%

15%

26%

6%

26%

3%

J_30-34

3%

5%

16%

15%

31%

11%

16%

3%

J_35-plus

1%

1%

23%

16%

13%

16%

29%

1%

Tabela 6. Localização do(a)s filho(a)s de informantes. Mesma Mesma casa localidade

Tabela 7. Nível de estudos do(a)s filho(a)s de informantes.

Mesma região

Outro estado

Em cidade

Não estudou

1ª-4ª série

5ª-8ª série

2º grau

Universidade

J_0-14

77%

3%

19%

0%

89%

J_0-14

14%

61%

24%

1%

0%

J_15-19

57%

16%

27%

0%

79%

J_15-19

2%

31%

51%

15%

0%

J_20-24

30%

23%

37%

9%

70%

J_20-24

1%

16%

44%

38%

0%

J_25-29

20%

27%

44%

9%

63%

J_25-29

4%

33%

36%

24%

1%

J_30-34

11%

24%

58%

6%

58%

J_30-34

2%

42%

24%

24%

0%

J_35-plus

8%

24%

53%

15%

62%

J_35-plus

5%

59%

21%

13%

0%

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Mobilidades geográfico-profissionais de duas gerações de agricultores familiares assentados na Amazônia oriental

Fizemos uma análise multivariada a partir das variáveis que descrevem a situação dos jovens (variáveis que compõem a Tabela 2). A população usada na análise é a dos jovens que não estão estudando (405 casos), sem diferenciá-los por idade ou situação pessoal. Fizemos uma tipologia de jovens (análise de cluster) na base das coordenadas dos indivíduos na análise multivariada. Uma repartição em cinco grupos permite uma redução de 38% da variabilidade. A Tabela 8 apresenta os diferentes grupos. Mesmo se a variável da idade não foi usada para a análise multivariada, observa-se que dois grupos (o grupo 1 e 5) estão claramente compostos por pessoas mais jovens (em torno de 20 anos), enquanto os três outros grupos estão compostos por pessoas de mais idade, que têm em média 27 ou 29 anos. A idade é a única variável que muda segundo os grupos de jovens: todas as outras variáveis, inclusive as de descrição das famílias usadas no tópico “Itinerários migratórios e profissionais dos agricultores familiares assentados” deste texto, não variam significativamente segundo os grupos de jovens agricultores. Isto significa que o destino destes jovens

não é determinado pelas características dos pais. Temos que explicar porque os itinerários dos filhos não são determinados pela origem dos pais.

DA MIGRAÇÃO AO ESTUDO? Como no caso dos itinerários das famílias, as informações coletadas sobre os filhos por meio dos questionários foram completadas por entrevistas semiestruturadas. As entrevistas biográficas mencionadas mais acima continham uma parte específica sobre os filhos dos entrevistados, em particular sobre as expectativas dos informantes sobre os jovens. Três pontos destas entrevistas destacam-se em relação aos filhos: a vontade de tê-los por perto, a de vê-los estudar e a de vê-los ter uma boa situação profissional. Descrição da situação dos filhos de agricultores familiares assentados É na juventude que os filhos dos agricultores familiares das frentes pioneiras do Pará demonstram maior predisposição para empreender a própria experiência migratória. Na juventude, como uma fase específica da vida compreendida entre a infância e a maturidade, a migração apresenta-se

Tabela 8. Tipologia dos informantes. Estudo

Localização

Setor

Estatuto

Idade média

Grupo 1: 57 casos

Os indeterminados: mais jovens, com poucos estudos e sem atividade econômica definida

35% analfabetos, 51% abaixo da 8ª série

68% na casa dos pais ou por perto

67% sem trabalho

60% indeterminado

19

Grupo 2: 97 casos

Os agricultores, com poucos estudos, sendo proprietários ou assalariados

68% abaixo da 4ª série

93% no mundo rural

96% como agrônomo

54% assalariados agrônomos, 34% proprietários

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Grupo 3: 93 casos

Os assalariados ou autônomos do setor não agrícola, com estudo

46% no 2º grau e 10% na universidade

62% em cidade

88% no 77% autônomos, setor 2 ou 3 23% independentes

Grupo 4: 81 casos

As esposas donas de casa (metade rural, metade urbano)

52% entre 5ª e 8ª série

51% em cidade

100% no lar

95% como donas de casa

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Grupo 5: 77 casos

Os ajudantes familiares do setor agrícola

55% entre a 5ª e a 8ª série

88% na casa dos pais

96% como agrônomos

42% trabalhadores familiares, 35% dependentes

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como condição para a conquista da autonomia pessoal e de constituição da futura família. Deve-se notar que as áreas de terra dos lotes, tanto nos programas de colonização quanto de projetos de assentamento, são pensadas para possibilitar níveis de produtividade suficientes para o bem estar e a prosperidade de uma família formada pela geração dos pais e filhos. Na realidade em estudo, a baixa fertilidade do solo, a localização dos lotes de terra, a falta de infraestrutura de estradas, energia elétrica, saúde e educação, além das restrições legais dos usos dos recursos naturais, são problemas limitantes à reprodução da condição de agricultor familiar. Assim, tanto os pais quanto os filhos jovens veem a migração como alternativa para a melhoria das condições sociais de existência. Conforme análise de Neves (2009), nos processos de constituição e reprodução do campesinato brasileiro, a continuidade da experiência migratória torna-se uma condição para as gerações juvenis dos espaços rurais:

o movimento e ameaças, reais ou imaginárias, de maneira que os filhos precisem desenvolver sensos de discernimento e responsabilidade para adentrá-lo e vencê-lo. Por estas razões, alguns pais entrevistados não escondem o sonho de ter os filhos próximos de onde residem: Eu acho bom eles ficar aqui, tudo pertinho. É porque a gente fica pensando, né? A gente deixa os filhos ir prum lugar, aí a gente não sabe o destino. Eu vejo tanta mãe sofrer por causa dos filho no mundo, meu prazer é eles ficar tudo pertinho (54 anos, Travessão 338 Sul). Até que se eles ficassem aqui era bom, né? É bom ter todo mundo perto. Mas cada qual pensando na sua melhoria de situação também a gente concorda com eles (60 anos, Travessão 338 Sul).

De fato, os filhos dos agricultores familiares permanecem por perto dos pais, e em maioria no meio rural. Dos filhos de informantes que têm a idade de ter uma autonomia profissional e residencial (24 anos ou mais), mais de um terço estão na mesma casa ou na mesma localidade que os pais, enquanto quase todos estão na mesma região. Os pais, por nós entrevistados nessas localidades, sabem que nem todos os filhos poderão permanecer no meio rural e muito menos permanecer a vida toda na casa paterna. Daí que os ensinamentos transmitidos durante a infância são importantes para a preparação da saída rumo aos espaços constituídos pelo ‘mundo’. Ao ingressar na fase da juventude, os pais não apenas aceitam, mas também estimulam a migração dos filhos, como passo no sentido da emancipação pessoal. Em parte, a migração dos jovens é percebida como uma possibilidade de ascensão social, uma vez que os trabalhos na agricultura não representam futuros promissores: “o futuro da minha filha eu queria o seguinte: que ela estudasse, construísse e vivesse a vida dela lá fora da terra. A terra é bom pra gente que já tá assim de idade, mas pra jovem é um fracasso” (29 anos, Palmares). Sob esta orientação, os jovens filhos de agricultores dessas frentes pioneiras do Pará começam o aprendizado migratório em função da continuidade dos estudos, ingresso no trabalho ou casamento e, eventualmente, por problemas de saúde. Estes fatores são relevantes para a

O alcance da idade adulta pelos filhos impõe de modo necessário a transmissão do legado do aprendizado da migração, para que, mais uma vez, cada família viva seu fluxo de reprodução geracional em uma família conjugal. E assim se reproduz a saga da itinerância do campesinato brasileiro que se constitui como desbravador, em luta pelo reconhecimento da posse.

Para além das condições objetivas, as migrações das gerações juvenis entre os agricultores familiares entrevistados significam aprendizados necessários para adentrar na idade adulta. Os jovens precisam, eles mesmos, experimentar as migrações como condição para a conquista da autonomia pessoal. Afora situações excepcionais, os pais não permitem que as crianças migrem, mesmo que seja para famílias de parentes. Eles advogam para si o dever de ensinar os trabalhos agrícolas e domésticos, bem como de incutir o senso de disciplina nos filhos, até que eles tenham condições para fazer a passagem responsável para o que denominam ‘mundo’. Em oposição à casa e ao lote familiar, o ‘mundo’ representa o afastamento do convívio familiar, o desenraizamento, o risco, a desordem,

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conquista da autonomia profissional ou constituição de uma nova família, o que implica, necessariamente, tornar-se homem ou mulher adulto. Essa autonomia não é tanto buscada pela migração em si, mas pelo estudo.

associados à ascensão social. Essa percepção da escola se reflete nos níveis escolares obtidos pelos filhos das pessoas entrevistadas: enquanto 23% dos entrevistados nunca estudaram e 46% só concluíram um nível de primário (1ª4ª série), somente 2% de seus filhos entre 15 e 19 anos não estudaram, e 31% têm nível primário; 51% dos filhos de agricultores familiares dessa faixa etária estudaram o primeiro grau completo, e 15%, o segundo grau (essa proporção passa para 38% dos jovens da faixa etária dos 20-24 anos). Este desejo de educação dos filhos como meio de promoção social se associa a uma idealização dos pais, que pouco corresponde às novas gerações de agricultores. Pelo menos é assim que podemos explicar que o nível de estudo dos filhos dos entrevistados seja diferente entre as localidades. Com efeito, por meio de um teste de qui-quadrado sobre o nível de estudo e as localidades, constata-se que o nível de estudo é significativamente diferente entre os locais: Palmares é a localidade onde os filhos de agricultores têm maiores níveis de escolarização; Pacajá tem o nível mais baixo. Ora, os entrevistados não têm um nível significativamente diferente entre as localidades, enquanto as condições objetivas de estudo são diferentes entre os locais. No Travessão 338 Sul e em Maçaranduba, a escola está restrita à quarta série do ensino fundamental. As crianças e os jovens destas localidades, caso pretendam continuar os estudos, devem migrar para as cidades adjacentes, onde há oferta de ensino escolar em níveis mais elevados. No Travessão 338 Sul, em específico, as longas distâncias que as crianças devem percorrer a pé até a escola, somadas ao relevo acidentado e às más condições de manutenção das estradas, tornam a tarefa de estudar uma aventura cotidiana, cujos sacrifícios nem sempre são suportados por longos períodos pelas crianças e jovens. Em consequência, os pais aceitam, com mais naturalidade, o abandono escolar dos filhos ou então procuram migrar para outros locais onde encontram maiores facilidades de acesso à escola. Já a população de Palmares dispõe de uma escola que atende crianças e jovens desde as primeiras séries do ensino fundamental até o ensino médio, uma conquista decorrente das lutas

O estudo em vez da migração? Para alguns dos agricultores familiares entrevistados, os conhecimentos proporcionados pela escola ganham importância em virtude da maior valorização do ensino escolar na preparação dos jovens para o enfrentamento da vida nos espaços urbanos, bem como da obrigatoriedade, imposta em lei, da escolarização mínima até os 14 anos de idade. Eles entendem que os estudos são uma alternativa para a integração dos filhos em outras ocupações laborais fora da agricultura, uma vez que as unidades produtivas não conseguem gerar as condições para absorver todos os filhos. Desse modo, a migração em busca de estudos escolares é um passo fundamental para o processo de ‘ressocialização’ dos jovens, com vistas à preparação para o ingresso nos trabalhos urbanos. Entre os pais são comuns as idealizações da escola como a instituição que pode proporcionar melhorias na vida dos filhos, tendo como parâmetro alguns condicionantes da própria experiência pessoal, marcada pela baixa escolarização e pelo trabalho na agricultura: Se eu tivesse estudo, hoje a minha vida tava melhor. Então, eu não quero o mesmo que eu passei: trabalhar pra poder me sustentar. Eu não quero que o meu filho faça isso, trabalhar para se manter. Mas sim que eu peleje por ele, como minha esposa peleja, entende? Dá tudo por ele, para que mais tarde ele tenha futuro. Porque hoje a gente comprou esse gado pra quando ele tiver mais na idade de fazer universidade, tem como pagar universidade pra ele, que não precisa ele sair pra trabalhar e largar o estudo. Só se depois ele não quiser mesmo e já for dono do seu nariz, mas enquanto a gente dominar, enquanto a gente poder dar o melhor a gente dá. É isso que eu quero pra ele (44 anos, Maçaranduba).

Desta forma, os agricultores familiares entrevistados percebem a escola como a instituição que pode oferecer, às crianças e aos jovens, orientações para outros caminhos

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A vida profissional dos filhos dos agricultores familiares assentados Desta forma, a idealização dos pais acerca dos estudos prolongados, como estratégia para alcançar melhores trabalhos e remunerações no futuro, é contraposta à necessidade de entrar no mercado de trabalho. O depoimento da mãe de um jovem do Travessão 338 Sul é elucidativo a esse respeito:

do MST em prol da melhoria educacional para os filhos de agricultores assentados. Além disso, Palmares se beneficia de uma proximidade imediata à cidade de Parauapebas. Os custos da manutenção dos jovens estudantes nas cidades são considerados elevados, em proporção aos rendimentos familiares, especialmente quando a família comporta diversos filhos em processo de escolarização. Mas, como já apontado, alguns pais entrevistados fazem o possível para assegurar a permanência dos filhos nas escolas das cidades, levando-lhes alimentos produzidos no lote e transferindo-lhes as economias familiares. Ademais, os pais contam com a solidariedade de parentes e amigos que moram nas cidades para a acolhida dos filhos estudantes em suas casas. Os jovens, por sua vez, procuram engajar-se em algum trabalho para cobrir parte dos custos de seus estudos, bem como retornar para as casas dos pais nos finais de semana, nos feriados e nas férias escolares, com o propósito de contribuir com o trabalho familiar. No entanto, a escolha da continuidade dos estudos depende, em grande medida, dos filhos. Alguns pais entrevistados dizem que alertam seus filhos para a importância da formação escolar para acessar trabalhos mais valorizados e melhor remunerados, mas não impõem aos filhos exigências de dedicação exclusiva aos estudos. Estudar, trabalhar ou casar é uma decisão dos filhos. Cabe aos pais aceitar e dar o apoio às escolhas dos filhos, conforme as possibilidades da família:

Esse caçula tava até estudando nesse colégio aqui. Depois disse que não queria mais, que já sabia assinar o nome. Aí eu disse: “meu filho vai estudar, porque senão você vai pra foice, vai trabalhar nos mato igual seu pai, porque o estudo vale tudo, você arruma um emprego”. Mas não, ele disse que ia trabalhar pra comprar as coisas dele (62 anos, Travessão 338 Sul).

Na medida em que descartam a possibilidade de continuidade dos estudos escolares, os jovens das regiões por nós estudadas passam a vislumbrar o ingresso no trabalho, mesmo que sem vínculos empregatícios, como forma de construir alternativas de emancipação pessoal. Mas, a objetivação desse projeto passa pela migração para as cidades ou fazendas da região. Em Maçaranduba, Travessão 338 Sul e Palmares, as oportunidades em trabalhos assalariados são esporádicas e mal remuneradas, de maneira que os jovens não conseguem estabelecer projetos profissionais mais duradouros, com o recebimento de eventuais diárias. Porém, os trabalhos assalariados que surgem nessas localidades ou em suas proximidades constituem-se nas primeiras vinculações laborais dos jovens, que são importantes para adquirir conhecimentos, experiências e autoconfiança. Além disso, o dinheiro, embora em pequena quantidade, permite a compra de certos objetos de consumo pessoal ou a formação de poupança para os deslocamentos mais distantes da residência dos pais, em busca de outros trabalhos mais estáveis e melhor remunerados. O ingresso dos jovens no mercado de trabalho resulta em migrações. Objetivamente, a renda insatisfatória gerada pela produção agrícola familiar e os limites dos

Se eles escolher ou pra roça ou pra qualquer outra coisa, o direito é deles, né? A que ele escolher assim, tá bom. A decisão é deles, o que eles quiser e a gente poder ajudar. Eles podem escolher pra depois não dizer que eu ou ela [a esposa] que bagunçou. Aí eles escolhem o que eles quiserem, se der de ajudar até se formar a gente faz a força (62 anos, Travessão 338 Sul).

Alguns jovens compartilham de uma visão mais pragmática para os encaminhamentos da própria vida, atribuindo maior importância à satisfação das necessidades imediatas e à conquista da autonomia financeira e pessoal, ao invés de dispensar tempo e dinheiro na continuidade dos estudos.

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lotes de terra favorecem a migração como uma alternativa inexorável para a maior parte dos integrantes da família. Aos jovens destituídos das possibilidades de herdar terra paterna resta a construção de novas formas de integração social, que passa pela busca de trabalho dentro das viabilidades acenadas pelo mercado de trabalho local. Por outro lado, os jovens percebem os trabalhos fora da agricultura como caminhos abertos para melhorar suas condições de existência, quando comparadas às realidades objetivas da sua família. Sob tais condicionantes, os jovens e suas famílias conferem à migração um caráter mais humano e aceitável socialmente. Vale destacar que a migração por motivo de trabalho não ocorre necessariamente no sentido urbano. Alguns jovens encontram trabalho assalariado nas fazendas circunvizinhas aos locais de residência dos pais ou em empresas madeireiras e mineradoras que operam na região. Outra forma de migração é devida à busca de novas áreas de terras passíveis de ocupação, seja pela posse de terras livres ou pelo ingresso em movimentos de luta pela terra. Assim, os jovens percebem que a terra foi uma luta e conquista dos pais, cabendo a eles construir suas próprias trajetórias, que não passam necessariamente pelo trabalho na agricultura. Menos da metade dos filhos dos entrevistados são agricultores, e ainda menos são autônomos na agricultura. A condição de assalariado é a mais comum, embora a tendência seja a de que os filhos mais velhos tornem-se mais autônomos do que os jovens. Isto pode se explicar por ciclos pessoais e familiares. O casamento implica a migração dos filhos de agricultores das três localidades estudadas, com a constituição de uma nova família e formação de um lar para o novo casal. Em determinadas situações, o jovem migra para trabalhar, tendo em mente o projeto do casamento. No sentido prático, a migração dos jovens objetiva acumular recursos financeiros para adquirir os bens – inclusive a terra –, a fim de iniciar a nova vida de casado. Em outras situações, o casamento desencadeia a migração dos jovens recém-casados para aumentar os recursos

financeiros e construir a independência em relação aos pais. O depoimento de um jovem recém-casado, morador de Palmares, revela a associação da migração com conquista da autonomia: Eu cheguei aqui, ainda bem dizê muleque e acabei de me criá aqui. Eu pretendo também saí da roça, arrumá um emprego pra mim, porque ficá na roça direto não dá. Tá fraco. Pretendo mudá pra melhó, porque hoje eu tenho a minha mulhezinha, mas num tenho uma casa pra mim morá, minha. Essa aqui é da minha sogra. E pretendo trabalhá e rumá até meu canto, meu sussegado (32 anos, Palmares).

Os jovens que migraram para estudar dificilmente retornam para as localidades de origem. As tendências são novas migrações, uma vez que os estudos ampliam os horizontes dos jovens, tanto laborais quanto matrimoniais. Com efeito, as vivências urbanas e a melhor qualificação abrem novas perspectivas migratórias: “Aí a menina foi estudar em Pacajá porque não tinha colégio aqui. Ela estudou em Pacajá e de lá ela casou. Tá morando em Redenção. Redenção, porque gostou de um homem de lá” (54 anos, Travessão 338 Sul). Independentemente dos motivos da migração, alguns pais desejam que os filhos voltem para a terra. A terra garante o trabalho e a reprodução social da família. Os pais percebem que a propriedade da terra é fundamental para a transição dos filhos para outros locais, pois é o espaço onde são gerados os recursos revertidos na educação deles e onde são produzidos os alimentos que reduzem os custos para a permanência nas cidades, seja para estudar ou suportar os baixos salários pagos nas cidades: Tenho quatro filhos. Tá tudo comigo aqui, só tem um lá na rua estudando e os outros três tão aqui comigo. Tem um filho que foi pra Anapu estudar. Ele tem vontade de estudar um pouco aí foi pra lá. Mas todo sábado tá aqui comigo. A gente dá uma ajudinha pra ele lá, leva comida daqui, arroz, feijão. Ele queria estudar e o pai dele disse: “se você quer estudar, eu vou ajudar” (34 anos, Travessão 338 Sul).

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essa estratégia para seus filhos, preferindo encaminhá-los para um investimento na educação formal. Esta observação parece valer para todos os tipos de agricultores familiares assentados identificados neste estudo. Estas conclusões podem ajudar a pensar políticas públicas para as áreas de reforma agrária. Os projetos de assentamentos são pensados a partir do paradigma ‘fixista’, enquanto os agricultores estão em um paradigma de mobilidade. Antes, sobretudo, era uma mobilidade geográfica (a migração) que permitia o acesso à terra e/ou a melhoria das condições de produção. Se essa mobilidade vinha acompanhada por certa mobilidade profissional (por exemplo, no caso clássico da passagem pelo garimpo), a terra continuava sendo o elemento central das estratégias de mobilidade. Atualmente, o maior acesso à educação formal e aos centros urbanos (com seus modos de vida diferentes e suas oportunidades de emprego) estão complexificando ainda mais as estratégias de reprodução social e deslocando, ao menos parcialmente, a importância da posse da terra nas mesmas. No entanto, paralelamente, a política de reforma agrária e de apoio à agricultura familiar permite a emergência, mesmo que marginal, de novos assentados com um perfil bastante diferente dos assentados de algumas décadas atrás. Em qualquer desses casos, no entanto, a mobilidade, profissional ou geográfica, continua a caracterizar as estratégias de reprodução social desses agricultores familiares assentados.

Quando sobra a gente vende um pouco. Mas tem esta filha que ela trabalha na rua, o salário é pouco. Sempre a gente ajuda, faz a nossa despesa e leva também para ela (54 anos, Travessão 338 Sul).

O lote da família também é espaço de acolhida dos filhos que, por ventura, tenham que retornar para casa dos pais, seja por motivo de separação conjugal ou desemprego: Ela juntou aí com um cara, aí não deu certo, voltô aqui pra casa onde tá eu (65 anos, Travessão 338 Sul). Se for pra vender esse aqui, mas comprar outro. Não é pra ficar sem terra e morando no que é o alheio também, não. E vender, pra ir pra cidade, o negócio pega também, porque na terra da gente aqui é melhor. Porque os filho tá lá na rua, mas o dia que faltar emprego pra eles, o lugar deles vim se arranchar é aqui mais nós (54 anos, Travessão 338 Sul).

CONCLUSÃO A noção de itinerário pessoal, mesclando a dimensão geográfica e profissional da mobilidade dos agricultores, nos permite considerar, ao longo de um período de tempo relativamente amplo, outras dimensões (além da produtiva) das vidas dos agricultores familiares assentados. Esta noção nos possibilita, assim, considerar as estratégias de reprodução social destas famílias em toda a sua complexidade. A inclusão na análise da situação e projetos dos filhos dos assentados permite igualmente integrar uma dimensão transgeracional que nos parece particularmente importante, pois retrata um momento de transição (e em alguns casos de ruptura) entre estratégias de reprodução social e projetos de vida de pais e filhos. Os itinerários dos agricultores familiares dos três projetos de assentamento estudados revelam ao mesmo tempo a diversidade de seus itinerários pessoais e as consideráveis transformações ocorridas em suas estratégias nos últimos anos. Observamos em particular que se a mobilidade geográfica dos assentados foi um meio para que eles conseguissem uma mudança social (tornando-se proprietários rurais), eles não parecem querer reproduzir

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 33-53, jan.-abr. 2016

Saberes e práticas locais dos produtores de guaraná (Paullinia cupana Kunth var. sorbilis) do médio Amazonas: duas organizações locais frente à inovação Local knowledge and practices of guarana producers (Paullinia cupana Kunth var. sorbilis) on the middle Amazon: two grassroots organizations confronting innovation Solène TricaudI, Florence PintonII, Henrique dos Santos PereiraIII I II

Instituto Centro de Vida. Cuiabá, Mato Grosso, Brasil

AgroParisTech. Paris, França / IIIUniversidade Federal do Amazonas. Manaus, Amazonas, Brasil

Resumo: O guaraná (Paullinia cupana Kunth var. sorbilis) é uma planta nativa da Amazônia, conhecida mundialmente por suas propriedades estimulantes. Desde 1974, um processo de modernização dos sistemas de cultivo vem sendo difundido na região por agroindústria monopolista e por empresa de pesquisa agropecuária. Isso se traduziu na difusão de pacotes tecnológicos modernizantes, visando ao aumento da produtividade agrícola. Manejada e consumida originalmente pelos indígenas Sateré-Mawé, o produto vem perdendo vínculo com seu território de origem, o que estimulou, a partir dos anos 1990, a busca por alternativas de valorização da procedência e do modo de produção de base familiar e agroecológica. A pesquisa, realizada com produtores de duas organizações locais do baixo Amazonas, buscou revelar suas inciativas de reterritorialização da produção, suas práticas de manejo e conservação in situ da planta, e suas reações à difusão de formas inovadoras de produção e de inserção no mercado. Partindo-se da hipótese da existência de uma dinâmica funcional diferente em cada organização, identificamos que as relações dos produtores com o mercado, com a proteção do conhecimento tradicional e com a própria planta evoluíram em trajetórias sócio-históricas distintas, as quais resultaram em diferentes sistemas de referências socioculturais, ecológicas e tecnológicas. Palavras-chave: Manejo do guaraná. Amazônia brasileira. Agricultura familiar. Cadeia produtiva. Organização coletiva. Território. Abstract: Guarana (Paullinia cupana Kunth var. sorbilis) is a native plant of the Amazon, known worldwide for its stimulant properties. Since 1974, a process of modernization of farming systems has been widespread in the region by monopolistic agribusiness and agricultural research companies. This has resulted in the dissemination of modernizing technological packages aimed at increasing agricultural productivity. Managed and originally consumed by Sateré-Mawé indians, guarana has lost the link with its region of origin, which from 1990 on stimulated the search for alternative valorization of the origin and of family-based and agroecologically-based production. Research, conducted with producers of two local organizations from the lower Amazon aimed to identify initiatives to further re-territorialization of production, management practices and in situ conservation of the plant, as well as reactions to the dissemination of innovative forms of production and marketing. Starting from the hypothesis that different functional dynamics exist in each organization, we established that the producers’ relationships with the market, with traditional knowledge protection and with the plant itself evolved in different socio-historical trajectories. These trajectories resulted in different systems of socio-cultural, ecological and technological reference. Keywords: Guarana management. Brazilian Amazon. Family farming. Value chain. Collective organization. Territory.

TRICAUD, Solène; PINTON, Florence; PEREIRA, Henrique dos Santos. Saberes e práticas locais dos produtores de guaraná (Paullinia cupana Kunth var. sorbilis) do médio Amazonas: duas organizações locais frente à inovação. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 33-53, jan.-abr. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000100004. Autor para correspondência: Florence Pinton. Agroparistech/SADAPT, 16 rue Claude Bernard, 75231 Paris Cedex 05, France (florence. pinton@agroparistech.fr). Recebido em 29/01/2013 Aprovado em 23/03/2016

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Saberes e práticas locais dos produtores de guaraná (Paullinia cupana Kunth var. sorbilis) do médio Amazonas:

INTRODUÇÃO No quadro dos debates internacionais sobre o desenvolvimento sustentável e a conservação da biodiversidade houve uma reconsideração das populações locais e de seus saberes e práticas associados à gestão dos recursos naturais. A Convenção sobre a Diversidade Biológica (1992) traduz essa mudança de paradigma, ressaltando a importância dos Conhecimentos Tradicionais Associados (CTA) dessas populações para a conservação e a renovação da biodiversidade selvagem ou cultivada. Para pôr um fim ao processo de extinção da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados, a convenção sugere o desenvolvimento de mercados baseados na sua promoção (Aubertin et al., 2007). Aparecem, então, mecanismos de diversificação da oferta de produtos agrícolas e de desenvolvimento dos territórios, inspirados nos modelos europeus e apoiados pelas políticas de desenvolvimento sustentável (Boisvert e Caron, 2007; Cerdan e Vitrolles, 2008; Cerdan e Sautier, 2003; Niederle, 2013). Trata-se de selos e certificações que valorizam critérios ambientais (agricultura orgânica, gestão sustentável dos ecossistemas), nutricionais, sociais, econômicos (comércio solidário) ou, ainda, especificidades territoriais (indicação geográfica). Estes movimentos têm lugar em um contexto no qual a participação de cidadãos na definição das políticas públicas é afirmada na Constituição Federal de 1988 e na implementação de instrumentos de territorialização da ação pública que institucionalizaram o debate participativo em todos os territórios. A criação de territórios da cidadania1 em 2008 (Witkoski et al., 2012), como novo espaço de ação pública, faz parte da renovação do exercício democrático. Esse arranjo de governança local

pode romper com as políticas tradicionais e combater com maior eficácia a pobreza e as desigualdades sociais, apoiando o desenvolvimento territorial. A descentralização administrativa e política valoriza o papel estratégico da esfera local na adaptação frente à globalização (Pecqueur, 2005). Embora seja frequentemente parte de uma rede de relações pré-existente, a governança local também pode promover a criação de novos “coletivos”, empenhados na promoção de recursos específicos que identificam os agentes locais em questão (Billaud, 20142). Neste contexto, propomos, a seguir, os diferentes caminhos para atualizar uma planta de origem amazônica, o guaraná (Paullinia cupana Kunth var. sorbilis), cuja produção está associada principalmente ao território da cidadania do baixo Amazonas. Planta mítica para a etnia Sateré-Mawé – que a descobriu e iniciou o seu cultivo há cerca de mil anos –, o guaraná se espalhou ao longo dos séculos aos produtores rurais da região amazônica e do resto do Brasil (Lorenz, 1992). É cultivada pelas suas sementes estimulantes. O artigo apresenta um estudo em duas comunidades de agricultores familiares não indígenas, produtoras de guaraná, localizadas na região do médio Amazonas: a Associação dos Produtores do Rio Maués (APRORIM)3, do município de Maués, região de produção tradicional do guaraná, e a Cooperativa dos Produtores de Urucará (COOPAM), onde a planta foi introduzida. Estas organizações estão inseridas em cadeias alternativas de certificação socioambiental, em contraposição ao monopólio da multinacional American Beverage (AMBEV), que compra toneladas de guaraná no mercado regional. O objetivo do nosso estudo foi examinar o futuro dessas agriculturas familiares4 na região e sua capacidade de permanecer em um território onde estão

Os territórios da cidadania foram criados por meio de um programa de ação pública, em 2008, para promover o desenvolvimento das zonas rurais, identificadas como as mais pobres do país (IBGE, 2009). 2 BILLAUD, J.-P. L’utopie de la citoyenneté à l’épreuve d’un référentiel de politique publique, celui de la lutte contre la pauvreté et les inégalités. Paris, document de travail, 2014. 3 Os nomes da associação e da cooperativa foram alterados pelos autores. 4 A categoria “agricultura familiar”, difundida no Brasil sobretudo a partir da implantação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), refere-se à constituição de um setor de agricultores não patronais e não latifundiários, que exercitam formas próprias de viver e trabalhar, e, mesmo sob condições de produção restritas, estaria mais integrado às cidades e aos mercados (Wanderley, 2014). 1

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localizadas uma poderosa multinacional e uma organização de pesquisa pública reconhecida. A pesquisa, realizada em 2011, analisou as transformações dos sistemas de gestão e de manejo do guaraná e as percepções sobre o cultivo da planta frente às tentativas de modernização das práticas e à chegada dos conceitos de desenvolvimento sustentável. Consideramos essas transformações como inovações territoriais5 que se apoiam em ações cujo objetivo é uma gestão local da produção e comercialização do guaraná. Busca-se entender quais são as formas de atividades individuais e coletivas favoráveis a esse processo. Prestou-se atenção especial às consequências das transformações ocorridas sobre a gestão da diversidade genética do guaraná. As observações

sobre as práticas de renovação dos pés de guaraná foram confrontadas às estratégias coletivas de apropriação da planta6, mediante a adoção de dispositivos de valorização de práticas sustentáveis, tais como a certificação biológica, o comércio justo e a indicação geográfica. Após apresentar a metodologia do trabalho de campo e o contexto de criação das duas organizações de produtores pesquisadas, estudou-se o universo político e econômico dos atores da produção de guaraná. Em seguida, foram detalhadas as cadeias alternativas de produção das duas organizações, para, finalmente, confrontar-se as práticas individuais e coletivas com os desafios da agricultura familiar no Brasil. A localização dos municípios estudados é apresentada na Figura 1.

Figura 1. Localização da área de estudo (adaptado de Filoche e Pinton, 2014).

Vinculada a uma intencionalidade de mudança, a inovação remete ao processo de emergência do que é novo e a seu reconhecimento no meio de um grupo social (Fontan, 2004). 6 Com o advento da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), as práticas agroecológicas e os conhecimentos tradicionais associados são valorizados pelos seus papéis na conservação dos recursos genéticos, no entanto, cabe aos Estados assegurarem instrumentos adequados para a proteção desses patrimônios (Aubertin et al., 2007). 5

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METODOLOGIA A pesquisa está pautada em abordagens quantitativas, qualitativas e comparativas sobre os processos de qualificação do guaraná, segundo diferentes níveis de percepção: o do produtor, o da organização de produtores (OP), assim como o das instituições que gravitam em torno dessas organizações. O objetivo principal foi destacar, em reuniões, seminários e durante as estadas nas comunidades, as características territoriais relacionadas ao cultivo do guaraná, bem como a diversidade de práticas e representações dos atores. Por isso, foi escolhida a escala local para se compreender os sistemas agrícolas e as formas de valorização e apropriação do guaraná7. Entrevistas semiestruturadas e observações participativas foram utilizadas como técnica de investigação, por permitirem o acompanhamento, de modo mais próximo, do cotidiano dos agricultores e de suas famílias e possibilitarem uma inserção mais densa nas práticas e representações vivenciadas pelos agricultores (Correia, 2009). Considerando-se os sistemas produtivos como construções sociais e biológicas, realizou-se a

pesquisa a partir da sociologia rural e da agronomia. O enfoque aproxima-se também da etnobotânica (Diegues, 2014), porém não foi o propósito da análise e da discussão dos resultados8. A APRORIM é uma associação criada em 1994 para captar recursos do Fundo Constitucional de Financiamento do Norte (FNO), enquanto a COOPAM, como cooperativa, é o resultado de um processo demorado de maturação. Além dessas diferenças organizacionais (Tabela 1), ligadas às histórias e estratégias diferentes, as duas estão inseridas em cadeias alternativas de produção de guaraná através de processos de certificações socioambientais (produção orgânica e comércio solidário). Em um primeiro momento, em março de 2011, a proposta do estudo foi apresentada às organizações em Urucará e Maués, a fim de se obter a anuência das lideranças. Em seguida, foram realizadas as entrevistas e visitas aos plantios, durante um primeiro período em Maués e em um segundo em Urucará. A pesquisa totalizou trinta e uma entrevistas e visitas em vinte guaranazais, em três comunidades de Maués e seis comunidades de Urucará.

Tabela 1. Características das organizações de produtores estudadas. Legendas: 1 = certificadoras; IBD = Instituto Biodinâmico; EcoCert Brasil = vinculada à EcoCert France. Maués Associação dos Produtores do Rio Maués

Urucará Cooperativa dos Produtores de Urucará

Estatuto

Associação

Cooperativa

Ano de criação

1994

2001

Número de sócios em 2011

210

50

Número de entrevistados

17

13

Mecanismos de valorização da produção Certificação biológica

IBD1; em 2008; não renovada

EcoCert1; desde 2007

Comércio justo e solidário

-

EcoCert; não renovada

Os resultados juntam-se às conclusões dos programas franco-brasileiros PACTA 3 - “Populações, agrobiodiversidade e conhecimentos tradicionais associados” e BIOTEK - “Novas formas de socialização dos recursos biológicos, biotecnologia e gestão participativa da biodiversidade”. 8 A pesquisa foi objeto de uma dissertação de mestrado, o qual foi realizado no Museu Nacional de História Natural, em Paris, em colaboração com AgroParisTech (Master “Environnement, Développement, Territoires et Sociétés”, Paris, France) e o Centro de Ciências do Ambiente da Universidade Federal do Amazonas (CCA/UFAM). 7

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Utilizaremos o termo agricultores familiares para designar os produtores de guaraná de Maués e Urucará e para diferenciá-los dos agricultores indígenas representados neste estudo de caso pelos Sateré-Mawé. Os agricultores entrevistados foram indicados pelos seus representantes com o objetivo de se ter uma representatividade dos seguintes critérios: produção anual de guaraná ou abandono do plantio; idade do produtor; grau de importância do guaraná no sistema de produção (área de cultivo, acesso a créditos e renda); inscrição em processo de certificação; ano de ingresso na organização de produtores e grau de participação na organização. O roteiro das entrevistas tratou da história de vida do entrevistado (em especial, a origem dos conhecimentos relativos à gestão da planta), do sistema de produção e de cultivo (destacando-se o modo de renovação/restauração/substituição dos pés de guaraná), das formas de beneficiamento e comercialização, da relação com a OP e da assistência técnica. Salientaramse, nas falas dos produtores, as referências socioculturais, ecológicas e institucionais usadas no manejo e relativas à percepção da planta. Para a entrevista com as lideranças das OP, focalizou-se no funcionamento da organização, nas estratégias e nas redes internas e externas. As pesquisas de campo começaram em maio de 2011. Além das entrevistas com os produtores, buscaramse informações sobre a atuação das organizações governamentais e empresariais que têm um papel importante nas cadeias de produção do guaraná: a Secretaria de Produção Rural do Amazonas (SEPROR), o Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Amazonas (IDAM), o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), a empresa American Beverage (AMBEV), a Fundação Centro de Análise, Pesquisa e Inovação Tecnológica (FUCAPI) e o Banco da Amazônia (BASA). A última viagem para

campo aconteceu em dezembro de 2011, para apresentar e discutir os resultados com os representantes das duas organizações de produtores, os entrevistados e outros integrantes das organizações.

GÊNESE DE DUAS ORGANIZAÇÕES DE PRODUTORES: ENTRE A HERANÇA DO ‘CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO’ E OS MODELOS DE MODERNIZAÇÃO DA AGRICULTURA A comunidade do rio Maués9 localiza-se, de barco, a vinte minutos da cidade de Maués. Quinze famílias moram no núcleo da comunidade, dividindo um espaço comum que se organiza no entorno da igreja, do centro social e da escola. A comunidade conta também com outras famílias que vivem em terras mais ou menos afastadas do centro, acessíveis a pé ou por meio de barco. À imagem do município, as produções de guaraná e de mandioca são os elementos principais do sistema de cultivo dos agricultores da comunidade. Os entrevistados reconhecem nos SateréMawé a origem do guaraná que eles plantam e consomem, o que aponta, de certa forma, para a origem indígena do seu conhecimento. Assim, eles formaram durante muitos anos os seus plantios de guaraná apenas com mudas nativas coletadas na floresta, à imagem dos Sateré-Mawé e, por isso, foram também chamados de ‘produtores extrativistas’. Além de produzir guaraná, os agricultores de rio Maués costumam consumi-lo diariamente e usá-lo em várias preparações medicinais. As práticas de produção são transmitidas no núcleo familiar e comunitário: “é a nossa origem, aprendemos pequenos”, conta um produtor. Por outro lado, a mitologia Sateré-Mawé10 parece pouco conhecida nas comunidades, onde é apenas popularizada através da Festa do Guaraná. Organizada pela prefeitura e patrocinada pela empresa Antártica desde 1979, a festa atrai a cada ano numerosos turistas para a cidade de Maués.

O nome da comunidade foi alterado pelos autores. A planta representa a origem do conhecimento e tem um lugar central na cosmogonia Sateré-Mawé (Lorenz, 1992; Figueroa, 1997).

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A história do município de Maués é ritmada por repetidos conflitos fundiários entre grandes patrões, comunidades caboclas e indígenas. Os patrões, além de apossarem-se de grandes extensões de terras, dominaram inicialmente o comércio de produtos extrativistas (principalmente da seringueira – Hevea sp. – e do paurosa – Aniba rosaeodora Ducke) e passaram, a seguir, a controlar o comércio do guaraná, mantendo, assim, seu poder econômico e político no município (Aubertin, 1996; Emperaire e Pinton, 1999). É somente através da ação do sindicato dos trabalhadores rurais que os caboclos11 conseguiram fazer valer os seus direitos nas décadas de 80 e 90. Em paralelo, querendo impulsionar o desenvolvimento da agricultura familiar no município, a prefeitura, a SEPROR e os serviços de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) incentivaram a criação de associações de produtores, para se beneficiarem do apoio financeiro do FNO, pilar dos pacotes tecnológicos. A APRORIM surge, então, em 1994, entre as treze organizações criadas nessa data, tendo no cargo de presidente uma liderança que já tinha o papel de mediador entre as autoridades e a comunidade. Ela agrega rapidamente pessoas das outras comunidades interessadas em receber créditos. Em 2011, a APRORIM contava com 210 sócios, divididos entre a comunidade do rio Maués e 24 outras comunidades da região. Os primeiros colonos que se instalaram em Urucará no início do século XX viviam na várzea. As terras firmes da região ainda estavam pouco colonizadas, porém bastante exploradas para extração de madeira e de produtos, como a borracha, o óleo de copaíba, a castanha etc. (Carneiro Filho, 1996). Dependentes dos patrões, os ribeirinhos viviam da caça, da agricultura de várzea e do extrativismo, trocando os produtos florestais não madeireiros por mercadorias. A partir dos anos 30, a maioria as comunidades da região

do médio Amazonas passou a cultivar a juta (Corchorus capsularis L.), cuja fibra era usada na fabricação de sacarias para armazenamento de produtos agrícolas, notadamente, do café (Pantoja, 2005). Após a introdução da fibra sintética e da consequente queda do mercado da juta, as famílias que dependiam dessa atividade voltaram a viver somente das atividades agroextrativistas. Frente às difíceis condições de vida na várzea, missionários vindos da Itália trabalharam junto aos ribeirinhos na criação de comunidades de base12 em terra firme. Entre 1970 e 1980, 37 colônias agrícolas foram criadas a partir dessas comunidades em terras devolutas. Construídas em círculo a partir de um núcleo onde ficam as casas, a igreja e a escola, as colônias são planejadas em uma divisão igualitária da terra, seguindo um modelo de essência coletiva. A obtenção dos títulos de propriedade das terras aconteceu no início dos anos 80, pouco tempo depois da demarcação, através de uma “reforma agrária pacífica”, como mencionado pelas lideranças. Querendo priorizar a formação agrícola das famílias, os voluntários, a igreja, as autoridades locais e os novos agricultores juntaram-se e criaram, em 1972, o Centro de Treinamento Rural de Urucará (CETRU), no qual os técnicos são os próprios missionários. Quatro anos depois foi criado o Núcleo de Treinamento Intensivo (NTI), que ofereceu um ensino técnico agrícola para os jovens, além de ser uma escola de ensino fundamental. Os técnicos do CETRU trouxeram as primeiras sementes de guaraná de Maués em Urucará, em 1973, cientes do potencial de valorização da planta. Após a criação de mudas no viveiro da instituição, alguns produtores interessados plantaram um a dois hectares em seus lotes, orientados pelos técnicos que foram em Maués e fazendo as suas próprias experimentações.

O termo ‘caboclos’ refere-se aos descendentes mestiços de índios e colonos europeus, porém as suas características ultrapassam essa mera origem (Grenand e Grenand, 1990) e agregam dimensões sociogeográficas. Eles são considerados aqui como ‘pequenos produtores’, suscetíveis de se juntarem aos agricultores familiares (ver Wanderley, 2003). 12 As comunidades eclesiais de base são ligadas à Igreja Católica que, incentivadas pela Teologia da Libertação, se espalharam principalmente nos anos 1970 e 1980 no Brasil, durante a ditadura militar (Burdick, 1996). 11

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Segundo os entrevistados, naquela época, os agricultores “não estudavam”, mas sabiam “trabalhar com a terra” e é a partir desses conhecimentos locais, complementados pelos conhecimentos dos técnicos do CETRU e da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Amazonas (EMATER) 13, que se fortaleceram as práticas locais de produção do guaraná. Nesse sentindo, o NTI foi fundamental. Formando mais de 2 000 alunos, a instituição trouxe um ensino técnico sobre agricultura, pecuária e artesanato para os jovens, com o intuito de combater o êxodo rural. Incentivados a colocar na prática os aprendizados nos plantios da família, confrontações aparecem entre os filhos e os pais, que, por exemplo, ‘dificilmente acreditavam’ no efeito benéfico da poda do guaranazeiro. A geração que passou pelo NTI teve um novo olhar sobre as práticas dos pais: “desde que eu era pequeno, vi meu pai trabalhar somente daquele jeito e não funcionava. Roçamos tantas vezes, fizemos tantas roças com o nosso pai. (…) Quero trabalhar do meu jeito”. Apesar do sucesso dos plantios de guaraná, os produtores tornaram-se dependentes do monopólio da AMBEV, que ditava o preço do mercado, o que não favorecia a agregação de valor ao produto. Os voluntários italianos, “como portadores de um projeto pedagógico de libertação da população do jugo dos agentes da circulação mercantil” (Neves, 2009), incentivaram a organização dos produtores para libertá-los dos atravessadores e da AMBEV. Associando-se a uma cooperativa já existente em Urucará, eles conseguiram criar uma marca e vender uma safra para um comprador da Itália em 1996, nas modalidades do comércio sustentável. Porém, devido às divergências de opiniões entre os cooperados, o projeto foi descontinuado. Dois anos mais tarde, em 1998, o CETRU e o NTI pararam de funcionar junto com os projetos governamentais, que, até essa data, apoiavam financeiramente as duas iniciativas. Conflitos políticos impediram de salvar as instituições e

até hoje parecem bloquear qualquer tentativa de ensino técnico agrícola. Apesar da saída dos missionários e do fim dos centros de ensino, as comunidades ainda permanecem com os valores de organização social e de libertação trazidos pelos missionários. A criação de uma cooperativa em 2001 apareceu como a continuação lógica do caminho percorrido pelos produtores desde os anos setenta. Graças a uma viagem pela Itália, em 1999, os futuros fundadores da COOPAM familiarizaram-se com o cooperativismo e passaram a conhecer as oportunidades criadas pelas certificações socioambientais nos mercados europeus. Apoiados pela Organização das Cooperativas do Brasil (OCB), alguns agricultores, verdadeiras lideranças, mobilizam 29 parceiros e criaram a Cooperativa dos Produtores de Urucará. Instalada no antigo CETRU, na periferia da cidade de Urucará, a cooperativa contava, em 2011, com 50 cooperados e trabalhava com mais de 100 produtores, tendo como missão a valorização do guaraná.

A DIFUSÃO DE VARIEDADES MELHORADAS COMO FERRAMENTA DE MODERNIZAÇÃO DOS SISTEMAS AGRÍCOLAS TRADICIONAIS O processo de modernização da produção de guaraná iniciou-se em 1921, com a criação de um refrigerante, o ‘Guaraná Antártica’. A rápida difusão do consumo da bebida em escala nacional incentivou a proprietária da marca a se instalar em Maués nos anos quarenta, onde ela comprou, em 1971, uma fazenda de mil hectares, iniciando um projeto de melhoramento da produção de guaraná, em parceria com um segundo ator econômico importante, a EMBRAPA. O objetivo da Antártica era distribuir variedades melhoradas aos produtores da região, para poder comprar grandes quantidades de frutos a baixo custo (Pinton, 2010). Em paralelo à criação de duas unidades de pesquisa da EMBRAPA no Amazonas, sendo uma em Maués dedicada à pesquisa experimental em condições de campo,

A EMATER foi criada em 1977 como agência oficial de Assistência Técnica e Extensão Rural. Após uma série de mudanças, ela se tornou, em 2007, o Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável (IDAM) (IDAM, s.d.).

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a empresa de pesquisa pôde dedicar-se ao seu intuito de modernização da produção, pela criação e difusão de cultivares14 de guaraná com o lançamento do seu programa de “melhoramento genético do guaranazeiro”, em 1976. A partir de um material coletado desde os anos 50 na região de Maués, variedades foram sendo desenvolvidas por reprodução sexuada e, a partir dos anos oitenta, multiplicadas por reprodução vegetativa, técnica também chamada de estaquia ou clonagem (Atroch et al., 2009)15. Desde 1998, a EMBRAPA criou e disponibilizou 19 cultivares16. Os critérios de seleção referem-se à produtividade (em termos de quantidade e estabilidade ao longo do tempo) e à resistência às principais doenças17, com o objetivo de aumentar a produção por hectare e, consequentemente, diminuir a taxa de desmatamento. A produtividade nas comunidades é considerada baixa pelos agrônomos e técnicos, em decorrência da não renovação dos pés de mais de 25 anos, do uso de material não selecionado, da densidade insuficiente dos plantios, da ausência de podas e dos problemas fitossanitários. Para incentivar a adoção dessas tecnologias pelos produtores que não podiam comprar as mudas, foram criados programas de créditos específicos pelos bancos, associados à adoção de práticas de cultivo prescritas em ‘pacotes tecnológicos’. Eles visavam à implantação do plantio de guaraná consorciado com a mandioca nos

dois primeiros anos. O produtor receberia diretamente as variedades melhoradas dos viveiros credenciados pela EMBRAPA, os insumos químicos das lojas agropecuárias e a assistência técnica através da SEPROR e do IDAM. Para as diferentes etapas do cultivo, parcelas eram liberadas diretamente para o produtor, e um técnico fazia a vistoria do seu trabalho. Após quatro anos de plantio, o produtor começaria a reembolsar o banco. Para obtenção do empréstimo, o produtor precisaria realizar um projeto de vida e um projeto técnico, ter anuência do sindicato dos trabalhadores rurais, estar cadastrado em uma estrutura associativa etc. O trabalho de pesquisa da EMBRAPA contribuiu também par o desenvolvimento da cutura fora da região. Assim, a desterritorialização da produção do guaraná, iniciada no começo do século XX (Monteiro, 1965), acelerou-se: com o aperfeiçoamento da produção em monocultivos, os estados do Acre, Rondônia, Mato Grosso e Bahia passaram a abastecer, com abundância, os mercados nacionais e internacionais18. Hoje, a EMBRAPA alega possuir o maior banco genético de guaraná e as ‘provas cientificas’ da sua qualidade de melhorista (programa de melhoramento, protocolos, publicações etc.), necessárias para proteger os direitos do melhorista mediante registro desses cultivares no Registro Nacional de Cultivares19.

Um cultivar é uma variedade selecionada e melhorada que seja claramente distinguível de outros cultivares conhecidos e que seja homogêneo e estável através de gerações sucessivas. 15 A expressão fenotípica dos caracteres do guaraná varia muito entre a matriz e as plantas descendentes por reprodução sexuada. Em consequência, os pés oriundos das sementes de clones não necessariamente herdam das características que foram fixadas nos clones. 16 A EMBRAPA registrou os 19 cultivares no Registro Nacional de Cultivares, necessário para a produção, o beneficiamento e a comercialização de sementes e mudas. Para proteger o cultivar e obter direitos de propriedade, é preciso registrá-lo no Serviço Nacional de Proteção de Cultivares, o que a EMBRAPA fez com seis destes, entre 2011 e 2012. 17 As doenças são a antracnose e o superbrotamento, cujos vetores são os fungos Colletotrichum guaranicola e Fusarium decemcellulare. O guaraná sofre também ataques do inseto Liothrips adisi. 18 Em 2001, 24 clones da EMBRAPA foram introduzidos na região da Mata Atlântica na Bahia e permitiram ao estado tornar-se o maior produtor de guaraná do país. Segundo os dados do IBGE (s.d.), a Bahia foi responsável por 58% da produção nacional em 2009, e 73% em 2011. 19 Para proteger os resultados das pesquisas agronômicas, o governo brasileiro aderiu, a partir de 1999, ao sistema da União Internacional para a Proteção de Cultivares (UPOV), após ter aprovado a lei federal de proteção de cultivares, que foi complementada, em 2002, pela lei de semestes e mudas e pela criação do Registro Nacional de Cultivares (RNC), onde todas as novas variedades devem ser inscritas para poderem ser legalmente comercializadas (Filoche e Pinton, 2014; Santilli, 2009). As cultivares obtidas em estações de pesquisa são de propriedade de seus obtentores. 14

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Desde a sua implementação na região, a estratégia da Antártica foi levar variedades melhoradas e orientação técnica para os produtores em troca da compra da totalidade da sua safra. Até os anos 1990, a empresa focou na melhoria de sua linha de produção. Sua atividade dupla (produção e industrialização da matéria-prima) permitiu a ela o controle da cadeia produtiva, fazendo com que se tornasse o principal comprador de guaraná produzido localmente. Tal poderoso ator econômico no território de Maués influenciou fortemente os políticos locais, que pretendiam divulgar a região de Maués, terra natal da planta, como a capital mundial do guaraná. Um evento anual, chamado de ‘o dia do guaraná’, cujo principal financiador era a empresa, foi organizado. Os produtores eram convidados a visitar a fazenda da empresa e seus 400 hectares de plantios, apresentados como um modelo de sistema de cultivo. Apesar de chegar a distribuir 60 mil mudas por ano, a lógica extensionista top down utilizada pela empresa não teve uma boa aceitação por parte dos agricultores. A compra da Antártica em 1998 pela multinacional American Beverage e o programa de desenvolvimento do governo do estado do Amazonas “Zona Franca Verde”20, destinado a estimular o desenvolvimento rural com base na valorização de seus recursos naturais, surgiram como oportunidades para mudanças nas estratégias de difusão da tecnologia de modernização da produção do guaraná. A AMBEV pretendia ser reconhecida em nível internacional como uma empresa socialmente e ambientalmente responsável. No contrato que a multinacional assinou com o estado do Amazonas, em 2003, a empresa compromete-se a investir 61 milhões de reais em projetos sociais e agrícolas no município de Maués. Em 2008, foi criado o ‘programa de excelência do guaraná’, o qual recompensa com material agrícola os produtores que obtiveram a melhor safra, lembrando as feiras agrícolas controladas pela elite rural.

Configurando-se durante muito tempo como o maior produtor de guaraná do Brasil, o município de Maués vê sua produção minguar e os investimentos destinados a intensificar a produção local fracassarem. Na visão dos atores dominantes, esse fracasso se deve principalmente à incapacidade dos agricultores familiares de adotarem as inovações tecnológicas que lhes foram propostas e de tornarem seus sistemas de produção uma agricultura familiar dinâmica. As ações de pesquisa e extensão rural procuram a modernização das formas de produção que devem passar pela adoção da inovação tecnológica, seguindo modelos de inovação descendente e que ignoram tanto as práticas locais como o papel das organizações locais sobre a atitude do agricultor (Darré, 1999). Pode-se supor que o modelo de introdução da inovação tecnológica não convenceu os agricultores, pouco familiarizados com as modificações propostas pelos pacotes tecnológicos modernizantes e, sobretudo, negligenciados no próprio processo de inovação, pois são considerados como simples usuários passivos da tecnologia. Com o intuito de convencê-los, a EMBRAPA criou os ‘dias de campo’, estratégia similar à da AMBEV, onde são realizadas visitas às unidades demonstrativas, que são plantios-modelo implementados nas áreas de alguns agricultores, como experimentos pilotos em escala. Por outro lado, a instituição de pesquisa analisa os impactos do uso dos clones e elabora o sistema de avaliação dos impactos ambientais da inovação tecnológica (por meio da empresa Ambitec), baseada em enquetes socioeconômicas e ambientais junto aos produtores. A difusão das variedades melhoradas, como quadro de referência para a modernização, enfrentou recentemente mudanças de paradigmas (requalificação dos saberes locais, reconhecimento do seu papel na conservação, renovação da diversidade agrícola e a

Denominação do programa do governo do estado do Amazonas (2003-2007), que propunha a interiorização do desenvolvimento econômico com base na exploração econômica de base agroflorestal para equilibrar o modelo concentrador e urbano ao modelo da Zona Franca de Manaus (Araújo e Paula, 2009).

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territorialização da ação pública) que impulsionaram os atores da pesquisa agronômica e da assistência técnica a adaptarem suas estratégias à realidade dos agricultores. Estas novas estruturas conceituais também promovem a difusão de sistemas de recuperação dos recursos locais e de práticas sustentáveis. A decentralização das políticas públicas relacionadas com a promoção do ‘desenvolvimento territorial sustentável’ estimulou o surgimento de novos atores interessados no guaraná, que vão desafiar a abordagem modernizadora em favor das tentativas de reterritorialização da produção. Essas iniciativas coincidem com o lançamento, pelo governo federal, do programa ‘Territórios da Cidadania’, incluindo o território do baixo Amazonas (Caniello et al., 2013), que engloba todos os municípios produtores de guaraná e terra indígena dos Sateré-Mawé21 (Figura 2).

A valorização do guaraná é percebida como uma ferramenta de desenvolvimento potencial para este ‘território’. Neste contexto, e com o financiamento do programa, são desenvolvidos projetos de Indicações Geográficas (IG)22 pelo SEBRAE e pela FUCAPI para o guaraná de Maués. Os agricultores têm que adequar suas práticas de manejo do ambiente e da produção a novos mecanismos que visam à preservação do meio ambiente e à valorização das suas práticas e saberes, apropriando-se ou não das ferramentas e aproveitando as oportunidades. Eles se tornam potencialmente atores coletivos da mudança. Os reflexos locais desse fenômeno na produção do guaraná em Maués e Urucará se fez sentir a partir das mudanças nas práticas de cultivo e de valorização do saber local adotadas pela COOPAM e pela APRORIM.

Figura 2. Os municípios do território da cidadania do baixo Amazonas (adaptado de PTDRS, 2011, p. 17). Não serão abordados neste artigo os projetos referentes aos Sateré-Mawé, que serão objeto de próximas publicações. Adotados pelo Brasil em 2004, as IG existem sob duas formas – indicação de procedência (IP) e denominação de origem (DO). Menos restritiva, a IP garante uma origem geográfica controlada do produto e permite proteger o uso do nome da localidade. A atribuição das IG são feitas sob o controle do Instituo Nacional de Propriedade Industrial (INPI).

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O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DAS CADEIAS DE PRODUÇÃO ALTERNATIVAS NA ‘TERRA DO GUARANÁ’ EM MAUÉS E A EMANCIPAÇÃO DOS PRODUTORES DE URUCARÁ Logo após a sua criação, em 1994, a APRORIM serviu de canal para solicitação de créditos voltados ao plantio consorciado de guaraná com mandioca. No entanto, os pacotes tecnológicos apoiavam-se em estruturas incapazes de assegurar o seu bom funcionamento frente à diversidade social e geográfica do município. Os serviços de ATER (SEPROR e IDAM) sofrem da falta de recursos técnicos e humanos, que não permite atender as 18023 comunidades espalhadas no município. A lógica top down da extensão rural, que se traduz pela exclusão do agricultor do processo de inovação, fez com que poucos produtores se apropriassem das variedades melhoradas e dos itinerários técnicos associados. Na comunidade do rio Maués, houve tentativas sem sucesso de estadia do técnico. Dificuldades na gestão das associações, conflitos e manipulações políticas tornaram o quadro complexo e contribuíram para a crise deste processo de mudança. Em consequência, observou-se o endividamento da maioria dos agricultores que conseguiram créditos em 1994 e 2004. Em 2011, cerca de 70% dos produtores do município de Maués endividados eram inadimplentes, segundo o Banco da Amazônia (comunicação pessoal de um representante do BASA). A intervenção de novos atores veio a redinamizar a cadeia de produção no município, com a introdução dos princípios da agricultura biológica, em expansão no Brasil. A intervenção também reflete a emergência de formas privadas de iniciativas que concorrem com as das instituições públicas (Mutersbaugh, 2005; Bartley, 2007), embora essas últimas sempre procurem regular as primeiras. A agricultura biológica é definida como um sistema de produção com

baixo impacto ecológico, excluindo os fertilizantes, produtos químicos solúveis e os agrotóxicos. Em 2007, o Brasil apresentou um crescimento das áreas certificadas entre 50 e 60% ao ano e uma área total de 6 milhões de hectares (Apex, Brasil, 2007)24. No entanto, a agricultura orgânica continua subdesenvolvida na Amazônia: as condições para o seu exercício são mais complexas do que em outros lugares (falta de capacitação e organização dos produtores, falta de infraestruturas etc.) e as condições de comercialização são difíceis (Blanc e Kledal, 2012). Em 2002, no quadro do programa do governo do Amazonas de apoio às exportações, a FUCAPI organizou, pela primeira vez, formações voltadas aos agricultores (seminários e cursos) sobre agroecologia, apicultura e processos de certificação socioambiental. O projeto não fugia dos objetivos de modernização da produção, porém considerou aparentemente as especificidades locais. Nesse sentido, vale ressaltar a criação pela FUCAPI de despolpadora e descascadora adaptadas aos produtores para reforçar a sua independência frente às agroindústrias. O SEBRAE também realizou oficinas de higiene e de boas práticas de fabricação. O objetivo era ajustar o produto às exigências dos mercados internacionais, em específico, os europeus e japoneses. A APRORIM foi um canal para realização de cursos e formações que foram bem recebidos pelos produtores e permitiram a certificação de alguns deles. Em 2003, vendeu seu guaraná para a Europa no comércio solidário. Cinco anos depois, em 2008, quinze produtores da APRORIM e de outra associação local receberam a certificação orgânica da certificadora IMO Brasil. Após dois anos de certificação orgânica exitosa do guaraná, não houve renovação do processo por falta de caixa, devido à má gestão financeira da associação. Além disso, ocorreu certa estagnação da associação pela difícil renovação da diretoria.

Levantamento do IDAM, de 2011. Prova da importância desse tema, foi publicado, em outubro de 2012, o decreto nº 7.794, que instituiu a “política nacional de agroecologia e produção orgânica”.

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A própria história de criação da associação, que não surgiu da mobilização coletiva, traz elementos essenciais à compreensão da sua situação atual. Os empréstimos individuais conduziram a responsabilidades e dívidas coletivas: a APRORIM não pode receber financiamentos enquanto os seus membros estão endividados. Além disso, a liberação das parcelas do empréstimo só acontece quando é comprovado que todos os produtores plantaram as mudas recebidas no ‘pacote’. Criam-se tensões e bloqueios para a continuidade dos projetos da associação (por exemplo, a certificação), além de uma forte descrença nas estruturas associativas. As autoridades explicam este fracasso pela suposta resistência dos agricultores à inovação, caracterizando as suas práticas como ‘tradicionais’. No entanto, nossa pesquisa constatou transformações significativas nas técnicas de plantios e na relação com a planta, devido à interação entre produtores e os técnicos extensionistas dos serviços locais ou de fora da região, tais como os da EMBRAPA, AMBEV, SEPROR, FUCAPI, SEBRAE e mesmo da Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GTZ)25. Os entrevistados descrevem práticas experimentadas e adotadas, como o aumento da densidade de plantio (de 100 pés por hectare para 400), novas técnicas de assombreamento da muda, adoção da cobertura vegetal do solo etc. Como explica um produtor: “cada técnica que aparece, a gente aprende uma coisa”. Algumas técnicas são recusadas ou dificilmente aplicadas, como a renovação dos pés de guaraná de mais de 40 anos e as podas, que, segundo alguns entrevistados, “tiram a força do guaraná”. No caso dos insumos químicos, numerosos produtores explicam que não foram adotados por causa dos fracassos observados com o mau uso dos produtos: “ninguém aprendeu bem como fazer o adubo”. Mais tarde, a nova orientação técnica baseada na agroecologia fortaleceu essas práticas: “essa coisa de química eu nunca aceitei, sempre fui contra”.

A APRORIM, através da qual foram organizados cursos e formações, não foi citada como referência nos discursos dos entrevistados, pois não socializou técnicas ou conceitos, fontes de inovações. Foi ressaltado o caso de uma liderança, já falecida, que ‘encorajava’ os produtores a trocar conhecimento para criar a inovação, realizando demonstrações de diferentes itinerários técnicos no seu plantio, proporcionando a aprendizagem e a experimentação. Não foi citada outra iniciativa parecida onde há trocas de informações e experimentações sobre técnicas de produção. A má reputação dos serviços de ATER e a ausência de um projeto coletivo freiam a participação e inscrição dos produtores em tais iniciativas, enquanto a falta de uma organização social estruturada torna o processo mais lento e difícil. Da mesma forma, a integração da maioria de produtores nas dinâmicas do desenvolvimento sustentável foi comprometida. O projeto de Indicação Geográfica (IG) para o guaraná de Maués que surgiu em 2008 desafia também a capacidade dos agricultores de se organizarem para a requalificação dos seus saberes sobre a gestão da planta e do território. O primeiro projeto desse tipo para a região norte trata-se de um projeto político da prefeitura, que visa também destacar o produto e os seus derivados nos ‘nichos de mercados’. Por trás do selo, o município de Maués, que é o maior produtor do estado26, deseja assentar a sua reputação de terra de tradição do guaraná, e impedir o uso abusivo do seu nome nos mercados. O projeto de IG, que se beneficia de parcerias com o SEBRAE, a FUCAPI e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), além dos órgãos de ATER, visa a indicação de procedência, que valoriza as características do produto estreitamente ligadas à sua origem geográfica27. Após os seminários de sensibilização dos produtores feitos em 2008, houve, em 2011, a redação e a validação do protocolo de

GTZ, atual GIZ, agência de cooperação técnica internacional alemã. Com 54,9% da produção do estado do Amazonas (IBGE, 2009). 27 Os Sateré-Mawé, envolvidos no registro de uma denominação de origem (que salienta a originalidade dos fatores naturais e culturais no caráter específico do produto), recusaram a inscrição da Terra Indígena Andirá-Marau no projeto de Indicação Geográfica da região. 25 26

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produção do guaraná junto às famílias escolhidas para participar do lançamento da IG. Na ausência de uma cooperativa robusta para receber a indicação e controlar a aplicação do protocolo, foi criado um consórcio, que reúne uma cooperativa e seis associações, dentro das quais a APRORIM. Porém, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial responsável por esse processo que aplica direitos coletivos de propriedade intelectual sobre o produto não aprovou a liberação do selo, que deveria envolver mais de 500 guaranacultores. A partir do que foi observado na APRORIM, pode-se duvidar da adesão de um número tão grande de famílias ao projeto de Indicação Geográfica. Além de pertencer a um território, é necessário identificar-se com uma forma comum de produção e beneficiamento do guaraná. Como essa partilha pode acontecer no contexto de Maués, onde a lógica descendente dos projetos demostrou as suas falhas até hoje? Através do projeto de Indicação Geográfica, o SEPROR pretende ‘colocar o poder na mão do produtor’, porém essa intenção precisa ser traduzida por atividades de formação e acompanhamento, para proporcionar a apropriação pelos atores locais do projeto e dos direitos que ele desperta. Em princípio, a IG permitiria aos agricultores a independência do monopólio da AMBEV. Apesar dessas tentativas de agregação de valor e da existência da associação, em 2010 e 2011 os produtores da APRORIM venderam sua produção principalmente para essa empresa e para os atravessadores28. A cooperativa se posicionou desde o começo favoravelmente à promoção da agroecologia, apoiada em sua tradição de gestão democrática e participativa e antecipando as oportunidades de valorização que a transição agroecológica poderia trazer em termos de valorização e competitividade da produção. A cooperariva exportou o seu produto para Europa desde a sua criação, mas apenas em 2003 foi criada a marca ‘Guaraná Urucará’,

querendo, assim, valorizar e proteger o seu produto. O guaraná dos cooperados ainda precisa transitar por Manaus para ser moído, porém, em 2011, a COOPAM vislumbrou o projeto de criação de uma pequena agroindústria. Graças ao apoio da FUCAPI e do SEBRAE, que intervieram neste município assim como em Maués, e de um comprador francês, os produtores obtiveram a certificação orgânica e de comércio justo da EcoCert em 2007. Com o ingresso de um dos fundadores da cooperativa no IDAM, a instituição aderiu ao projeto da COOPAM e juntas combinaram os esforços para melhorar os sistemas de produção de base agroecológica. Como explica um ator-chave da cooperativa: “é preciso muita conversa para obter resultados e a mudança tem que surgir da experiência dos produtores”. Faz-se necessário repensar os modos de intervenção e adequar a prática do agricultor às teorias do técnico. No IDAM de Urucará, as concepções do desenvolvimento agrícola evoluem progressivamente e se transformam com a promoção dentro da instituição de um modelo de assistência técnica que valoriza a participação e o voluntariado. Com o apoio da FUCAPI, os sócios da cooperativa defendem um projeto pedagógico acerca da certificação orgânica e trabalham durante três anos para convencer os produtores e as instituições locais. Eles podem ser considerados como pioneiros pelo fato de defenderem pelo fato de defender um caminho ainda não promovido pelos ministérios brasileiros. Nesse sentindo, a cooperativa conseguiu negociar com o Banco do Brasil a exclusão dos insumos químicos dos pacotes tecnológicos, ou seja, assegurou para os produtores o acesso ao crédito e às variedades melhoradas, conservando as práticas locais de produção adicionadas às inovações agroecológicas. O IDAM e a COOPAM desenvolveram suas próprias técnicas de melhoramento de variedades, com a criação de um viveiro a partir de clones cedidos pela EMBRAPA. As atividades de mutirões continuam sendo incentivadas,

O projeto de IG de Maués seria reelaborado em 2012 pelo SEBRAE Amazonas, em parceria com o Ministério da Agricultura e com o apoio da prefeitura municipal.

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apesar de não constar no itinerário técnico no qual estão baseados os créditos. Hoje, a cooperativa possibilita a 70 produtores exportarem o guaraná com a certificação orgânica. A certificação ‘comércio justo’ foi cancelada em 2010 pelos altos custos anuais de renovação. A AMBEV, assim como a Coca-Cola, baseada em Manaus, ainda são importantes compradores para a cooperativa, que continua trabalhando em paralelo com produto não certificado. Em 2009 e 2010, eles foram os principais compradores, devido à crise financeira mundial que reduziu drasticamente as exportações da cooperativa. A COOPAM é portadora de um projeto de emancipação econômica e tecnológica dos agricultores, apoiando-se na ação coletiva. Apesar dos cooperados já terem sidos sensibilizados a esses conceitos pela sua própria história social, esses valores foram se enfraquecendo com o fim dos centros de ensino técnico e a absorção crescente dos valores capitalistas, que “atrofiaram as formas coletivas de organização do trabalho” (Fraxe et al., 2007). A mudança provocada pela cooperativa transparece nos discursos dos entrevistados: “[a cooperativa] abriu os olhos de muita gente”, “[antes] era cada um por si”, “trabalhar em sociedade é muito bom (...), depois a gente tem mais conhecimentos”. Fundada por uma liderança forte, a cooperativa socializa as informações e incentiva os agricultores a se tornarem parceiros e a agregarem mais produtores nessa caminhada. A COOPAM traz uma orientação técnica própria e visa manter a parceria com o IDAM. Segundo um entrevistado: “a cooperativa ajuda sempre. A gente busca eles, eles verificam, dão uma olhada”. Além da agregação de valor, busca-se conscientizar os produtores sobre questões de proteção do meio ambiente e cooperativismo, entre outros, para eles aderirem aos projetos de certificação socioambiental. Assim, existe incentivo ao uso do consórcio do guaraná com leguminosas, bem como o uso de biofertilizantes e de alternativas ao uso do fogo. A cooperativa quer capacitar o produtor sobre a gestão da

propriedade rural, seguindo o modelo do empreendedor rural (contabilidade, planejamento das produções etc.). Ela participa da divulgação das inovações, tanto tecnológicas como sociais, e da sensibilização das famílias sobre as problemáticas globais. Certa consciência da importância da ação coletiva aparece na fala de um produtor: “basta não seguir a regra e todo mundo é prejudicado”. Vista como uma organização pioneira no Brasil, a COOPAM assenta-se em um grupo de líderes e em uma rede de parceiros locais (OCB, IDAM, SEBRAE) e internacionais (compradores na Europa) que aderiram ao seu projeto. Diferenças nítidas foram observadas nos processos de estruturação das cadeias entre a APRORIM e a COOPAM, apesar de haver numerosos participantes em comum. As cadeias se distinguem, sobretudo em relação aos seus tempos de reação e atuação frente às mudanças e oportunidades que surgem, o que também foi observado quando se trata das práticas de gestão da planta, como será discutido a seguir.

PLANTAS NATIVAS, VARIEDADES MELHORADAS E CLONES: A HETEROGENEIDADE DAS PRÁTICAS DE RENOVAÇÃO DOS PÉS DE GUARANÁ O guaranacultor faz o manejo da diversidade do guaraná por meio das suas práticas de obtenção e renovação das plantas que cultiva. As entrevistas efetuadas nos dois municípios evidenciaram informações importantes sobre essas práticas e nos esclarecem sobre as percepções e representações associadas. Vale ressaltar que nas duas regiões estudadas as expressões ‘guaraná melhorado’, ‘variedade’ e ‘cultivar’ não foram usadas pelos agricultores na sua grande maioria. Nos seus discursos, os entrevistados falam de ‘tipos’ ou ‘qualidades’ diferentes de guaraná, segundo a origem desta planta. Nas comunidades estudadas, a agricultura fundamenta-se nas práticas de derrubada e queima para a formação de roças de 1 a 2 ha. O guaraná é geralmente consorciado com a mandioca e, em alguns

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A BUSCA DO ‘FILHO DO MATO’ O sistema de cultivo do guaraná dos agricultores de Maués baseia-se na busca do guaraná nativo na floresta, prática que seria herdada dos Sateré-Mawé. Os plantios de guaraná do povo Sateré-Mawé são formados dos pés nativos, coletados na floresta a partir da seleção de ‘plantas mães’, que eles deixam crescer e frutificar. As mudas que germinam naturalmente dessas matrizes são extraídas e transferidas em seguida na área do plantio (Henman, 1982). O único processo de seleção do guaraná existente seria a escolha, que acontece na floresta, das boas ‘plantas mães’ e das melhores mudas a extrair. Exceto um entrevistado, todos os agricultores encontrados em Maués dizem usar essa técnica, onde o guaraná é designado como ‘filho’, ‘filhote do mato’ ou, ainda, chamado de ‘nativo’, ‘da natureza’, ‘original’. Além de procurar mudas de guaraná na floresta, os entrevistados relataram como prática comum a coleta de mudas em antigos plantios, bem como em roças produtivas (mudas formadas por sementes caídas durante a colheita). A facilidade da coleta em plantio produtivo ou abandonado permite a renovação rápida de pés mortos ou improdutivos. Em todos os casos, preferência é dada a uma muda ‘viçosa, bonita’, cujas folhas estão ‘bem verdes e bem bonitas’, além de ter uma raiz sólida. Em Urucará, a busca do ‘filho do guaraná’ não se refere ao guaraná nativo, mas às mudas espontâneas dos plantios abandonados. Essa prática é citada nas entrevistas como comum para renovar pontualmente os

casos, foi observado que a espécie é inserida em sistemas agroflorestais complexos. Algumas semanas após o início da época da chuva e do plantio da mandioca, são plantadas as mudas de guaraná, sem trabalho do solo além da abertura das covas. A questão do tempo de produtividade é relativa: para os técnicos e agrônomos, o pé precisa ser renovado após 25 anos de produção. Na visão dos agricultores, não existe regra, alguns pés serão produtivos além dos 40 anos, outros não, isso faz parte do ‘mistério’ do guaraná. Para formar um plantio de guaraná, o agricultor pode usar suas mudas criadas a partir de sementes ou com a técnica da alporquia29. Ele pode usar mudas doadas ou trocadas com outro agricultor (em geral, trata-se de um agricultor que faz parte da família, o qual autoriza a coleta de mudas nas suas terras, troca ou doa mudas caseiras ou de viveiro). A busca de mudas espontâneas em áreas de floresta ou em antigas roças também faz parte das estratégias sinalizadas. Os produtores diferenciam dois ‘tipos’ de ‘guaraná nativo’ oriundos da floresta: o ‘guaraná verdadeiro’ (Paullinia cupana Kunth var. sorbilis), variedade coletada para ser cultivada, e o ‘falso-guaraná’ (guaranárãn30, Paullinia cupana Kunth var. cupana), descrito como a variedade selvagem, que não está selecionada como matriz, mas é observada em Maués e Urucará. Finalmente, o agricultor pode recorrer a um recurso ex situ, comprando as mudas de um viveiro. A Tabela 2 sintetiza as técnicas observadas em cada município.

Tabela 2. Diversidade de origens do guaraná nos plantios dos entrevistados. Clone (viveiro)

Guaraná de semente (viveiro)

Guaraná de semente (caseiro)

Guaraná nativo coletado

Maués (12 investigados)

8 (2 do viveiro da AMBEV)

8

4

11

Urucará (17 investigados)

16

17

10

-

Vale ressaltar que a técnica da alporquia não é comum entre os agricultores e resulta da observação do fenômeno natural de reprodução vegetativa de pés de guaraná na floresta. Um agricultor explica que “essas mudas de galos que crescem no mato” são comuns, mas não tão resistentes quanto as de sementes. Para a clonagem, os viveiristas usam hormônios de enraizamento e controlam as condições edafoclimáticas durante o crescimento da muda. 30 Ou guaraná-rana. O sufixo rãn ou rana significa “parecido” na língua Tupi (Cunha, 1999). 29

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Saberes e práticas locais dos produtores de guaraná (Paullinia cupana Kunth var. sorbilis) do médio Amazonas:

pés improdutivos ou até para criar uma roça inteira, já que necessita apenas da autorização do dono da roça, e não de investimento financeiro. Não se fala de guaraná ‘nativo’ ou ‘da natureza’, pois é reconhecido pelos entrevistados que o guaraná nativo não existe em Urucará, mas sim em Maués. Como explica esse agricultor, em Urucará, a prática seria comum e se refere a uma quantidade importante de mudas:

(teoria ainda mencionada, porém não validada pelos técnicos do IDAM). Todos os guaranacultores de Urucará entrevistados possuem plantios de dez a trinta anos formados por esses ‘pés duros’ ou pés de sementes. Mais da metade dos entrevistados continua selecionando e plantando as suas sementes, experimentando também com sementes de pés clonados. Na comunidade do rio Maués, a seleção e o plantio de semente para formar as roças de guaraná foram mencionados pelos entrevistados como uma prática comumente empregada pelos antigos e hoje ainda aplicada pontualmente. Como diz este agricultor:

O pessoal tira muito para plantar. (…) O dono [da roça] leva o pessoal. Por isso que eu não corto ele [o antigo guaranazal]. – Rapaz tem filho de guaraná no teu guaranazal? – Tem! vai lá buscar.

Os antigos plantavam assim. Eles tiravam da árvore o guaraná, escolheram aqueles guaranás mais graúdos que tinha, botavam numa vasilha lá… iam no roçado deles, e com a ponta do terçado mesmo enterravam lá.

E aí leva. 300, 400… é pra plantar…numa bacia de plástico assim, dá pra caber 400, leva até 500.

Apesar dos pacotes tecnológicos, os guaranacultores conservam suas práticas de coleta de mudas, mesmo que elas sejam nativas ou oriundas da reprodução natural entre roças produtivas e abandonadas, mobilizando e preservando, assim, uma diversidade de saberes, que vão desde os critérios pessoais de seleção até técnicas de plantio de mudas e manejo do território.

Apesar disso, o IDAM e a FUCAPI não conseguiram a adesão dos produtores ao projeto de viveiro implantado na comunidade. O sucesso dos plantios financiados que incluem mudas de viveiros contrasta com esse tipo de prática, apenas mencionado pelos quatro produtores mais antigos.

SELECIONAR E FAZER GERMINAR AS SUAS SEMENTES Antes da divulgação da técnica de clonagem, as instituições de extensão rural ensinavam técnicas de seleção e reprodução sexuada e incentivavam a construção de viveiros comunitários para criação de mudas a partir de sementes. Em Urucará, a aprendizagem das técnicas de seleção e reprodução dos melhores pés e a criação de mudas se deu através dos viveiros do CETRU e das comunidades. As primeiras sementes são oriundas de Maués (‘guaraná da marca boa’, segundo um produtor de Urucará). Os produtores, que até então plantavam as sementes diretamente na roça ‘no cabo do terçado’, desenvolveram estratégias próprias de seleção de sementes, como a diferenciação de pés fêmeas e machos

A DIFUSÃO CRESCENTE DOS CLONES A partir dos anos oitenta, os viveiros deixam de produzir e incentivar o uso de mudas oriundas de sementes e passam a usar a tecnologia da clonagem dos cultivares, que requer a adoção de hormônios de enraizamento e de um sistema de nebulização para controle da umidade do ambiente. Os cultivares clonados são apresentados pela EMBRAPA como uma tecnologia resistente à antracnose, principal praga que afeta o guaranazeiro, dez vezes mais produtiva que os pés de sementes e de desenvolvimento mais rápido, se cultivados com o itinerário técnico adequado que inclui podas regulares e insumos químicos (Atroch, 2001). Entre Maués e Urucará, diferenças evidentes foram observadas nas formas de apropriação e representação dos cultivares clonados pelos guaranacultores.

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Em Urucará, a cooperativa trabalha em parceria com o IDAM e com o viveiro local (propriedade do gerente do IDAM) no melhoramento dos cultivares. O viveiro trabalha com dez cultivares da EMBRAPA livres de uso31 e produz até cinquenta mil clones por ano, dependente do número de produtores que tem um projeto de plantio financiado32. Além de multiplicar as mudas, o viveiro busca produzir novos cultivares. Assim, quando os produtores observam um pé com características interessantes de produção, resistência às pragas etc., os técnicos são chamados para coletar galhos e identificar e reproduzir o pé destacado. O produtor, dono da matriz, recebe 10% das mudas criadas ou o pagamento equivalente. Pela participação do produtor no processo de criação da nova tecnologia (“a gente observa e eles vêm pegar”), cria-se uma relação de confiança entre o guaranacultor, o futuro clone e os técnicos. Além desse método participativo de seleção de variedades, a cooperativa e os técnicos do IDAM e do viveiro desenvolveram um sistema de georreferenciamento das melhores matrizes encontradas, bem como um mapeamento detalhado dos plantios com identificação de cada pé (origem, estado), traduzindo, assim, uma real vontade de melhoramento das variedades locais. No que concerne ao produtor, apesar deste não se apropriar dos nomes dados aos cultivares pelos pesquisadores da EMBRAPA (Brasil Sementes (BRS) Maués, BRS Andirá etc.), ele reconhece as diferentes ‘qualidades’ de guaraná na sua roça pelas características fenotípicas. Com a negociação da cooperativa com o Banco do Brasil para liberar créditos adaptados aos plantios agroecológicos, ou seja, tirando os adubos químicos do pacote tecnológico33, um grande número de agricultores adotou os clones. Os entrevistados

mostraram um real interesse a respeito dos clones, como se traduz na citação de um deles: “usar pé de sementes não é mais um bom negócio”. Dezesseis dos 17 entrevistados mencionaram ter pelo menos um plantio de guaraná clonado. Apesar disso, oito entre eles mostraram interesse em conservar pés de sementes e em continuar suas práticas de seleção e germinação de sementes. A COOPAM combina as estratégias para melhorar os sistemas de produção dos cooperados. Através da cooperação com o IDAM, objetiva o desenvolvimento de clones de variedades adaptadas aos sistemas agroecológicos. Certificação orgânica e variedades melhoradas andam juntas. Em Maués, oito dos 13 produtores entrevistados possuíam plantios de guaraná clonado. Apesar de o produtor experimentar os pés clonados e endividar-se com essa nova tecnologia, a pesquisa mostrou a desconfiança dele em relação aos clones e aos agentes defensores da inovação. Entre os produtores entrevistados, o clone é visto como uma tecnologia de laboratório, um ‘objeto químico’, que dependente de adubos e pesticidas desconhecidos. Por isso, destacou-se uma preferência para o pé de semente que tem mais ‘força’, ‘vitaminas’. A tecnologia necessária à criação de clones faz com que os produtores que adotam essas variedades tornem-se dependentes dos técnicos e viveiros para renovar os seus plantios. Em Urucará, essa relação de dependência está sendo atenuada pela confiança e parceria que existem entre os guaranacultores, a cooperativa e os técnicos. Por outro lado, a associação de agricultores de Maués não desenvolve estratégias coletivas quanto às inovações tecnológicas. Nas duas regiões estudadas, a grande maioria dos produtores entrevistados mantém certa diversidade nos plantios, criando combinações entre guaraná nativo, guaraná

Dez cultivares entre os que não foram inscritos no Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC). Ver Filoche e Pinton (2014), a respeito dos direitos de propriedade sobre o guaraná. 32 Em Urucará, o Banco do Brasil é responsável por este tipo de crédito. O financiamento, assim como em Maués, é apenas voltado ao uso de clones. 33 Como sinalizado por EcoCert (comunicação pessoal da certificadora), a certificação orgânica não impede o uso de clones e deixa o produtor escolher a origem dos pés de guaraná. 31

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de semente selecionada e guaraná melhorado (de semente ou clonado). Essa escolha pode refletir as preocupações dos produtores em termos de produtividade e de resistência dos plantios às pragas e doenças. As práticas de diversificação representam, sobretudo, um manejo da agrobiodiversidade que vai de encontro à padronização das variedades, incentivada pelo modelo modernizante de produção.

conceituais surgidas no âmbito das iniciativas privadas e governamentais de desenvolvimento rural. O papel dos processos de inovação na aceitação de novas tecnologias, assim como o papel da história social da constituição das organizações suscetíveis de adotá-las, é elemento fundamental na compreensão das práticas coletivas de manejo da planta e das escolhas individuais dos produtores. A presença de lideranças locais em Urucará, verdadeiros empreendedores sociais voltados para o futuro, é um fator importante de distinção, pois facilitou a mediação entre produtores, líderes e agentes de extensão rural. Sua experiência de cooperativismo facilitou o processo de apropriação da planta ‘melhorada’, tanto na escala individual como coletiva. Em Maués, ao contrário, a associação ainda tem dificuldade em convencer os produtores de participar da construção conjunta de estratégias de valorização do guaraná e dos saberes e técnicas de produção. Os agricultores de Maués não detêm essa cultura política e não se beneficiam da presença contínua de uma liderança estruturante que os represente. Foram os atores sociais externos ao território que investiram seus meios para promover a participação desses agricultores em iniciativas de valorização do produto. De modo paradoxal, a indicação geográfica para o município, como está apresentada pelas autoridades, visa a padronizar as práticas no seu território e não interrompe o seu projeto inicial de modernização do cultivo local da planta por difusão de variedades melhoradas. A lógica top down prevalece porque não há integração dos agricultores nas discussões. O projeto de IG não está fundamentado socialmente, mas apenas tecnicamente pelos seus promotores. No entanto, as práticas individuais que descrevemos revelam a capacidade de inovação e mudança dos agricultores, assim como o seu apego cultural pela planta. A construção participativa de um projeto democrático de IG poderia articular práticas e conhecimento tradicional, associados com a incorporação e adaptação de inovações, tomando-se em conta estas dinâmicas locais (Fournier, 2008).

CONSIDERAÇÕES FINAIS A multiplicação das oportunidades de mercado, aliada ao sucesso comercial dos derivados do guaraná, representa fatores propícios à diversificação das formas de gestão da planta na sua região de origem, após muitos anos de imposição de um modelo produtivista. Esperava-se que, com a criação do território da cidadania do baixo Amazonas, houvesse a multiplicação de iniciativas voltadas para a inclusão social e o desenvolvimento territorial, e surgimento de novos territórios de ação. No entanto, como observado, o processo de criação de duas cadeias produtivas enfrentou e ainda enfrenta a hegemonia do modelo convencional de modernização do monopólio agroindustrial, que já estava instalado nos municípios estudados, e as ambições políticas do governo local de Maués, que reivindica seu estatuto de capital mundial do guaraná por meio de seu projeto de IG. Esse processo também é prejudicado pela dificuldade dos agentes governamentais, entre os quais os agentes de extensão rural, em se adaptarem às abordagens verdadeiramente participativas que valorizam os recursos territoriais. O frágil capital social dos agricultores locais os tornam ainda mais suscetíveis aos efeitos da dominação do capital monopolista. Nossas observações vão ao encontro às de Brondízio (2014), segundo o qual, os agentes de extensão rural na Amazônia brasileira têm dificuldades para levar em conta os saberes locais, além das práticas de manejo da planta serem pouco (re)conhecidas. Como salientamos neste artigo, as entrevistas realizadas descrevem diferentes processos de inovação iniciados na região e que se transformam em reação às mudanças

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O desenvolvimento de sistemas de produção de bases agroecológicas no território da cidadania do baixo Amazonas é dificultado pela hegemonia do referencial de modernização agrícola, que orienta as estratégias dos agentes econômicos mais poderosos da cadeia de produção. A padronização das variedades, assim como das formas de manejo do guaraná, ameaça o futuro da agrobiodiversidade e a própria diversidade genética das plantas. As possibilidades de reterritorialização da planta remetem também às discussões sobre a apropriação do guaraná através de direitos de propriedade. A estratégia da COOPAM em relação ao melhoramento genético do guaraná traduz a vontade de seus membros de se emanciparem do monopólio da EMBRAPA. A cooperativa de Urucará busca identificar as variedades locais adaptadas aos sistemas de cultivos por eles defendidos, no intuito de valorizar um produto cuja qualidade poderia ser vinculada a bases territoriais culturalmente significantes. Para isso, ela antecipa e busca novos parceiros, a fim de melhorar a viabilidade dos sistemas de produção locais, conseguindo, assim, certa reputação, apesar de estar fora da ‘terra do guaraná’. Os agricultores de Maués são menos cientes das consequências associadas aos direitos de propriedade, embora eles defendam intuitivamente práticas tradicionais de manejo do guaraná, em paralelo à introdução das variedades clonadas. Por outro lado, destacam-se os Sateré-Mawé, que se reivindicam como responsáveis pela diversidade genética da planta e defendem o seu território como o santuário cultural e ecológico do guaraná (Fraboni, 2001). Finalmente, ressaltamos que a coexistência de diversas cadeias de produção (produtivistas e alternativas) na mesma região traz valores contraditórios: entre quem defende um produto de qualidade indiferenciada e de baixo custo (no nosso caso, a AMBEV) e quem valoriza a tipicidade e a diferença (seria o caso dos agricultores de Maués); entre quem acredita na superioridade da técnica e quem requalifica a tradição (no caso, a cooperativa); entre quem investe na agricultura convencional (AMBEV e EMBRAPA) e quem defende o princípio da conservação

in situ/on farm da agrobiodiversidade (Maués e Urucará). O verdadeiro desafio para essas agriculturas é a sua capacidade em coabitar umas com as outras, para responder às diversas demandas dos ‘consumidores’, mas também para defender a multiplicidade dos sistemas agrícolas. Através dos ‘mercados da biodiversidade’, os produtores de guaraná do território do baixo Amazonas poderiam ganhar maior visibilidade no Brasil e no mundo, desde que eles sejam capazes de se organizar e definir seu próprio território de ação, para estruturarem e defenderem valores compartilhados.

AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, aos guaranacultores e às suas organizações, que nos receberam e aceitaram participar da pesquisa. Igualmente, às equipes do IDAM, da SEPROR, da FUCAPI, da EMBRAPA e da AMBEV, pela colaboração neste trabalho. À AgroParisTech (UFR Sociologies), que financiou a pesquisa no quadro dos seus editais para projetos científicos, assim como à Universidade Federal do Amazonas e ao Programa de Pós-graduação em Ciências Ambientais e Sustentabilidade na Amazônia.

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Guaraná, a máquina do tempo dos Sateré-Mawé Guaraná, the time machine of the Sateré-Mawé Alba Lucy Giraldo Figueroa Antropóloga, pesquisadora independente.Brasília, DF, Brasil

Resumo: Mais que um produto agrícola, o guaraná é o passado, o presente e o futuro do povo junto ao qual foi encontrado pelos missionários jesuítas que fizeram o primeiro registro histórico de sua ocorrência na região interfluvial Madeira-Tapajós, na segunda metade do século XVII. Constitui, desde então, o marcador étnico por excelência do povo Sateré-Mawé. Além de estar no centro das explicações sobre a sua origem e organização social, o guaraná fez dos Sateré-Mawé o primeiro povo indígena brasileiro na história com um produto próprio, transformado e sistematicamente comercializado, em tempos coloniais e do Império. No Brasil republicano, da virada do milênio, é um dos primeiros que aparece associado aos conceitos e práticas mais avançados na perspectiva dos paradigmas pós-modernos da sustentabilidade, da produção orgânica certificada, do comércio justo e solidário e do desenvolvimento ecossustentável. E o faz sempre investido de uma notável potência de agregação social: originalmente, no seio de uma sociedade tradicionalmente segmentada e, na contemporaneidade, ocupando papel destacado em movimentos colaborativos interinstitucionais nacionais e internacionais. Para os Sateré-Mawé, o seu Waraná nativo é memória e promessa de navegação segura ao longo do tempo. Este artigo se propõe apresentar e discutir como isso vem sendo possível. Palavras-chave: Sateré-Mawé. Guaraná. Etnologia amazônica. Domesticação vegetal. Etnodesenvolvimento. Abstract: More than an agricultural product, guaraná is the past, the present, and the future of the Sateré-Mawé people. It was among them that Jesuit missionaries entering the region between the Madeira and the Tapajós rivers in the second half of the seventeenth century, first found the plant. Since then, guaraná has been the ultimate Sateré-Mawé ethnic marker. Besides being fundamental in accounting for their origin and social organization, guaraná enabled the Sateré-Mawé to become the first indigenous people to appear in Brazilian history as having their very own product processed and systematically commercialized during colonial and imperial times. In the Brazilian Republic of the third millennium, it is one of the first products to be associated with the most advanced concepts and practices in the perspective of postmodern paradigms such as sustainability, organic certified agriculture, fair trade and eco-sustainable development. It holds a considerable power of aggregation within a traditionally segmented society and, at the same time, it has an axial role in collaborative movements both at international and national levels. For the Sateré-Mawé, their native Waraná is both memory and a promise of safe navigation over time. This article is about how this has been possible. Keywords: Sateré-Mawé. Guaraná. Amazonian ethnology. Plant domestication. Ethnodevelopment.

FIGUEROA, Alba Lucy Giraldo. Guaraná, a máquina do tempo dos Sateré-Mawé. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 55-85, jan.-abr. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000100005. Autor para correspondência: Alba Lucy Giraldo Figueroa. SQS 107, G, 408. Brasília, DF. CEP 70346-070. E-mail: albalucy.figueroa@gmail.com. Recebido em 26/03/2014 Aprovado em 15/01/2016

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INTRODUÇÃO O presente artigo propõe-se a retomar e apresentar referenciais simbólicos, históricos e socioculturais do guaraná entre os Sateré-Mawé, seus primeiros utilizadores, resenhar a sua difusão comercial durante os primeiros tempos de contato e nas décadas mais recentes, além de demonstrar de que forma um produto agrícola assumiu o caráter de síntese de um povo indígena e, muito além disso, tem contribuído também para compor a identidade brasileira no panorama internacional. A fonte principal para a sua elaboração foram os dados de pesquisa etnográfica realizada pela autora, entre os anos de 1994 e 1995, para a sua tese de doutorado, relacionando história, identidade e abordagem da doença e do mal entre os Sateré-Mawé (Figueroa, 1997). Durante os anos seguintes até o presente, o olhar para os SateréMawé e o seu Waraná foi feito por meio de bibliografia, de notícias jornalísticas e via internet, pesquisando sobre suas performances comerciais e políticas. Os fatos reportados recentemente têm permitido leituras que, em geral, mantêm uma grande coerência de significados com a etnografia e as propostas interpretativas que construímos no final dos anos 90, aqui retomadas. A metodologia, assim, foi a da etnografia, baseada em inúmeras entrevistas informais, semiestruturadas, histórias de vida e na observação participante durante três trabalhos de campo na Terra Indígena Andirá-Marau e cidades do entorno1,além de análise comparativa desses dados com a bibliografia e outras fontes que abordam o objeto deste artigo. A autorrepresentação dos Sateré-Mawé como ‘filhos do guaraná’ e a ‘lenda do guaraná’ têm sido bastante difundidas no Brasil ao longo do tempo, em obras e materiais dos mais diversos gêneros, em textos acadêmicos, teses, dissertações etnográficas, relatórios historiográficos e crônicas de viajantes e naturalistas, assim como em materiais de larga circulação: literatura infanto-

juvenil ilustrada para leitura e ensino, projetos sociais, documentários e publicidade de produtos comerciais de derivados do guaraná ou Paullinia cupana Kunth var. sorbilis (Mart.) Ducke. Nenhuma dessas abordagens em particular, mas talvez sim o seu conjunto, consegue aproximar a envergadura do significado da relação consubstancial entre esse povo indígena da região interfluvial Madeira-Tapajós e essa espécie. Trata-se de uma relação que se desdobra em múltiplas dimensões e sentidos. Na dimensão prática, podem-se desagregar aspectos de sua produção, formas de beneficiamento/transformação, usos e comercialização; todos eles sendo acompanhados de elaborações endógenas, nas ordens cognitiva, tecnológica, social, econômica, organizacional, afetiva e simbólica. Na impossibilidade de um seguimento integral no que tange à trajetória histórica sugerida no título deste artigo, optamos por um recorte em formato de ponte que, em um dos seus extremos, privilegia registros referentes aos primeiros séculos do contato (XVII a XIX), durante os quais o guaraná deixa de ser apenas um produto étnico, um marcador regional, para se inserir no mercado nacional e internacional, ganhando espaço na historiografia econômica e paramédica. No outro extremo, a abordagem atenta para os últimos 25 anos, quando o guaraná do povo Sateré-Mawé passa por uma trajetória que o leva a conviver perfeitamente com os paradigmas pós-modernos da sustentabilidade e do comércio justo e equitável. Ao começar a abordagem pela ordem simbólica, atente-se para a referência ao guaraná nos sehaypot’i, relatos orais antigos, para os quais, os narradores tradicionais nas comunidades sateré-mawé e a sua audiência, quando em contexto de aldeia, criam uma atmosfera de sacralidade própria, sujeita a regras de silêncio, quietude, atitude respeitosa, ininterrupção, início e fechamento formais. Esses narradores são personagens muito reconhecidos na vida intrínseca das comunidades. Eles são considerados os

Duas dessas etapas foram realizadas em 1994 e 1995, e a última no mês de fevereiro de 2015, na sede do Consórcio dos Produtores Sateré-Mawé, na cidade de Parintins.

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Optou-se, aqui, por apresentar uma montagem polifônica de diversas versões do mito-relato do guaraná, baseada em segmentos oriundos de três narradores. Entre elas, incluímos a divulgada por Nunes Pereira. As outras duas versões foram selecionadas entre as que registramos pessoalmente, cujo campo de referências temáticas é mais próximo da versão do mencionado autor. Há, entretanto, outras versões mais singulares, no sentido de ser menos difundidas entre os próprios Sateré-Mawé, que não ecoam as mesmas temáticas mais recorrentes nas versões dos narradores mais reconhecidos. Ser um bom orador/narrador é um importante mandado cultural, objeto ele mesmo de seu próprio mito, que,segundo alguns narradores, compõe eventos precedentes ao advento mítico do Waraná3. A atividade requer ao menos dois atributos ou habilidades, uma delas é a de se manter dentro de uma matriz temática; a outra é de ter certa criatividade heurística, pela qual se consegue incorporar, dentro dessa matriz, novos elementos pinçados do contexto do narrador e de sua audiência,e ainda que componham, com coerência simbólica, a realidade que a matriz temática do mito se propõe a elucidar. No caso, trata-se da origem e do destino do povo Sateré-Mawé. Em sequência, os trechos selecionados são sinalizados pelas iniciais dos narradores: Luis Miquiles (LM) e Maria Trindade Lopes (MTL). A versão colhida por Nunes Pereira é sinalizada por (NP).

guardiões do saber cosmogônico e cosmológico,segundo o qual a origem, o lugar e o papel do guaraná são estabelecidos. Reportam essa origem à história de um grupo de irmãos, na origem do mundo. Atrás deles, é apenas esboçada a figura de um pai andarilho que foi embora: Anumaré grande, quem deixou ao seu filho a tarefa de tomar conta de tudo que existia. Assim, Anumaré pequeno decide um dia “levar a terra dele para o céu” e se transformou no sol. Quanto às suas irmãs, ele decide transformar uma delas, Oniamankaru’i na terra e a outra, Oniamoire’i, nas águas. A uma terceira, ele convida para ir junto com ele para o céu, mas ela optou por ficar, e foi transformada numa abelha, da qual se diz estar sempre orientada pelo sol. Uma quarta mulher da origem, desse ou de outro grupo de irmãos, Oniawasap’i, é associada à prática agrícola e ao lugar sagrado dessa prática, conhecido como Nusoken. É esta personagem que está na origem do guaraná. A versão publicada mais difundida do relato sobre o guaraná é a que foi recolhida, nos anos de 1940, por Nunes Pereira (1954). Há, no entanto, outras versões que, além de corroborá-la, desenvolvem outros aspectos, notavelmente alguns que apontam para o guaraná como eixo e base de sustentação de uma alteração contundente no seio de uma sociedade altamente segmentada. De acordo com essas versões, o guaraná representa a passagem de um regime de relações sociais no qual a vingança, a separatividade e mesmo a guerra constituíam tradição produtiva do ponto de vista societal, para outro regime fundamentado na valorização do encontro, da reunião, do compartilhamento e da governança argumentativa, esta, então, assentada simbolicamente no guaraná, na sua produção e consumo interno, denso de intencionalidades, e na sua comercialização como um produto que exprime e reforça a etnicidade de um povo2.

FUNDAMENTAÇÃO MÍTICA DO COMPLEXO SIMBÓLICO DO GUARANÁ “Antigamente, contam, existiam três irmãos: Ocumáató, Icuamã e Onhiámuáçabê. Onhiámuáçabê era dona do Noçoquem, um lugar encantado no qual ela havia plantado uma castanheira. A jovem não tinha marido; porém todos

O relato mítico do Poratig, outro símbolo forte, em tempos passados, na cultura sateré-mawé, reforça a ideia dessa transição. Assim como o Waraná, o ritual de Waumat ou festa da tocandeira é outro marcador de etnicidade cuja vigência é calorosamente mantida pelos SateréMawé. Esses temas, entretanto, não serão abordados neste artigo. Cf. Pereira, 1954; Figueroa, 1997; Alvarez, 2007; Kapfhammer, 2004. 3 Esse é o nome original, na língua sateré-mawé. Foi recentemente retomado como marca distintiva no mercado do produto original do povo indígena em questão, como será visto mais adiante. 2

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os animais da selva queriam viver com ela. Os irmãos, ao mesmo tempo, a queriam sempre em sua companhia, porque era ela quem conhecia todas as plantas com que preparava os remédios de que precisavam. “Uma cobrinha, conversando com outros animais, certa vez, disse que Onhiámuáçabê acabaria sendo sua esposa. Foi então espalhar pelo caminho por onde ela passava todos os dias um perfume que alegrava e seduzia. Quando Onhiámuáçabê passou pelo caminho, aspirando o perfume disse: - Que perfume agradável! “A cobrinha, que estava próxima, disse a si mesma: Eu não dizia? Ela gosta de mim! E, correndo, foi estirar-se mais adiante para esperar a moça. Ao passar ao seu lado, tocou-a, levemente, numa das pernas. E isto só bastou para que a moça ficasse prenhe, porque antigamente, uma mulher, para que isso acontecesse, bastava ser olhada por alguém, homem, animal, ou árvore, que a desejasse como esposa. “Porém os irmãos de Onhiámuáçabê não queriam que ela se casasse com gente, animal, ou árvore que tivesse filhos, porque era ela quem conhecia todas as plantas com que preparava os remédios de que precisavam” (NP). “Um dia eles foram procurar com ela o seu remédio para caçar (pussanga). Como ela era a única mulher, naquela época, era quem o preparava. Mas, nesse dia, ela não se prontificou a recebê-los. Por isso, os irmãos foram até ela para lhe pedir que amassasse e lhes entregasse o remédio. Mas dessa vez, o resultado foi diferente: coalhou. No fundo da preparação, se precipitou uma espécie de tapioca. Com isso, os irmãos souberam então que ela estava gestante. E lhe reclamaram por não ter ouvido o conselho que lhe tinham dado, por ter desobedecido. Perguntaram-lhe também quais eram as pessoas com as quais ela tinha topado. Ela não soube responder, pois não dava, nunca, confiança para ninguém” (LM). “Os irmãos ficaram furiosos. E falaram, falaram e falaram, dizendo que não queriam vê-la com filho” (NP).

“Não mais aceitaram que ela ficasse na mesma casa que eles. Assim disseram: ‘Olha nossa irmã: já que você não escutou o nosso conselho, a gente não vai aceitar você ficar aqui conosco’. Ela, então, saiu, foi fazer a sua própria casinha e lá ficou morando, sozinha, esperando o neném. “Quando viu que não podia ficar sozinha, convidou três pessoas para lhe acompanhar: a mucura, para que lavasse as suas roupas; o pato, para lhe procurar água no porto; e a saracura, para lhe procurar cogumelos. Essas três pessoas comiam de tudo; traziam-lhe peixe, inclusive, mas a mulher não recebia da mão delas: ela não comia peixe durante o tempo do resguardo. Depois que se recuperou, perguntou às três: ‘Como é que eu faço com vocês? Vocês me ajudaram bastante, qual é o pedido que vocês vão me fazer? Como eu posso recompensar. Vocês querem experimentar a dor de ter um filho?’. Mas as mulheres não responderam. ‘Se quisessem experimentar, como eu…?’, ela perguntou. A mucura então respondeu: ‘eu não quero experimentar a dor de criança’. Por isso que mucura fica com os filhos grudados fora da barriga, guardados em um saco; lá eles ficam mamando. Ela não sente a dor de parto. Assim que era para ser com as mulheres, mas elas não quiseram, por acharem vergonhoso andar desse modo com as crianças, então, o único jeito era sentir a dor do parto, como essa primeira mulher. “Logo que nasceu a criança de Oniawasap’i4, os tios resolveram ir à casa dela para visitar. Chegando lá, perguntaram: ‘Como vai, irmã?’. ‘Aí está a criança’, respondeu ela. ‘Mas… ela tem braços?’, inquiriram os irmãos. ‘Sim, tem ombro, tem corpo de gente’. ‘Então, tudo bem. Já que é assim, pode criar’. Mas eles sentiram e acumularam raiva dela; não gostavam daquela criança. Não demonstravam isso, quando foram visitar parecia tudo bem, pareciam alegres, mas entre eles começaram a falar que esse filho da irmã ia lhes trazer desgostos, lhes causar raiva, caso ele fosse nas suas roças e mexesse com as suas plantas” (LM).

Transcrição fonética do nome grafado por Nunes Pereira como Onhiámuáçabê. Nusoken ele grafa Noçoquem.

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“Logo que pôde falar, o menino desejou comer as mesmas frutas de que os tios gostavam. A moça contou ao filho que, antes de o sentir nas entranhas, plantara no Noçoquem uma castanheira, para que ele comesse os frutos, mas que os irmãos, expulsando-a da companhia deles, se apoderaram de Noçoquem e não o deixaram comer castanhas. Além disso, os irmãos da moça tinham entregue o sítio à guarda da Cotia, da Arara e do Periquito. O menino, porém, continuou a pedir a Onhiámuáçabê, mãe dele, que lhe desse a comer as mesmas frutas que os seus tios comiam. Um dia então, Onhiámuáçabê, a moça, resolveu levar o filho ao Noçoquem para comer as castanhas. Assim, indo a Cotia ao Noçoquem, viu no chão, debaixo da castanheira, as cinzas de uma fogueira, onde haviam assado castanhas. A Cotia correu e foi contar o que vira aos irmãos da moça. Um deles disse que talvez a Cotia se enganasse, o outro disse que não podia ser verdade. Discutiram. E, afinal, resolveram mandar o Macaquinho-da-boca-roxa tomar conta da castanheira, a ver se aparecia gente por ali. O menino que havia comido muitas castanhas e cada vez mais as cobiçava, já conhecendo o caminho do Noçoquem, tornou a ir lá no dia seguinte. Ora, os guardas no Noçoquem, que tinham ido adiante, com ordens de matar a quem ali encontrasse, viram o menino subir, às pressas, à castanheira. E, estando próximos, bem próximos, ocultos por outras árvores, tudo observando, correram e foram esperá-lo debaixo da castanheira, armados com uma cordinha para decepar a cabeça do comedor de castanhas. Dando por falta do filho, a mulher já se havia posto a caminho, para buscar, quando lhe ouviu os gritos” (NP).

“Uma caba e uma abelha chegaram contando a Oniawasap’i a notícia do ocorrido, mas ela não acreditou. Então as duas voltaram lá e cada uma delas trouxe um pedacinho da pele do menino para lhe mostrar, mas nem com isso ela acreditou. Elas voltaram novamente e trouxeram um pouco de sangue em uma folha de apekutyhop5. Só vendo o sangue a mãe acreditou. Ela foi lá e só encontrou a flecha do menino, ficou, então, muito brava e começou a ralhar os irmãos, querendo se vingar. Foi lá na casa deles e disse: ‘Isso foi o que vocês fizeram?! Se vocês mataram o meu filho foi seguramente porque estavam com fome, então vocês têm que comer o meu filho!. Foi assim que vocês mataram o tio dele mais novo e outro tio mais velho, mataram o próprio pai dele, foram vocês que mataram!’. Ela tinha levado a flecha querendo usá-la, mas não pôde, porque eles a tomaram da sua mão e no lugar lhe deram um fuso de fiar algodão, para fazer rede, e um machado sem cabo. Falaram: ‘Olha, minha irmã, você vai ficar com esse fuso. Isto aqui é que vai servir para você. Isto não!’ E tomaram-lhe a flecha. Ela então disse: ‘Tudo bem! Vocês mataram meu filho, mas não faz mal’ e se virando em direção ao filho, completou: ‘Fica aqui, meu filho, eu vou te cobrir’. Pegou uma folha e o cobriu, pronunciando: ‘erepusunug ehayse o!: faça, falando bonito!’. Assim, ela desejou que algo de muito bom surgisse dele” (LM). “Oniawasap’i pegou os olhos do menino...” (MTL). “Arrancou-lhe primeiro o olho esquerdo e plantou-o. A planta, porém, que nasceu desse olho não prestava; era a do falso guaraná. Arrancou-lhe, depois, o olho direito e plantou-o. Desse olho nasceu o guaraná verdadeiro” (NP)6. “E disse: ‘Meu filho, os teus tios te mataram, mas não penses que irás ficar sozinho, isolado. Tu irás ficar com as palavras dos teus parentes e com as palavras das pessoas que moram no céu. A todos os teus parentes

Folha com manchas vermelhas, não identificada. Atroch et al. (2012, p. 345-346), baseados em pesquisa genética (Freitas et al., 2007, apud Atroch et al., 2012) sobre diferenças no número de cromossomos entre a variedade sorbilis do guaraná (a plantada pelos Sateré-Mawé) e outras espécies do mesmo gênero, consideram que esta passagem do mito relata o evento da domesticação do guaraná.

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tu irás ensinar. Tu irás ser morekuat [autoridade], tu irás ensinar muita gente a tratar de trabalho. Muita gente vai se juntar para tomar o guaraná. Serão as mulheres mais idosas as que irão ralar o guaraná. Em redor de ti irá se tratar de muitas coisas boas, palestras de trabalho e assim muita gente irá gostar de ti. Porque tu foste gerado antes que a terra estivesse contaminada. Então, tu vais ficar sendo autoridade: morekuat. Tu vais fortalecer muita gente: os morekuat, os tuxauas, portanto tu que serás o Morekuat. Muitas coisas se conseguirão através de ti. Vai parecer que tu estivesses vivo e de tua boca sairão conselhos para muita gente, para os filhos, e com lágrimas nos olhos, os pais vão te usar para aconselhar os seus filhos, teus netos. Cedo da manhã as pessoas vão te usar, vão beber o guaraná, e aquele que souber de alguma coisa melhor, vai explicar e conversar coisas boas” (MTL). “E continuando a conversa com o filho, como se o sentisse vivo, foi anunciando: Tu, meu filho, tu serás a maior força da natureza; tu farás o bem a todos os homens; tu serás grande; tu livrarás os homens de uma moléstia e os curarás de outras” (NP). “Logo depois, ela foi-se embora para a sua casa. Lá, ela autorizou um passarinho, o hirut7: ‘Vai lá e cante, fale bonito lá para o meu filho!’. Pedia também, dessa forma, que saísse algo de muito bom, a partir do corpo da criança morta” (LM). “Na terceira vez que o passarinho foi avisá-la de que já tinha alguma coisa dentro da terra, ela foi ver. Chegando lá, o passarinho começou a cantar e ela abriu o túmulo. O que apareceu foram muitas crianças rindo, cantando lá dentro. Ela tinha levado o wirisupakpak, que era muito duro e era para ser o nosso dente. Mas quando essas crianças saíram, pegaram o wirisupakpak e o levaram. Oniawasap’i agarrou um pau como a sua arma, e correu a lhes perseguir, dizendo: ‘Vocês vão ficar correndo assim pelas matas e pelas capoeiras, vocês vão sair andando para um lado e

para outro e quando estiverem tratando de trabalho, do plantio do guaranazal, eles vão matar vocês e vocês virarão alimento!’. Ela tinha os transformado em queixadas: ‘Em compensação do dente que vocês levaram, que era para eles [os humanos], eles vão matar vocês!’. “Ela fechou novamente a sepultura e pediu para o passarinho cantar de novo. E ele cantou e disse: ‘Já estão chegando para cá, e estão cantando’. A mãe foi de novo, abriu e o que tinha lá na sepultura era um pessoal cantando. Na hora que abriu, veio uma moça que falou: ‘Deixa eu olhar os teus filhos’. Ela disse: ‘Não, não vou permitir que você olhe’. Veio outra e também disse: ‘Eu quero espiar’. ‘Não, você pode sair dizendo que os meus filhos não são bonitos’. Tinha gente que insistia, insistia, querendo ver, e ela dizia: ‘Deixem! Vocês vão ver quando estiver fora’. Ela não queria que ninguém olhasse. Quando ela abriu a sepultura, um ahiang [fantasma] olhou por cima da cabeça dela… Nessa hora ia saindo o coatá8. Como o ahiang estava olhando para ele, então aquela feiura pegou no coatá. Por isso que ele é muito feio. A mãe, então, bateu no ahiang e o matou. Pegou também o coatá, o puxou e o jogou. Quando ela o jogou, o coatá se agarrou na porta de uma casa próxima. Oniawasap’i, então, o puxou com força e o dedo do coatá se arrancou. Por isso que o coatá não tem o polegar. E o ahiang que ela matou virou a saúva grande, ou wehong [sombra], por ser o wehong desse ahiang. Nesse momento, a mãe disse que, quando o sol estivesse em uma determinada altura, muita gente ia dançar de alegria no seu terreiro. É quando chega o tempo das saúvas voarem, que eles ficam pulando, dançando, quando estão pegando a saúva. “Ela fechou novamente a sepultura e quando voltou abrir vieram os kiwa: tapecuim. Ela, logo lhes disse: ‘Fiquem aqui’. Deixou-os no toco de um pau, eles lá ficaram. Ela disse: ‘Quando o sol estiver numa certa altura, os teus parentes vão te agarrar e levar para comer’ [comentário

Segundo Nunes Pereira, o passarinho é o caraxué. De acordo com Jensen (1988, p. 84), é uma espécie de sabiá, da família Turdidae. Coatá: Ateles belzebuth, primata da família Atelidae.

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sorridente da narradora: num dia destes juntamos em casa vinte e duas poquecas de kiwa!]. “Ela fechou novamente, até quando o passarinho começou a cantar e disse: ‘he akuara ehayse tuerut emembyt’ [a flauta do teu filho vem cantando muito bonito]. “Ela chegou lá, abriu de novo e encontrou um monte de meninos já perfeitinhos, eram pessoas mesmo. Mas eles eram muito safados e muito branquinhos, pulavam para lá e acolá. A mãe disse então: ‘Eu não pedi para vocês saírem assim, vocês são muito safadinhos’. Eram os wahue, macacos caiararas9. Eles foram saindo do túmulo e ela ia dizendo: ‘Vocês vão sair gritando pelas capoeiras, não importa qual seja o tamanho delas’. E fechou de novo. “O passarinho começou a avisar outra vez e Oniwasap’i veio logo abrir. Ela cuspiu e ficou fazendo bolinhas de terra que eram para fazer os nossos dentes; então, o grilo veio pedir para olhar, no buraco, os filhos de Oniawasap’i. Disse assim: ‘Eu vou olhar para os teus filhos para eles saírem bonitinhos’. Ela preparou toda aquela massa de barro e colocou no filho dela os dentes. Por isso que nossos dentes são muito fracos. O nosso corpo fica perfeito e os dentes se estragam. Se a queixada não os tivesse levado, os nossos dentes não estragariam. “Perguntaram para ele como ia ser o nome do filho dela. Ela disse que como ele tinha surgido do Moikyt [cobra pequena] e eu o fiz vir novamente, então o nome dele seria Moikyt. Ficou o mesmo nome. Depois foi confirmado para que o nome do seu filho ficasse São Sebastião. Daí, segurou o nome São Sebastião, e quando ele já estava um

pouco crescido, essa pessoa que mandou matar foi lá. Ele disse à irmã: ‘Esse aí será o meu, e o nome dele será Adão’. Aí ficou “Adão” e finalmente Mari10. Dele que apareceram muitas e muitas descendências do guaraná. De lá que nós viemos. Por isso que ninguém deixa o guaraná. “Por isso que certos filhos nossos morrem antes de crescer, porque assim ocorreu com esse filho da ‘nossa senhora’, Oniawasap’i” (MTL). “Toran”11 Em resumo, o relato da origem do guaraná, em muitas de suas versões, narra uma metamorfose que começa com o olho de uma criança e vai até a planta, como hipóstase do primeiro Sateré-Mawé. É a narrativa da ontogênese de um ancestral, com múltiplas referências filogenéticas. Trata-se do filho de ‘cobra’ (nome de um dos clãs congregados sob o etnônimo hoje englobante de Sateré-Mawé), que, por força das contingências de um regime de inter-relações em que a vingança é sistêmica, é atirado, pela determinação de uma mulher, em um labirinto de transformações ontológicas. O ápice dramático se inicia com a situação de aprisionamento do filho da irmã, que é amarrado com uma corda e em seguida decepado (elementos presentes em numerosas versões) e continua com a determinação de uma mulher, a sua genitora, a quem cabe o papel de realizar a transição de uma para outra ordem de coisas e relações. Pelos cuidados dela, o filho retorna após atravessar diversas possibilidades e tentações de ser. O mito outorga a Oniawasap’i, uma das divindades da origem – que, em uma

Caiarara: Cebus albifrons unicolor. Esses macacos são identificados pelos Sateré-Mawé como a origem dos karaiwa in: os brancos. Outras espécies também associadas aos brancos: os sapos wasa kaingkaing (não identificado) e o manka?i: “sapo-cunauaru”, de cor branca (da família dos Hylidae), e o pássaro tiapi?i, o japiim: Cacicus cela, Icteridae). Motivos evocados: a cor e a “safadeza” (no caso dos macacos); no caso do pássaro: a habilidade canora, associada à capacidade observada pelos Sateré-Mawé, dos brancos terem muitos instrumentos musicais e os tocarem, além de morarem em bairros. 10 Mari evoca o antepassado que, na ocasião da “descida” exortada pelo “Imperador” (cf. infra), retornou, sendo lembrado como um herói da resistência, que “ficou” no território sateré-mawé e evoca também a categoria dos Maira, heróis civilizatórios dos Tupi. Semelhança fonética pode estar na origem da associação entre esse herói Mari e “Maria”, a mãe de Jesus Cristo da evangelização católica. No ritual do painismo, Maria ou “Nossa Senhora” aparece também como apelativo do herói mítico Anumaré, no papel de anfitrião do mundo encantado. Nesse caso fica em evidência a representação ambígua do gênero de Mari ou de “Maria”, ou da desimportância do gênero, quando está em questão o sagrado. 11 “Toran” é a palavra ritualmente usada pelos narradores Sateré-Mawé para sinalizar que o tempo sacralizado pela invocação do mito foi concluído e que, por tanto as atitudes reverenciais de quietude e silêncio estão suspensas. 9

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versão narrada ao Padre Uggé (1993), é fusionada com a “Nossa Senhora”/“Santa Maria” da tradição católica –, um papel seletivo, pelo qual ela direciona para outras formas de vida as cristalizações que considera inferiores à que aspira para o seu descendente. A este, ela destina que constitua o paradigma de uma nova humanidade, manifestando-se, de forma invisível e pelo discurso, o que é propiciado sob a égide do guaraná. De Oniwasap’ise diz também ser a guardadora do Nusoken (ou “Noçoquem”, como grafado por Pereira), literalmente “lugar de pedra”, ou dos “moldes de pedra”12 – representação do imperecedouro, que estaria na origem de tudo o que existe. Esse lugar é fusionado, em algumas versões narradas para ouvintes católicos, com o jardim do Éden, pelo entendimento de ser um lugar provedor. As roças, como lugar das plantas cultivadas (mikoi) ou, como preferem dizer os Sateré-Mawé, “lugar de plantas de criação” (representação que classifica a relação agrícola sob o eixo da consanguinidade, igual ao que fazem com os animais de estimação), de acordo com um narrador, foram declaradas por Oniawasp’i como o seu retrato: “as roças são a imagem de minha carne” (torania mikoi uipu?i jã’ankp [toda plantação minha carne imagem]). Das diversas representações que os Sateré-Mawé oferecem em relação ao guaraná, a mais evocada cabe na metáfora do “tuxaua verdadeiro” (tuisa ’horo), aquele que com bons conselhos e palavras de entendimento (sehay wakuat) abre o futuro de longa vida para os descendentes. O tuxaua verdadeiro é aquele que sabe reconhecer o lugar (pertencimento) e o papel (competência) de cada indivíduo dentro do seu coletivo; quem embasa suas decisões na escuta dos pareceres e condições, seja dos corresidentes de uma localidade, seja das lideranças (tuxauas –tuisária) de diversas comunidades, que se reúnem em um encontro ao longo de um trecho de rio ou em uma assembleia geral

de tuxauas. Nessas ocasiões, resultantes geralmente de um chamado ou um convite feito por uma liderança,um tuxaua local ou geral, para discutir questões políticas ou de interesse comum, a liturgia tradicional exige o aprovisionamento de guaraná a ser compartilhado. A expectativa dos partícipes é de que a toma conjunta do çapô (nome dado ao guaraná quando preparado) reúna a voz de todos e cada um em uma voz única (we’entupehay’yn): a voz daquele tuxaua que convocou a reunião. Espera-se que, nas suas decisões, ele unifique, de forma conciliadora, os pareceres de todos os presentes. A partilha do çapô precipita uma fusão de imagens entre o tuxaua e o guaraná como chefe que exerce seu poder mediante um aconselhamento “que acalma docemente” (Uggé, 1993, p. 41) e que se atualiza pela circulação horizontal da palavra. Os narradores dizem que o guaraná é “uma palavra unificada” (we’entup ehay’yn). Figura uma espécie de contrato social em ação que consolida a sociedade: “ele nos reforça” (aiwesaika). O consumo compartilhado do çapô é o suporte tradicional principal para o trabalho coletivo e a ação política. Com as palavras de entendimento que essa forma de consumo propiciava, decidia-se o calendário do trabalho de mutirões para derrubada de roças, efetivava-se a distribuição social dos benefícios da articulação coletiva da força de trabalho (topowire). Ele impregnava com vontade de entendimento as ações e palavras, permitindo que se defina o locus e os limites do coletivo e das ações, e palavras dos indivíduos sobre os espaços e competências dos outros. Como disse textualmente um tuxaua, o guaraná é “líder de planejamento de trabalhos”. Ele propicia, em síntese, o bom-viver coletivo, a alegria e a saúde, entendida esta como o que vivifica (ehainte), o que reforça a vida13. Com essa sequência de imagens e atributos construída em torno do guaraná, os Sateré-Mawé

Ver o Portal dos Filhos do Waraná (s.d.). Por prudência, usa-se aqui o pretérito imperfeito, pois durante o último trabalho de campo, realizado em Parintins, ouvimos de alguns informantes que a monetarização, considerada por eles como um efeito das políticas sociais de transferência de renda (aposentadoria rural, Programa Bolsa Família, auxílio maternidade), teria praticamente acabado com os puxiruns tradicionais (trabalhos colaborativos baseados na reciprocidade). Sobre outros efeitos associados a esses programas, ver Kapfhammer e Garnelo (no prelo).

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articulam a concepção de uma sociedade que se volta para ela mesma, idealizando a circulação coletiva e pacífica da palavra como o seu fim, o seu traço dominante. O guaraná afirma o destino do homem com lugar de palavra. Os textos sagrados dos Guarani (Clastres, 1974) indicam também esse destino, mas, nesse caso, com a palavra dirigida para cima, para agradar aos deuses. Entre os SateréMawé, a palavra é dirigida a outros humanos, ela regula a sociedade e, com apoio no guaraná, a consolida: é ação política não despojada de sacralidade14.

Imperador’. O episódio é o da opção feita por um grupo de antepassados de não saírem de suas terras, diante uma exortação que, de fato, lhes foi apresentada, em 1692, por um padre, e é assim descrita pelo seu superior, o responsável jesuíta João Felipe Betendorf (1909, p. 525529): para serem tirados “da terra do Egipto, onde os havia de acabar a todos o furacão infernal”, para “serem filhos de Deus, e livrarem-se dos assaltos dos seus inimigos”. Na prática, o projeto dos padres era de transferir uma aldeia de Maraguazes (um entre os diversos nomes dados ao longo da história aos Sateré-Mawé, correspondente a um dos segmentos que esse nome amplo congrega), para servirem como mão de obra na aldeia d’El Rei ou Roça Mamayacu, do Colégio Santo Alexandre do GrãoPará, com amparo em uma “mercê” concedida, por demanda desse responsável missionário, por El-Rei Dom Pedro. Tratava-se, neste caso, de um filho de João IV, que governou Portugal durante trinta e nove anos, primeiro como regente, a partir de 1667, e depois como rei, a partir de 1683 (Varnhagen, 1956, p. 226). Enquanto esse grupo resistiu à descida, outro, de 67 maraguazes, embarcou e atendeu ao chamado. O banco tradicionalmente usado pela aguadeira foi associado pela grande narradora D. Maria Trindade Lopes à irmã de uma dupla de irmãos que tinham iniciado esse descimento: ela teria argumentado não querer continuar a viagem por ter esquecido “o banco”, tendo assim propiciado que finalmente os irmãos estivessem entre aqueles que “ficaram nas suas terras”. Esse ato de “ficar”, como no famoso caso da história do Brasil, é relembrado como uma façanha fundadora do povo SateréMawé, pela qual vários narradores atribuem o nome de “Eva” a essa personagem que resistiu à descida e o de “Adão” ao seu irmão. O episódio é espelhado em muitas versões, por vários narradores sateré-mawé, e foi também registrado pelo diretor e cronista jesuíta Betendorf (1909).

DA RITUALÍSTICA Para as ocasiões intrínsecas ao habitus sateré-mawé, o çapô é preparado a partir do pão ou bastão de guaraná tradicional, ralado dentro d’água, sobre uma pedra ferruginosa específica, de grão fino, tirada do fundo de um rio da Terra Indígena Andirá-Marau. O cuidado na preparação fica por conta da ‘aguadeira’, quem hidrata o guaraná (ahayp pehat), sendo, geralmente, a mulher ou a filha impúbere do tuxaua que fez um chamado ou convite. O conjunto de utensílios associados, os materiais de que são feitos e o tratamento dado no preparo são específicos e associados a atributos positivos: a cuia onde se prepara o çapô e o seu suporte, o patawi, no qual ela é, por momentos, colocada em repouso, perto do esteio da casa. Tanto o patawi quanto o local onde é colocado são conotados com referências de nobreza e centralidade. Do patawi (wepo’seihap) se diz ter sido “feito de uma lasca do céu”. O esteio é identificado como o próprio guaraná na correlação que é feita, do esteio ser para a casa como o guaraná é para a vida ou vice-versa. Ao banquinho, sobre o qual a aguadeira senta a ralar o guaraná, é associado um episódio histórico da maior relevância para o povo Sateré-Mawé, relativo a uma figura que se conserva na memória desse povo sob o título de ‘o

As notícias que os responsáveis pelo Consórcio dos Produtores ou do Conselho Geral da Tribo divulgam nas redes sociais sobre as suas ações políticas são geralmente finalizadas com frases como “Tupana no comando”, “Wará no comando” (Wará é o nome dado ao princípio espiritual do guaraná).

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O projeto do missionário era realizar um descimento em duas etapas para “fazer uma aldêa de duzentos e cincoenta ou quando menos de cento e cincoenta casaes” (Betendorf, 1909, p. 525). Em conformidade com o contexto da época, caracterizado pelas profundas contradições entre, de um lado, o compromisso dos Jesuítas na “questão abrasadora” da liberdade dos índios15 e, do outro, a oposição pró-escravista por parte dos colonos, o descimento foi realizado com todo o protocolo legal, a pompa e a formulação ideológico-bíblica de conveniência. As diversas versões dos narradores indígenas que resenham essa “descida” enfatizam a opção de “ficar” que lhes teria sido apresentada pelos seus oficiantes protocolares, cujas palavras se fundem com a figura desse Imperador que se tornou mítico e reconhecido como um ancestral próprio, confundido com os demiurgos andarilhos dos relatos cosmogônicos.

Com cada coisa eu vou lembrá-los. Terçado novo, enxada nova, faca, tudo quanto for novo, eu vou me lembrar de vocês. Do mesmo modo vocês vão se lembrar de mim com tudo quanto for teçume [trançados], flecha nova, peneira nova, vassoura nova, tudo quanto vocês souberem fazer, tudo quanto vocês forem produzir. Assim vocês não vão passar miséria. Tudo o que puder ser vendido, nossa produção, nosso produto, vocês irão ser donos, vocês irão vigiar. Se vocês fizerem isso, vocês não vão passar dificuldade, nem necessidade... É como ele falou: ele está se lembrando da gente. E tudo o que vem, nós compramos, ele sim manda as coisas. Mas ele mesmo não vem trazer para a gente. Só o que é mandado dele, as pessoas mandadas por ele é que chegam até a gente. Da mesma forma nós vendemos nossos produtos: guaraná, peneira, tudo quanto é o nosso produto, vendemos para ele (narrador Ernesto Cidade, 1995)16.

Em torno ao guaraná, enfim, gravita uma constelação de referenciais simbólicos, entre os quais o desse inesquecido Imperador, naturalizado como ancestral sateré-mawé, que, para os diferentes narradores, figura o seu Morekuat-wato, autoridade maior, por ter sido o primeiro na história do contato que reconheceu o direito do seu povo de ‘ficar’ na sua terra e se anunciar como seu provedor, protetor e grande reconhecedor de sua cultura produtiva. A própria Terra Indígena Andirá-Marau é chamada, até hoje, de “Jardim do Imperador”17. O narrador citado manifestou consternação por essa história não ser conhecida “pelo presidente da república que mora em Brasília”: “deve ter algum livro que conte esta história; que deve contar de onde é que desceu o nosso Imperador, que significa na língua portuguesa Presidente da República. Nós o significamos: o guardador de nosso produto: o vigia”. Algo do modelo de realeza do Imperador impregna a atitude dos tuxauas, as lideranças locais tradicionais, com apoio no guaraná. Como Henman (1982) e Lorenz (1992)

Meus filhos, vocês podem ficar, porque se nós formos todos, essa nossa plantação vai ficar sem ninguém. Se nós deixarmos nossa plantação sozinha, quem vai cuidá-la? Bem, meus filhos, vocês ficam, depois que eu veja que vocês estão bem (narrador Ernesto Cidade, 1995).

Este fragmento de uma das versões do relato sobre o Imperador, além de evocar a vocação agrícola dos Sateré-Mawé, lembra uma determinação do Regimento das Missões, de 1688, orientando que fossem deixados em suas terras os índios que não quiserem descer, em primeiro lugar porque não poderiam ser obrigados a fazê-lo – conforme recomendações que já existiam em normativas anteriores – e também por ser interessante que “as aldeias se dilatem pelos sertões” (Perrone-Moisés, 1992, p. 119).

Sobre esse tema, ver Perrone-Moisés (1992, p. 115-132) e Ribeiro e Moreira Neto (1992), principalmente as referências indexadas a respeito dos Jesuítas Antônio Vieira e João Felipe Betendorf e da “liberdade indígena”. 16 Referência que representa os regatões como emissários do Imperador. Esses comerciantes fluviais, iniciados como coletores das drogas do sertão, compuseram, junto com as forças militares e as missões religiosas, a estratégia de penetração colonial da Amazônia (Rezende, 2006, p. 118, 120, 151, 155, 162). 17 Ver o perfil do Portal dos Filhos do Waraná no Google (CPMS Filhos do Waraná, s.d.). 15

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descreveram com precisão, nas reuniões por eles convocadas explicitamente para combinar objetivos políticos ou de trabalho coletivo, que podem ocorrer, com certa frequência, no espaço dianteiro, de recepção, da casa do tuxaua da comunidade, este faz circular a cuia com o guaraná ralado de um para outro entre os presentes, os quais cuidam de tomar apenas pequenos goles, sem esgotar o líquido. “Olha o rabo!”, é a frase de advertência, de modo a que os presentes se atentem a deixar o último gole para ser bebido pelo tuxaua. A intenção apontada é a de que o guaraná, na medida em que vai sendo ralado (de forma circular sobre a pedra), circulando depois de mão em mão quando tomado, vai também recolhendo as palavras e intenções de todos os que se vão manifestando na reunião, até que o último, o tuxaua, as reúne (ingerindo ‘o rabo’), tornando-se portador, na sua própria fala, das palavras e aspirações de todos. O guaraná assim compartilhado “com o povo” (ure sapo pe’ehat), em uma espécie de consagração secular, opera como poderosa força de coesão coletiva, sendo coibidos, explicitamente, ruídos e expressões que possam induzir à separatividade e desarmonia. Nisso, o rito espelha outro, não mais observável na prática, mas que é mantido na memória dos narradores, o do Poratig. Os relatos antigos, na voz dos narradores mais reconhecidos nas suas respectivas regiões, dão conta desse artefato, como se tratando de uma arma, tipo borduna, que foi tirada do inimigo por Anumaré, o herói ancestral associado à origem do mundo. Sobre essa arma, em um de seus lados, teria cifrado Anumaré um código mínimo, mas essencial, de civilidade sateré-mawé, oposto a uma era de desentendimento e guerra que não se quer mais, grafado no outro lado18. A partilha do guaraná atualiza o que os Sateré-Mawé costumam chamar de “leitura do Poratig”, sendo isso a rememoração das normas de relacionamento deixadas como herança pelo seu demiurgo.

Além desse consumo coletivo, em ocasiões especiais, durante as quais se faz um seguimento maior de formalidades cerimoniais, os Sateré-Mawé fazem uma toma doméstica (uheçapôpe’ehat), em família, do guaraná. A toma, associada ao consumo de tabaco enrolado no tauari19, configura uma técnica, filiada à prática difusa (não especializada) do seu painismo20, mediante a qual se direciona a intenção para a consecução de propósitos específicos. É o que chamam “soprar o guaraná”, para, por exemplo, apoiar à distância um filho ou genro que saiu para caçar, de modo que ele consiga “arrodear” de forma eficaz a sua preia e voltar carregado de carne, para alegria de todos.

AS FORMAS DE FABRICO E APROVEITAMENTO AO LONGO DA HISTÓRIA A forma clássica do seu consumo local (a que tem atravessado os séculos) é a partir do chamado ‘pão’ ou ‘bastão’, cuja técnica própria de preparação foi assim descrita: Wakuat warana é o bom guaraná, bem apanhado, nem meio verde, nem maduro demais. Quando abre sozinho, esse é bom para vender em rama. Quando está aberto pode apanhar água e, ao torrar, se não fizer bem fica poca. Apanha as sementes, derrama no chão, tira os caroços, põe no paneiro, com água, no rio, para tirar o remelo do caroço, lava e traz para torrar. Põe no forno, vira e torra bem. Põe em saca e bate para quebrar a casca. Põe na peneira e vai escolhendo. Tira toda a casca fina e depois vai pilar de meio em meio quilo. Soca seco. Já moído, conta dez-doze colheres de água e põe no pilão, e com pau ou colher mexe a água e pila com força até fazer a massa. Tira e entrega para aquele que sabe fazer bem o pão ou bastão (sa’po ok). Dobra e dobra, pondo água e depois amassa em bola, depois alisa entre as mãos para fazer o pão. Em tábua esfrega como massagem e guarda na guia de banana e deixa secar. Depois que passa uma hora ou um dia, chega uma avó que o lava esfregando. Assim sai/sa’po ok’tighi– água do pão, para beber. Depois coloca de novo na guia de bananeira, deixa com o remelo da

Sobre os sentidos do dualismo inscrito no Poratig, ver Figueroa (1997), Alvarez (2007) e Kapfhammer (2004). Lecythidaceae, Couratari pulchra, cujo tecido interno é desagregado em finas folhas. Com elas, é enrolado o tabaco para ser fumado, o qual assim preparado é também chamado tauari. 20 Os Sateré-Mawé chamam paini ao ator social que entre eles tem um desempenho análogo ao dos pajés amazônicos. 18 19

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e rala. Isto é feito quando a produção de um pé é pequena. As sementes são recolhidas, fervidas e deixadas em constante maceração em água, que é renovada a cada vez que é consumida (Valmir de Araújo, tuxaua e paini de Boa Vista, no rio Andirá).

esfregada para pegar fumaça; deixa no fumeiro e vai virando, para não ficar chato. Isso durante uma noite. Depois de um dia, não vira mais. Com três ou quatro meses fica corado por dentro, por fora é só fumaça. Dá muito trabalho (Mair Ferreira da Silva, tuxaua de Nova Liberdade, no rio Marau)21.

Quando as famílias com maior apego à tradição do guaraná não dispõem de nenhuma dessas formas, elas apelam ao aproveitamento da casca do tronco ou da raiz do guaranazeiro cozidos ou raspados na água. Cada uma dessas formas de aproveitamento corresponde às diferentes fases do ciclo de produção do guaraná. O maior valor simbólico é associado, entretanto, àquela do pão ou bastão. Quando em um encontro ou reunião, alguém apresenta um bastão deles, ou apenas um fragmento, por menor que seja, para uso imediato, faz-se evidente entre os presentes um verdadeiro ‘frisson’ entusiasta pelo seu consumo, uma alegria, um brilho, principalmente entre as mulheres. Entretanto, o sucesso comercial do guaraná em bastão e como grão torrado fez com que a principal forma de consumo (o bastão ralado na pedra, sob a água) se tornasse mais rara. O guaraná, beneficiado ou não, virou capital, poupança e janela de oportunidades, além de solução para os problemas colocados pelo contexto interétnico. Assim, para a vida diária restaram as outras formas de consumo que, mais do que com o aspecto gustativo, tem a ver com a segurança psicoafetiva no desempenho das tarefas da reprodução social: caça, pesca, colheita, construção de casas e cuidados com o espaço comum das aldeias e com o desempenho correto nas interações humanas, tanto com parentes consanguíneos e afins, como no campo das relações interétnicas relativas ao comércio e ao exercício do poder político, diante das diversas frentes da sociedade nacional e das diversas esferas do Estado brasileiro e entidades no contexto internacional.

Prepara-se outra forma de ‘pão’ também a partir das flores do guaranazeiro: ferve-se a flor, com cabo e tudo na panela. Após o cozimento, tira-se a flor (pétalas), deixando só a virgulta22, a qual é socada no pilão e misturada com farinha de tapioca já torrada, para “dar o ponto, a liga, como se faz com a fruta após sua torrefação”. Nesse caso, o formato dado é de bola que, depois de defumada, é ralada na água, como o çapô clássico. A bebida resultante é mais branca, muito refrescante, levemente aromatizada, com o mesmo cheiro do guaraná. Esta modalidade de fabrico é restrita ao período de floração; não constitui uma prática extensiva e põe em evidência as famílias com maior apego à tradição do consumo do guaraná. Entre estas, contam-se as que também aproveitam as sementes germinadas que caíram no chão à época da colheita do fruto maduro. O nome que é dado a essas sementes (ururesa) é associado analogicamente aos olhos do urumutum (Nothocrax urumutum, Cracidae). Uma das narrativas míticas recolhidas referentes ao guaraná, pouco difundida, mais reconhecida em comunidades dos altos rios, associa o formato das frutas da espécie aos olhos desse pássaro, e não ao olho do menino morto pelos irmãos da mãe, como nas versões mais prestigiadas e difundidas na parte baixa dos rios. Quando a gente faz a colheita, quando a gente puxa e vai quebrando aqueles galhos, alguma frutinhas caem e a gente não acha, mas quando começa a brotar, que dá aquela vergontinha [virgulta?] e as folhinhas e a raiz na terra já aparecem, a gente passa e vai arrancando. Depois tira a vergonta que está brotando e põe numa panela, coze, amolece

Para registros históricos sobre o fabrico regional do guaraná, aprendido dos Sateré-Mawé, mas alterado pela industrialização nascente e por uma produção artesanal de figuras de pasta de guaraná, ver Monteiro (1965). Para uma descrição consensual, destinada a satisfazer exigências da certificação do guaraná como fortaleza Slow Food, ver Slow Food Brasil (2010). 22 De acordo com Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (s.d.), “vara tenra e flexível”. A palavra foi usada pelo informante nas variantes locais “vergunta” ou vergonta como sinônimo de “cabo”, usada logo antes. 21

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A principal técnica de beneficiamento do pão, em forma de bola ou bastão, vem sendo divulgada desde o século XVII. A primeira descrição bibliográfica data de1669, feita pelo jesuíta e cronista João Felipe Betendorf (1909, p. 36), um dos responsáveis missionários que encabeçaram a empreitada, confiada pela coroa portuguesa às missões e aos poderes militares de instalar aldeamentos produtivos na Amazônia. Sabe-se que, com o declínio de suas conquistas no oriente, Portugal determinou a abertura da Amazônia como o seu celeiro provedor de espécies de valor comercial (Goulart, 1968, p. 87). Confiou aos jesuítas a instalação, ao longo do Amazonas, de “reduções” ou aldeamentos de indígenas atraídos ou “resgatados” dos altos rios, com o objetivo de sua cristianização e exploração como mão de obra paga na extração das famosas “drogas do sertão”23. Atento, então, às oportunidades dessa natureza, o religioso assim descreve:

mercado regional. Segundo o bispo, o guaraná era para os Magués o seu “bem mais precioso”, consumindo-o nas diferentes ações que precediam uma guerra: quando de suas “juntas” ou “conselhos”, quando se reuniam para decidir as ações estratégicas ou outros “assuntos importantes”, acrescentando que já nessa época era empregado “como moeda para pagamentos”. Outro jesuíta, o Padre João Daniel (1975), no seu “Tesouro descoberto no rio Amazonas”, escrito entre 1757 e 1776, dedica um verbete ao guaraná, inserido na sua enumeração dos “mais preciosos haveres do Amazonas”: 11 Guaraná. Um dos gêneros mais singulares daquelas terras é a fruta guaraná por ser muito medecinal, e o mais refinado veneno de flatos, dores, e cólicas procedidos de mínimo calor. Doce óptimo para lhe beber à saúde; e remédio mui eficaz para as desenterias, e cursos, ou sejam soltos, ou de sangue procedidos de calor. Nos calores é óptima limonada: nas febres cordeal refregerante; e enfim é um compêndio de remédios: e por isso digna a sua planta de ser cultivada nos pomares, hortos, e jardins, como fazem os índios, que sendo tão descoriosos no cultivo das plantas, esta contudo tem neles tal estimação, que muitos a cultivam nas suas roças. Na sua descripção já dissemos qual seja o seu fruto mui semelhante a cerejas no tamanho, cor e feitio, e como se beneficiam em massa dura como pedra, e se usa ou mastigado, ou relado em água? E por isso aqui baste esta lembrança para ser contado entre os mais especiaes haveres daqueles rios posto que ainda pouco avultado por não serem ainda bem conhecidos os seus préstimos. Para mastigar, não há bétele, que lhe chegue, e não há doce, sobe que melhor [leva] um copo de água, do que sobre o guaraná mastigado, ainda que seja só na piquena quantidade do tamanho ua amêndoa ou avelã. Também supre a falta de sono; e muitos o tomam para não dormir, etc. etc. (Daniel, 1975, tomo I, p. 406).

Têm os Andirazes em seus matos uma frutinha a qual secam e depois pisam, fazendo delas umas bolas que estimam como os brancos o seu ouro. Chama-se guaraná. Desfeitas com uma pedrinha em cuia d’água dão tanta força como bebida que indo à caça um dia até outro não sentem fome, além do que tiram febres, cãibras e dores de cabeça (Betendorf, 1909, p. 36).

Nos breves, mas precisos registros feitos nas suas memórias sobre as visitas missionárias que fez à região do Tapajós, em 1762-1763, o Bispo do Grão Pará, João de São José (1847, p. 88, 187), beneditino, demonstra a importância do guaraná entre os Magués (mais um dos diversos nomes dados aos Sateré-Mawé ao longo dos séculos). Ele chamou a atenção, em particular, sobre o papel do seu consumo como fator de coesão social, de defesa guerreira e de inserção econômica precoce no

Madeiras finas, especiarias, como cravo, canela, cacau, e plantas medicinais, como salsaparrilha, copaíba, pau-rosa, entre outros. A Carta Régia de D. João IV, de 9/04/1655, concedeu a exclusiva jurisdição à Companhia de Jesus para erguer missões no sertão do então Estado do Maranhão e Grão Pará, com plena liberdade e independência. Tarefa que, em grande medida, foi efetivada mediante à técnica que o Padre João Daniel (1975, tomo II, p. 255-258) descreveu, entre 1757 e 1776, como “santos enganos”, em síntese, prometendo proteção e segurança contra inimigos e adversários, machados e outras instrumentos para as suas roças, roupas, abundância diária de comidas “e águas ardentes para se regalarem”.

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Em um livro que, editado em 1817, figura entre os primeiros publicados oficialmente no Brasil (quando o rei D. João VI transferiu-se com a sua corte de Lisboa para o Rio de Janeiro e trouxe consigo a Imprensa Régia), a “Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do Reino do Brazil”, do Padre Manuel Aires de Casal, o guaraná teve seu verbete garantido. A obra ofertada ao rei e auspiciada por ele (“com licença e privilégio real”) contém a descrição das riquezas e potencialidades do país e, no que concerne ao Pará e a sua comarca de Mundrucânia, está a menção ao “excelente guaraná”:

que impotência. Mas he extremo o uso que desta bebida se faz em todo o estado do Pará, tomando-a muitas pessoas a toda a hora, e sem assucar, como os Índios, sendo bastante amargo (Ribeiro de Sampaio, 1825, p. 4-5).

Depois da fase das crônicas dos missionários e dos relatórios dos administradores coloniais, foi a vez dos naturalistas viajantes, em geral, jovens europeus com notável formação acadêmica, publicarem sobre as riquezas existentes no Brasil, estando entre os mais notáveis Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, autores da “Viagem pelo Brasil, 1817-1820”,publicada originalmente em alemão, em três volumes, entre 1823 e 1831, gerando um imenso interesse que incidiu, entre outros, sobre a divulgação, na Europa, do guaraná como matéria de uso terapêutico. Poucos anos após a primeira identificação botânica do guaraná por Kunth, a partir de uma amostra recolhida por Humboldt e Bondpland, no sul da Venezuela24, von Martius recolheu, na região de Maués, em 1819, uma amostra da planta que foi denominada Paullinia sorbilis, por causa do seu uso como bebida. Esta foi reclassificada por Kunth, em 1821, como Paullinia cupana. Von Martius observou que, na época, já existia intenso comércio de guaraná, enviado a locais distantes, por toda a região dos rios Amazonas e Madeira, até o Mato Grosso, o Acre e a Bolívia (vonSpix e von Martius, 1981, tomo III, p. 109, 125, 146). Referindo-se à Vila Nova da Rainha, hoje Parintins, cidade formada pelo aldeamento de diversos povos, inclusive Sateré-Mawé, os autores relatam o quanto:

Guaraná é um pequeno coco, fruto dum arbusto, e cuja amêndoa, que é do tamanho dum grão de bico, depois de torrada, é pisada num pilão, e reduzida a massa, de que os índios fazem uns paus redondos, que endurecem extremamente, e ficam com a cor de chocolate, conservando o nome do fruto. Há quem diga que lhe ajuntam uma porção de cacau, e outra de tapioca. Atribuem-lhe vários efeitos: o mais seguro é afugentar o sono (Aires de Casal, 1817, tomo II, p. 314).

Outro registro importante, no final do século XVIII e início do XIX, foi feito pelo ouvidor e intendente geral da Capitania de São José do Rio Negro, em 1774-1775, Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio (1825, p. 5-6): “os Maués são famosos pela fabrica da celebre bebida Guaraná, frigidissima, que já se uza na Europa, e em que se tem conhecido algumas virtudes, e alguns damnos no seu nimio uso”. Faz uma descrição do uso que não é mais aquele, de primeira mão, do povo indígena descobridor, mas o da população regional que o adotou, aprendendo do primeiro, pois inclui já o uso da língua do pirarucu para ralar o pão do guaraná e a adição de açúcar na água em que o pó é hidratado:

o comércio é por ela ativamente explorado com os índios do Rio Maués e da vizinhança do Madeira, tão rico de produtos. Desses maués, tanto os brasileiros quanto os índios civilizados da mesma nação vão adquirir cravo-do-maranhão, salsaparrilha, cacau e particularmente o guaraná, droga cujo preparo está muito espalhado entre os maués (von Spix e von Martius, 1981, tomo III, p. 115).

Para as diarrheas ligeiras, dores de cabeça, e doenças de ourinas he remédio approvado. Relaxa porem o estomago o seu grande uso a algumas pessoas, e cauza insomnios, e dizem

Alexandre Rodrigues Ferreira (1885, p. 75) disse ter observado, cem anos antes, “infinitos pés” de guaraná em São Gabriel da Cachoeira e cultivado nos rios Uaupés, Içana e Xié.

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trilhos péssimos; hoje quasi todos descem até Santarém d’onde seguem em vapor até Belém, a fim de comprarem os gêneros de importação que convém ao seu comercio. Restituídos a Itaituba, regressam em suas igarités, que são as embarcações próprias para a navegação do Tapajós conduzindo o guaraná, ferro, aço, louça, cobre, vinhos, pólvora, chumbo, sal, etc. (Ferreira Penna, 1869p. 205).

O seu uso é tão vastamente espalhado, que é remetido de Tupinambarana para todo o reino e até para fora do Brasil para as províncias de Moxos e Chiquitos (p. 115). O guaraná [...] era, a princípio, preparado só pelos maués. Depois, porém, o seu uso tanto se espalhou, que o tornou artigo de comércio bastante considerável, e também foi preparado por outros colonos, principalmente em Vila Boim e ainda em outros pontos do Tapajós (p. 134).

Outro fluxo de exportação ocorria pelo rio Madeira:

A vila [Vila Nova da Rainha - Parintins] estava justamente cheia de índios que haviam trazido pastas de farinha e de guaraná para vender. Eram pequenas as suas embarcações, cada uma guarnecidaapenas com quatro remadores e repletas de carregamento, a ponto de irem a pique. Compramos algumas libras de guaraná a 1$000 cada, preço de mercado (p. 282).

Cada anno descem pelo Madeira mercadores da Bolívia e Matto-Grosso dirigindo-se a Serpa e Villa Bella da Imperatriz [atual Parintins], para onde trazem seus gêneros de exportação e d’onde recebem os de importação. D’ahi antes de regressarem, vão a Maués d’onde levam algumas mil arrobas de guaraná, regressando então com suas Ubás, carregadas d’aquelles e d’este ultimo gênero, que elles vão vender nos departamentos de Beni, Santa Cruz de la Sierra e Cochabamba na Bolívia e nas povoações de Guaporé e seus affluentes (Ferreira Penna, 1869, p. 205).

Reforçam no mesmo sentido as resenhas sobre o produto, contidas no relatório elaborado, nos anos 1860, para o Presidente da Província do Pará, pelo naturalista mineiro, Domingos Soares Ferreira Penna (1869), “A região occidental da Província do Pará. Resenhas estatísticas das Comarcas de Óbidos e Santarém”. Restringindo-se a essas comarcas, essas resenhas testemunham o cultivo do guaraná na região do Tapajós, em pequena escala, em diversas localidades (Brazília Legal, Ixiutuba, Juruty e outras) e em Itaituba, que, em 1869 tinha uma população estimada em 30.000, “em sua grande maioria composta de Índios de diversas famílias e tribus” (Ferreira Penna, 1869, p. 11525). De Itaituba, de acordo com as estatísticas da época, teriam sido exportados, no ano de 1867, mais de 800 quilos de guaraná (p. 85)26. Desse local, o produto ia para Santarém e daí para Belém ou era comprado por mercadores de Cuiabá e Diamantino que desciam pelo Tapajós

Os habitantes da Província de Matto-Grosso e os da Bolívia, desde as margens do Alto Paraguay e do Madeira até as montanhas orientaes dos Andes, fazem avultado consummo do guaraná que tem, entre elles, o emprego que no Pará e em quase todas as Províncias se dá ao café e, no Rio Grande do Sul, ao mate (Ferreira Penna, 1869, p. 204).

Essas informações são recapituladas mais tarde nas anotações sobre o guaraná, do cônego Francisco Bernardino de Souza, no seu “Lembranças e curiosidades do Vale do Amazonas”, publicado em 1873 (Souza, 1988 [1873], p. 245-247), citando grandes trechos dessas resenhas estatísticas de Ferreira Penna. Entre eles que o guaraná era, no Pará, uma bebida de uso geral e contínuo (a qual foi sendo substituída pelo açaí) e que o seu uso foi adotado por outros povos indígenas, como Munduruku, Arara, Mura e Apiaká, tendo a geografia do seu consumo se expandido notavelmente.

com algum ouro e as vezes com pequenos diamantes, que eles trocam pelo guaraná em Itaituba. Alguns preferiam outr’ora comprar essa mercadoria em Maués, atravessando a região por

Ver também Ferreira Penna, 1869, p. 116-117, referências aos “Mundurucus e Maués” como fabricantes de guaraná e o capítulo VI Guaraná, em p. 201-207. Na p. 246, o mesmo autor informa como população de Itaituba, 3.000 habitantes. Fica a dúvida sobre em qual caso houve um virtual erro de impressão.) 26 A medida exata citada é “1746 lbs, ou 54 arbs. e 18 lbs” (Ferreira Penna, 1869, p. 85). 25

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No mesmo sentido conflui o relato do engenheiro Alphonse Maugin de Lincourt (Herndon e Gibbon, 1854, tomo I, p. 310), de que, por volta de 1851-1852, de Cuiabá saíam compradores que iam até os “Mahues” buscar guaraná. Viajavam quarenta dias, descendo, levando ouro e diamantes pelos afluentes do alto Tapajós, e mais cinco meses subindo, na viagem de volta, com carregamento de guaraná, comprado diretamente dos índios, sal e pólvora, comprados em Santarém ou em Belém (Herndon e Gibbon, 1854, tomo I, p. 310):

Ha pouco tempo foi elle introduzido na prática medical na França, pelo Dr. Hervé. Alli se tem evidenciado seus bons effeitos nas diahrréias agudas ou chronicas. Nestas, algumas que tinham resistido ao uso do subnitrato de bismutho, em alta dóse, só ou unido ao ópio, por espaço de um ou dous annos, e naquelas é notável a rapidez de sua acção, tornando-se por isso recommendavel o seu uso, sobretudo na que se manifesta nos trabalhadores do campo na entrada dos calores. (...) O guaraná é a substância que mais cafeína contem, pois na opinião de Berthemot e Dechastelus, existe em maior abundancia nas sêmentes da Paulínia do que no café e chá (Theodoro Langgaard, 1865, p. 436-438).

Uma caravana, chamada Monção, que tinha chagado a Itaituba, por dez contos de reis (cinco mil dólares), com sal, guaraná, pólvora e couro, se chegar salva a Cuiabá, pode calcular entre quinze ou vinte contos de reis de proveito (Herndon e Gibbon, 1854, tomo I, p. 310)27.

Ferreira Penna (1869) também noticiara que na França teriam se obtido evidências de seus bons effeitos nas dyarhéas agudas e chronicas, sendo que algumas d’estas que tinham resistido á todos os medicamentos por espaço de um ou dous annos, cederão ao uso do guaraná. As amostras de guaraná que appareceram na grande exposição ingleza em 1862 foram muito apreciadas pelos homens scientificos. O eminente chimico Dr. Stenhouse, na analyse que fez do producto d’esta planta, achou uma consideravel quantidade de theina, elemento que dá ao chá o seu valor peculiar. (...) O guaraná é cultivado em grande escala no districto de Maués e, em escala successivamente menor, nas margens do Tapajós, Madeira, Abacaxys e Canuman. (...) No Tapajós a sua cultura tem-se propagado rapidamente, graças ao gênio industrioso dos Mundurucus, de sorte que Itaituva começa a competir com Maués no supprimento ao mercado, não só de Cuyabá e Diamantino, mas também do Pará, d’onde é exportado para as províncias do Sul e, em pequenas porções, para a Europa (Ferreira Penna, 1869, p. 206).

A preciosa e medicinal planta de guaraná, que os brasileiros das províncias centrais de Goyaz e Matto Grosso compram pelo seu peso em ouro, para usá-la contra as febres malignas que assolam em certos períodos do ano, é devida aos índios Mahués. Somente eles sabem como prepará-la e a monopolizam totalmente.(Herndon e Gibbon, 1854, tomo I, p. 313. O negrito é nosso)28.

O GUARANÁ NO MERCADO DE PRODUTOS DE SAÚDE O interesse no uso do guaraná com fins terapêuticos, na Europa, foi destacado no Brasil por diversos autores. Em meados do século XIX, o sueco Theodoro Langgaard (1865, p. 436-438), no seu “Diccionário de medicina doméstica e popular” (v. II), reporta-se (e complementa) a von Martius, a Riedel, um botânico do Imperador da Rússia que também percorreu o Brasil, e a pesquisadores que estudaram a sua composição e benefícios:

Esse autor aparece como um promotor da difusão da cultura do guaraná pelo Brasil afora, afim de exponenciar a sua exploração comercial:

Tradução nossa. Para outros dados econômicos sobre a produção e comércio de guaraná, no século XIX e no XX, até os anos 1960, ver Monteiro (1965, p. 37-43). 28 Tradução nossa. Oríginal: The precious and medicinal guaraná plant, which the Brazilian of the central provinces of Goyaz and Matto Grosso purchase with its wight in gold, to use agains the pudrid fevers which rage at certain periods of the year, is owed to the Mahues Indians. They alone know how to prepare it, and entirely monopolize it. 27

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guaraná dentro de um compêndio internacional de fórmulas magistrais, como agente tônico, adstringente e indicado contra a enxaqueca e a diarreia, e utilizado nas formas de pó, pastilhas e xarope; por Eugène Soubeiran (1870, p. 96), professor da Escola de Farmácia de Paris e presidente da Sociedade de Farmácia. Este, no seu “Tratado de farmácia teórica e prática”, menciona apenas o guaraná entre os medicamentos de origem vegetal, entre os alcaloides, cafeínicos, com uso terapêutico importante no Brasil, mas pouco adotado na Europa, para neuralgias, particularmente na enxaqueca. Embora mencione as formas sob as quais tem sido prescrito (pó, xarope, extrato e tintura alcoólica), desqualifica sua importância científica, em razão de que nenhuma fórmula correspondente tinha sido inscrita no Codex pharmacêutico da Faculdade de Medicina de Paris29. Outros que se ocupam da trajetória do guaraná na França são o botânico, agrônomo e naturalista Aristides Dupuis e o farmacêutico PierreOscar Réveil. Estes dois autores observaram que seu uso foi prestigiado por uns e desacreditado por outros, e que sua eficácia, principalmente em relação à enxaqueca, era evidente no início, mas diminuía pouco a pouco. O verbete que destinam ao guaraná termina com o seu enquadramento (junto com o café, o chá, o mate e provavelmente a coca) em um conjunto de “substâncias que se opõem à desassimilação ou que impedem a perda nutricional, destacando que todas contêm cafeína” (Dupuis e Réveil, 1874, p. 21-24). O interesse europeu pelo guaraná como produto terapêutico foi promovido notavelmente após a primeira edição, na Alemanha, da “Viagem pelo Brasil, 18171820”(von Spix e von Martius, 1981) pela inclusão de um verbete sobre o guaraná na obra do irmão do von Martius, o professor Theodor Wilhelm Christian Martius (Martius, 1832, p. 304-305), “Fundamentos de Farmacognosia do reino vegetal para uso em palestras acadêmicas, concebidos para médicos e farmacêuticos”, publicada em 183230.

Fora da Província ella pode, segundo penso, ser cultivada com vantagem nas terras quentes dos baixos valles dos rio S. Francisco, Parahyba, Rio Doce, Jequitinhonha e em vários pontos da Província de Maranhão. Aqui na Província o que convém é animarse a sua cultura por meio, não de prêmios e recompensas pecuniárias, mas de certas insenções, principalmente de direitos de exportação que matam de fome a magra e mirrada agricultura da Província (Ferreira Penna, 1869, p. 207).

A difusão do uso do guaraná na Europa se deu pelo viés de iniciativas individuais de brasileiros que enviaram, desde o Brasil, amostras do produto, sob a forma de bastão, para pesquisadores estrangeiros da área de farmácia (Mérat e Lens, 1931, p. 436-437; Ritchie, 1852, p. 465), ou por meio de pesquisadores estrangeiros interessados em matérias médicas, que viajaram pelo Brasil e levaram ou enviaram amostras do produto transformado (em bastão ou em pó), compradas no mercado (von Spix e von Martius, 1981, tomo III, p. 282; Mantegazza, 1871, tomo II, p. 247). Na França, os autores que escrevem sobre o guaraná atribuem a Cadet de Gassicourt (o primeiro farmacêutico de Napoleão e presidente da Academia Nacional de Farmácia na França) a primeira divulgação e descrição do bastão de guaraná nesse país, em 1817, sem indicação da planta de base. Fundamentou-se em uma carta que a ele enviou (em 20 jul. 1816), desde o Rio de Janeiro, um funcionário da administração real francesa (Cadet de Gassicourt, 1817, p. 259), acompanhada de uma amostra de bastão de guaraná “preparado pelos índios para sarar as mais fortes disenterias”. A carta foi publicada no Journal de Pharmacie et des Sciences Accessoires(Cadet de Gassicourt, 1816, p. 519-522). A notícia é reproduzida e difundida por outros eminentes médicos e farmacêuticos, como Virey (1840), membro da Academia de Medicina; por Julien François Jeannel (1870, p. 191), militar e professor universitário, quem inclui o

Compilação de fórmulas farmacêuticas aprovadas por essa faculdade, usualmente denominada apenas Codex, entre os farmacólogos franceses. 30 A versão original em alemão da obra de von Spix e von Martius, foi publicada em três volumes, nos anos de 1823, 1828 e 1831. 29

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A partir da amostra levada pelo seu irmão, ele extraiu, em 1826, uma matéria cristalizável que nomeou de guaranina. O médico sueco Jöns Jacob Berzélius (1831, p.189), um dos fundadores da química moderna, examinou a “guaranina”, classificando-a provisoriamente como uma base que requeria mais estudos e referindo seu uso como medicamento adstringente, do qual descreve sua preparação e alguns experimentos com ele feitos. Também teve papel importante um texto publicado em 1840, em Paris, por Gavrelle, um médico francês que se domiciliou em Lisboa e esteve no Brasil como médico de D. João VI, intitulado “Notice sur une nouvelle substance médicinale appelé Paullinia” (Gavrelle, 184031). O médico reporta o guaraná como um dos melhores adstringentes. Em 1º de julho do mesmo ano de 1840, Berthemot e Dechastelus difundem junto à Sociedade de Farmácia de Paris32 o emprego muito frequente que o doutor Gavrelle, fazia do guaraná como substância médica e os efeitos que tinha obtido. Informa também as diversas preparações e fórmulas que estavam sendo prescritas por vários médicos: pastilhas, xarope, pílulas, tintura, pomada, pó para misturar em água açucarada e chocolate tônico com guaraná. Destaca as propriedades tônicas, que associa ao tanato de cafeína (descaracterizando a referência à “guaranina”), cuja presença em grande quantidade tinha sido demonstrada nas análises que o autor realizara junto com Berthemot (Dechastelus, 1840; Berthemot e Dechastelus, 1840). Mais tarde, o neurologista e fisiologista italiano Paulo Mantegazza (1867, 1871) publica textos, indexados na categoria química e farmácia, nos quais examina o guaraná como o último entre os cinco alimentos ricos em cafeína mais conhecidos na Europa (após o café, o chá, o chocolate e o mate), aos que caracteriza pelos seus efeitos “excitantes da sensibilidade” e “amigos do pensamento”. De acordo com ele, “si ele é pouca coisa como remédio, ele

é bastante digno de estar perto do café e do chá como um estimulante para o cérebro” (Mantegazza, 1871). Destaca os usos, divulgados nos livros de Gavrelle e na obra de von Martius (1854)33, como: adstringente e antiespasmódico, utilizado em caso de diarreia, disenteria, excesso de sensibilidade e muco do plexo intestinal, blenorreia, leucorreia, sangramento, dispepsia, longa convalescença de males, clorose; “nobre remédio” nas febres, sensibilidade aumentada em consequência de resfriamento, ou por exposição à chuva, insolação, demasiada agitação do corpo, sofrimento moral, vigílias prolongadas, cólicas, flatulência, anorexia, enxaqueca nervosa, ressecamento da pele (von Martius, 1854, p. 123-124; Mantegazza, 1871, p. 258-259). Também foram aventados seus benefícios em casos de gastralgia, gota, nevralgia, reumatismo, palpitações, catarro, na retenção da urina, vômitos, em doenças nervosas, cãibras no estômago, fraqueza em geral, dispepsia, melancolia, magreza e epilepsia. Em suma, Mantegazza cita na sua obra as contribuições de Théodor Martius, Berthemot e Dechastelus, e muitos outros autores e tratados terapêuticos que já teriam abordado usos do guaraná (Jobat, Trommsdorff, Rosenthal, Trousseau, Pidoux, Gerhardt, Mérat e Lens, Debout, Descrevières, Levillain, Reich, Guibert, Rabaine, Hervoé de Lavaur, Mayr, Grisolle, Cruveilhier, Barthez, Tardieu, Amal, Huguier, Blache, Moccor, Beaujon, Réveil, Ritchie, Fournier, Gogswell). Além de questionar a autenticidade de algumas formas vendidas por certos farmacêuticos franceses e criticar os que o divulgam como panaceia para todos os males saídos da caixa de pandora, fornece dados das fontes que o abasteciam. Elas revelam como, à época, o comércio do guaraná tinha atingido um arco de distribuição bem largo. Menciona guaraná que ele mesmo comprou em Rio Preto de Santarém, no Rio de Janeiro, em Salta e Jujui, províncias do norte da Argentina, de amostras provenientes

Indexada em Zuchold (1859, p. 327). O ato consta na Ata da Sessão desse dia (Société de Pharmacie de Paris, 1840, p. 548). 33 Esta obra é atribuída, em algumas bibliografias, a Henrique Velloso d’Oliveira, quem de fato fez alguns extratos da obra em alemão de von Martius e a sua tradução ao português. 31

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de Cuiabá, Mato Grosso. Os preços que ele registrou dão uma noção do fenômeno comercial do guaraná, só na América do Sul, na segunda metade do século XIX: um quilograma pago em Rio Preto de Santarém por dez francos, no Rio de Janeiro custava de 20 a 24, e em Salta, 144 francos (mesmo ou maior seria o preço de venda na Bolívia, segundo comunicação pessoal dada ao autor). Segundo ele, o guaraná chegou a ser considerado na Argentina como “o mais querido de todos os vícios”. Destaca a sua facilidade de preparação e durabilidade, mantendo a sua eficácia em animais e seres humanos de um bastão de mais de 40 anos. “Eu não duvido que ele pode durar mais de um século e pode ser usado no pólo e nos desertos da África” (Mantegazza, 1871, p. 254-255). Disse que foi muito utilizado pelos europeus estabelecidos no Brasil: “pelos ricos como tônico, excitante da inteligência e afrodisíaco”, pelos escritores para manter-se acordado no trabalho noturno. O autor mostra-se cioso de uma manipulação segura da substância, que tenha escrutado a sua história natural, física, química, fisiológica e terapêutica. Após uma descrição detalhada dos efeitos observados em ensaios laboratoriais da aplicação de guaraná em tecidos humanos, plantas e diversas cobaias (cachorros, coelhos, peixes, pássaros, batráquios, sauros etc.), assim descreve os possíveis efeitos de uma dose de 0,5 a 4 gramas no homem:

associação aos Mahués ou Andirazes (e variantes), ou a informação que davam a respeito era generalista ou imprecisa (aos índios do Pará ou a um povo extinto da Amazônia). Nos piores casos, associavam (por semelhança sonora?) o guaraná com Guarani. Há, entretanto, um aspecto no texto desse neurologista que merece ser destacado pela proximidade com as representações que os Sateré-Mawé fazem sobre o seu Waraná como um tuxaua. No final de um dos seus textos sobre o guaraná como matéria médica, publicado em um periódico científico, Mantegazza, buscando reforçar o seu valor terapêutico, se exprime nos seguintes termos: “entre os muitos medicamentos que saem todos os dias da botica, ele não é um mentiroso, nem um charlatão, mas é um verdadeiro e honesto cavalheiro (um galantuomo)” (Mantegazza, 1867, p. 175, 1871, p. 275). Na opção feita por uma abordagem em forma de ponte, que destaca a associação de forma exclusiva ou dominante desse produto ao povo Sateré-Mawé, foram aqui apresentadas as referências mais reconhecidas sobre a irrupção, durante os séculos XVIII e XIX, do guaraná, nos campos da medicina e da farmacologia, em um recorte restrito ao Brasil, e apenas alguns países europeus34.

DO MONOPÓLIO PERDIDO À VERSÃO ENGARRAFADA DO GUARANÁ À imagem dos heróis andarilhos da memória ancestral do povo Sateré-Mawé e de outros povos que partilham o tronco linguístico e a memória tupi, o consumo do guaraná saiu da área de distribuição da espécie e se expandiu até se tornar conhecido por todo o Brasil e, em escala diversa, também por países vizinhos, principalmente na Bolívia, Argentina, Paraguai, Peru, Colômbia e Venezuela. Segundo diversas fontes (Humboldt, Michelena, Codazzi, Spruce, Crévaux, passim Patiño, 1967, v. III – entrada 203), na Venezuela, na região do alto Orinoco, assim como na

alegria, inquietação convulsiva, hipersensibilidade dos sentidos, exaltação da inteligência, insônia, pequena diminuição dos batimentos cardíacos, inapetência, estranhamento, urticária, prurido e espasmos na bexiga. O guaraná favorece o trabalho intelectual e, na maior parte dos homens, atua com maior eficácia que o chá, o café e o mate (e também maior que o chocolate).

A informação entre esses cientistas farmacêuticos sobre a origem étnica do guaraná era minimalista ou inexistente. No melhor dos casos, mencionavam sua 34

Para uma síntese recente de estudos baseados em evidências sobre as propriedades químicas e farmacológicas do guaraná, ver Schimpl et al. (2013).

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região do alto rio Negro, no estado do Amazonas, ocorre também Paullinia cupana. O seu consumo teria sido grande por indígenas da etnia Baré e outras nessa região fronteiriça. Spruce (1908, v. I, p. 451) conferiu se tratar da mesma planta que a do guaraná da região do médio Amazonas e sugeriu que teria sido veiculada pelos Baré, quando em deslocamento de uma localização mais a jusante para outras mais a montante (Spruce, 1908, v. I, p. 316 apud Patiño, 1967)35. Apesar da grande difusão do uso, o cultivo e a transformação do guaraná permaneceram praticamente como um monopólio do povo hoje conhecido como Sateré-Mawé. Esse monopólio só entrou em declínio ao final do século XIX, quando o crescimento da indústria da borracha mobilizou multidões, inclusive povos indígenas (Coudreau, 1940, p. 44) e entre eles os Maués, para a exploração extrativista da Hevea brasiliensis. Com o colapso no mercado internacional da borracha amazônica, as atenções econômicas voltaram-separa outros produtos amazônicos, entre eles a castanha, o guaraná e o pau-rosa (Silva, 1996, p. 7, 279, 287; Homma, 2003, p. 42-43). O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) teve um papel importante nessa fase, quando chegou à região dos Sateré-Mawé, segundo memórias de protagonista saterémawé que trabalhou nessa instituição, na década de 1930, envolvido no fortalecimento do extrativismo:

tirar borracha aqui na nossa tribo, junto com os Sateré. Pelo intermédio dele veio também um inspetor do SPI, de nome João Santos, que ficou como inspetor daqui de nossa tribo. Chegamos a tirar muita borracha, farinha, sorva e tudo. Vinha um barco dos americanos lá de Manaus, buscar a seringa aqui no Andirá. Foi assim que começou o SPI no Andirá (Raimundo Ferreira da Silva, o ‘Dico’, Aldeia Ponta Alegre, rio Andirá, Barreirinha, AM, entrevista concedida em 2 jun. 1995).

No meio desse refluxo do extrativismo, o cultivo do guaraná se generalizou entre a população regional do médio Amazonas e baixo Tapajós. O produto foi incorporado como insumo industrial da região Norte, e o eclipsamento da origem étnica do guaraná vinculada ao povo Sateré-Mawé passou a se acentuar. Nesse horizonte de busca por alternativas econômicas, um dos usos que mais marcou a referência ao guaraná entre os brasileiros foi como ingrediente de refrigerantes industrializados. Em 1907, surgiu em Manaus o primeiro refrigerante de guaraná no país, o guaraná Andrade (Homma, 2003, p. 76). Um aspecto a ser destacado, nesse sentido, na literatura sobre a economia do guaraná ao longo do século XX é a classificação que é feita do produto como um recurso extrativista (Silva, 1996, p. 7, 41, 168, 304, 310). Isso pode ser lido como uma dívida de não reconhecimento aos Sateré-Mawé do seu saber agrícola e tecnológico referente à cultura e à transformação do guaraná, muito embora existam os testemunhos históricos de cronistas na literatura e relatórios administrativos de séculos anteriores, alguns dos quais aqui citados36. O guaraná só passa a ser considerado como produto agrícola quando são agentes não indígenas que promovem ou efetuam o seu cultivo, principalmente como recurso a ser explorado após a crise econômica regional deflagrada com

Antes, no SPI, era grande a produção nossa, imensa. A gente produzia castanha, borracha, sorva, copaíba, óleo grosso, breu, cipó, tábua... O SPI chegou em 1934, na pessoa de Petronilo Pereira Cabral, que era índio de lá mesmo, mas se constituiu delegado dos índios por motivo da inteligência dele... Ele foi em Manaus, falou com um americano que comprava borracha na época, um tal de Juviniano e esse americano prometeu um financiamento para esse Petronilo Cabral

Ferreira Penna (1869, p. 29) informa de um aldeamento de “Indios Barés” localizado na boca do rio Curuá, na calha norte do Amazonas (em área de antiga influência do consumo de guaraná), que foram transferido, em 1758, para fortalecer a população de Óbidos. Segundo informações históricas fornecidas pelo portal do IBGE sobre o município paraense de Curuá, o mesmo iniciou-se com a fundação da Missão Baré, em 1694. Parte dessa população indígena foi transferida para um lugar que passou a ser chamado Arcozello e outra para Óbidos. Em 1900 foi criada a Vila de Curuá e em 1995 o município do mesmo nome (IBGE Cidades@, link: <http://cod.ibge.gov.br/ DWM>. Acesso em 06 março 2016). 36 Para outros documentos dos mesmos gêneros, ver Monteiro (1965). 35

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o declínio dos ciclos da borracha. Assim, em 1912, período que coincide com o declínio ocorrido, o cultivo do guaraná foi introduzido no estado do Acre por um engenheiro, delegado estadual do Ministério da Agricultura (Homma, 2003, p. 79). Nimuendajú (1948, p. 252) reporta, para o final da década de 40, coincidente com a crise do comércio extrativista da borracha, que a maior parte do guaraná para fins comerciais não era mais o produzido pelos SateréMawé, mas pelos “neo-brasileiros da região”. Silva (1996, p. 287), na sua análise quali-quantitativa da extração e do manejo dos recursos florestais da Amazônia brasileira, chega a afirmar que a importância comercial do guaraná teria levado à sua domesticação. Nas entrelinhas, fica sugerido que isso teria ocorrido em meados do século XX: “A partir da década de 1970, a sua produção extrativa foi superada pela produção oriunda das áreas cultivadas, tendo aquela inclusive sido eliminada das estatísticas oficiais”. Outros autores (como Homma, 1994) reproduzem essa abordagem discriminatória da agricultura indígena, ignorando-a como um complexo de elementos cognitivo e tecnológico com componentes materiais, e de organização produtiva em que os Sateré-Mawé se imbricaram desde tempos imemoriais e antes da chegada dos europeus, antes da e durante a organização do Brasil colonial, imperial e depois republicano. Foram eles, indiscutivelmente, que domesticaram o guaraná (Atroch et al., 2012) ou, como eles mesmos preferem, o semidomesticaram37. Ao longo do século XX o produto guaraná seguiu sua trajetória, para além do mercado dos refrigerantes. Foi introduzido no mercado dos suplementos alimentares ou nutracêuticos, energéticos, ergogênicos, dietéticos

e cosméticos, só ou em combinações diversas, com outras espécies oriundas da Amazônia, como açaí (Euterpe spp.), mirantã ou mirapuama/marapuama (Ptychopetalum olacoides), catuaba (não identificada), cacau (Theobroma cacao), ou de produtos outros, apresentados comercialmente como ginseng, shitake, gomphrena, espirulina taurina, vitaminas, entre outros. Recentemente, na Europa, o guaraná vem sendo associado a cervejas e coquetéis alcoólicos, bebidas gaseificadas e energéticas, a elixires e xaropes com plantas aromáticas, chicletes, pastilhas para chupar, pão de especiarias38.Na escala do Brasil, no entanto, foi o seu uso associado à indústria de refrigerantes que o popularizou. Isso ocorreu longe do contexto social indígena que deu origem à cultura do guaraná, embora, inicialmente, fosse feita uma exploração publicitária com referências a um indígena idealizado, genérico, que aos poucos é tirado da cena publicitária, em um processo de branqueamento de uma memória indígena, com substituição por personagens brancos39. Às primeiras marcas de refrigerantes de guaraná no Amazonas, seguem outras, no Maranhão e, depois, em São Paulo, afirmando-se progressivamente como um item da indústria brasileira e como artigo do consumo afetivo pelos brasileiros em geral. Como um gesto de justiça, o jornalística científico, Marcelo Leite, em uma de suas matérias na seção Ciência, na Folha de São Paulo (Leite, 2010), rende homenagem aos “Filhos do Guaraná”, os Sateré-Mawé, chamando a atenção para o muito que foi se perdendo entre a bebida tradicional e o famoso refrigerante, lembra que sem a contribuição desse povo “o Brasil não teria dado ao mundo seu principal

Conferir em Portal dos Filhos do Waraná (s.d.). Pode ser considerada como um fator condicionante para essa opção dos Sateré-Mawé pelo conceito de semidomesticação a sua estratégia de serem bons parceiros da Guayapi Tropical, a empresa francesa que participou de forma densa na projeção do seu waraná no mercado internacional. Essa empresa tem como estratégia de marketing, no país de Montaigne: associar qualidades de bon sauvage ao waraná dos Sateré-Mawé, o que parece fazer sentido também para os apoiadores italianos e redes do mercado justo. O waraná de plantas transplantadas da mata e criadas nas roças seria portador de qualidades, sem presença garantida no guaraná oriundo de manejo de sementes e clones, como é feito fora da Terra Indígena Sateré-Mawé (Ver o Protocolo de produção do “Pão de Waraná Sateré-Mawé”, em Slow Food Brasil, 2010). 38 Conferir no site do principal parceiro comercial francês do CPSM (Guayapi, s.d.) e em Brau Fässchen (s.d.). 39 Conferir, mediante pesquisa de imagens em um motor de busca na internet, com o tema “publicidade histórica do guaraná”. 37

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legado para a civilização, depois do samba, da caipirinha e da feijoada: o guaraná”. Como importante indicador da força simbólica do produto, que se irradiou dos SateréMawé para a própria identidade brasileira, lembra também o jornalista “do banzo que acomete brasileiros expatriados. Pagam os olhos da cara pelas garrafinhas verdes, até mais que por uma de cachaça”. Em 1962, a empresa paulista Guaraná Antártica, que lançou o guaraná associando ao famoso espumante francês, instalou-se em Maués, cidade próxima da Terra Indígena Sateré-Mawé e dos produtores não indígenas da região e, nos anos 1970, passou a plantar o guaraná em grande escala. Segundo fontes da empresa, nos anos 1990, foram lançadas franquias do refrigerante em Portugal, Japão, China e Estados Unidos, ampliando progressivamente o mercado até, no presente, ser distribuído em vinte países, como propriedade da Americas’ Beverage Company (AMBEV), a qual informa que o produto estaria colocado entre os quinze mais consumidos no mundo (Mundo das marcas, 2006). Para essa difusão vertiginosa, contribuem operações publicitárias com grande investimento de capital, como o contrato de 18 anos selado entre a referida marca e a Confederação Brasileira de Futebol para patrocínio das seleções brasileiras de futebol masculino e feminino. Sabe-se que outras marcas de refrigerante de guaraná também detêm importantes parcelas do mercado, como a Kuat e o Guaraná Jesus (do universo da Coca-Cola), entre outras de menor porte. O segmento chegou a representar um montante de vendas de R$ 3,4 bilhões anuais para o conjunto dos fabricantes, e conquistou consumidores em Portugal, Espanha, Porto Rico e Japão (Luz, 2003). Segundo a Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA, 2003, p. 3), estima-se que por volta de 70% da produção de sementes de guaraná são absorvidos pela indústria de extrato concentrado destinado

à fabricação de refrigerantes gaseificados40 e, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB, 2013a), a demanda do segmento cresce 3% ao ano. De acordo com fontes doInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística(IBGE), a média da produção brasileira de guaraná, de 2005 a 2015, é de 14.416 ha plantados e de 3.607 t produzidas, a maior parte produzida nos estados do Amazonas e da Bahia (IBGE, 2015, p. 2 e 4). Este último estado superou em produtividade o Amazonas, o maior produtor da região Norte. De uma produção nacional anual registrada, em 2014, de 3.724 toneladas de sementes de guaraná, a Bahia respondeu por 72,2% dessa produção, enquanto o Norte por 21,7%, tendo o Amazonas contribuído com 21,3%. Há também produção em Mato Grosso, Pará, Rondônia, Acre, Roraima. O Ministério da Agricultura e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) têm sido decisivos nessa expansão. A EMBRAPA já lançou 18 cultivares voltadas para o aumento da produtividade e para a resistência a doenças. As duas últimas foram anunciadas em novembro de 2013, associadas a um potencial de aumento da produtividade entre 500 e 600% (Souza, 2013; Rosa, 2013). Segundo Cunha (2009, p. 9), do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, no município de Maués, cuja sede é referência para os Sateré-Mawé da região do rio Marau, em 2001, contava-se com 2.600 produtores, chegando a uma produção de 200 toneladas por ano. Filoche e Pinton (2013, p. 14) informam que 2.700 produtores, em 2010, apresentavam uma produção de 900 t. No seu trabalho intitulado “A quem pertence o Guaraná?” (2013), estes autores analisam o campo das interações entre os diversos segmentos que orbitam ao redor do guaraná, produtores indígenas, pequenos produtores não indígenas de Maués e Urucará, Amazonas, indústrias de refrigerantes, instituições de pesquisa e da gestão do vegetal. Abordam as suas respectivas formas de organização, aspirações e estratégias de inserção no complexo e diversificado jogo nos sistemas

O teor de guaraná em um litro de refrigerante é da ordem e 0,02 g (CONAB, 2013a, p. 3).

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de regras para a produção do guaraná, seu processamento agrícola e industrial e sua cotação nos mercados. Por fim, para o mercado exterior é destinada entre 300 e 500 t ao ano da produção nacional (Cunha, 2009, p. 25), o que corresponde a aproximadamente 10,5%, (CONAB, 2013b, p. 50) do total produzido,com um crescimento de demanda de 20% ao ano (Cunha, 2009, p. 25). Cabe perguntar onde se situam os Sateré-Mawé em relação a tudo isso? À margem? Como visto anteriormente, não são raras as versões dos relatos míticos sobre a origem do guaraná que assinalam para ele um grande destino. Dessa forma, não há estranhamento quando aspectos dessa trajetória lhes são evocados, ao contrário, eles são percebidos como confirmatórios. Qualquer um entre os Sateré-Mawé aprende, ao longo da vida, por meio das diversas versões dos relatos antigos, que ele é mais um ‘filho do guaraná’; que seu povo nasceu do mesmo buraco pelo qual nasceu o guaraná. Portanto, a planta configurase como uma autêntica fortaleza, tanto por si própria quanto para sua identidade étnica. Assim, o guaraná tem tido seu papel garantido nos movimentos de resistência étnica e cultural, desde aqueles visando à regularização e defesa do seu território, aos de recuperação de sua autonomia econômica, perdida por efeito dos impactos desorganizadores da ascensão e da queda do comércio da borracha e de outros produtos extrativistas. Figurou como elemento agregador, durante os anos 1980, tanto na oficialização pública da sua organização política, sob a forma de um Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé (CGTSM), como na disputa por financiamento de projetos comunitários de produção e comercialização, mediante à parceria com organizações das esferas não governamental, empresarial e governamental. Tem sido o eixo para a construção de um alinhamento com paradigmas de autonomia, sustentabilidade socioambiental e cultural e

comércio justo. Assim, ao longo dos últimos trinta anos, os Sateré-Mawé fizeram a transição para o século XXI, com várias frentes de luta progressiva. Começaram pela ruptura do atrelamento ao esquema comercial do guaraná, mediado pelos padrões/comerciantes fluviais/regatões que imperou desde a colônia até meados do século XX41. Passaram, a seguir, pela tentativa de organização de cooperativa e cantinas comunitárias no final dos anos 70 e na década de 80 (Lorenz, 1992, p. 79-94, 123140). Chegaram (não por fim), durante os anos 90 e os transcorridos neste século, ao que denominam como um Projeto Integrado de Etnodesenvolvimento, de produção e comercialização diferenciada do seu Waraná nativo, direcionado inicialmente para o mercado internacional, apostando em garantir padrões éticos, ecológicos, sociais e culturais, cujo custeio é transferido para o seu preço final (Bastos e Furtado, 2013; Beaufort e Wolf, 2008). Organizados, desde 2008, em uma articulação específica denominada Consórcio dos Produtores Sateré-Mawé (CPSM), na qualidade de ‘entidade autônoma auxiliar’ e ‘membro associado’ do CGTSM, e contando com 437 a 500 produtores cadastrados, com uma média de 2 ha de guaranazais cada, distribuídos em mais de 70 aldeias (Portal dos Filhos do Waraná, s.d.), conseguiram parcerias na França e na Itália, contando, para isso, com investimentos bastante significativos. A estratégia comercial, pelo lado da França, envolve uma intensa parceria com a empresa Guayapi Tropical, que importa o seu Waraná, sujeito a certificação periódica por organismos reconhecidos na União Europeia. De acordo com comunicaçãopar e-mail com a gerente dessa empresa (em 7mar. 2016), Guayapi distribui o Waraná sateré-mawé e os produtos que com ele a própria empresa fabrica em uma rede de três mil pontos de comercialização de produtos orgânicos e do comércio justo, na França metropolitana, em mais 25 da Guyana e

Essas figuras, no entanto, tiveram a sua atuação recentemente revitalizada em outros campos, como no transporte de passageiros para o recebimento, em área urbana, dos benefícios sociais transferidos pelo governo (aposentadorias, salários de professores e agentes de saúde, auxílio maternidade) e no agenciamento de encomendas e entrega de mercadorias nas aldeias. Serviços que não gozam de nenhuma cobertura de políticas públicas de transporte e mobilidade.

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6 lojas na Martinica e na Guadalupe. Além disso, Guayapi exporta, desde a França para aproximadamente 50 lojas na Bélgica, 30 na Espanha, 10 na Itália e 5 na Alemanha, 4 na Suíça42. Com a renda auferida, foi possível pagar às famílias indígenas produtoras um preço, fixado em comum acordo com a organização indígena, quatro vezes maior do que o praticado no mercado brasileiro43. Pelo lado italiano, conseguiram uma importante articulação com Slow Food, associação internacional surgida e sediada nesse país, que, com a colaboração da Associação para Cooperação Rural na África e América Latina (ACRA), incluiu o guaraná nativo sateré-mawé e as abelhas nativas que polinizam os guaranazais como ‘fortalezas’ do Slow Food. Isso se traduz em projetos de reforço à conservação do complexo sociocultural, produtivo e organizacional autônomo, associado ao Waraná, com abertura para inovações (Slow Food Brasil, 2010).Uma série de outras parcerias foram sendo construídas: com a Associação e a Cooperativa Chico Mendes,o Instituto de Cooperação Econômica Internacional e a Associação de Consumo Ético e Alternativo, todos de Milão, além da Associação Piccolo Mondo, de Piacenza. Mediante à articulação com a Cooperativa, integrante da rede Cooperativa Terzo Mundo Altromercado (CTM), conseguiram a antecipação do pagamento de 100% da produção, permitindo a dispensa de capital de giro (Fraboni, 2000, p. 470). Por essas articulações, o guaraná passou a ser vendido em 250 lojas, nesse país, tendo também saída para Alemanha. Outras parcerias importantes com a Itália ocorreram

com o Ministério de Cooperação italiano, a associação Yara, voltada para a promoção e o resgate das culturas indígenas, uma organização federada com a Associação de Consultoria e Pesquisa Indianista na Amazônia (ACOPIAMA), sediada em Manaus, que, desde meados dos anos 1990, tem prestado serviços de assessoria ao povo Sateré-Mawé, apoiando a sua organização assim como de outras organizações indígenas da região em dois eixos de ação, o de retomada da autonomia e o do etnodesenvolvimento. O processo da exportação dessa produção autônoma passou por um gradiente, saindo de 20 quilos, na sua primeira edição, em 1995, para 3,3 toneladas, em 1999 (Fraboni, 2000). Segundo Beaufort e Wolf (2008, p. 44), a média de exportação entre 2000 e 2007 foi de 6,5 toneladas. No ano 2000 os Sateré-Mawé conseguiram uma safra de dez toneladas, o dobro do esperado (GUARANA vai para a Europa, 2000), e o preço de venda do quilo teria atingido US$32,00 (Fraboni, 2000). Para a Itália, a exportação teria sido de 4 toneladas, em 2001, (Fraboni,2000). Segundo notícia veiculada pelo jornal Amazonas em Tempo (20 nov. 2002), enquanto na Europa o quilo do guaraná era vendido em 2001, por US$45,00, a AMBEV pagava aos produtores regionais no Amazonas R$2,5 por quilo de sementes. Essa disparidade teria mobilizado autoridades de Maués, município de referência da produção de guaraná no Amazonas, a barganhar, com sucesso, o preço a ser pago por essa empresa aos produtores regionais. Ou seja, os feitos dos ‘filhos do

A certificação foi iniciada em 2001, por The Forest Garden Product Certification Service (FGPCS), para o mercado justo, desde 2001, com critérios de saúde e biodiversidade. Na mesma linha e para o mercado brasileiro e externo, o Instituto Biodinâmico (IBD) tem certificado, dentro do escopo de produto sustentável, orgânico, de origem vegetal, dentro de normas legais, sociais, ambientais, de saúde, trabalho e desenvolvimento de pessoal, sem uso de organismos geneticamente modificados etc. Um outro selo importante dentro do Brasil é o que foi outorgado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA): “Aqui tem Agricultura Familiar”, tanto para o guaraná nativo em pó, como para outros produtos que foram sendo lançados na esteira do sucesso comercial do Waraná: os óleos de andiroba, copaíba, cumaru, castanha, extratos e essências de crajiru, unha de gato em pó, breu branco, mirantã, própolis, urucum. 43 Segundo Beaufort e Wolf (2008, p. 44), a diferença de preço alcançado pelo Waraná nativo sateré-mawé e o do guaraná de qualidade inferior, de monocultura intensiva, chegou a ser entre 20 e 40 vezes maior. Boa parte desse sucesso deve-se à qualidade ética dos parceiros comerciais dos Sateré-Mawé na linha do comércio justo. A sua principal parceira, Claudie Ravel, fundadora e dirigente de Guayapi Tropical, foi nomeada pelo presidente francês e pelo Ministério da Economia, Indústria e Setor Digital Chevalier dans l’Ordre National du Mérite (Présidence de la République Française, 2015). 42

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guaraná’, além de movimentarem a economia do seu estado, tornaram-se paradigma para políticas econômicas na sua região. A sua performance tem chamado a atenção até da Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária (CNA) que, sob uma manchete de 9 de dezembro de 2013, pelo seu canal na web, intitulada “O rentável negócio do guaraná reforça economia da Amazônia”, divulga ter sido de R$80,00 o preço atingido pelo guaraná produzido pelos Sateré-Mawé (no âmbito do seu Projeto Waraná – isto não é dito), enquanto o atingido por outros produtores na região de Maués, comprado pela AMBEV, chega a R$22,00 (Raposo, 2013). É relevante considerar, por outra parte, que a previsão de preços mínimos feita pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) para o guaraná da safra 2015-2016, para o Norte e o CentroOeste, é de R$12,30, e, para o Nordeste, é de R$7,58/ kg (MAPA, 2015, p. 5044). De acordo com informação de Guayapi Tropical (comunicação pessoal de Claudie Ravel, em 8 março 2016), o preço que pagou aos Sateré-Mawé de 1995 a 2005 foi de 45 euros/kg; mas durante os últimos dez anos aumentou e se manteve estável em 50 euros/ kg.Esse valor é acordado com as organizações CPSM e CGTSM, estabelecido por contrato e divulgado em todos os materiais de comunicação, de acordo com a praxe estabelecida no comércio justo. Para a safra de 2016, a parceria entre o CPSM e Guayapi lançou uma campanha de pré-financiamento pelo montante de 30.000 euros, pela Blue Bees, a primeira plataforma francesa de financiamento participativo dedicada à agricultura, à agroecologia e à alimentação responsável (Blue Bees, s.d.). Ao longo de sua trajetória, o Projeto Waraná do Sateré-Mawé vem defendendo diversas bandeiras e programas, em uma tendência de complexidade crescente,

entre as quais destacam, para além do foco centrado no guaraná e a sua produção nos moldes tradicionais, a de uma economia local integrada e ecologicamente orientada, com a recuperação, valorização e promoção de tradições artesanais em risco de desaparecer (como a de cerâmica e a de trançados), também de recomposição florestal com espécies amazônicas (manejo sustentável de pau-rosa (Aniba rosaeodora), da copaíba (Copaifera sp.), andiroba (Carapa guianensis), muirapuama (Ptychopetalum olacoides), unha-de-gato (Uncaria tomentosa) e outras espécies produtoras de sementes utilizadas em artesanato ornamental e produção de cosméticos, a exemplo do urucum (Bixa orellana). O beneficiamento e a comercialização dessas espécies já estão sendo feitos graças ao acúmulo de experiência obtida com o Waraná. Atenção passou a ser dada para o saber tradicional e para o potencial produtivo das abelhas nativas. Um projeto de turismo ecológico, que aproxima visitantes à paisagem e ao modo de vida e trabalho dos produtores de guaraná, está em pleno desenvolvimento, em um sítio situado em proximidade da Terra Indígena Andirá-Marau. É o chamado Centro de Excelência Vintequilos, de agrossilviturismo e vitrine do Projeto Waraná. Várias dessas atividades foram ou são conduzidas especialmente pela organização das mulheres, como a organização para a coleta diferenciada e destino adequado do lixo e a suplementação proteica na alimentação, com a criação de galinhas utilizando ração autoproduzida. As bandeiras mais recentes, no âmbito internacional, passaram pela obtenção para todos os seus produtos, na França, da certificação orgânica da Ecocert45 e a de Agriculture Biologique (AB); da certificação, pela Forest Garden Program (FGP), para a União Europeia46 e pela participação do CPSM na Federação Internacional

Os preços mínimo foram os mesmos para as safras 1014/2015 e 2013/2014 (MAPA, 2015, p. 50; MAPA, 2013, p. 71). Vale observar o contraste entre a estabilidade do preço alto ao longo dos anos no mercado justo europeu, a pesar da crise, e a estabilidade do preço em nível mínimo no mercado nacional. 45 Grupo Ecocert: Organisme de controle & de certification au service de l’homme et de l’environnement. 46 A obtenção das certificações, na França, tem estado aos cuidados da empresa Guayapi Tropical. Conferir o perfil dessa empresa na Plate-forme pour le Commerce Équitable (s.d.). 44

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de Comércio Alternativo (IFAT) (Fajardo, 2010, p. 83). No âmbito nacional, a principal luta está centrada, nos últimos anos, na obtenção, para o Waraná nativo, de um registro de Indicação Geográfica, na categoria Denominação de Origem (DO), junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Foram dedicados anos aos densos preparativos de um dossiê completo, entregue, em fevereiro de 2015, à Coordenação de Incentivo à Indicação Geográfica de Produtos Agropecuários (CIG), do Departamento de Propriedade Intelectual e Tecnologia da Agropecuária (DEPTA), da Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e Cooperativismo (SDC), do MAPA, para avaliação, revisão e encaminhamento junto ao INPI. A Denominação de Origem (DO) é a brecha visualizada pelos Sateré-Mawé para inserir dentro do ordenamento normativo nacional (norma padrão) o que a portentosa tradição mítica desse povo já consagra como princípio fundamental do seu direito costumeiro (seu direito outorgado pelo Imperador mitificado a permanecerem nas suas terras) e de sua ontocosmologia (que estabelece a consubstanciação radical entre o guaraná, a pessoa sateré-mawé e o seu destino no mundo). A previsão é da DO operar uma espécie de refundação em âmbito nacional, pelo reconhecimento legal da diferença do Waraná, em termos de: 1) as características do seu ambiente de origem, próprias à Terra Indígena (identificadas na dimensão mítica com o Nusoken e na etno-história como o Jardim do Imperador), 2) de um saber fazer tradicional associado, quanto às técnicas e cuidados de cultivo (a partir de matrizes semissilvestres regularmente renovadas, sem uso de agentes agroquímicos) e quanto às técnicas de beneficiamento, na origem exclusivas e depois difundidas na vizinhança e alhures. Ora, os Sateré-Mawé se autorreconhecem por terem sido reconhecidos pelo seu Imperador (que não foi somente mítico, mas uma autoridade real, não só porque existiu, mas por se tratar

de um soberano do império colonial, como foi visto) como os guardiões, tanto de um legado territorial quanto da base genética diferenciada da planta com a qual compartilham esse território (Atroch et al., 2012, p. 345-346);em uma concepção mais profunda, compartilham também a sua substância ontológica e destino. Pelo seu acúmulo nos últimos 30 anos, sabem que a DO constituirá um grande reforço às demais certificações do seu Waraná e um acréscimo no seu valor de mercado47. A máquina do tempo do Waraná, do povo SateréMawé, não pára. Pelo contrário, constitui um polo magnético que gera ou atrai muitas outras iniciativas que estão sendo desenvolvidas, em sinergia com o Projeto Integrado de Etnodesenvolvimento Sateré-Mawé. Entre as últimas conquistas, figuram a de uma licenciatura especial para os seus professores indígenas estarem melhor preparados para formar as crianças dentro de um projeto políticopedagógico diferenciado, que conflua com os objetivos do seu etnodesenvolvimento, e um projeto de zoneamento etnoecológico, dentro do Programa Nacional de Gestão Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), recentemente selecionado para financiamento pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), além de outras iniciativas que podem ser conferidas no site do Consórcio dos Produtores Sateré-Mawé (CPSM) Filhos do Waraná (Portal dos Filhos do Waraná, s.d.). Entre elas, destacam-se a autodescrição do CPSM mediante uma mixagem de referenciais sociocosmológicos e gerenciais, como uma organização econômica de famílias indígenas “que geram renda cuidando do Jardim do Imperador e vivem na Terra Indígena Andirá-Marau que abriga o saterémawé éco ga’apypiat waraná mimotypoot sése, o Santuário Ecológico e Cultural do Waraná da Nação Sateré-Mawé”.O consórcio, cuja montagem decorreu por mais de 15 anos, teve seu estatuto registrado no cartório do 3º ofício de Parintins, em 21 de agosto de 2013. Como “motivo de

Ver também Filoche e Pinton, 2013, p. 16) e a reportagem de Miller (2015), sobre ação do Projeto de Gestão Ambiental de Terras Indígenas, na Terra Andirá-Marau.

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orgulho”, identifica-se como braço econômico do CGTSM e enuncia “ser a primeira organização indígena brasileira que transforma ela mesma seus produtos na unidade de beneficiamento dela, e exporta diretamente seus produtos no SISCOMEX”. Com a mesma dinâmica mística que caracteriza a relação entre os Sateré-Mawé e o guaraná – não isenta de traços messiânicos, que faz lembrar a dos Guarani48, mas que não é voltada para a verticalidade, e sim para a horizontalidade –, o CPSM se arvora como entidade de defesa e valorização do autodeclarado “Santuário ecológico e cultural do Guaraná do Povo Sateré-Mawé” como valor “de INTERESSE NACIONAL MAIOR” [sic] a ser protegido de empreendimentos que possam atingir a sua integridade, como “qualquer tipo de mineração ou aproveitamento em escala industrial dos recursos hídricos no mesmo território” e como agente da difusão do Waraná no mundo: “ensinamos ao mundo como aproveitar de suas virtudes”. É importante destacar, de passagem, que dando coerência a essas convicções e propósitos, os SateréMawé aspiram ao reconhecimento pela United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO) do seu santuário ecológico e cultural. Para maior conhecimento de muitos outros desdobramentos dessa viagem propiciada por essa autêntica máquina do tempo que constitui o guaraná para o seu povo guardião, e um planta por eles domesticada, resta recomendar a visita atenta ao Portal dos Filhos do Waraná (s.d.).

própria origem do povo, mas à sua implantação territorial e, por fim, à sua identidade e afirmação econômica e política no horizonte das relações interétnicas. São, notavelmente, quase quatrocentos anos de registros historiográficos, somente alguns dos quais aqui foram evocados, referentes à associação identitária entre os Sateré-Mawé e o guaraná. É com essa máquina do tempo que esse povo vem navegando ao longo de todaatrajetória de contato, enfrentando as áleas dos conflitos internos dentro de uma sociedade que não perdeu a memória de suas origens segmentares, e as áleas do encontro entre mundos (como as situações relativas à sua inserção nas redes do comércio justo, descritas por Kampfhammer (Wright et al, 2012, p.382-450). Enfrentamentos que vêm sendo sustentados pela força dessa identidade e de sua tradição, de se organizarem em coletivos de argumentação, desde aqueles que ocorrem nos vestíbulos das casas dos tuxauas até os das suas múltiplas organizações ou conselhos setoriais, arranjados por bacias hidrográficas, por ocupações (professores, agentes de saúde, produtores, consumidores) ou como ‘conselho geral’, formas todas essas que em si mesmas são expressões do entendimento sateré-mawé em relação à força de sua identidade com o seu Waraná.

AGRADECIMENTOS A pesquisa original teve o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/Ministério da Educação (CAPES/MEC) e do Biodiversity Support Program, Washington; resultou em uma tese de doutorado em Antropologia Social e Etnologia, defendida na École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França, em 1997. Agradeço ao povo Sateré-Mawé e ao seu assessor Maurício Fraboni pela substancial colaboração, aos ‘releitores’, a Melanie Congretel, pelo envio de indicações bibliográficas, e a Fawzia Satour, pela tradução do resumo ao inglês e a Siegfried Elsner pela colaboração na versão de um texto de alemão antigo para português.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O caso do Waraná dos Sateré-Mawé ilustra a transcendência e a potência que pode atingir a relação de um povo com uma espécie por ele descoberta, domesticada e, ao longo da história, incorporada definitivamente à sua produção agrícola comercial e à do Brasil. Espécie a cujas propriedades físico-químicas, farmacológicas, fitoterápicas, ergogênicas, nutracéuticas, dietéticas, cosméticas foram sendo imbricadas elaborações simbólicas, não só sobre a

As informações de Kapfhammer (2004, p. 132) confirmam traços messiânicos, associados, no caso, ao CGTSM.

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Socialidade e diversidade de pequis (Caryocar brasiliense, Caryocaraceae) entre os Kuikuro do alto rio Xingu (Brasil) Sociality and diversity of pequi (Caryocar brasiliense Caryocaraceae) among the Kuikuro of the Upper Xingu river (Brazil) Maira SmithI, Carlos FaustoII I II

Fundação Nacional do Índio. Brasília, Distrito Federal, Brasil

Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Resumo: Este artigo versa sobre aspectos socioculturais do cultivo de pequi (Caryocar brasiliense) entre os Kuikuro do alto Xingu, para os quais esta espécie possui alto valor simbólico e alimentar. O cultivo de pequi é uma prática compartilhada entre os nove povos indígenas que compõem uma sociedade pluriétnica e multilinguística na região dos formadores do Rio Xingu, da qual os Kuikuro fazem parte. A despeito da grande importância desta espécie entre os povos da região, sua diversidade morfológica nunca foi devidamente investigada em pesquisa acadêmica. Nosso objetivo é apresentar e analisar os aspectos socioculturais envolvidos no cultivo de pequi que incidem sobre a diversidade varietal da espécie, aqui tomada como a diversidade percebida e nomeada pelos Kuikuro. O estudo foi realizado na aldeia Kuikuro de Ipatse entre 2002 e 2003 (Fausto) e 2010 e 2012 (Smith), por meio de entrevistas e registro audiovisual das atividades de colheita e processamento dos frutos. Observamos que os conhecimentos e práticas de seleção e cultivo de sementes de pequi favorecem sua diversidade intraespecífica nos pequizais cultivados. As análises aqui apresentadas contribuem para demonstrar a impossibilidade de dissociar patrimônio cultural e genético no contexto dos sistemas agrícolas amazônicos. Palavras-chave: Agrobiodiversidade. Pequi. Caryocar. Kuikuro. Patrimônio genético. Conhecimentos tradicionais associados. Abstract: This article aims to investigate and document socio-cultural aspects of the cultivation, domestication and processing of pequi (Caryocar brasiliense) among the Kuikuro Indians of the Upper Xingu, for whom this fruit has important symbolic and nutritional roles. Pequi cultivation is shared by the nine indigenous peoples who constitute the regional multiethnic system of the Upper Xingu. Despite the species’ importance among these peoples, its morphological diversity has not been the subject of intensive research yet. We intend to correlate social and cultural aspects involved in the management practices of the Kuikuro and the morphological diversity of pequi. Fieldwork was carried out between 2002 – 2003 (Fausto) and 2010 – 2012 (Smith) in the Kuikuro village of Ipatse in the Xingu Indigenous Park. Fieldwork involved interviewing families, participative observations and audiovisual recording. We observed that the knowledge and practices of seed selection and cultivation favor intraspecific diversity of the cultivated pequi groves. Our analysis, thus, supports the inextricable connection between genetic and cultural heritage in Amazonian agricultural systems. Keywords: Agrobiodiversity. Pequi. Caryocar. Kuikuro. Genetic heritage. Traditional knowledge.

SMITH, Maira; FAUSTO, Carlos. Socialidade e diversidade de pequis (Caryocar brasiliense, Caryocaraceae) entre os Kuikuro do alto rio Xingu (Brasil). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 87-113, jan.-abr. 2016. DOI: http://dx.doi. org/10.1590/1981.81222016000100006. Autor para correspondência: Maira Smith. Fundação Nacional do Índio. Coordenação Geral de Gestão Ambiental. SQS 305, Bloco E, Apto 402. Brasília, DF, Brasil. CEP 70352-050 (mairasmith17@yahoo.com.br). Recebido em 29/11/2013 Aprovado em 21/03/2016

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Socialidade e diversidade de pequis (Caryocar brasiliense, Caryocaraceae) entre os Kuikuro do alto rio Xingu (Brasil)

INTRODUÇÃO É comum afirmar-se que a Amazônia é uma área de ‘megabiodiversidade natural’. Nas últimas décadas, estudos têm associado tal diversidade a atividades culturais de populações tradicionais, sobretudo indígenas. A diversificação do meio amazônico estaria vinculada, assim, não exclusivamente a processos de ordem natural, mas ao impacto de práticas de cultivo e utilização do território por estas populações (Posey, 1986; Balée, 1989, 1993; Heckenberger et al., 2003; Erickson, 2008; ter Steege et al., 2013). No que toca à agrobiodiversidade1, que é o objeto precípuo deste artigo, a diversidade de variedades, espécies e paisagens cultivadas e/ou manejadas deve ser associada também à diversidade interna às próprias culturas indígenas. Em vez de tomá-las como uma totalidade homogênea, cumpre estudá-las em sua variabilidade. Neste texto, focalizaremos a fruticultura do pequi na região do alto Xingu, Mato Grosso, Brasil. Nas últimas décadas, o desmatamento na região amazônica, decorrente da urbanização crescente, da expansão do mercado nacional de bens agropecuários e da ampliação da malha rodoviária, tem provocado impactos sobre a diversidade biológica, não apenas “natural” como também “cultural”, acarretando perdas locais de recursos domesticados e cultivados (Thrupp, 2000). Esse processo está intimamente associado a transformações que ocorrem, hoje, entre os povos indígenas, em função das novas oportunidades de estudo e de trabalho, da inserção na economia monetária, da crescente atração pelas cidades e do impacto da chegada de meios de comunicação nas aldeias (Gordon, 2006; Andrello, 2006; Fausto, 2011). Neste contexto de mudança, a erosão da agrobiodiversidade decorre da perda de conhecimentos e de práticas tradicionais de manejo características de

sistemas agrícolas indígenas, que levaram séculos ou até milênios para se desenvolver (Kerr, 1986; Clement, 1999; Clement et al., 2009c). Embora os sistemas agrícolas indígenas sejam constantemente renovados a partir da incorporação de novos elementos, as rápidas mudanças socioambientais que estão ocorrendo na região podem comprometer sua resiliência e capacidade de reprodução. Desde os anos 1990, a conservação da agrobiodiversidade tem recebido atenção crescente, em função de seu papel na alimentação mundial (Wood e Lenné, 1997)2, sendo particularmente relevantes os estudos sobre conservação em seu próprio contexto ecológico e sociocultural, a chamada conservação on-farm (Bellon et al., 1997; Elias et al. 2001; Clement et al., 2009a). Contudo, esta literatura ainda está predominantemente centrada nas bases genéticas e agronômicas da agrobiodiversidade, sem dedicar igual atenção aos processos socioculturais responsáveis por sua origem e manutenção (Emperaire, 2006; Rival, 2007; Rival e Mckey, 2008). Estudos sobre a diversidade intraespecífica da mandioca junto às populações indígenas e locais na Amazônia têm mostrado que ações efetivas de conservação da agrobiodiversidade dependem de uma melhor compreensão sobre as relações entre diversidade per se e o sistema agrícola enquanto conjunto de práticas inseridas em um contexto sociocultural mais amplo (Emperaire, 2002, 2005; Heckler e Zent, 2008). Isso é válido não apenas para os ‘produtos das roças’, mas também para recursos florestais perenes, sobretudo árvores frutíferas, que são importantes fontes de alimentação e renda entre povos e comunidades locais na Amazônia. De acordo com Clement e colaboradores (2010), 68% dos recursos vegetais amazônicos domesticados ou em processo de domesticação são espécies lenhosas, o que demonstra a importante contribuição desse grupo de

Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), a agrobiodiversidade é resultante de processos evolutivos, como a seleção natural e a seleção artificial por agricultores, durante milênios, e engloba todos os recursos e espaços envolvidos na produção agrícola pelas sociedades humanas (FAO, 1999). Neste trabalho, estamos restringindo o termo agrobiodiversidade à diversidade específica e intraespecífica dos recursos genéticos vegetais e aos agroecossistemas nos quais eles se reproduzem. 2 Segundo Thrupp (2000), mais de 20% dos recursos alimentares mundiais são provenientes de sistemas agrícolas tradicionais. 1

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plantas à agrobiodiversidade. Segundo esses autores, há vários e importantes estudos sobre a diversidade genotípica e fenotípica de espécies arbóreas ou lenhosas na Amazônia focados em processos de domesticação de plantas e de paisagens por sociedades locais, entre os quais se incluem espécies como a castanheira-do-brasil (Bertholletia excelsa), a pupunha (Bactris gasipaes), o cacau (Theobroma cacao) e o guaraná (Paullinia cupana var. sorbilis) (Clement et al., 2010, 2009b). Contudo, há ainda poucos estudos centrados na ‘dimensão sociocultural’ do cultivo e na domesticação local de espécies arbóreas, sobretudo no contexto de sistemas agrícolas indígenas. Neste artigo, não cabe uma discussão aprofundada sobre o que frequentemente é chamado na literatura de ‘componente’ ou ‘dimensão sociocultural’ de um sistema natural, mas é preciso notar que estas expressões são imperfeitas e, se as utilizamos aqui, o fazemos de forma provisória. Elas supõem uma dicotomia primeira entre natureza e cultura, sendo o problema subsequente o de determinar a relação entre estes termos – relação esta normalmente pensada como mera interpretação cultural, sempre variável, de fatos naturais universais. Autores contemporâneos colocam esse paradigma em questão (Latour, 1991; Ingold, 2000; Descola, 2005; Viveiros de Castro, 1996), atribuindo-lhe um caráter limitado a uma ontologia específica: o naturalismo ocidental moderno. Quando estudamos populações indígenas, é particularmente arriscado manter-se no interior desse paradigma, pois, como afirma Descola:

Compreender esse regime ontológico é fundamental se quisermos propor modos sui generis de proteção e salvaguarda de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, que possam ser efetivamente utilizados por povos indígenas na promoção de seus direitos. Neste texto, buscamos estudar o cultivo e a domesticação do pequizeiro (Caryocar brasiliense, Caryocaraceae) entre os Kuikuro do alto Xingu, focalizando o regime de socialidade atribuído à espécie e aos espaços a ela associados. Vamos nos deter nas práticas, técnicas, preferências, ideias e representações, bem como nos conhecimentos associados às atividades de seleção, cultivo, manejo e uso da espécie, que, no contexto indígena do alto Xingu, caracteriza-se como um recurso agrícola. Na medida do possível, evitaremos a oposição entre o fato e o feito, embora, ao falarmos de ‘domesticação’, estejamos postulando um processo no qual uma população biológica natural vai sendo transformada pelo manejo humano até depender deste para a sua reprodução. É-nos inevitável formular o problema nesses termos, pois se trata aqui de fazer os conhecimentos tradicionais dialogarem com nosso sistema de proteção e salvaguarda. Esta necessidade resulta de um processo relativamente recente de fluxo de recursos vegetais para fora do Parque Indígena do Xingu (PIX), e da percepção de que variedades de pequi selecionadas e melhoradas pelos índios estão sendo apropriadas pela população não indígena devido ao seu potencial comercial. Nosso estudo nasce dessa percepção indígena e da consequente demanda de proteção, sendo um objetivo central mostrar empiricamente que o pequi xinguano deve ser considerado mais do que um recurso genético e que as populações cultivadas dessa planta no PIX englobam em sua estrutura ecológica e biológica “conhecimentos tradicionais intrínsecos” (Emperaire, 2006, comunicação pessoal)3. Cabe-nos o desafio de argumentar em favor do

diferentemente do dualismo mais ou menos irredutível, que em nossa visão moderna do mundo, rege a distribuição dos humanos em dois campos ontologicamente distintos, as cosmologias amazônicas exibem uma escala dos seres em que as diferenças entre os homens, as plantas e os animais são de grau e não de natureza (Descola, 2000, p. 151).

Estamos chamando de ‘conhecimentos tradicionais intrínsecos’ os aspectos socioculturais que se referem não somente ao conhecimento, mas também ao trabalho indígena empregado na seleção de sementes, nas técnicas e práticas de produção de mudas, no transplante das mudas e nos tratos silviculturais envolvidos no processo de domesticação ou melhoramento genético tradicional do pequizeiro.

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Socialidade e diversidade de pequis (Caryocar brasiliense, Caryocaraceae) entre os Kuikuro do alto rio Xingu (Brasil)

caráter indissociável entre patrimônio genético e cultural, a fim de estabelecer uma ponte de tradução entre a perspectiva indígena e as noções mobilizadas pelo conceito de agrobiodiversidade. Uma última precisão antes de passarmos à análise: nosso estudo foi realizado entre os Kuikuro, povo de língua karib que, juntamente com outros nove povos, forma a constelação altoxinguana e ocupa a porção sul do Parque Indígena do Xingu (PIX), no Mato Grosso. Tratase de um sistema multiétnico e plurilíngue, que começou a se formar no século IX d.C., com a chegada de uma primeira população colonizadora de língua arawak à qual se juntariam, a partir do século XVI, povos de língua karib e tupi (Heckenberger, 2001, 2005; Fausto et al., 2008). Esse sistema social único, que preserva as diferenças linguísticas – mas partilha um sistema econômico, político e ritual comum –, formou-se em uma zona igualmente singular do ponto de vista ambiental: a transição entre o cerrado e a floresta amazônica. Um dos denominadores comuns dessa constelação altoxinguana, com um valor alimentar e simbólico excepcional, é justamente a fruticultura do pequi. Ao tratar do pequizeiro, estamos nos referindo à espécie Caryocar brasiliense Camb., uma das espécies do gênero Caryocar, que ocorre naturalmente em regiões dominadas pela fitofisionomia de cerrado no Brasil central e em parte da Amazônia legal. O pequizeiro produz um fruto – o pequi – que é bastante apreciado na cozinha regional. Embora este fruto seja geralmente explorado por meio de atividade extrativista, os povos indígenas do alto Xingu cultivam pequizeiros em antigas roças de mandioca, produzindo pomares dessa espécie em uma vasta área em torno das aldeias. Estudos morfométricos e genéticos ainda não concluídos mostram evidências de que os pequizeiros cultivados pelos povos indígenas do alto Xingu encontram-se em processo de domesticação

local e podem ser considerados como componentes de uma variedade local de Caryocar brasiliense (Smith, 2013).

METODOLOGIA ÁREA DE ESTUDO As informações aqui apresentadas foram levantadas na aldeia Kuikuro de Ipatse (12° 21’ 06.31” S, 53° 12’ 33.74” W) e em seu entorno, no Parque Indígena do Xingu (PIX). O PIX tem uma superfície de 2.642.003 ha e está localizado no nordeste do estado de Mato Grosso, com área incidente entre os municípios de Canarana, Paranatinga, São Félix do Araguaia, São José do Xingu, Gaúcha do Norte, Feliz Natal, Querência, União do Sul, Nova Ubiratã e Marcelândia (Figura 1). Falantes de uma variante dialetal do Karib Meridional (Franchetto, 2001; Meira e Franchetto, 2005), os Kuikuro são atualmente o povo mais numeroso do alto Xingu. Eles habitam a região compreendida entre as nascentes da lagoa de Tafununu, a leste do rio Culuene (principal formador do rio Xingu), e o rio Buriti, afluente do rio Curisevo, a oeste. Sua principal aldeia recebe o nome de Ipatse (‘pequena lagoa’) e localiza-se em uma “península” de terra firme, cuja vegetação original era formada predominantemente por floresta do tipo estacional perenifólia (Ivanauskas et al., 2008), posicionada entre uma faixa de formações campestres e savânicas na beira do rio Culuene e um enorme buritizal, que se estende na beira do rio Buriti (Figura 2). Estas formações campestres e savânicas ocupam porção significativa das terras no alto Xingu e ocorrem em terrenos mais baixos, que sofrem inundações periódicas por água da chuva. Algumas áreas mais elevadas desses terrenos formam pequenas ilhas de vegetação (campos de murundus4) e, quando mais extensas, variam em um

Os campos de murundus ocorrem geralmente no cerrado e são constituídos por áreas planas, que sofrem inundação no período de chuvas, e por morrotes (murundus), que não inundam. Os morrotes menores são cobertos por vegetação campestre e os maiores, por vegetação lenhosa do cerrado (Resende et al., 2004).

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Figura 1. Localização da área de estudo no Parque Indígena do Xingu (PIX), Mato Grosso, região de transição entre os domínios do cerrado do Brasil central e da Amazônia.

gradiente entre campo sujo, cerrado típico, cerradão e matas de galeria na beira de pequenos cursos d’água. Assim como os demais povos indígenas do alto Xingu, os Kuikuro praticam uma horticultura de coivara, baseada, sobretudo, no cultivo de cerca de 30 a 45 variedades diferentes de mandioca (Carneiro, 1957, 1983; Fausto, dados de campo inéditos em 2002 e 2014), às quais somam-se variedades de milho, batata-doce, abóbora, banana, entre outras espécies plantadas em terra preta (egepe5). A proteína animal provém essencialmente da pesca, já que os altoxinguanos não comem mamíferos, à exceção de uma espécie de macaco, e consomem apenas algumas poucas espécies de aves.

Do ponto de vista fitogeográfico e morfoclimático, o PIX encontra-se em uma área de transição entre os domínios da floresta amazônica e do cerrado do Brasil central, descrita como zona de tensão ecológica (Veloso et al., 1991 apud Ivanauskas et al., 2004). Trata-se de uma região ecologicamente rica, combinando formações de cerrado lato sensu com uma área florestal (“Floresta Estacional Perenifólia”), que constitui a borda sul da floresta amazônica (Ivanauskas et al., 2004). O PIX abrange, assim, um mosaico de vegetação com formações de cerrado, campos, floresta de várzea, florestas de terra firme, além de florestas em terras pretas arqueológicas (Villas-Bôas, 2012).

Carneiro (1957, 1983) levantou 46 variedades cultivadas e nomeadas; Fausto levantou 35 variedades, em trabalho preliminar realizado em 2002 com Morgan Schmidt. Em 2014, um levantamento mais cuidadoso, realizado com Helena Cooper, permitiu corrigir as homonímias na lista original de Carneiro, confirmando o número de variedades reconhecidas a 36. Mais da metade, contudo, não está mais sendo plantada pelos Kuikuro, tornando urgente um projeto de salvaguarda.

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Figura 2. Vista da aldeia Ipatse em uma ‘península’ de terra firme – área de floresta que os Kuikuro chamam genericamente de itsuni –, rodeada por formações savânicas que sofrem inundação sazonal denominadas óti.

COLETA DE DADOS As informações aqui apresentadas foram obtidas a partir do registro de narrativas, mitos, rituais, práticas de cultivo, técnicas de uso e armazenamento associadas ao pequi por meio de entrevistas semiestruturadas e registro audiovisual das atividades de colheita e processamento dos frutos. Os dados foram coletados em dois momentos distintos: primeiro, em 2002 e 2003, por Carlos Fausto, no bojo de um projeto de documentação e produção cinematográfica, em parceria com a Associação Indígena Kuikuro do alto Xingu (AIKAX) e o Vídeo nas Aldeias; segundo, em 2011 e 2012, por Maira Smith, no bojo do projeto “Documentação do conhecimento e uso de vegetais entre os Kuikuro do alto Xingu”, financiado pelo Museu do Índio6. Dados detalhados sobre o manejo e o uso do pequi entre os Kuikuro foram complementados pela coleta de narrativas e exegeses versando sobre a origem do pequi, seus espíritosdonos e o ritual do Hugagü, associado à sua colheita.

Segundo o sistema de Köppen, o clima da região é tropical chuvoso de savana (Aw), definido por médias de temperaturas superiores a 18 °C, apresentando duas estações bem definidas, uma chuvosa, que vai de novembro a abril, e outra seca, entre maio e outubro (Ivanauskas et al., 2004). Foram caracterizados dois tipos principais de solo no alto Xingu, de acordo com a classificação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA): o latossolo vermelho-amarelo distrófico típico, que é predominante e ocorre nos relevos planos a suaveondulados das áreas interfluviais; e o neossolo flúvico Tb distrófico típico nas áreas florestais sujeitas à inundação periódica (Ivanauskas et al., 2004). Nas áreas de terra firme ocorrem, ainda, extensas manchas de solos ricos em matéria orgânica, cuja origem remete à ação antrópica passada: tratam-se das chamadas “terras pretas de índio” (Schmidt e Heckenberger, 2009; Schmidt, 2010), que se encontram associadas às aldeias pré-históricas.

As entrevistas realizadas por Maira Smith foram mediadas pelo professor indígena Sepé Ragati Kuikuro, que ajudou no planejamento das atividades, na elaboração de questões e na tradução.

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Em 2011, Smith e equipe realizaram um censo detalhado de todos os moradores da aldeia de Ipatse, identificando aqueles que já tinham plantado pequi no entorno da localidade, a partir do qual foram selecionadas algumas famílias para serem acompanhadas durante a safra do fruto. Delimitaram-se, assim, 12 pequizais (unidades de produção de pequi) pertencentes a dez famílias nucleares. O(a) responsável pelo plantio de cada pequizal foi entrevistado(a) em seus respectivos pomares, perguntando-se-lhes sobre: a) a data aproximada do plantio; b) a procedência das sementes utilizadas; c) os métodos e as técnicas de cultivo e de manejo; d) o dono atual do pomar; e e) os vínculos sociais (de parentesco) do dono atual com o responsável pelo plantio. Estes dados foram cruzados com as informações levantadas no censo sobre as relações de parentesco nas famílias amostradas e sobre a história de vida de cada um dos responsáveis pelo plantio de pequi. Após as entrevistas in loco com os horticultores, realizamos o acompanhamento da etapa de coleta, do processamento e uso do pequi entre as famílias amostradas, utilizando a metodologia

de observação-participante e o registro fotográfico. Pelo menos 30 árvores de pequi contidas dentro de cada parcela (pequizal individual amostrado) foram identificadas com placas de metal numeradas, as quais foram mapeadas com GPS (Figura 3). Nas parcelas, anotamos com apoio do responsável pelo plantio as variedades de cada árvore, definidas pela morfologia dos frutos. A partir da observação das características utilizadas pelos Kuikuro para classificar as variedades de pequi, elaboramos uma lista de descritores morfológicos dos frutos, com o apoio de Sepé Kuikuro.

ANÁLISE DE DADOS Todos os dados quantitativos acerca de cada indivíduo de pequi identificado foram passados para uma planilha em Excel. As entrevistas gravadas em língua kuikuro foram traduzidas para o português por Yamaluí Mehinako, com suporte do programa ELAN 4.3.2 (Wittenburg et al., 2006). Os dados qualitativos derivados de entrevistas e observação-participante, bem como o material fotográfico produzido foram organizados em relatórios de viagem, encaminhados aos financiadores do projeto7.

Figura 3. Pequizais amostrados (círculos identificados por letras) no entorno da aldeia Ipatse.

A Associação Indígena Kuikuro do alto Xingu (AIKAX) mantém um termo de cooperação com o Museu do Índio (Fundação Nacional do Índio – FUNAI) para acomodar o acervo resultante de atividades de pesquisa e documentação cultural produzidas na aldeia.

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Para quantificar a diversidade intraespecífica de pequis cultivados nas 12 populações (parcelas) amostradas, utilizamos os nomes kuikuro do que eles entendem como ‘variedades’, não necessariamente congruente com as noções de variedade usadas na botânica, agronomia e/ou em etnobotânica. Por se tratar de uma espécie alógama, de longo ciclo de vida e que é plantada pelos índios exclusivamente pela produção de mudas a partir de sementes, há uma variação morfológica expressiva nos frutos de pequi dentro de cada e entre as populações cultivadas, fazendo com que os nomes de cada tipo indicado não expressem a grande variação intraespecífica observada e manejada pelos Kuikuro em seus pequizais. Como o número de indivíduos por pequizal se mostrou muito variável, limitamos o levantamento a cerca de 30 árvores em cada parcela. Duas parcelas com poucos indivíduos foram inseridas na amostra, já que as sementes ali plantadas foram trazidas de um referencial territorial importante para os povos karib do alto Xingu. Em geral, as mudas de pequi são todas plantadas em uma roça de mandioca em um único evento, fazendo com que todos os pequizeiros sejam da mesma idade dentro de cada unidade amostral (parcela)8. Com o objetivo de encontrar um indicador de diversidade intraespecífica para caracterizar cada parcela (pequizal) amostrada, fizemos uma adaptação do índice de Shannon-Weaver (Shannon e Weaver, 1949). Este índice é geralmente utilizado para medir a diversidade de espécies (diversidade interespecífica) em comunidades biológicas (diversidade α), mas, neste trabalho, foi usado para quantificar a diversidade intraespecífica de pequis nomeada pelos Kuikuro em seus pequizais. Para a análise, consideramos cada pequizal individual como área amostral (parcela) e nosso universo amostral foi

composto por 12 parcelas com tamanhos variáveis. Ressalte-se que a identificação das variedades de pequi em cada parcela foi realizada pelo indígena responsável pelo plantio do pequizal, juntamente com o pesquisador indígena, Sepé Kuikuro, que acompanhou todas as etapas do levantamento. Na adaptação do índice de ShannonWeaver ao contexto desse trabalho, consideramos a fórmula H’ = -∑ pi (ln pi), onde pi = abundância relativa de cada variedade nomeada, calculada pela proporção dos indivíduos de uma variedade i, identificados na parcela pelo agricultor, sobre o número total de variedades nomeadas para cada pequizal. Como houve pouca variação nos padrões de diversidade intraespecífica entre os 12 pequizais, realizamos apenas uma análise qualitativa na comparação entre eles, sem utilizar análises estatísticas multivariadas para esta finalidade.

RESULTADOS O PEQUI NO SISTEMA AGRÍCOLA KUIKURO Os Kuikuro nomeiam duas categorias abrangentes de unidades de paisagem: itsuni, que pode ser traduzido como ‘mata’ ou ‘floresta’, e que corresponde ao que identificamos ecologicamente como formações florestais em terra firme; e óti (‘campo’), termo geral utilizado em menção às formações campestres e savânicas que ocorrem em terreno mais baixo na região (Figura 2). Dentro de cada uma destas categorias, os Kuikuro nomeiam e diferenciam unidades de paisagem mais específicas. Aldeias e roças são abertas em áreas de floresta de terra firme (itsuni). Há basicamente dois tipos diferentes de roça: as de mandioca, plantadas em áreas de terra ‘vermelha’, e os plantios em ‘terra preta’, denominada egepe em Kuikuro. Como dissemos, as terras pretas constituem manchas de terreno mais fértil, associadas a

Inicialmente, as mudas de pequi são plantadas na roça consorciadas com as plantas de mandioca. Quando a roça de mandioca deixa de ser produtiva, os pequizeiros em estágio juvenil crescem, formando um pomar, os quais são manejados pelos Kuikuro de modo a desfavorecer a regeneração florestal espontânea nestas áreas.

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antigos assentamentos indígenas. A mandioca cresce em terreno menos fértil, mas o milho ou algodão são plantados nas roças de terra preta, geralmente mais distantes da aldeia. Além das roças de mandioca (tuhinhaho)9 e das roças feitas em terra preta, os Kuikuro nomeiam ainda uma terceira unidade de produção agrícola, unha, cuja tradução em português se aproxima da noção de ‘quintal’. Os quintais são muito utilizados para o plantio de frutíferas nativas e, sobretudo, exóticas, formando pomares ao redor da aldeia, de uso mais ou menos comum da comunidade. Somente o pequi possui um pomar específico na mata – o pequizal (uika) –, que pertence a uma só pessoa e cujos frutos são apropriados apenas por sua família. O sistema agrícola kuikuro se estrutura, pois, a partir desses três espaços (tuhinhaho, egepe e unha),

mas o pequizal (uika) também pode ser identificado como um agroecossistema e como um tipo de espaço de produção agrícola, vinculado temporalmente às roças de mandioca (tuhinhaho). A dinâmica de uso do itsuni faz com que este espaço se caracterize como um mosaico, composto por habitats com diferentes níveis de intervenção humana, desde áreas cultivadas temporárias (roças), pomares permanentes (pequizais), passando por capoeiras de diferentes idades e sapezais, até a floresta madura (Figura 4). No sistema agrícola kuikuro, há uma variedade significativa de plantas cultivadas, cada uma requerendo condições de solo e nutrientes específicos, estando associadas a um dos espaços produtivos anteriormente mencionados. Observamos aproximadamente 30 espécies

Figura 4. Representação esquemática da dinâmica da paisagem nos domínios do itsuni (lato sensu) – formações florestais de terra firme –, onde os Kuikuro constroem suas aldeias e praticam as atividades agrícolas. Os diferentes estágios coexistem no espaço em um mesmo período de tempo, formando um mosaico de habitats diversificados no itsuni.

O termo geral utilizado para a roça de mandioca é tuhinhaho, mas existem termos mais específicos usados para as diferentes fases da roça, desde o momento de sua abertura, passando pelo plantio, podas sucessivas, replantio até o abandono para pousio.

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cultivadas, destacando-se entre elas a mandioca, o pequi e o milho, não apenas pelo valor alimentício, mas por possuírem um mito de origem próprio, festas e rituais associados. Consideramos o pequi não somente uma das três espécies mais relevantes do sistema agrícola kuikuro, como também um importante marcador cultural, isto é, um dos elementos distintivos daquilo que constitui, para os próprios índios, uma ‘identidade xinguana’, que os diferencia de outros grupos indígenas da região.

beira da lagoa, onde chamavam seu amante, o jacaré, para fazer sexo com elas. Um dia, Magiká saiu para caçar e quando estava para flechar uma cotia, esta fez-se gente e pediu para não ser morta em troca de um segredo. Contou, então, a ele que suas esposas eram amantes do jacaré. A cotia levou Magiká até a beira para ver a traição com seus próprios olhos e disse-lhe para matar o jacaré com flechas invisíveis, bem no momento em que ele estivesse gozando. Assim fez o marido traído. Ao verem o amante morto, as duas irmãs ficaram inconsoláveis e com muita raiva do marido: enterraram o jacaré e expulsaram Magiká de casa, o qual foi morar na casa dos homens, no centro da aldeia. Algum tempo depois, elas foram visitar a sepultura de seu amante e notaram que várias árvores frutíferas haviam brotado de diferentes partes de seu corpo11. Bem ao centro, partindo do umbigo, havia um broto avermelhado que daria origem ao primeiro pequizeiro. Elas cuidaram dessa árvore até que começou a produzir frutos e assim passaram a conhecer e usar o pequi como alimento e para a produção de óleo. Note-se que, no mito, o pequi ocupa uma posição central em relação às outras espécies frutíferas (não cultivadas) que também surgiram a partir do jacaré: ele brota do centro (umbigo) e determina aspectos da fenologia destas outras espécies, com base em seu próprio ciclo ecológico. Algumas versões do mito narram ainda o processo de diversificação do pequizeiro altoxinguano. Este processo é pensado como uma ramificação: o tronco da variedade conhecida como suümkogu (que produz os maiores frutos) ergue-se do umbigo do jacaré e as demais variedades vão aparecendo como ramos deste tronco central. O mito vai além da origem do pequi, pois explica sua denominação, como se estabeleceram os procedimentos associados ao cultivo e uso da espécie, a sua relação com

A ORIGEM DO PEQUI Os Kuikuro concebem os principais elementos biológicos de seu sistema agrícola e os espaços a eles associados em consonância com o modelo de organização das relações sociais humanas altoxinguanas. Nesse sentido, as espécies agrícolas representam muito mais do que simples recursos alimentares. A mandioca, o pequi e o milho são pivôs de um conjunto de associações que reúnem populações humanas e não humanas: associações entre variedades ou morfotipos de uma mesma espécie, entre diferentes espécies cultivadas, entre estas e certos animais, entre estes animais e suas hipóstases “espirituais” (itseke) e, finalmente, entres estas e os humanos – configurando um coletivo de atores heterogêneos (Latour, 2005). A socialidade atribuída às espécies agrícolas pelos Kuikuro incide diretamente nas práticas de manejo destes recursos e, consequentemente, em sua diversidade genética e morfológica. O cultivo de mudas de pequi e os tratos silviculturais dos pequizais vinculam-se a diversos elementos do seu mito de origem, no qual a árvore de pequi brota do umbigo de um jacaré morto por um índio de nome Magiká. A seguir, resumimos uma versão padrão desta narrativa10. Conta-se que as esposas de Magiká iam todos os dias à roça para arrancar mandioca, mas antes iam à

Baseada principalmente nas versões contadas por Haitsehü Kalapalo, em 2011, e Tugupé Kuikuro, em 2002, durante as filmagens de “Imbé Gikegü: cheiro de pequi”. 11 Dos testículos, nasce a mangaba, que embora não seja plantada, encontra-se no entorno das aldeias e é importante fonte alimentar em novembro, auge da colheita do pequi. Do pênis, nasce um fruto silvestre localmente denominado akaga e dos olhos nascem ugukumi. A associação entre o pequi e esses frutos deve-se à época de frutificação. 10

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a festa de Hugagü e também com a sexualidade12. Todos esses episódios posteriores põem em cena os gêmeos Taũgi (sol) e Aulukumã (lua), demiurgos da cosmologia kuikuro, que ensinaram a preservar a polpa do pequi em água, evitando doenças e permitindo seu uso ao longo de muitos meses13. As formas corretas de cultivar, manejar, usar e armazenar a polpa de pequi ensinadas pelos demiurgos continuam sendo adotadas hoje.

deles o tukuti-kuegü ou hiper-beija-flor, que é um itseke (bicho-espírito)14. Além do beija-flor, contam-se ainda “a hiperarara, a hipermaritaca, o gavião [ele mesmo tolo oto, ‘dono dos pássaros], o hipermacaco e o hiperjacaré. Não é qualquer pássaro que pode ser dono do pequi, eles têm que ser poderosos e bonitos, os chefes dos pássaros” (Asahü Kuikuro, 2010 – tradução de Takumã Kuikuro). Todos esses animais estão associados ao ciclo do pequi, e em especial à polinização e dispersão de sementes15, sendo que o beija-flor tem lugar de destaque, pois se atribui a ele a função de cuidar dos pequizeiros para que não sequem e produzam frutos bonitos. Como todo dono, contudo, o hiper-beija-flor é cioso de seu espaço e pode causar doença nos humanos. E é precisamente por meio da doença que emerge o ritual do Hugagü. Quando uma pessoa adoece mais seriamente e a cura se alonga, um coletivo de pajés é contratado para ir ‘buscar a alma’ (akuãtelü) do doente, que foi raptada por algum itseke. O diagnóstico possui várias etapas e não cabe aqui descrevêlo, mas sói desconfiar-se do hiper-beija-flor durante a safra do pequi, uma vez que as pessoas estão constantemente expostas em seu domínio. Cada pequizal tem um dono humano, mas o pequi tem donos não humanos, e é preciso haver-se com eles. Após o diagnóstico e a cura, o doente poderá se tornar dono do ritual do Hugagü, no qual vários itseke são chamados a dançar e comer. A festa não tem data certa e nem a obrigação de ser realizada todos os anos, mas, quando realizada, ocorre sempre durante a safra de pequi. Um dono poderá reencenar o ritual durante vários

OS DONOS DO PEQUI O mundo em que vivem os Kuikuro é recortado por domínios: tudo pode ser a casa (domus) de alguém. Por isso, todos os espaços ‘naturais’ – rios, lagos, acidentes geográficos ou mesmo aquela curva do rio, o centro daquela lagoa, aquelas árvores ali adiante – costumam ter ‘donos’ (oto), os quais são responsáveis por engendrá-los e deles cuidar. Na feliz expressão de Descola (1986), a natureza aqui é doméstica. Estes domínios são múltiplos e não representam unidades discretas: o modelo não é o da propriedade privada exclusiva (Fausto, 2008, 2012a). Ainda assim, posto que tudo pode ser a casa de alguém e todo ente pode ter um dono, é preciso associar-se a eles – por meio de cantos, rezas e oferta alimentar –, para que permitam o uso desses espaços ou de algum recurso. É preciso movê-los para que se disponham a ceder sem causar doenças nos humanos, concedendo, assim, uma boa pesca, uma boa coleta ou uma boa safra. No caso do pequi, esse universo é ainda mais complexo, pois ele possui vários donos, sendo o principal

Não cabe aqui desenvolver este aspecto, mas ele é central na construção do filme “Cheiro de pequi” – cheiro este que é o da vagina, a qual é modelada em cera e mostrada às mulheres durante o ritual do Hugagü. Sobre o mesmo ritual entre os povos arawak do Xingu, ver Coelho (1992) e Gregor (1985). 13 Esse é outro fato notável e singular da tecnologia xinguana associada à fruticultura do pequi. Eles constroem um cesto onde colocam a polpa, o qual é hermeticamente fechado e depositado em uma lagoa. A bebida feita a partir do pequi, conhecida como imbene, pode ser tomada durante o ritual do Quarup, na estação seca, cerca de seis meses após o final da safra. 14 Os Kuikuro costumam traduzir itseke por “bicho”, pois os itseke que povoam o mundo xinguano são, em sua maioria, animais em sua condição de pessoa; i.e., animais dotados de intencionalidade, reflexividade e capacidade comunicativa (ver Fausto, 2012b). Para a tradução do sufixo –kuegü como “hiper”, ver Franchetto (2003). 15 Embora os morcegos sejam os principais polinizadores de C. brasiliense no período noturno, algumas espécies de beija-flor também visitam as flores desta árvore nas primeiras horas do dia para sugar néctar, agindo como polinizadores cruzados e favorecendo a diversidade genética nas populações cultivadas (Gribel e Hay, 1993). Por seu turno, a arara e a cotia possuem papel importante como dispersores naturais das sementes de pequi. 12

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anos até decidir abandoná-lo, por meio de uma festa de encerramento em que se produzem miniaturas realistas dos donos do pequi, feitas em madeira (e no caso do hiperbeija-flor, em cera). O casal de beija-flores é levado por dois cantores e é o primeiro a ter seu bico molhado no caldo de pimenta e goma de mandioca, com que se alimentam os espíritos: a eles, pede-se que sejam bons e que não causem enfermidades aos humanos. Os cuidados a serem tomados durante a safra do pequi não dizem respeito apenas aos donos. Na verdade, a safra só começa e o fruto só pode ser consumido após rezar-se a primeira bebida de pequi (imbene), que é trazida para o centro da aldeia. Esta reza, convoca uma série de personagens: o jacaré, suas amantes, o marido traído, a cotia, a cigarra (filha das amantes e onipresente nos pequizais durante a safra), a concha com que se descasca o fruto, Taũgi (por ele ter ensinado como preservar a polpa), o vento e outras figuras míticas. A reza visa afastar doenças e tempestades, pois o início da safra no começo de outubro coincide com a chegada das primeiras chuvas, acompanhadas de raios e fortes ventos, após uma longa estiagem16. Essa associação entre a fenologia do pequi e o regime climático, bem como a marcação de relações ecológicas por meio de narrativas e rezas apontam para a impossibilidade de dissociar conhecimento natural e cultural no alto Xingu.

técnicas e ecológicas em fórmulas memorizáveis, que são transmitidas entre gerações, conformando um modelo geral que engloba procedimentos de plantio, manejo, consumo e armazenamento do pequi. Algumas dessas técnicas incidem direta ou indiretamente sobre a diversidade intraespecífica observada em pequizais cultivados nos arredores da aldeia de Ipatse. Como vimos, os Kuikuro mencionam que o primeiro pequizeiro, brotado do umbigo do jacaré, possuía todas as variedades de pequi dispostas em uma mesma árvore. No processo de cultivo, os Kuikuro plantam todas as sementes juntas em uma cova em formato de jacaré, aberta na roça ou na aldeia, transferindo-as posteriormente para seus lugares definitivos entremeadas às covas de mandioca (o formato visa agradar aquele que está na origem da planta e, deste modo, garantir que as sementes germinarão com sucesso)17. Depois de abrir o buraco, as sementes são aí colocadas com o ‘nariz’ para cima. Em seguida, cobre-se com terra e pronuncia-se a ‘reza do lagarto’, a qual diz que o pequi lhe será útil para furar a orelha de seu filho e que, portanto, ele não deve desenterrar as sementes18. O plantio de várias sementes juntas na produção das mudas, bem como o transplante de uma quantidade grande de mudas para a roça servem como estratégia para minimizar o efeito de predadores e garantir que pelo menos parte das sementes e plântulas sobreviva e cresça. Conforme nos sugeriu Carlos Saito (comunicação pessoal, 2013), é possível que essa prática ajude também a quebrar a dormência das sementes, por formar um ambiente propício ao choque térmico no solo. Na medida em que a dormência das sementes de pequi é geralmente referida como um empecilho para o cultivo comercial desta árvore (Pereira et al., 2004), caso confirme-se a

PRÁTICAS DE CULTIVO Se os conhecimentos e práticas envolvidos no cultivo e nos tratos silviculturais do pequi são indissociáveis de seus ‘aspectos socioculturais’, a própria separação entre conhecimento e prática deve ser aqui matizada, pois até a narrativa mítica tem uma orientação, por assim dizer, práticoteórica. Rezas, narrativas e ritos condensam informações

Para uma análise desse tipo de reza de “batismo”, que ocorre também no caso do milho e da rede de pesca, ver Fausto et al. (2011). Para obterem árvores mais produtivas, os Kuikuro utilizam uma madeira chamada kuõ, a fim de cavar o buraco em forma de jacaré. Kuõ é uma árvore que dá muitos frutos e serve, por este motivo, para estimular o pequizeiro a produzir muito também (não foi possível fazer a identificação botânica da espécie). Segundo Tsaná Kuikuro, um dos principais cantores de Ipatse, seu pai, ensinou-lhe cantos que também servem para o mesmo fim. 18 Hagatu, hagatu imukugu ipogohoingo higei, “lagarto, lagarto, isto servirá para a furação de seu filho”. A furação de orelha é um ritual de passagem masculino associado à chefia. 16 17

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hipótese de Saito, temos aqui mais uma evidência de que características diferenciadas do pequi xinguano resultam de um processo de domesticação local. Após um ou dois meses, as sementes germinam no local do buraco-jacaré e são transferidas para as roças de mandioca, sendo plantadas a uma distância regular (em torno de cinco a seis metros) umas das outras. O plantio das mudas ocorre, geralmente, no último ano produtivo da roça, logo após o replantio da maniva. Com isso, temos condições propícias para o crescimento da plântula de pequi, a qual requer áreas abertas com muita luminosidade. Nos primeiros anos de crescimento das mudas, os donos do pequizal precisam investir no trabalho de limpeza de ervas daninhas, evitando o sombreamento das plântulas, o que é feito em conjunto com os tratos silviculturais, necessários para manter o plantio de mandioca ainda em fase produtiva. A limpeza do solo ao redor das plântulas é importante também para evitar eventuais queimadas por fogo que escape de roças abertas nas proximidades do novo pequizal, já que os Kuikuro não têm costume de fazer aceiro. São colocadas estacas ao redor das mudas de pequi recém-plantadas, para evitar que sejam pisoteadas durante o trabalho na roça. Passada a fase inicial em que as pequenas plantas de pequi são muito vulneráveis, a fase de consolidação dos pequizais ainda requer cuidados e manejo regulares, que são feitos pelas famílias, quando vão à roça. Quando a planta já apresenta uma lignificação do tronco, os Kuikuro costumam arranhar o caule do pequi com dente de jacaré para a árvore crescer bem. Assim como os jovens xinguanos, que durante o período de reclusão pubertária devem ter a pele escarificada regularmente para ficarem grandes e fortes,

os jovens pequizeiros também devem ser arranhados, a fim de superar com sucesso a transição entre a ‘puberdade’ e a vida adulta (reprodutiva)19. As árvores começam a frutificar a partir de cinco a sete anos após o plantio, e os frutos são coletados pelas mulheres na época da safra.

A DIVERSIDADE DO PEQUI ALTOXINGUANO A diversidade intraespecífica de pequis que nos interessa aqui é aquela mapeada a partir da perspectiva kuikuro; i.e., trata-se de compreender como os Kuikuro percebem, nomeiam e manejam elementos da diversidade agrícola em uma unidade de paisagem domesticada (o pequizal), relacionando-a com aspectos da socialidade atribuída à espécie e ao agroecossistema no qual é cultivada. Todas as variedades de pequi, plantadas ou silvestres, são denominadas imbé pelos Kuikuro. Dentro desta categoria geral, eles fazem uma primeira divisão em dois grandes grupos: o dos ‘pequis verdadeiros’ (imbé hekugu)20, composto por pequizeiros cultivados, e o dos pequis silvestres, denominados kapula21, os quais ocorrem naturalmente em manchas de cerrado, entremeadas a outras espécies desta fitofisionomia. Quando utilizamos aqui o termo ‘pequi xinguano’ (ou altoxinguano), nos referimos exclusivamente ao grupo composto pelos morfotipos ou variedades de ‘pequis verdadeiros’ reconhecidos pelos Kuikuro. Além da distinção entre plantado e não plantado, entre floresta e cerrado, os Kuikuro distinguem os dois grupos em função de algumas características fenotípicas (descritores) dos frutos (Tabela 1). Os Kuikuro não atribuem nomes varietais para agrupar subcategorias que sirvam para ordenar a variação fenotípica entre indivíduos dentro da categoria kapula,

A ‘arranhadeira’ (escarificador) utilizada no Xingu é feita de dentes de uma espécie menor de peixe-cachorro, incrustrados em um pedaço de cabaça. 20 Hekugu, assim como o sufixo eté tupi-guarani, é tanto um intensificador como um indicador “de pertencimento perfeito a uma classe ou – para usar a terminologia da teoria dos protótipos – maior representatividade como membro de uma categoria; i.e., maior grau de prototipicalidade” (Fausto, 2001, p. 262). 21 Kapula designa o conjunto das populações silvestres que ocorrem na unidade de paisagem denominada tahutahupe pelos Kuikuro, que corresponde ao cerrado típico. Em outro estudo em andamento, avaliamos que ambos os grupos correspondem a variantes internas dentro da espécie Caryocar brasiliense. O termo kapula refere-se especificamente às populações silvestres de C. brasiliense. 19

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Tabela 1. Descritores usados pelos Kuikuro na diferenciação entre kapula e imbé hekugu. Descritor

Variável contínua ou discreta

Kapula

Imbé hekugu

Tamanho do fruto

Contínua

Menores

Maiores

Gosto

Contínua

Amargos

Adocicados

Tamanho do putâmen

Contínua

Menores

Maiores

Espessura da polpa

Contínua

Menores

Maiores

Coloração da polpa

Contínua

Variação menor

Variação maior

Espinhos no endocarpo

Discreta

Sim

Alguns sem

Época de frutificação

Contínua

Tardia (nov.-jan.)

Adiantada (set.-nov.)

Época de florescimento

Contínua

Tardia (jul.-nov.)

Adiantada (maio-set.)

embora reconheçam a existência desta variação. Em contraste, dentro da categoria imbe hekugu, dispõem de 16 termos para designar variedades ou morfotipos de pequis cultivados (Tabela 2)22. É preciso notar, contudo, que os Kuikuro nomeiam antes características ou descritores do que propriamente variedades, ao contrário do que parece ocorrer no caso da mandioca, entre os próprios Kuikuro e entre outros grupos indígenas da Amazônia. As variedades (ou morfotipos) são nomeadas a partir da característica considerada mais proeminente do fruto e, por esse motivo, foram incluídas algumas feições que não possuíam regularidade (nem todos os frutos de uma mesma árvore apresentavam aquela característica). Algumas variações ocasionadas por fatores ambientais, como a predação de frutos antes de caírem ou indivíduos plantados por dispersores não humanos, entre outras, também foram nomeadas como ‘variedades’ ou, ainda, como ‘variantes’. Como sói acontecer em contextos interculturais, nos quais nenhuma das partes domina perfeitamente a língua do outro, encontrar um equivalente para a noção botânica de ‘variedade’ não é jamais evidente23. Neste caso, porém, parece não haver tal categoria equivalente.

A noção etnobotânica de variedade, geralmente utilizada para descrever a variação intraespecífica da mandioca (Boster, 1984, 1985; Elias et al., 2000), não se mostrou de fácil adequação às formas de percepção e manejo da diversidade de pequis cultivados pelos Kuikuro. Essa diferença talvez decorra de dessemelhanças biológicas entre as espécies, pois o pequi é uma espécie perene e alógama, ou seja, que se reproduz preferencialmente de forma sexuada (fecundação cruzada) e possui alguns mecanismos de autoincompatibilidade, embora possa ocorrer autofecundação (Gribel e Hay, 1993). O mecanismo reprodutivo do pequi é diversificador e inovador, produzindo alta variação genotípica e fenotípica, e dificultando a ação dos agricultores em manter variedades estáveis. Já a mandioca possui uma combinação de dois mecanismos reprodutivos: a) um mecanismo diversificador pela produção de sementes e b) um mecanismo conservador pela reprodução vegetativa a partir do brotamento de manivas (Kerr, 1986; Martins, 2005). Esta combinação permite o surgimento de novos fenótipos a partir de sementes e sua incorporação na coleção de variedades cultivadas e, ao mesmo tempo, a manutenção de variedades

Mais precisamente, são 15, pois uma delas, eungatagü (“o que foi plantado pelo besouro”), designa qualquer árvore na proximidade de um pequizal que se encontra fora da área plantada. Os Kuikuro não cortam esse pequizeiro e reconhecem os frutos como pertencendo a uma das outras categorias. 23 Mesmo quando alguns interlocutores indígenas falam um bom português e um dos pesquisadores possui um domínio razoável da língua indígena, como é o nosso caso. 22

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 87-113, jan.-abr. 2016

específicas pela propagação vegetativa, o que propicia uma coleção diversificada. Observamos que as formas de classificação e ordenamento da agrobiodiversidade variam não somente entre sistemas agrícolas diversos, mas dentro do sistema agrícola de um mesmo grupo étnico, de acordo com os diferentes objetos biológicos nele englobados. Este parece ser o caso dos Kuikuro, no contraste entre a mandioca e o pequi, embora, na prática, seja uma situação muito mais complexa, como veremos na próxima seção24. Seja como for, as categorias kuikuro para designar diferenças internas ao pequi cultivado parecem apontar antes para um ‘campo de variações perceptíveis’ do que para variedades estáveis e consolidadas – assim, antes do que variedades, temos um conjunto de variações reconhecidas por um nome, o qual poderíamos chamar ‘variantes’, a fim de distinguir de nossa noção de variedade intraespecífica (seja ela agronômica, taxonômica ou etnobotânica). É por meio da percepção e avaliação da variação fenotípica que ocorre o processo de escolha e seleção de sementes, afetando as frequências gênicas e genotípicas das populações cultivadas de pequi, ou seja, o processo local de domesticação da planta. Isso implica, ao selecionarem sementes para o plantio, o fato de os Kuikuro valorizarem diferentes combinações de descritores, e não unicamente a característica mais proeminente. Considerando as possibilidades de combinação entre as diferentes características de frutos de pequi utilizadas como descritores, a diversidade fenotípica percebida e manejada

pelos Kuikuro é maior do que a nomeada por meio de subcategorias. Seria, pois, essa variação morfológica que, em última instância, é considerada na seleção de sementes para a reprodução e não a sua subsunção a uma ou outra categoria nominal. O pequi é utilizado para o consumo de sua polpa cozida, para a produção de óleo (da polpa crua), para a produção de uma ‘geleia’ adocicada (denominada tuma), obtida a partir da apuração do caldo, e para o aproveitamento da castanha seca 25. Alguns tipos de pequi são preferencialmente utilizados para finalidades específicas: assim, o imbese é adotado na alimentação, mas, por ter coloração clara, é antes valorizado para a extração de óleo; já o kanga mukugu e o tunguĩ são considerados especialmente bons para alimentação e armazenamento de sua polpa após o cozimento. No caso do tunguĩ, a ausência de espinhos não faz tanta diferença do ponto de vista nativo, já que os Kuikuro não comem com tanta frequência o fruto inteiro in natura, como ocorre na cozinha regional 26. Eles sabem do valor atribuído ao tunguĩ pelos kagaiha (não indígenas) e vendem-nos esporadicamente a seus ‘amigos’ na cidade de Canarana ou Gaúcha do Norte. Diferentemente dos regionais, contudo, os Kuikuro interessam-se antes pela diversidade de pequis cultivados. Ainda que tenham preferências positivas, como é o caso do pequi carnudo (suümkogu), e negativas, como é o caso de atü, cujo gosto é amargo e ‘travoso’, continuam a plantar pequizais com uma boa diversidade fenotípica27.

Conforme pesquisa realizada por H. Cooper e C. Fausto, em 2014, os Kuikuro utilizam-se conscientemente dos dois mecanismos reprodutivos da mandioca. Assim, ao encontrarem um novo pé gerado por reprodução sexuada em suas roças ou em roças abandonadas, experimentam a variedade plantando as manivas. Se as novas plantas gerarem tubérculos do agrado das mulheres, repetem a ação, ampliando o número de pés até um ponto em que as manivas começam a circular em uma rede social de vizinhança e parentesco. Uma das variedades, hoje dominante nas roças kuikuro, resultou desse processo de experimentação e clonagem. 25 A castanha seca é importante no ritual do Quarup, que ocorre cerca de seis meses após o término da safra de pequi. Ao final da festa, as meninas que deixam a reclusão são levadas pelos donos da festa até os chefes das aldeias convidadas, oferecendo-lhe castanhas de pequi. 26 Além da preferência alimentar pelo tunguĩ, os Kuikuro separam suas sementes para fazer os chocalhos de fieira, que são usados nos rituais, amarrados ao tornozelo. Isso porque é mais fácil limpá-lo, dada a ausência de espinhos. Assim, é comum ver sementes de tunguĩ separadas das demais durante a safra do pequi. 27 Embora não o plantem, no caso do kapula, podem utilizá-lo eventualmente para a produção de óleo, mas jamais para consumo alimentar. 24

101


102 Médio Médio

Varia Varia Varia

Pequi que não abre Estragado pela flecha do grilo Estragado pela ararinha Plantado pelo besouro

Akugike Tukitse hügipingo Kugitse nguga Eũgatagü

Imbé hekugu

Imbé hekugu

Imbé hekugu

Varia

Pequi azedo

Sakisitu

Imbé hekugu

Varia

Descola a polpa

Tagiki

Imbé hekugu

Varia

Pequi que racha a casca

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Doce

Doce

Azedo

Doce

Doce

Doce

Varia

Médio

Médio

Médio

Médio

Médio

Pequeno

Tenkgisake

Varia

Doce

Imbé hekugu

Varia

Pequi sem nariz

Varia

Tinaki

Médio

Imbé hekugu

Varia

Pequenino

Doce

Médio

Tsupügügi

Varia

Amargo

Médio

Grande

Médio

Médio

Médio

Pequeno

Tamanho

Imbé hekugu

Varia

Pequi de casca grossa

Varia

Doce

Doce

Doce

Doce

Doce

Amargo

Sabor

Akuhügü

Varia

Pequi amargo

Atü

Imbé hekugu

Varia

Varia

Varia

Não

Varia

Varia

Espinho

Imbé hekugu

Roxo

Pequi roxo

Kanga mukugu

Imbé hekugu

Imbé hekugu

Varia

Imbese

Imbé hekugu

Varia

Pequi sem espinho

Pequi carnudo

Tungui

Imbé hekugu

Vermelho

Pequi vermelho

Suümkogu

Hekugu

Imbé hekugu

Varia

Pequi silvestre de cerrado

Cor

Branco

Kapula

Kapula

Caracterização

Pequi branco

Variante

Grupo

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Grossa

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Casca

Varia

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Não

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Varia

Não

Não

Não

Não

Sim

Sim

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Não

Varia

Varia

Varia

Não

Sim

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Besouro

Pessoas

Pessoas

Pessoas

Pessoas

Pessoas

Pessoas

Pessoas

Pessoas

Pessoas

Pessoas

Pessoas

Pessoas

Pessoas

Pessoas

Pessoas

Animais

Vários

Ararinha

‘Grilo’

Vários

Vários

Vários

Vários

Vários

Vários

Vários

Vários

Vários

Vários

Vários

Vários

Vários

Predador

Descritores sem influência genética

Descola Principal ‘Nariz’ Deiscente a polpa dispersor

Descritores Kuikuro - provável influência genética

Tabela 2. Categorias de pequi nomeadas pelos Kuikuro e os descritores utilizados.

Ambiente

Negativa

Negativa

Negativa

Negativa

Negativa

Negativa

Positiva

Positiva

Positiva

Positiva

Itsuni

Itsuni

Itsuni

Itsuni

Itsuni

Itsuni

Itsuni

Itsuni

Itsuni

Itsuni

Itsuni

Itsuni

Itsuni

Itsuni

Itsuni

Itsuni

Negativa Tahutahupe

Tipo de seleção

Socialidade e diversidade de pequis (Caryocar brasiliense, Caryocaraceae) entre os Kuikuro do alto rio Xingu (Brasil)


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 87-113, jan.-abr. 2016

DISTRIBUIÇÃO DA DIVERSIDADE FENOTÍPICA DE PEQUIS NAS PARCELAS AMOSTRADAS O número de árvores de pequi em cada pequizal é bastante variável, podendo chegar a 60, embora a média esteja na casa dos 30 indivíduos. Em nossa pesquisa, a grande maioria dos indivíduos foi classificada na categoria imbé hekugu pelos seus respectivos donos (Tabela 3). Esse dado, no entanto, deve ser tomado cum grano salis, pois se trata de uma categoria dada de antemão (utilizada se não acionada alguma escolha a mais), ou seja, uma categoria de fundo que se aplica a todos os pequizeiros plantados, sendo que a distinção em subcategorias aplica-se de maneira subsequente. O mesmo ocorre, por exemplo, no domínio

da música ritual, em que várias peças não recebem nome e são ditas apenas egi hekugu, ‘cantos verdadeiros’ ou, mais exatamente, ‘simplesmente cantos’. Embora os Kuikuro tenham listado 15 categorias de imbé hekugu em sentido amplo (Tabela 2 – excluindo-se eungatagü), durante as entrevistas nas parcelas, utilizaram apenas oito dessas categorias (Tabela 3). Observamos que, quando perguntados sobre as árvores e não sobre os frutos, os donos dos pomares tendem a categorizar seus pequizeiros a partir de uma noção de variedade semelhante àquela definida por Emperaire (2006), em seus estudos sobre a mandioca, excluindo certos termos utilizados para descrever a diversidade de frutos28. Em outras palavras, os

2

2

1980

3

1

Sagiguá

D

Aiha

1984

45

4

Yakalu

E

Ahangitahagü

30

5

1 4

H’ normal

1978

Uagihütü

H’ máximo (ln S)

Uagihütü

H’ parcela

B C

ni Tenkgisake

Sandaki 1 Sandaki 2

4

0,72

1,39

0,35

1

0,69

0,69

0,33

3

0,00

0,00

0,00

0,51

1,39

0,25

0,58

1,61

0,28

30

3

1

39

1

26

1

1

1 1

Yawa

F

Ipatse

1970

31

4

2

25

2

2

Tupã

G

Ahangitahagü

1985

36

5

1

32

1

1

Ausuki

H

Matipu

1993

32

3

3

25

Kamangagü

I

Ipatse

1975

30

4

1

25

1970

31

4

2

23

5

31

5

3

23

2

20

5

1

15

1

2

1

329

8

18

267

10

21

5

Tsaná

J

Ahangitahagü

Afukaká

K

Akuku

Kanu/Haitsehü

L

Majene

Total

12

7

1972

1

ni Akuhügü

4

ni Atü

38

ni Kanga mukugu

Tipos (S)

1970

ni Imbese

N indivíduos

Akuku

ni Tungui

Época do plantio

A

ni Hekugu

Principal local de origem das sementes

Haitsehü

ni Suümkogu

Dono

Parcela

Tabela 3. Composição de variantes de pequi indicada pelos agricultores Kuikuro nos seus respectivos pequizais amostrados (parcelas). Estimativa do índice de diversidade de Shannon (H’) modificada para cada parcela, calculada a partir da diversidade de morfotipos indicada pelo dono de cada pequizal. Legendas: N = abundância de indivíduos amostrados em cada parcela; ni = abundância de indivíduos do morfotipo i; S = número de morfotipos em cada parcela; H’ = - ∑ (ni/N)*ln(ni/N), onde ni/N = abundância relativa do morfotipo i; H’ máximo = ln S.

1

0,70

1,39

0,34

0,50

1,61

0,24

4

0,67

1,10

0,32

3

0,61

1,39

0,29

0,80

1,39

0,38

0,91

1,61

0,44

0,90

1,61

0,43

0,81

2,08

0,39

1

1 1 1

1

2 6

Termos tais como tükitse hügipingo (‘com a flecha do grilo’), o qual designa um fruto machucado, ou tinaki, que descreve o fruto que, ao cair, o pedúnculo descola inteiramente do fruto.

28

103


Socialidade e diversidade de pequis (Caryocar brasiliense, Caryocaraceae) entre os Kuikuro do alto rio Xingu (Brasil)

Kuikuro parecem operar com duas noções de diversidade ao mesmo tempo, daí decorrendo nossa dificuldade em traduzir o conceito de variedade. A despeito dessas questões, procuramos calcular o índice de diversidade de Shannon (H’) modificado para cada pequizal plantado com base na abundância relativa de indivíduos (ni/N – Tabela 3) alocados nas diferentes variedades ou variantes de pequi indicadas pelos agricultores Kuikuro, para estimar quantitativamente a diversidade intraespecífica de pequis nas parcelas29. O maior número de variedades (S) indicado em unidades de cultivo (pequizais) amostradas na Tabela 3 foi de cinco (parcelas E, G, K, L) e o menor número (S) foi de uma única variante ou variedade (imbé hekugu) na parcela C, a qual destoa da média dos pequizais (juntamente com a parcela B), por ter uma quantidade muito baixa de indivíduos (N). Trata-se dos dois pequizais plantados por Kamaluhé Sandaki Matipu, cujas sementes foram trazidas da antiga aldeia Uagihütü – um referencial territorial importante na história dos povos de língua karib no alto Xingu. Cumpre ressaltar que as informações sobre cada pequizal foram fornecidas pelo responsável pelo seu plantio. O índice ora mencionado foi utilizado com o intuito de associar a diversidade intraespecífica de cada pequizal à história de vida dos diferentes horticultores indígenas. Como as unidades amostradas apresentaram uma grande variação entre as populações de dados, calculamos um valor de H’ máximo com base no número total de variantes citadas em todas as amostras (S = 8). O valor final de H’ para cada parcela (H’ normal) foi calculado como H’ parcela/H’ máximo de todas as parcelas. Com exceção das parcelas B e C, que possuem um tamanho amostral muito baixo, o índice de diversidade de Shannon modificado para analisar a diversidade morfológica de frutos de pequi (H’ normal) teve pouca variação (0,24 ≤ H’ ≤ 0,43) entre

as parcelas amostradas. Embora as parcelas K (plantada por Afukaká Kuikuro) e L (plantada por Haitsehü Kuikuro) apresentem maior diversidade de variantes nomeadas pelos Kuikuro, todos os pequizais parecem ter um mesmo padrão de diversidade intraespecífica com forte dominância do tipo imbé hekugu (estrito senso). Esta dominância de um dos tipos reduz o parâmetro equitabilidade no cálculo do índice, promovendo um valor mediano (não muito alto ou muito baixo) de diversidade para as parcelas. Como apontamos anteriormente, no entanto, a variação morfológica de pequis cultivados no entorno da aldeia de Ipatse está provavelmente subestimada quando apenas consideradas as categorias nomeadas, em particular pelo efeito do sistema de classificação e da categoria mais ampla imbé hekugu. Ademais, ela não reflete a real diversidade existente nas coleções de sementes selecionadas pelos Kuikuro em diferentes locais do alto Xingu, já que não são levadas em conta as combinações de características na classificação dos frutos, mas apenas a característica tida como principal por cada agricultor. Neste sentido, a ‘composição de variantes nomeadas’ não se mostrou um parâmetro adequado como indicador de diversidade nas áreas amostradas, embora forneça uma estimativa relevante para comparar as parcelas e identificar um padrão de diversidade de pequis na aldeia de Ipatse. Neste trabalho, o índice foi utilizado por levar em consideração não somente a riqueza de variantes morfológicas (S) nomeadas pelos agricultores indígenas em cada pequizal, mas a equitabilidade na abundância dos indivíduos de cada variante, destacando os ‘tipos raros’ (aqueles com frequência relativa ≤ 20%) (Tabela 4). Chama atenção o fato de que as variedades selecionadas positivamente, ou seja, aquelas com fenótipos mais apreciados (suümkogu, imbese e tunguĩ), aparecem nas

Apesar de terem identificado vários indivíduos como tsupügügi (pequenos) nas parcelas, os entrevistados mencionavam-no como hekugu tsupügügi e, por esse motivo, foram todos quantificados na categoria hekugu, tomada aqui em sentido estrito (i.e., como subcategoria do grupo de pequizeiros plantados).

29

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parcelas com uma frequência relativamente alta (F Rel ≥ 50% - Tabela 4), a despeito, uma vez mais, da dominância da categoria lato sensu imbé hekugu. Falta-nos ainda uma análise mais detalhada do sistema local de classificações em comparação com a efetiva diversidade genética dessas populações, para corroborar a hipótese de que o pequi xinguano está em processo avançado de domesticação local. Entretanto, a alta frequência relativa de tunguĩ em populações cultivadas fornece fortes indícios de domesticação, já que se trata de um genótipo recessivo que ocorre em baixíssima frequência na natureza30.

REDE DE CIRCULAÇÃO DE SEMENTES O plantio de novos pomares de pequi está associado a um período inicial de ocupação de assentamentos permanentes ou temporários, uma vez que se trata de uma espécie perene, cujas unidades de cultivo (pequizais) são repassadas às novas gerações. Desse modo, poucas pessoas da aldeia de Ipatse tiveram a experiência de plantar pequi durante sua história de vida. No censo realizado em junho de 2011, de um total de 308 pessoas, apenas 23 disseram ter sido responsáveis pelo plantio de pequi naquela localidade. Esse número, porém, é mais expressivo do que parece à primeira vista, uma vez que o plantio é feito para as gerações futuras:

pais e avôs de sexo masculino plantam para seus filhos e netos. Entre os 37 homens com mais de 40 anos vivendo naquele momento na aldeia, mais de 60% já tinham plantado pequizais para seus descendentes. O fluxo de sementes de pequi no alto Xingu ocorre por meio de redes sociais que atuam em diferentes níveis e escalas. Na escala temporal, já mencionamos que o plantio de novos pequizais está associado à transmissão intergeracional e aos períodos de ocupação de novos assentamentos. Isso ocorreu em um ciclo de médio prazo, em torno de 20 a 50 anos no último século, em função das realocações pós-contato, mas possivelmente era de mais longo prazo no passado. Como os pequizais se tornam marcas no território, podem ser reutilizados também como forma de reavivar um direito de ocupação. Há velhos pequizais, com pouquíssimos indivíduos sobreviventes, plantados entre o final do século XIX e o começo do século XX, cuja cadeia de transmissão geracional ainda é reconhecida pelos Kuikuro. Na escala espacial, a rede de circulação de sementes atua em dois níveis principais: um nível interno entre diferentes pequizais de uma mesma aldeia e um nível regional, entre aldeias e povos do alto Xingu. Entre os 12 pequizais amostrados, cinco deles foram plantados com

Tabela 4. Frequência relativa das variantes morfológicas indicadas nos 12 pequizais amostrados no entorno da aldeia Ipatse. Legenda: F Rel = frequência relativa. Variante

Número de amostras com a variante presente

Número total de amostras

F Rel (%)

Hekugu

12

12

100,00

Suümkogu

9

12

75,00

Imbese

9

12

75,00

Tunguĩ

7

12

58,33

Kanga mukugu

5

12

41,67

Tenkgisake

2

12

16,67

Atü

1

12

8,33 (rara)

Akuhügi

1

12

8,33 (rara)

De acordo com o pesquisador da EMBRAPA Cerrados, Nilton Junqueira, especialista em melhoramento genético de pequi, pequis sem espinho no caroço ocorrem em proporção de 1/1.000 indivíduos (comunicação pessoal, 2013).

30

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Socialidade e diversidade de pequis (Caryocar brasiliense, Caryocaraceae) entre os Kuikuro do alto rio Xingu (Brasil)

sementes coletadas preferencialmente na localidade do lago de Ipatse (arredores da aldeia atual e da aldeia precedente de Ahangitahagü para a qual se mudaram em 1961, face à exclusão inicial da aldeia de Lahatuá do perímetro do Parque Indígena do Xingu). Nos outros sete pequizais, foram utilizadas sementes trazidas de procedências diversas, mas sempre do território de uso dos povos de língua karib do alto Xingu (Figura 5). O fato de sete, dos 12 pequizais amostrados, possuírem sementes de outras aldeias parece indicar uma preferência dos Kuikuro por obter sementes de várias origens, inclusive fora de seus domínios31. As principais fontes de sementes para o plantio dos pequizais estão associadas a espaços de referência na história de vida de cada um dos agricultores e/ou de suas famílias. Elementos importantes desta história referem-se aos casamentos, à origem dos pais e aos locais de moradia.

Se observarmos a Tabela 3, podemos rapidamente traçar estas relações no tempo e no espaço. Assim, por exemplo, Haitsehü é um homem de mais de 70 anos de origem kalapalo. As sementes do pequizal que plantou vieram da antiga aldeia de Akuku, onde viviam os Kalapalo na década de 40, no momento da chegada dos irmãos Villas-Boas. O cacique Afukaká também trouxe suas sementes desta mesma aldeia, abandonada desde 1961, pois se casou com duas irmãs, filhas de uma mulher kalapalo. Já Sagiguá, que é casado com uma outra mulher kalapalo e tem cerca de 50 anos, trouxe as sementes da aldeia de Aiha, a aldeia kalapalo que sucedeu a Akuku e onde a sua esposa nasceu. O pai de Ausuki foi um importante chefe matipu e, por isso, trouxe as sementes de lá. Essa cadeia poderia ser multiplicada, pois a circulação ocorre horizontalmente (via casamento) e verticalmente (como herança); ou seja,

Figura 5. Locais de origem das sementes de pequi plantadas nos doze pequizais amostrados na aldeia Ipatse. A espessura das setas indica quantos, entre os pequizais amostrados, receberam sementes de cada localidade: Naruvoto = 1; Akuku = 2; Uagihütü = 2; Sítio Majene = 1; Ahangitahagü = 4; Ipatse = 2; Matipu = 1; Aiha = 1. Setas vermelhas = circuito local; setas azuis = circuito regional. Note-se que, neste caso específico, as sementes circularam entre aldeias e assentamentos de povos de língua karib altoxinguanos, seja no nível local ou regional (circuito karib).

Surpreendentemente, pelo menos nesta amostra, não há referência à região de Kuhikugu e Lahatuá, onde permaneceram de 1820 a 1961 (e que atualmente reocuparam). Apenas Haitsehü trouxe semente de um sítio de ocupação provisória nesta região, conhecido como Majene.

31

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as sementes trazidas de outras aldeias e plantadas para as gerações futuras foram elas mesmas trazidas de outras aldeias e plantadas para gerações, hoje, passadas. Um fato notável no caso kuikuro é que a rede horizontal possui uma amplitude restrita, uma vez que os casamentos internos são prevalentes. Se há certa frequência de casamentos interétnicos, a grande maioria ocorre dentro do bloco linguístico karib, com pessoas kalapalo, matipu e nafukwá. São pouco numerosos os casamentos com pessoas falantes de outras línguas do sistema xinguano, sendo as uniões fora da constelação xinguana ainda mais raras 32. Assim, a circulação de sementes de pequi em nível regional, pelo menos no caso kuikuro, ocorre preferencialmente no interior do território do bloco linguístico. Isto não é tão marcado no caso de outros povos altoxinguanos e podemos supor que haja também um fluxo ‘interlinguístico’ importante de sementes na região, o que contribui para a diversidade fenotípica observada nos pequizais cultivados. Os pequizais de Ipatse são resultantes do fluxo de sementes em diversos níveis de abrangência espacial, pois, em um único pequizal, há uma mistura de indivíduos provenientes de sementes coletadas em diferentes aldeias no mesmo período. Aqui as redes de circulação de sementes se configuram de maneira distinta daquela das redes de troca de germoplasma, tal qual descrito em outros estudos sobre sistemas agrícolas tradicionais (Emperaire et al., 2008; Seixas, 2008; Machado, 2012). Nestes estudos, o germoplasma de diferentes espécies circula entre pessoas, caracterizando uma rede de doadores e receptores. Em uma análise sobre todas as espécies e variedades cultivadas no sistema agrícola de uma comunidade ribeirinha do Rio Croa, no Acre, Seixas (2008) observou diferentes amplitudes de redes de troca entre famílias ligadas por relações de parentesco e vizinhança, de comércio e até mesmo institucionais.

A floresta, neste caso, também é uma importante provedora de diversidade agrícola (Seixas, 2008). Com relação ao pequi, a rede de circulação de sementes caracteriza-se menos pela relação direta entre doadores e receptores – embora as relações sociais de parentesco sejam fundamentais na operação do fluxo – e antes pela relação de pessoas com territórios de referência (Figura 5). No processo de fissão e formação de novas aldeias, bem como por meio do casamento entre povos, permanecem fortes laços das famílias com seus territórios de origem, seja pela existência de parentes nestes locais ou pelo referencial territorial em si mesmo. Lugares de moradia passada, sobretudo ali onde os pequizais ainda florescem, são índices duráveis das relações que os produziram enquanto espaço humano. Essas relações pretéritas estendem-se até o presente, gerando direitos de uso, que podem ser mobilizados pelas gerações contemporâneas. No sistema agrícola kuikuro, a amplitude da rede social de circulação de sementes de pequi se diferencia da rede de circulação de germoplasma de mandioca. No primeiro caso, o fluxo em nível espacial regional é expressivo na composição de pequizais; já no segundo, o fluxo de estacas (manivas) de mandioca ocorre preferencialmente em nível local (entre parentes da mesma aldeia). Na escala temporal, essa diferença de amplitude é ainda mais significativa: a circulação das estacas de mandioca é feita em ciclo anual, enquanto a de sementes de pequi ocorre em ciclos mais longos (em torno de 20 a 50 anos). Esta constatação é relevante, pois aponta para diferentes lógicas de gestão da agrobiodiversidade no manejo de diferentes tipos de plantas dentro de um mesmo sistema agrícola. O processo de coleta, seleção e circulação espacial de sementes de pequi no alto Xingu leva-os a misturar as sementes de frutos de diferentes procedências em um

Em 2012, havia um casamento com uma mulher xavante-terena e com uma não indígena. Ambos os maridos não viviam nas aldeias kuikuro.

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mesmo cesto, próprio para guardá-las. No procedimento de plantio, os Kuikuro produzem mudas, enterrando estas sementes todas juntas e depois transferindo aquelas que germinaram para seus locais permanentes na roça de mandioca. Da mesma forma que as roças de mandioca, que geralmente são abertas em áreas contíguas, separadas apenas por uma ou poucas fileiras de variedades marcadoras de limites, os pequizais plantados nas roças mantêm a mesma configuração. Deste modo, árvores de pequi nascidas a partir de sementes de diferentes procedências ficam próximas entre si, favorecendo o fluxo gênico e a fecundação cruzada. Todos estes elementos, desde a seleção de sementes em escalas diferenciadas (temporal e espacial) e níveis espaciais distintos, a circulação social destas sementes (que segue os padrões de circulação local e/ou dos agricultores e de suas famílias), o armazenamento e o plantio destas sementes misturadas e a proximidade entre os pequizais são mecanismos que favorecem a diversidade morfológica de pequis cultivados pelos índios do alto Xingu.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, procuramos traçar a rede de relações tramada a partir do pequi altoxinguano. Esta rede não é formada apenas por horticultures, suas famílias e um objeto biológico, o pequizeiro. Ela é bem mais extensa, coletando em sua malha pessoas e coisas, humanos e não humanos, e se estendendo no espaço e no tempo para além das fronteiras da família, da aldeia, do bloco linguístico e mesmo da humanidade. Para usar os termos de Latour (1991), o pequi xinguano é um híbrido de natureza e cultura e, neste sentido, poderíamos tratá-lo como uma planta biocultural. Não podemos afirmar, ainda, que se trata de uma variedade ‘domesticada’ na acepção mais comum do termo em biologia (i.e. uma população modificada geneticamente por meio da seleção humana ao longo de gerações, de modo a acentuar traços que beneficiem os seus seletores). Devemos, ainda, aguardar as análises genéticas em andamento para confirmá-lo.

Neste artigo, interessou-nos, sobretudo, pensar o pequi não como recurso biológico revestido de aspectos socioculturais, mas como objeto constituído por relações sociais – sem estas, a rigor, o pequi xinguano simplesmente não existe. Isto não quer dizer que a biologia não possa estudar os conhecimentos, práticas e técnicas de cultivo da espécie e manejo dos pequizais e o seu impacto sobre a diversidade intraespecífica. Foi o que fizemos aqui de maneira preliminar, mostrando como certas práticas – a seleção de sementes de procedências diversas, o seu plantio conjunto para a produção de mudas, a proximidade entre pequizais permitindo o fluxo gênico – incidem direta ou indiretamente na diversificação e na manutenção de diversidade morfológica nas populações de pequi cultivadas. Contudo, essas práticas, assim como as redes sociais de circulação de sementes, não são aspectos culturais justapostos às características reprodutivas da espécie, mas parte mesmo de sua reprodução enquanto ‘pequi xinguano’ ou, mais exatamente, daquilo que os Kuikuro denominam imbé hekugu. Vimos, ainda, que, se a diversidade intraespecífica da mandioca e de outras espécies cultivadas costuma ser descrita e quantificada por meio da noção de variedade – tal como, por exemplo, aquela utilizada por Emperaire (2006) –, esta se aplica mal para caracterizar a diversidade morfológica de uma espécie alógama e de ciclo de vida longo, como o pequi, fato que dificulta a manutenção de variantes estáveis ao longo de gerações. À parte as oito categorias que correspondem mais de perto a nossa noção de variedade, os Kuikuro reconhecem ainda grande variação morfológica em pequizais cultivados. De fato, todo o sistema de manejo da espécie, o qual se inicia pelo processo de seleção de sementes para o plantio, atua com base nessa variação, independentemente de sua classificação em categorias nominais bem definidas. Esses dados indicam que dentro de um mesmo sistema agrícola podem operar formas distintas de classificação e manejo da diversidade intraespecífica com respeito a diferentes espécies vegetais. Sugerimos, assim, que o conceito de variedade seja utilizado com cautela e adaptado aos contextos locais.

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Nosso estudo vai ao encontro de outros trabalhos que ressaltam a importância das redes sociais de circulação de sementes e de conhecimentos na dinâmica de geração e conservação da diversidade varietal de espécies agrícolas nos sistemas amazônicos (Emperaire e Eloy, 2008; Seixas, 2008; Lima et al., 2012). Essas redes operam de formas e em amplitudes espaço-temporais diversas, entre e dentro de cada um desses sistemas. Um dos elementos instigantes da fruticultura do pequi é sua transmissão intergeracional, que lhe dota de uma dinâmica própria na construção de paisagens culturais, algo que deve ser aproximado comparativamente ao manejo de palmeiras na Amazônia ocidental, sobretudo da pupunha (Rival, 1998, p. 239-241; Costa, 2007, p. 84, 160, 193; Clement et al., 2009b). Como mostrou Rival e outros autores, os bosques de palmeiras, com seu lento crescimento e sua perenidade, costumam simbolizar a continuidade das gerações e a memória dos mortos. O cultivo de pomares de pequi em roças de mandioca entre os Kuikuro é mais uma evidência da relevância de espécies arbóreas nos sistemas agrícolas amazônicos, bem como do fato de que o seu cultivo não se restringe aos quintais agroflorestais em torno de casas ou aldeias, podendo constituir agroecossistemas diferenciados no escopo desses sistemas. A compreensão da impossibilidade de dissociar ‘aspectos biológicos’ e ‘socioculturais’ na dinâmica de produção e conservação da agrobiodiversidade, seja em nível intraespecífico, interespecífico ou ecossistêmico, reforça a necessidade de investir-se em estratégias de conservação on-farm, em consonância com as formas locais de cultivo e de transmissão do conhecimento. É central aqui a percepção de que estamos diante de uma tradição, cujos mecanismos pragmáticos de transmissão e memorização devem ser levados em conta nas estratégias

de conservação e salvaguarda. Este é, evidentemente, um problema que só se coloca quando a cadeia de transmissão de um determinado conhecimento esteja em vias de se romper ou quando ele entre em conflito com outras formas de conhecimento e de apropriação, como ocorre hoje com o pequi sem espinhos xinguano. É a possibilidade de ele se tornar um bem com valor monetário, e não mais uma variedade inserida em um sistema agrícola indígena, que torna necessário pensar em reconhecimento de direitos e em ações de conservação e salvaguarda. Este estudo busca, por fim, ter relevância para as políticas públicas, uma vez que o atual marco legal33, que regulamenta o acesso ao patrimônio genético e/ou aos conhecimentos tradicionais associados para fins de utilização comercial e repartição de benefícios (sistema ABS34) no Brasil, baseia-se em uma visão fragmentada das diversas dimensões que compõem a diversidade biológica, sobretudo no que concerne à agrobiodiversidade. Esta visão fragmentada tem prejudicado os povos indígenas e os povos e comunidades locais na luta por seus direitos, enquanto principais detentores de conhecimentos tradicionais associados no sistema ABS.

AGRADECIMENTOS Esta pesquisa foi desenvolvida no âmbito do projeto de doutorado “Árvores de cultura: cultivo e uso do pequi (Caryocar sp., Caryocaraceae) entre os Kuikuro do alto Xingu, MT” desenvolvido por Maira Smith, no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS/UnB) entre 2009 e 2013, sob orientação de Laure Emperaire (Institut de Recherche pour le Développement – IRD) e co-orientação de Carlos Fausto (Museu Nacional do Rio de Janeiro). A autorização de acesso ao conhecimento tradicional associado para fins de pesquisa científica foi

Mesmo o novo marco legal brasileiro, instituído por meio da Lei nº 13.123, de maio de 2015, a despeito das mudanças em relação ao marco anterior, mantém uma visão fragmentada da biodiversidade, separando o patrimônio genético dos conhecimentos tradicionais associados. 34 A sigla ABS é resultado da abreviação do termo em inglês access and benefit sharing, utilizado no escopo da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) em nível internacional. 33

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REFERÊNCIAS

concedida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (IPHAN/CGEN) e publicada no Diário Oficial da União em março de 2012. Smith agradece os apoios concedidos pelo Programa de Documentação de Culturas Indígenas (PRODOCULT) - Museu do Índio/FUNAI; pelo Programa Universidades e Comunidades no Cerrado (UNICOM/Florelos/ISPN/União Europeia); pela Unidade Mista de Pesquisa 208 do Institut de Recherche pour le Développement/Museum National d’Histoire Naturelle (IRD/MNHN); pelo Programa de Cooperação Bilateral Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-Institut de Recherche pour le Développement (CNPq-IRD), “Populações locais, agrobiodiversidade e conhecimentos tradicionais associados” (PACTA); e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), na forma de bolsa de doutorado. Fausto agradece os recursos de pesquisa concedidos pelo CNPq e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), bem como as bolsas de Iniciação Científica e mestrado concedidas pelo CNPq e pela CAPES. Agradecemos também aos pesquisadores que fizeram parte do Conselho Científico do projeto: Vânia Rennó de Azevedo (Centro Nacional de Pesquisa de Recursos Genéticos e Biotecnologia – CENARGEN), Charles Clement (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA), Fabio Freitas (CENARGEN), Frédéric Mertens (CDS/UnB) e Carlos Saito (CDS/UnB), e aos Kuikuro que participaram diretamente da coleta de dados: Sepé Ragati Kuikuro, Aruiá Kuikuro, Amuneri Kuikuro, Kamasinuá Kuikuro, Kanuta Kuikuro, Rikakumã Kuikuro, Ossó Kuikuro e Mayaya Kuikuro. As etapas de campo do projeto do Museu do Índio contaram com a presença de Hélio Sá Cabral Neto e de Helena Pagliaro Cooper, respectivamente alunos de mestrado e iniciação científica de Carlos Fausto. Eles participaram ativamente nas atividades de coleta de dados, auxiliando Maira Smith. Por fim, agradecemos os iluminadores comentários dos pareceristas e ao apoio de Robert Miller na revisão do abstract.

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Mundos de roças e florestas Worlds of gardens and forests Joana Cabral de OliveiraI I

Universidade de São Paulo. São Paulo, São Paulo, Brasil

Resumo: Pretendo explorar neste artigo as relações entre os domínios da roça (koo) e da floresta (ka’a), importante oposição da cosmologia wajãpi (grupo Tupi que habita o estado do Amapá). Ka’a e koo, contudo, não se constituem como uma oposição fixa, mas antes como posições relacionais que se movem, nas quais a capoeira ocupa um papel fundamental. Algo que é evidenciado tanto numa dinâmica de ocupação territorial - por meio do cultivo de áreas de mata primária e o abandono dos roçados após a colheita -, quanto por meio das relações perspectivistas que movimentam as categorias de roça e floresta, plantas cultivadas e não-cultivadas, através de distintos sujeitos. Nesse contexto, compreender a dinâmica das relações entre floresta e roçado é fundamental para melhor refletir sobre como algumas famílias wajãpi entendem a atividade agrícola. Proponho essa reflexão estabelecendo um diálogo com ecologia histórica que aponta para a existência de florestas antropizadas, contexto em que a agricultura se apresenta como uma atividade central para a produção de biodiversidade. Palavras-chave: Wajãpi. Roças. Capoeiras e florestas. Florestas antropizadas. Agricultura indígena. Ontologias ameríndias. Abstract: In this paper I intend to explore the relationship between the areas of garden (koo) and forest (ka’a), a major opposition in Wajãpi cosmology. The Wajãpi are a Tupi group located in the state of Amapá. In their cosmology the garden and forest do not constitute a fixed opposition, but represent relational positions that move into two directions: a dynamic of territorial occupation by cultivating areas of primary forest, followed by the abandoning of clearings after the harvest; and perspectival relationships that shift the categories of garden and forest, cultivated and non-cultivated, through different subjects. In this context, understanding the dynamics of the relationships between forest and cultivation is critical for a better comprehension of the Wajãpi perspective on agricultural activity. I propose a reflection that establishes a dialogue with historical ecology that points to the existence of anthropic forests. In this way, agriculture is presented as a central activity for the production of biodiversity and areas of anthropic forests. Keywords: Wajãpi. Gardens. Ex-gardens and forests. Anthropic forest. Indigenous agriculture. Amerindian ontologies.

OLIVEIRA, Joana Cabral de. Mundos de roças e florestas. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 115-131, jan./abr. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000100007. Autor para correspondência: Joana Cabral de Oliveira. Universidade de São Paulo, Centro de Estudos Ameríndios. Rua dos Escultores, 389, São Paulo, SP, Brasil. CEP: 05468-010. E-mail; joanacoliveira@gmail.com Recebido em 09/10/2013 Aprovado em 07/01/2016

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APRESENTAÇÃO Na etnologia americanista a discussão que ganhou proeminência na última década se circunscreve ao que se convencionou chamar de ontologias ameríndias – campo que surge de uma transformação das pesquisas fundadoras da antropologia das Terras Baixas da América do Sul na área de parentesco e cosmologia. A articulação desses dois temas apontou justamente para a necessidade de abarcar múltiplos sujeitos, sobretudo àqueles aparentemente não-humanos, na compreensão dessas socialidades. Nessa configuração, a prática etnográfica tem se debruçado sobre a guerra, a mitologia, a caça e o xamanismo, recortes que forneceram os subsídios para a elaboração do perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro, 2002a; Lima, 1996, 2005), em que se destaca a relação dos homens com os animais (e seus respectivos mestres/donos1) e os espíritos. Nesse cenário, poucos esforços têm sido vertidos para abordar temas fora do escopo da afinidade/predação (ou seja, da guerra, da caça e do xamanismo). As relações e elaborações ameríndias sobre as plantas, por exemplo, têm passado ao largo dessa discussão; ora desembocam no campo da etnobotânica, ora na agricultura, onde domina o idioma da consanguinidade, como nos mostram Descola (1996), Emperaire (2002, 2005, 2010), Santos (2001), Rival (2001) e como eu mesma tratei em trabalho anterior (Cabral de Oliveira, 2006, 2008, 2015). Se a atividade agrícola tem mobilizado pesquisadores de diversas áreas, por ser um tema profícuo e de grande interesse para muitas populações indígenas, a mesma atenção parece não ser vertida sobre as plantas da floresta e capoeira. Ainda que a oposição roça/floresta seja extremamente produtiva em muitos cenários amazônicos, inclusive junto a populações não-agricultoras - como nos mostra Rival (1998) a partir do caso huaorani, onde a oposição agricultor (conhecedores dos cultivos)

versus caçador-coletor (conhecedores das matas) rege apreciações mútuas entre populações vizinhas. Todavia a relação entre roça e floresta não se mantém como simples oposição diametral. A capoeira (a sucessão florestal que toma conta de áreas ocupadas e derrubadas) une roça e floresta, apontando de um lado para o movimento e de outro para a gradação entre esses polos. A problematização da oposição entre roça e floresta, que passa justamente por um enfoque sobre as capoeiras, pode ser notada tanto entre grupos ameríndios como em áreas do conhecimento científico. No que se refere a ciência, vale notar que os estudos de ecologia histórica desenvolvidas pioneiramente por Balée (1993, 1994) e posteriormente por outros grupos de pesquisas (Levis et al., 2012; Clement et al., 2015; Clement, 2006), combinam dados botânicos, linguísticos e arqueológicos para fundamentar a ideia de que a biodiversidade da flora amazônica foi, em grande medida, produto de ocupações humanas e de suas atividades, em especial a agricultura de coivara. Ao contrário do que a visão comum aponta, boa parte da Amazônia não seria um berço de natureza intocada, mas sim florestas antropizadas. Do mesmo modo, a Terra Preta de Índio (Junqueira; Shepard; Clement, 2010) – solo rico em matéria orgânica e amplamente procurado por populações locais por sua fertilidade – seria resultado da dinâmica de ocupações pré-colombianas. As florestas e solos antropizados, em um processo que que Clement (2006) juntamente com outros autores denomina de “domesticação da paisagem”, são altamente valorados devido ao alto potencial produtivo (maior quantidade de frutas, alta biodiversidade e espaços propícios para os roçados). Poderíamos ainda acrescer a esse cenário a domesticação de plantas, sendo contabilizadas 83 espécies nativas em diferentes estágios de domesticação na Amazônia, as quais estão intimamente relacionadas a

Figura fundamental em diversas cosmologias indígenas que foi tratada de modo comparativo por Fausto (2008) em um artigo em que ele apresenta uma abordagem particular sobre a maestria.

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BREVE INTRODUÇÃO AOS WAJÃPI E SEUS ROÇADOS Os Wajãpi habitam o estado do Amapá em uma Terra Indígena (TIW) de 607.000 hectares numa área de floresta de terra firme. São falantes de uma língua da família Tupi-Guarani e se inserem no conjunto etnográfico das Guianas4. Apesar do crescente número de assalariados, as famílias wajãpi subsistem basicamente da agricultura, da caça, da pesca e da coleta, organizando-se em torno de uma ocupação dispersa pelo território que é regida pelo ritmo pluvial: no tempo das chuvas (amãna remë) ocupam os conglomerados de pátios em torno de uma das cinco aldeias centrais (que possuem alguns aparatos estatais como escola, enfermaria, posto da Funai etc.); no tempo da seca (kwara’y remë), deslocam-se para pequenas aldeias espalhadas pela TIW, em geral próximas aos seus limites. Atualmente esse mobilidade também é orientada pelo calendário escolar (já que as aulas ocorrem nas aldeias centrais) e por outras atividades relacionadas ao Estado e outras instituições não-indígenas. Os estudos de cosmologia e xamanismo empreendidos por Gallois (1988, 1996), Campbell (1989) e Grenand (1979, 1980) já mostraram a grande rentabilidade e pertinência das questões referentes à multiplicidade de sujeitos que habitam o cosmos, em suma sobre uma ontologia wajãpi. Especial ênfase é dada à plataforma terrestre, onde as famílias travam relações cotidianas com diversos seres e com os donos cosmológicos (ijarã) que cuidam de suas criaturas, seus xerimbabos (-reima). No plano terrestre é onde se desenrola o complexo jogo entre floresta, roça, aldeia e capoeira na constituição de espaços apropriadamente humanos. Afinal, como nos

uma sociabilidade pré-colombiana e a todo o contexto mais amplo de modificação de solos e coberturas florestais (Clement et al., 2015). Dessa forma, a biodiversidade da floresta amazônica seria resultado tanto da atividade agrícola de coivara, como da coleta2 e das movimentações de assentamentos. Estaríamos, para usar o termo de Descola (1996), diante de uma “natureza doméstica”. Quanto às perspectivas indígenas, poderíamos logo evocar a marcante obra de Descola (1996), onde o autor mostra que os Achuar concebem a floresta como uma grande plantação de um demiurgo e de outras gentes, orientando a partir dessa concepção suas próprias práticas agrícolas. No caso achuar há uma inversão na medida em que a roça é constituída de forma estética à semelhança da floresta (a roça primordial). Como explica Descola (1996, p. 238), as bananeiras e mamoeiros são plantados nos arredores da clareira de modo similar ao nível trófico mais alto da floresta (o dossel), o nível médio fica a cargo das mandiocas, laranjeiras e milhos, e o nível inferior é constituído pelas plantas rasteiras (batatas, cabaças e abóboras). Assim, o roçado é compreendido como um modelo reduzido de uma “floresta cultivada”. Contudo, deixarei o trabalho inspirador de Descola (1996) e me deterei aqui no caso wajãpi, grupo com o qual realizei sucessivas pesquisas3. A aposta desse artigo é que seria profícuo compreender a agricultura wajãpi e, portanto, a roça juntamente com seu par – a floresta – e com seu movimento – a capoeira. Tal perspectiva, talvez permita inserir a atividade de elaboração dos roçados em um escopo mais amplo e estabelecer um diálogo entre a ecologia histórica e a reflexão acerca das ontologias ameríndias.

Rival (1998) mostra como os Huaorani manejam a floresta por meio da coleta e da manutenção de matas secundárias extremamente valorizadas por esse grupo caçador-coletor. 3 Meu trabalho junto com os Wajãpi iniciou em 2004 e segue de maneira constante até os dias atuais. Além das pesquisas de mestrado, doutorado e pós-doutorado (todas com financiamento Fapesp) que somam 18 meses de trabalho campo, realizo desde o início diversas atividades em parceria com as Associações Wajãpi (Apina e AWATAC) e com a ONG Iepé que envolvem a formação de professores, agentes de saúde, agentes sócio-ambientais e pesquisadores wajãpi. 4 A região das Guianas é marcada pela predominância de grupos Caribe e foi recentemente caracterizada por suas densas redes de trocas. Para mais detalhes ver Gallois (2008). 2

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relatam uma série de narrativas wajãpi (Gallois, 1988; Grenand, 1980; Cabral de Oliveira, 2006) a primeira humanidade foi soprada pelo demiurgo janejarã5 com o intuito de lhe fazer companhia e viver no estado de abundância e pacificidade da primeira terra. Porém, os comportamentos abusivos e teimosos dos primeiros (taivïgwerã ou jane ypy) levaram ao afastamento de janejarã, que vai morar na plataforma celeste. Irrompe-se com esse ato a divisão entre estratos celestes e terrestre que compõem o cosmos. O disco terrestre se configura, então, como um espaço adverso (floresta alta e perigosa, morada de seres peçonhentos, agressivos e de donos ciumentos e vingativos). A partir desse momento, os homens devem construir seu domínio com esforço, por meio da atividade agrícola. Derrubar uma porção da mata e queimá-la é o primeiro passo para destituir a posse dos ka´ajarã (donos da floresta) e afastar os perigos; conforme me explicou Aikyry: “Quando a gente derruba a mata para fazer a roça, ka’ajarã [dono da floresta] vai embora” (Informação verbal). Um estado de apaziguamento é, assim, mantido por meio do plantio e limpeza constante dos roçados. Não por acaso, toda aldeia nasce dentro de uma roça – um lugar previamente socializado e amansado.

Contudo, a roça não está completamente livre de perigos e ações retaliatórias. Os cultivos também possuem donos cosmológicos: mani’ojarã, dono da mandioca; jityjarã, dono da batata; pakojarã, dono da banana etc. Esses donos são atraídos em algumas condições, em especial pelo cheiro de sangue. Por isso, mulheres parturientes ou menstruadas e pais de recém-nascidos devem abster-se dos trabalhos agrícolas, pois os ijarã dos cultivares podem atacá-los, causando diversos infortúnios. Aqueles que se encontram em algum estado liminar devem manter-se no espaço mais ameno e pacífico - a aldeia (taa). A roça, assim, é apenas um local cujo perigo foi amainado, pois os donos dos cultivos são menos agressivos do que os donos de animais e de grandes árvores. Vale notar também a concepção da roça como um lugar da consanguinidade, aspecto que contribui para construção de um espaço apaziguado, algo que se apresenta em diversas dimensões como pontuo a seguir. A relação que as agricultoras estabelecem com suas plantações é de cuidados semelhantes aos que são vertidos sobre os filhos, o que desemboca em um sentimento de apego às plantações. Certa feita Kasawa me contava a respeito de uma variedade de algodão (maneju tapupura)

Figura 1. À esquerda aldeia em processo de formação, em meio a uma roça nova as casas temporárias estão envoltas pelos pés de mandioca. Á direita aldeia consolidada há anos, onde as casas são rodeadas por pupunha e árvores frutíferas. Fotos: Joana Cabral de Oliveira.

Literalmente: jane, primeira pessoa inclusiva do plural (nós) e -jarã, dono, mestre. Janejarã (nosso dono) é uma figura de demiurgo que se desdobra em uma multiplicidade de outros janejarã, todos de aparência humana.

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como cada mulher classifica seus cultivares de acordo com uma rota do parentesco e de relações com distintos níveis de alteridade. Toda mulher lembra com precisão quem lhe deu a variedade e qual sua história de procedência (Cabral de Oliveira, 2006, 2008). Com o intuito de implementar a biodiversidade agrícola (algo pelo qual os Wajãpi são ávidos) as variedades de algodão, mandioca, batata etc são intensamente trocadas pelas rotas da rede de parentesco. Quando um jovem casal elabora sua primeira roça, a esposa vai pegar sementes, mudas e estacas de sua mãe e irmãs mais velhas (já que o plantio é uma atividade essencialmente feminina e o padrão de moradia é uxorilocal). Assim a roça é constituída a partir do conjunto de variedades dos consanguíneos. Posteriormente, com o passar dos anos e com o adensamento de relações e viagens de visita aos parentes do marido, a dona do roçado vai incorporar novas variedades através dos afins e de alteridades mais distantes (Cabral de Oliveira, 2008)6. Outro ponto relevante é o fato dos trabalhos envolvendo as roças serem, quase sempre, feitos por um conjunto de mãe e filhas ou eventualmente um grupo de irmãs, que colhem e processam juntas a mandioca7. A sugestão de Rosalen (2005, p. 61) é esclarecedora nesse sentido:

Figura 2. À esquerda dono da mandioca em sua manifestação monstruosa. À direita o dono da mandioca como é visto por pessoas empajezadas e/ou em sonhos. Imagens: Professores Wajãpi, 2006 p. 5, 23.

que possui uma coloração marrom-avermelhada, e que ela apreciava muito tanto por essa característica cromática como por ser considerada uma variedade antiga, classificada como sai kõ remitã (plantação das avós). Ela então lembrou de um episódio; um dia, ao regressar de sua roça, encontrou o seu pé de maneju tapupura decepado: “Quando eu vi que meu filho cortou meu maneju tapupura eu chorei! Fiquei com raiva. Eu disse: ‘Por que você fez isso?’. Eu chorei muito aquele dia, eu estava triste porque é difícil achar maneju tapupura, foi minha mãe que me deu as sementes…” (Informação verbal). Esse singelo episódio mostra não só o afeto em relação à alguns cultivares, como também as relações de parentesco que se depositam nesses espécimes - afinal aquele pé de algodão tapupura havia sido um presente materno. Um aspecto importante é a troca de cultivares entre parentes. Em pesquisa precedente pude observar e registrar

“[...] as roças, assim como os caminhos, são forjados pelos grupos de substância (desde a escolha do local – pensamento – até a elaboração propriamente dita, que envolve os fluídos corporais) e estão impregnadas por suas potencialidades. Não por acaso as roças são designadas pelo nome das esposas, àquelas que fisicamente e simbolicamente são responsáveis por alimentar e reproduzir o grupo de substância”.

Essa dinâmica pode se inverter caso o padrão de moradia seja quebrado (como no caso de filhos de chefes que se mantém na aldeia do pai). Tomando a mulher como ego do roçado (já que ela é a principal responsável pelo plantio e colheita), nesse caso ela vai elaborar sua primeira roça tomando variedades de sua sogra e vai implementar posteriormente sua coleção de cultivares com variedades de sua mãe, avó e irmãs. O ponto é que a diversidade agrícola é construída através das relações entre afinidade e consanguinidade, contudo, a consanguinidade é um marcador dos roçados em seu padrão uxorilocal de moradia, e nos trabalhos diários com mandioca que são comumente realizados por um grupo de irmãs ou de mães e filhas. 7 Eventualmente algumas situações podem fazer com que o padrão seja quebrado e se tenha sogra-nora ou cunhadas trabalhando juntas. Observei essas situações no caso de famílias de chefes, que quebraram o padrão de moradia uxorilocal e também em locais de longa ocupação, como na aldeia Mariry. No Mariry foi o único local onde observei sogra e nora plantando juntas e isso foi explicado devido a falta de koo’y nas imediações, além disso também era uma relação entre sogra e nora, marcadas por uma chefia forte, tratava-se da nora de um dos principais chefes wajãpi. 6

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Ao trabalharem juntas, um grupo de mulheres compartilha conversas, saberes, alimentos e fluidos corporais como o suor, constituindo um grupo de substância8. Se os roçados estão imbuídos de substâncias, logo de consanguinidade, isso se faz em contraste e sobre a floresta, um espaço de afinidade – o exterior do sócius apropriadamente humano e, por isso, eminentemente perigoso e atrativo. A floresta (ka’a) tanto nas narrativas míticas quanto nos lidos cotidianos (em especial nas caçadas) é repleta de perigos e marcada por interditos e pela figura da alteridade, afinal é a morada de animais, árvores, palmeiras e seus respectivos donos (ijarã) que frequentemente atacam os Wajãpi por via xamânica. Essa figura do outro, do afim, pode ser exemplarmente notada nas narrativas de casamentos entre os primeiros humanos e diversos animais, bem como no perigo atual de ser seduzido e ter relações conjugais com não-humanos (Gallois, 1988; Cabral de Oliveira, 2012).

AMPLA DISTRIBUIÇÃO DA OPOSIÇÃO PLANTADO / NÃO-PLANTADO Nesse cenário, não é preciso ir longe nos exemplos etnográficos e na bibliografia wajãpi para afirmar ao leitor que boa parte das proposições do perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro, 2002a; Lima 1996) podem ser notadas no contexto wajãpi9; uma estrutura ontológica etnograficamente descrita entre os Wajãpi por Grenand (1980), Campbell (1989) e Gallois (1988) antes mesmo da alcunha e do salto teórico de Viveiros de Castro (2002a). Grosso modo, o perspectivismo ameríndio pode ser resumido como uma ontologia que opera com os

desdobramentos da seguinte proposição relacional: todos os habitantes do cosmos possuem espírito, mas diferem quanto aos seus corpos. O espírito amplamente compartilhado garante a todos os seres a posição de sujeitos (repletos volição e agencia) e estabelece uma perspectiva. A perspectiva não é uma visão sobre o mundo, mas assim a constituição de um mundo próprio, o que tem como consequência a multiplicidade de mundos (Viveiros de Castro, 2002a, p. 378). Tem-se, pois, uma diversidade de naturezas (dada pela diferença de corpos), percebidas pela unicidade da cultura que está alicerçada em um passado inescapável - quando homens, animais, astros e plantas falavam uma mesma língua e viviam em estado social de troca plena (casavam-se entre si, aprendiam uns com os outros etc.). Passando ao ponto que pretendo tratar – como se desenrola a relação entre roça (koo) e floresta (ka’a) no universo wajãpi – note-se que em uma ontologia onde todos os seres compartilham uma humanidade de fundo, não é de surpreender que todos tenham suas plantações e roçados, afinal a agricultura é um dos emblemas da humanidade. As plantas cultivadas são um atributo de todas as gentes, espalhando-se por esses mundos a fora (Cabral de Oliveira, 2015). Nessa configuração ontológica, as plantas da floresta, que rodeiam as bordas das moradas wajãpi (as aldeias e roçados), não podem ser consideradas plantas selvagens, ou para ser fiel às categorias classificatórias wajãpi, não-plantadas10, em absoluto. Os vegetais que compõe ka’a são classificados como temitã e’ã (nãoplantados) apenas da perspectiva wajãpi - a classificação é pois sujeito centrada. Ao sair na companhia das famílias

O conceito de “grupo de substância” emerge em etnografias de grupos Jê (Matta, 1976; Melatti, 1979) e diz respeito a uma dimensão das relações da parentesco onde o compartilhar de alimentos, fluídos corporais, atividades e palavras faz com que um grupo de pessoas crie uma conexão corporal. Nesse contexto, o bem estar de uma pessoa depende dos cuidados e abstenções feitas por parentes que estão atados a ele por laços de substâncias estabelecidos na covivialidade. 9 Vale notar que o rendimento do perspectivismo para o contexto wajãpi não é casual. As etnografias inspiradoras são justamente de dois povos Tupi, os Yudjá e os Araweté, ambos da Amazônia. No mais muitas proposições destacadas pelo perspectivismo foram previamente descritas junto aos Wajãpi por Grenand (1980) e Gallois (1988). 10 A categoria da taxonomia vegetal wajãpi de maior inclusão é temitãgwerã (plantado), sendo que as espécies da floresta são abarcadas pelo termo negativo temitã e’ã (não-plantado). Estamos diante de um modo de categorização que opera por uma dinâmica marcado e não-marcado, ou seja, apenas um conjunto é denominado enquanto seu oposto é rotulado de maneira negativa. 8

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wajãpi percorrendo os caminhos que cortam a floresta, nos deparamos o tempo todo com plantações dos seres que nela habitam. As classificações e os modos de enunciação sobre a flora remetem diretamente ao universo da agricultura e dos bens culturais. Um dos padrões de nomeação que se destaca é justamente àquele que se refere ao tempo-espaço das origens, onde homens, animais e outros seres compartilhavam uma mesma língua. Foram essas condições que permitiram conhecer, por exemplo, a árvore a’y makure11 (a’y = preguiça; makure = tabaco) “tabaco de preguiça”. Como relatou o jovem Kupena: “Há muito nossas avós chamam essa árvore de tabaco de preguiça. Antigamente preguiça era como nós e disse: ‘Esse é meu tabaco’. Por isso nós a chamamos tabaco de preguiça”. (Informação verbal)12. O mesmo tipo de relação foi traçado por Waiwai ao caminharmos por uma trilha que conduzia à aldeia vizinha. Passando ao largo de uma castanheira, ele falou: “Jãã, disse a cutia, antigamente, quando ela falava. Wajãpi diz kãtãe, cutia diz jãã!”. Um dos nomes da castanheira foi, assim, aprendido nas mesmas circunstâncias, porém contada por cutia. Em outra feita, Waiwai me relatava sua trajetória até chegar a ocupar as margens do igarapé Mariry. Nessa conversa, mencionou algumas plantas que para ele indicavam que eram áreas antes ocupadas, espécies típicas da sucessão secundária. Entre elas, destacou um arbusto que lembra em sua morfologia o pé de mandioca e que é chamado so’o mani’y13 [so’o = veado; mani’y = maniva], “maniva de veado”. Para explicar seu nome o velho

chefe remeteu a um diálogo entre os primeiros homens (taivïgwerã14) e veado: Maniva de veado, antigamente veado plantava. Antigamente Wajãpi perguntou à ele: ‘O que é isso ai?’. ‘Não! Essa é minha maniva, minha maniva’, disse o veado. Wajãpi respondeu: ‘Para mim, a minha maniva é de outro jeito!’. ‘Talvez depois, eu vá roubar um pouco da sua maniva’, disse o veado. ‘Não!’, disse Wajãpi, ‘não está certo! Não está certo... Em outro lugar você tem a sua mandioca15!’. ‘Ããã...’, disse o veado, ‘a minha maniva não presta, eu não gosto muito… Ããã... a sua maniva eu gosto muito!’. Por isso, hoje a maniva de veado cresce na roça, é como maniva, mas a raiz é de outro jeito, não é como a raiz de maniva wajãpi. [...] Por isso se diz mandioca de veado. Mamão também tem. Mamão... mamão de veado! Tem pela floresta... Veado planta! [...] Antigamente, quando ele era como nós, ele plantava. Depois, janejarã o tornou um não-sabedor, ele não sabe mais plantar! (Informação verbal)16.

Como se pode notar, ao longo de caminhadas ou conversas, os nomes junto com seus alicerces materiais (os espécimes vegetais), fornecem um acesso a saberes fragmentados sobre o tempo-espaço de origem: os diversos entes possuíam suas plantações, suas moradas, partilhavam a vida em um mesmo patamar e falavam uma só língua, o que possibilitava uma dinâmica de inter casamentos e amplas trocas que caracterizam os primeiros tempos (Gallois, 1988). É preciso pontuar que, ainda que estas relações tenham sido mais intensas no começo dos tempos, elas permanecem atuais tanto na capacidade imaginativa de olhar para essas plantas e lembrar como é17 o começo dos tempos, como por meio do xamanismo que

Espécie não identificada. Todas as falas reportadas aqui foram expressas em wajãpi. Apresento aqui apenas a tradução feita por mim. 13 Espécie não identificada. Trata-se um arbusto não-lenhoso, de folhas palmada. 14 Taivïgwerã pode ser traduzido também como “antepassados genéricos”, na medida em que não se conhecem seus nomes e relações genealógicas. Entretanto, como apontou Gallois (1993, p. 23-25), esse termo deve ser compreendido também como um “conceito de temporalidade”, podendo ser entendido como um contexto de transmissão: quando homens e animais falavam uma mesma língua. 15 É importante lembrar aqui a diferença fundamental entre mani’y, referente ao pé de mandioca (maniva), e mani’o, termo que se refere ao tubérculo (mandioca). 16 Relato feito em língua wajãpi, aqui traduzido por mim. Para consultá-lo na língua original ver Cabral de Oliveira, 2012. 17 O uso do presente “é” não é um erro gramatical, e sim uma opção para enfatizar que não estamos em uma temporalidade linear, onde o passado, tendo ficado para trás, é inacessível. Tanto as narrativas contadas e ouvidas, como as ações xamânicas remetem a um tempo passado que se faz presente. Para essa discussão Saez (2005) apresenta ideias interessantes e esclarecedoras sobre essa sobreposição de temporalidades. 11 12

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permite uma experiência de outras perspectivas. Para mais exemplos etnográficos ver Cabral de Oliveira (2015, 2012). Algumas vezes a nomenclatura ressalta uma relação de perspectiva, tal como caracterizada por Viveiros de Castro (2002a). Esse é tanto o caso da árvore a’y makure, que para preguiça continua a ser tabaco, tal como so’o mani’y e so’o mão18 permanecem como maniva e mamão para veado. O mesmo pode ser dito sobre o arbusto de pequenos frutos vermelhos uwa kã’ãe [uwa = caranguejo; kã’ãe = pimenta] “pimenta de caranguejo”, que é assim chamado por causa da semelhança de seus frutos com os da pimenteira e pelo de fato ser o tempero picante para os caranguejos. Muitas plantas são assim nomeadas em virtude de sua semelhança com vegetais cultivados e por pertencerem ao domínio da floresta (Cabral de Oliveira, 2015). A combinação desses dois fatores faz com que tais vegetais sejam plantações de outrem, operação que está alicerçada em um passado inescapável que garante a condição humana a uma série de animais. No mundo de hoje, produto de diversas transformações, a comunicação ampla cessou, as aparências corpóreas se distinguiram, instauraram-se mundos paralelos onde cada espécie vê a si mesma como gente e possui uma visão cultural de seu mundo. Mas esse não é o único tipo de relação tecida pelos Wajãpi para denominar e compreender as plantas da floresta como cultivares. Em uma das versões de origem da floresta, ainda que não seja propriamente um mote desenvolvido em narrativas míticas, é dito que as árvores foram plantadas por janejarã (demiurgo(s)). A floresta em alguns contextos enunciativos é compreendida como uma grande plantação dos demiurgos, tal como no caso Achuar descrito por Descola (1996). Tais enunciações se dão, exemplarmente,

ao se encontrar espécies frutíferas em locais surpreendentes: como o cajueiro e os abacaxis que vivem sobre um lajedo na beira do rio Yvyrareta. Em casos como esse, dizem tratar-se de plantações de janejarã: janejarã remitã. Outra conexão traçada é quanto à ação de dispersão de sementes realizada por alguns animais. O tucano ao regurgitar as sementes de açaí19 as espalha e, por isso, o açaí é chamado de tukãnãremitã (plantação de tucano). O guariba (akyky) distribui em suas fezes as sementes de ingá20, que é considerado akykyremitã (plantação de guariba). A cutia ao enterrar as sementes de castanha, garante à castanheira21 o título de akusiremitã (plantação de cutia). E assim por diante. A circunscrição de vegetais à locais de morada (domínios) de donos cosmológicos (ijarã) também é outro fator de apreciação das plantas como cultivos de outrem: a flora existente em áreas alagadas ou à beira de rios é tida como mojuremitã (plantação de sucuri), uma vez que o domínio da água (yy) é habitado e cuidado por moju (também designada de yyjarã - dono da água). Assim, a vegetação composta por plantas herbáceas e trepadeiras que formam uma pequena mata flutuante próxima às margens dos rios é chamada de mojukoo (roça de moju) – o fato de estar mais baixa em relação à mata ciliar, aparecendo como uma área verde bem delimitada sobre as águas, fundamenta seu entendimento como um roçado, que, à semelhança das roças wajãpi, são áreas de plantio envoltas pela mata alta circundante. Por sua vez, a vegetação encontrada em um pareti (categoria que agrupa grandes pedras expostas e cavernas), local de morada dos monstruosos ãjã22, é dita ser ãjãremitã (plantação de ãjã), tal como os abacaxis encontrados sobre um pareti nas imediações da aldeia Myrysity.

Carica microcarpa. Euterpe oleracea. 20 Inga ssp. 21 Bertholletia excelsa. 22 Ãjã é uma importante figura da cosmologia wajãpi, Gallois (1988) o traduziu como efeito espírito, pautada na tradução formulada por Viveiros de Castro (1986) em seu balanço acerca dessa figura em diversos contextos tupi. Esse habitante das matas possui uma aparência monstruosa e mortífera, por vezes está associado a uma aparência/manifestação dos ijarã. Para uma discussão mais detida sobre esse ente ver trabalho anterior (Cabral de Oliveira, 2012). 18 19

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Todavia, é preciso pontuar que há deslizamentos nessas categorizações. Se, de um modo geral, as árvores podem ser consideradas plantações de janejarã, em alguns contextos, quando se recorta uma determinada espécie ou um conjunto da vegetação, elas podem ser atribuídas a seres distintos. Isso pode, por exemplo, ser notado em relação ao açaí: dito ser plantação de tucano, ele também é qualificado, em determinadas situações, como mojuremitã (cultivo de sucuri) por crescer em áreas alagadas. A designação das plantações dos outros não obedece, dessa maneira, uma classificação absoluta, mas a arranjos contextuais em que diferentes princípios (domínio, dimensões sensíveis, ser alimento de alguém, dispersão e/ou ser plantação de outrem no tempo-espaço mítico) são colocados em jogo conforme a ênfase que se deseja dar. Não há, pois, uma sobredeterminação de um desses princípios em relação aos demais ou uma classificação absoluta, o que se evidencia na descrição que se segue. Em uma de minhas estadias junto a família de Nazaré, trabalhamos incessantemente capinando sua roça, que fora tomada por ïjosïsï (Solanum palinacanthum). Tal planta, que se caracteriza por seus espinhos brancos e finos, é uma espécie típica do primeiro estágio de sucessões secundárias, aparecendo, sobretudo, em roçados feitos em capoeiras novas. Ainda que estivesse em um domínio eminentemente humano (a roça), não se tratava uma plantação dos homens ou a eles relacionados, mas de seu avesso: era um cultivo dos espectros dos mortos (taiwerã e/ou jurupari) e, por esse motivo, devia ser extirpada meticulosamente. A roça de Nazaré estava a tal ponto tomada pelo ïjosïsï que após uma manhã inteira de trabalho coletivo parecia que nada havia sido feito. Olhando a enorme quantidade de plantas espinhosas que restavam, brinquei com minha anfitriã dizendo que aquela era sua plantação. Sem achar graça, ela retrucou: “Não! É

Figura 3. Foto de uma roça de moju as margens do rio Felício. Foto: Joana Cabral de Oliveira.

plantação de jurupari [espectro de gente morta]23 grande! Ele é quem come. Para ele24 é mandioca. E mais, aqui tem batata de jurupari, olha… Isso é plantação de jurupari. Plantação do espectro do morto”. (Informação verbal) A planta à qual ela se referiu como juruparijity (batata de jurupari), aproveitando o ensejo da conversa, em outros contextos, fora chamada de maneira diversa: jityranã (semelhante à batata) ou mojujity (batata de sucuri) quando encontrada no emaranhado da mata ciliar. Note-se que, nesse caso, o que é recorrente no processo de nominação é a morfologia da planta: semelhante à Ipomoea batatas (de hábito rasteiro, flor gamopétala roxa e folha cordada), o que varia é o domínio onde se encontra ou a ênfase dada pelo rumo de uma conversa, contextos em que se inserem o processo de classificação. Em suma o que se destaca dessas descrições etnográficas é que potencialmente todos os vegetais são plantações de alguém. Esse fato talvez permita compreender porque a taxonomia wajãpi nomeia apenas as plantas cultivadas (temitãgwerã), sendo as demais alocadas sob um rótulo negativo, o lado não-marcado – o não-plantado

Jurupari é uma das designações, ou melhor, modo de referência a uma das manifestações de um morto. Para ser precisa se trata do espectro de um morto genérico, que possui aspecto terrífico. 24 Note-se que essa construção “para ele” (ijupe) é a forma recorrente para se referir ao mundo, a perspectiva de outrem. O “para ele”, “para mim”, são os dispositivos, aliás, que permitem a operacionalização do perspectivismo ameríndio em diversos contextos etnográficos. 23

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(temitã‘e’ã). Marca-se o termo que garante um perspectiva humana – o plantado. Essa dinâmica classificatória por sua vez se estende aos demais entes que habitam o mundo – determina-se um conjunto como plantado para ego (o sujeito que classifica e marca sua posição como humano), o que está fora é necessariamente não-plantado. Vale notar que, em menor incidência, também há termos que designam a floresta e os vegetais não-plantados dos outros, tal como: jãvi ka’a25 (mato de jabuti), namu pijõna ka’a26 (mato de nhambu preto), ãjã pino27 (bacaba de ãjã) etc. Todos os sujeitos reconhecem, assim, as oposições plantado/não-plantado, roça/floresta, operação que marca e se desdobra na oposição humano/não-humano, que, como nos mostra o perspectivismo, não é uma cisão estática e absoluta, mas sim movediça, usada por todos aqueles que de seu ponto de vista veem a si mesmo como humanos, logo com suas respectivas plantações.

O ARTIFÍCIO DE UM EQUÍVOCO PRODUTIVO Inspirado por Wagner (2010), Strathern (2014) e, principalmente pelo material etnográfico das Terras Baixas, Viveiros de Castro (2004) propõe um fazer antropológico perspectivista, caracterizado como um experimento comparativo, onde as categorias nativas devem ser elevadas a conceitos possibilitando, dessa maneira, uma fertilização do pensamento ocidental. Essa antropologia deve, assim, proceder como uma tradução em que o estrangeiro afete e transforme a linguagem na qual é traduzido. Tal proceder permitiria ao antropólogo emergir mundos possíveis, operando com uma ontologia multinaturalista tal qual as ameríndias. Nesse fazer antropológico a ideia de equívoco ocupa uma posição estratégica. O equívoco é uma diferença na comunicação, a qual está posta não em um relativismo cultural, mas sim em referentes distintos (multinaturalismo). Segundo Viveiros de Castro a equivocação controlada

seria o modo por excelência de comunicação entre duas posições (duas perspectivas), trata-se de uma “comunicação disjuntiva” já que não resulta em uma unicidade de discursos/explicações, mas sim na proliferação e evidenciação de diferenças. Como uma empreitada comparativa e experimental (onde os conceitos alheios servem para produzir diferenças) o equívoco é central para essa antropologia na medida em que objetiva multiplicar as diferenças quando dois ou mais mundos se encontram. Para demonstrar isso, Viveiros de Castro (2002b, 2004 e 2008) parte de três episódios exemplares: um evolvendo uma enfermeira peruana e uma mulher piro, na qual a última afirma que água fervida pode previnir diarreia apenas em Lima, uma vez que os corpos de peruanos e piros são distintos; a segunda se refere ao embate entre gentios e colonizadores, enquanto os primeiros se questionavam sobre a qualidade dos corpos dos segundos esses duvidavam da presença de almas nos primeiros; e o último é o encontro entre um músico brasileiro e os Kaxinawá, se músico concebia sua relação com os indígenas em termos de irmandade, esses ameríndios o tratavam como cunhado. A proposta aqui é seguir por um equívoco, contudo, à diferença dos exemplos citados, não partirei de um equívoco efetivado em um encontro vivido. Trata-se de um equívoco produzido, enquanto experimento, por esse artigo, isto é, o equívoco como um artifício para análise. Se comecei abordando a relação entre roça e floresta pela proposição de Balée e outros autores que apontam a biodiversidade amazônica como devedora do modo de ocupação e ação dos povos indígenas atuais e précolombianos, sendo as florestas primárias ambientes raros na Amazônia (Clement, 2006), foi porque tal concepção poderia facilmente ser acoplada a ideia wajãpi – também presente em outros povos – de que a floresta é um grande cultivo. Apontar essa aparente confluência é produzir um

Não identificada. Maranta sp. 27 Arecaceae. 25 26

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equívoco que permite nuançar as concepções em jogo nessas duas teorias, afinal não se pode perder de vista que o equívoco deve evidenciar a disjunção entre perspectivas (nesse caso a da ecologia histórica e a dos wajãpi). Em um de seus artigos, Balée (1993, p. 386) introduz seu argumento contrastando-o com a ideia corrente de que a espécie humana foi, é e será responsável pela perda da biodiversidade, ele acrescenta um adendo: “As sociedades-estados, com suas altas densidades populacionais, elevados índices de consumo [...] são as únicas responsáveis pela emergente e alarmante tendência a grandes depleções bióticas, e não a espécie humana per se”. Nesse quadro as sociedades não-estatais teriam grande contribuição na manutenção e aumento da biodiversidade, mas não por ideais conservacionista, pois suas atividades econômicas nunca os tornaram necessários (Balée, 1993). Nesse incremento da biodiversidade as plantas domesticadas ocupam papel proeminente. Segundo Balée (1993; 1994), Levis et al. (2012), Clement (1990, 2006) e Clement et al. (2015) na Amazônia e especificamente em sua porção Ocidental28, encontrar-se-iam os centros de dispersão de espécies em diferentes graus de domesticidade: abacaxi, maracujá, amendoim, mandioca, tabaco, urucum, pupunha, goiaba, caju etc. Além da atividade agrícola, as ações de manejo, tanto de horticultores como de caçadorescoletores, auxiliaram e auxiliam na dispersão de espécies frutíferas e na manutenção de clareiras que permitem o crescimento de espécies associadas a sucessão secundária, tal como descrito por Rival (1998) no caso do manejo de pupunhais não-plantados entre os Huaorani29. Dessa maneira, Balée (1993, p. 391) afirma:

“As capoeiras muito velhas são o oposto lógico do deflorestamento – elas são porções de vegetação reflorestada, mesmo que as espécies dominantes sejam diferentes das florestas originais e mesmo que as espécies nestas capoeiras não tenham sempre sido realmente plantadas”.

A prática agrícola de coivara, bem como a coleta e a mobilidade territorial desses povos, contribuíram tanto para o crescimento de espécies cultivadas como propiciaram o desenvolvimento de tantas outras que não teriam vez sob o dossel da floresta. Como apontam Balée (1993); Levis et al. (2012) as capoeiras velhas são praticamente indistintas das florestas primárias em técnicas de sensoriamento remoto, só sendo distinguidas por análises florísticas finas e pela presença de vestígios humanos como cacos de cerâmica e carvão. O que podemos notar nessa configuração é que a oposição floresta e roça ainda que figure como algo fundamental para compreender tal dinâmica de produção de biodiversidade, é pensada a partir de um gradiente, onde a capoeira (em seus diversos estágios e, portanto, um gradiente em si) desempenha o papel de passagem de um polo à outro. As capoeiras velhas, o estado mais próximo do polo floresta, é um híbrido de floresta e roça, ou seja, de natureza-cultura, que quase toca um dos polos – o da floresta primária (natureza). Vemos aqui, que a cara divisão natureza/cultura aparece ao fundo da discussão, porém não como mera cisão estanque, como é comumente operada pela dimensão oficial da modernidade30 caracterizada por Latour (2000). Temos antes um tecido inteiriço de natureza-cultura (nesse caso também oficial, já que presente em uma aclamada teoria - a ecologia histórica) que se apresenta por um longo e denso gradiente. Note-se que Strathern (2014, p. 31 [1980]) já

A região do Purus-Madeira. Não-plantados, pois os Huaorani não plantam deliberadamente a pupunha, mas se alimentam dela, contribuem com a dispersão de suas sementes, e mantem espaços propícios ao seu crescimento. 30 De acordo com Latour (2000) a modernidade se configura por um potente arranjo entre o oficial e oficioso, no qual o segundo é composto por tecidos inteiriços de natureza e cultura, isto é, de híbridos, e o primeiro opera purificações que separam os objeto e fatos entre natureza e cultura. Nesse caso, temos uma dimensão oficial, já que se tratam de análises científicas devidamente publicadas, que justamente complexifica a caracterização de Latour, uma vez que oficialmente se apresenta a imbricação entre natureza e cultura por meio da caracterização de florestas antropizadas. Aqui o modelo de modernidade latouriano não parece funcionar com precisão. 28 29

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apontava para o complexo jogo de relações entre natureza e cultura no “Ocidente industrial”, o qual não se limitaria à uma dualidade simples; tal oposição “também pode ser imaginada como um contínuo”. Na perspectiva da ecologia histórica, as práticas desenvolvidas pelas populações indígenas também operariam em um gradiente: de um lado a domesticação (entendida como um processo intensivo de seleção e adaptação, que estabelece uma dependência intrínseca de algumas espécies com a atividade humana), passando pelo cultivo (o plantio de maneira geral, incluindo espécies não-domesticadas), pelo manejo (uso de espaços e recursos de maneira não-predatória e intermitente) até a ausência completa de uso31. Clement (2006, p. 36) insiste na importância da noção de gradiente no próprio processo de domesticação, afirmando: “As with landscape domestication, there are degrees of crop domestication that reflect the intensity of selection and the time during which selection was practiced”. Mais uma vez estamos diante de um tecido inteiriço de cultura-natureza, de aldeia-roça-capoeira-floresta, que se caracterizaria por um gradiente ao longo de uma linha contínua e orientada. Ainda que a caracterização de florestas antropizadas se foque nas posições medianas, onde não se distingue de maneira evidente natureza e cultura, é preciso evidenciar que temos um mundo, o qual é passível de ser recortado por tais gradientes. Trata-se de coberturas vegetais objetivas que podem ser avaliadas em sua composição: em números de espécies e na presença ou ausência de índices humanos, critérios que permitem alocar determinada porção da paisagem em uma posição do contínuo. Tal contínuo, por sua vez, é absoluto, pois dá conta de um único

mundo, de um só referente, que é atingido de maneira privilegiada pelo conhecimento racional empirista32, ou seja, pela Ciência. Vale lembrar que o próprio processo de domesticação de espécies vegetais opera nesse mesmo e único plano, já que ele se configura como uma série de ações intensivas e frequentes de seleção e plantio até constituir uma domesticação. Trata-se da passagem de uma espécie de um polo a outro: do selvagem ao doméstico, da natureza à cultura, lembrando que o inverso também pode eventualmente ocorrer - há espécies que se asselvajam. Contudo, nessa perspectiva natureza e cultura, jamais se invertem, elas necessariamente translada pelos caminhos gradativos que conduzem de um polo a outro. Entre os Wajãpi, ainda que se tenha uma classificação aparentemente semelhante – taa (aldeia), koo (roça), kookwerã (literalmente o que foi roça, capoeira) e ka’a (floresta) – mais do que um gradiente, me parece que se trata de marcar posições opostas e cindidas: de um lado o domínio dos ka’ajarã (donos da floresta), de outro a roça como domínio dos homens, um espaço amainado dos perigos intrínsecos à ka’a que tem como ponto máximo de apaziguamento a aldeia (taa). Se a confecção da roça (derrubada, queima e plantio) configuram uma apropriação wajãpi da floresta, a capoeira, por sua vez, é o processo de retomada da floresta, movimento que se inicia pelas ervas daninhas (ijai) que rastejam para dentro dos roçados. Quando produtivos, os roçados são, por isso, meticulosamente limpos de qualquer mato invasor (ijai), como fizera Nazaré no episódio acima narrado. Mas, terminada a colheita (processo que pode variar de um até três anos conforme os cultivos existentes), as roças são deliberadamente abandonadas às ervas

Segundo Balée (1993, p. 390) “As atividades das sociedades indígenas horticultoras ignoram (mais que protegem deliberadamente) muitas florestas primárias, e assim permitiriam a sobrevivência destas florestas em áreas indígenas até hoje”. 32 Vale notar que apesar dos pesquisadores concordarem que há uma rota privilegiada ao mundo concreto, assim como concordam com a existência de um único mundo, há disputas entorno dessas teorias e explicações. Para um breve panorama das disputas acerca das florestas antropogênicas ver Levis et al. (2012). Como apontam os autores, a disputa gira em torno dos tipos de evidência que se elenca para afirmar se uma paisagem é ou não doméstica (presença de plantas frutíferas e palmeiras, terra preta de índio, presença de carvão, proximidade dos grandes rios etc.). Por conta da compactação e foco do argumento não sigo ao encalço dessas disputas como faz e sugere Latour alhures (2001). 31

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daninhas, às embaúbas, aos espinhos etc. Pouco a pouco a floresta que a rodeava a invade e junto retornam seus donos de direito – os ka’ajarã e espíritos de toda sorte33. Vale pontuar que muitas dessas plantas que iniciam a sucessão florestal são plantações de outrem, tais como: Solanum palinacanthum que é mandioca de jurupari, as espécies denominadas so’o mão e so’o mani’y (mamão e mandioca de veado), Physalis sp. denominada uruvu kã’ãe (pimenta de urubu) etc. Os Wajãpi possuem uma percepção refinada do processo de sucessão e apontaram em levantamentos realizados34 alguns marcadores importantes. Conforme me explicou Apamu em uma de minhas estadias na aldeia Piaui: Kookwerã nova tem ama’y [embaúba], -jai [plantas invasores], ijõ [plantas espinhosas], ypo [lianas], tem pako [banana], nãnã [abacaxi], kurawa [sisal], mão [mamão]... Depois aparece ingá, kupi’y… Kookwerã muito antiga não parece mais como kookwerã tem angelim, peki’a [pequi], kumaka [sumaúma]... não tem mais pako [banana]… (Informação verbal) .

Segundo os Wajãpi, nesse movimento de retomada da floresta, inicialmente aparecem as plantas rasteiras e arbustivas que possuem espinhos e são genericamente chamadas de ijõ (espinhos) - categoria que compreende ijõ sïsï (Solanum palinacanthum), ka’a ãjã (Mimosa sp.) entre outras espécies - e os capins de um modo geral (agrupados sob o rótulo genérico de kwãkwã). Depois há o crescimento das embaúbas (Cecropia ssp.), formando um estágio qualificado como ama’y ty (embaubal), termo que é especialmente utilizado para designar áreas de capoeira que foram derrubadas mais de uma vez, dificultando o processo de sucessão e gerando um grande emabúbal. Em uma capoeira resultante da derrubada de uma área de floresta (ka’a), juntamente com as embaúbas aparece uma série de palmeiras como inajá (Maximiliana maripa)

e murumuru (Astrocaryum murumuru), além das pequenas árvores reconhecidas por seus frutos que atraem caça, tais como: morototo (Schefflera morototoni, S. decaphylla), wainomy sus (Isertia hypoleuca), murei (Byrsonima crispa), pasisi (Goupia glabra) etc. Essa fase é designada de kookwerã pyau (capoeira nova) e é o estágio de transição de uma qualidade de capoeira fechada, repleta de espinhos, cipós, e plantas rasteiras, que passam a morrer conforme o crescimento do sub-bosque (formado por embaúbas, palmeiras e árvores de pequeno porte), para tornar-se uma kookwerã omãna (capoeira velha). Ao final do crescimento da sucessão florestal, uma das qualidades mais importantes notadas e marcadas linguisticamente é o crescimento do dossel, formado por árvores portentosas como: peyryry (angelim, Dinizia excelsa), asemã (Ocotea rubra), masarany (massaranduba, Manilkara ssp.)… Como disse Apamu: “Kookwerã muito antiga não parece mais como kookwerã” (Informação verbal). Quando as espécies invasoras e oportunistas morrem, a formação florestal fica “limpa”, como costumam falar em português, ou “okiriripa”, termo que designa o secar e a morte do sub-bosque fechado. Outro termo que vai designar esse estágio final é isawypa (i- = terceira pessoa possessivo; -sa- = enxergar; -wy-, uma contração de -wyry = embaixo; -pa = completivo), que marca a qualidade visual sob a floresta. Isawypa significa que se pode ver longe dentro da floresta, pois não há mais um emaranhado de plantas abaixo do dossel. Quando a capoeira tem a qualidade de isawypa ela chegou ao seu estágio de crescimento final, designado como ojimoyvyra e’e pa ou ojimoka’a e’e pa (o- = terceira pessoa; -ji- = reflexivo; -mo- = causativo; yvyra = árvore ou ka’a = floresta; e’e = enfático; pa = completivo), ou seja, um estágio em que as árvores e/ou a floresta completaram de fato seu desenvolvimento. Idealmente uma capoeira

Falo de espíritos de uma maneira geral, referindo-me tanto as manifestações monstruosas dos donos, como aos espectros dos mortos. Tanto em conversa e caminhadas durante etapas de trabalho de campo, como em oficinas e cursos para pesquisadores e agentes sócio ambientais wajãpi.

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só deverá ser derrubada quando isawy pa, ou seja, quando ela voltou a ser floresta novamente. Atualmente com a fixação e intensificação das ocupações das aldeias centrais, a derrubada de áreas para a elaborarão dos roçados não está mais respeitando a temporalidade ideal (quando as kookwerã se transformam completamente em ka’a). Nesses novos contextos capoeiras em estágio de emabúbal (ama’y ty) têm servido de suporte para novas roças. Essa prática tem aumentado o tempo e qualidade de recuperação das áreas de capoeira e gerado um persistência dos estágios iniciais, marcados por plantas espinhosas e por árvores de pequeno porte. Há um prolongamento dos estágios de sucessão que podem ser denominados de kookwerai (koo = roça; -kwerã = pretérito; -rai = ruim, mal). O início da sucessão, kookwerai, não é marcado apenas por plantas que furam, cortam e provocam coceira (ijõ), mas também por uma série de animais perigosos como escorpiões, cobras e formigas. Também por isso, as capoeiras usadas de maneira inadequada (em seu estágio inicial) são considerados locais ruins, feios: kookwerai. Outra característica do kookwerai enfatizada pelos Wajãpi é o teavuru, a camada grossa de folhas e plantas rasteiras que não permite ver o solo onde se pisa, tornando os acidentes com animais peçonhentos mais propícios. Kookwerã ou aldeias abandonas (taapererã) ainda que sejam reconhecidas como espaços que foram ocupados (- usados por famílias e/ou parentes as vezes já mortos -, sendo importantes marcadores mnemônicos da paisagem, também são locais perigosos por serem associados aos espectros dos mortos que vagam pelos mesmo lugares que andaram quando vivos35. Arrisco a dizer que as capoeiras não são espaços entendidos como contínuos, como um gradiente entre ka’a e koo (e/ou taa), mas sim o próprio movimento que permite oscilar entre esses

polos. Na chave de Lévi-Strauss (1993) a capoeira seria o “desequilíbrio” interno ao “dualismo”. O fazer da vida wajãpi se dá nesse jogo constante de desapropriação de uma porção de mata e de sua consequente retomada pelos ka’ajarã. A floresta é o suporte onde se deve construir a vida humana, marcada pela agricultura e elaboração de aldeias. A agricultura, por sua vez, não possui um papel apenas de subsistência, ela tem grande valor por fundamentar a vida social plena por meio de uma alimentação apropriada e pela confecção de bebida fermentada (kasiri), possibilitando o comer junto, o festejar junto e o embriagar-se junto aspectos essenciais para a tessitura de uma sociabilidade apropriadamente humana. O ponto a ser destacado é que a oposição entre floresta e roça-aldeia (entre humano e não-humano) não é estática. Seu movimento se apresenta tanto no caminhar das roças sobre as matas e das matas no encalço dos roçados, como no fato de que a floresta não é o domínio do não-plantado per se. Como descrito acima, ka’a está repleta de plantações de distintos tipos de alteridade. As muitas gentes que habitam a plataforma terrestre possuem seus cultivos que são floresta para os Wajãpi. Estamos numa configuração onde há múltiplos planos. As roças de sucuri, os cultivos de jabuti, as plantações de ãjã entre outras não estão em contiguidade, mas operam rupturas entre mundos que se sobrepõem e se tocam tangencialmente36. O plantado e o não-plantado se apresentam em todos os mundos, o que é nãoplantado para os Wajãpi, foi e é cultivado por outrem, trata-se pois de uma oposição que se move e configura múltiplos referentes conforme o sujeito que experimenta e classifica. Não se trata de uma floresta antropogênica em absoluto, mas das plantas cultivadas por e para um determinado sujeito.

A morte de adulto, que é enterrado na aldeia, ocasiona o abandono da aldeia e de seu conjunto de roças (Gallois, 1988). É preciso notar que os mundos não são mônodas, mas de se relacionam e apresentam permeabilidade, algo que abordei alhures (Cabral de Oliveira, 2015), e que se desenha como um perspectivismo corpóreo.

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Quando se trata de categorias de grande inclusão, podemos notar que a taxonomia vegetal wajãpi opera com uma dinâmica de termos marcados em contraste a um lado não-marcado, tais como: plantado (temitã) e não-plantado (temitã e‘ã); espinhoso (ijõ) e sem espinho (ijõ rowã); duro (ãtã) e não-duro (nãtãi); cheiroso (ipije) e não-cheiroso (ipije rowã); com pajé (ipaje) e sem pajé (ipaje rowã)37 etc. Essa operacionalização pode ser melhor compreendida à luz de uma ontologia multinaturalista: na medida em que todos os seres interagem e classificam suas naturezas, as categorias não dizem respeito a domínios fechados alicerçados sobre objetos fixos, mas marcam, antes, posições. O que é cultivado pela preguiça é necessariamente não-plantado para os homens e vice-versa, não é, pois, selvagem38. Assim, as categorias de plantas cultivadas e não-cultivadas, tal como a delimitação do que é roça e floresta, fazem-se a partir de um sujeito e, como se co-habita com muitos tipos de sujeitos, é preciso ter cuidado39 com os modos de enunciação – marca-se apenas a posição de quem experimenta e classifica o resto é não-marcado, pois sabe-se que não se trata de uma classificação absoluta já que os referentes são múltiplos.

CONCLUSÃO O que é fundamental assinalar é que se a roça, o plantado marcam a posição de sujeito, isso não se faz sem o contraste, sem a floresta e o não-plantado. O que está em jogo é, pois, que as oposições se replicam em múltiplos planos: sempre há roça-floresta, afinal esse par (que se desdobra em outros) engendra a forma da relação.

Esses conjuntos de oposições, logo de disjunções, são fundamentais num universo repleto de gentes, onde circular, caçar, colher, abrir roça etc. é perigoso. Confundir ou estabelecer uma continuidade entre plantado e nãoplantado, entre roça e floresta, pode levar à morte, à doença, ou ao estado denominado -awyry, no qual a pessoa tem seu princípio vital (-‘ã) roubado por um dono cosmológico (ijarã) e passa a perceber o mundo de forma distinta: a vítima vê os parentes como macacos, a carne cozida como crua e não entende a fala de seus conviveres, enfim, começa a perceber o mundo à maneira de outrem, por exemplo ao modo de sucurijú (dono da água), passando, então, a habitar as profundezas do rio e morrendo para seus parentes. Assim, é primordial para os Wajãpi produzir disjunções, marcar divisões que permitam habitar um mundo perigoso, que é capaz de se transformar por completo. Enfim, nesse equívoco artificioso entre a ecologia histórica e o pensamento wajãpi, apenas aparentemente ambas as teorias confluem para a ideia de uma floresta cultivada. Olhando conjuntamente essas teorias o que se destaca são pontos dissonantes: a primeira é pautada em um contínuo entre polos de natureza e cultura, que se constituem, por tal motivo, como um plano único, um só mundo que pode ser acessado tanto pela racionalidade científica como pela racionalidade indígena, chegando a resultados semelhantes (nesse caso a assertiva de que os grupos indígenas incrementam a biodiversidade e que, portanto, Amazônia é uma selva cultivada), ainda que tais resultados sejam produzidos de diferentes maneiras

Para uma descrição detalhada dessas categorias e sistemas classificatórios ver: Cabral de Oliveira (2012). Déléage (2005, p. 195) menciona algo semelhante em relação aos Sharanahua: “Commençons par l’inversion: les plantes qui apparaissent au cours du chant, considérées comme dês ‘plantes des morts’, sont toutes dês plantes sauvages, des plantes que les Sharanahua ont choisi de ne pás domestiquer. [...] Or il apparaît que, rapportées aux ‘morts’, ces plantes sont domestiquées: ells sont nommées fana – un terme désignant les seules plantes cultivées telles que e manioc, les plantains, et quelques autres”. Descola (1996, p. 129) também aponta para o fato de que os Achuar compreendem a floresta como uma enorme roça: “[...] Shakaim, irmão de Nunkui segundo as interpretações, que cultiva a mata feito uma gigantesca plantação [...] Os limites da natureza são assim expandidos por essa socialização dos vegetais, a floresta aparentemente tão selvagem não passando de uma roça sobrenatural onde Shakim exerce seus talentos de horticultor”. 39 Isso pode ser notado por exemplo na maneira como os wajãpi se referem ao ato de caçar antes de tal empreitada se efetivar. Eles dizem: “Aatã ka’a rupi” [“Eu vou andar pela mata”], ao invés de usar o verbo –jiporka [caçar] que é utilizado apenas para falar de caçadas passadas. Esse cuidado se deve ao fato de que os donos da caça (mijarã ijarã) poderiam ouvir as palavras pronunciadas e retirar seus animais do caminho do caçador, fala-se assim de forma a ludibriar os ijarã (os donos). 37 38

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(afinal estamos em pleno relativismo cultural); a segunda aponta para uma disjunção necessária entre roça-aldeia e floresta, oposição que não se aplica sobre referentes absolutos, mas desliza e se movimenta conforme o sujeito que percebe e classifica, isto é, por quem engendra um mundo apropriado por meio da agricultura, atividade que caracteriza a posição de humano (sujeito) e marca a construção da vida social própria. Note-se que, se da perspectiva da ecologia histórica é possível transacionar um elemento de um polo a outro, uma planta selvagem que se torna domesticada, uma roça que se torna capoeira e depois mata, afinal estamos em um plano do contínuo; no universo wajãpi o que se move são as oposições roça e floresta, cultivado e não-cultivado, por múltiplos sujeitos, engendrando mudos diversos. Como afirmou Grenand (1980, p. 57) sobre a concepção wajãpi, a agricultura “é a tomada de um espaço da floresta por uma criação inteiramente humana”, mas em um lugar onde a humanidade não é um atributo exclusivo dos homens e todas as gentes cultivam suas roças, é fundamental cindir o que é roça e floresta para cada sujeito.

AGRADECIMENTOS Agradeço às organizadoras desse dossiê pelo convite; à Dominique Gallois e à Fabiana Maiza pela leitura e comentários de uma primeira versão desse texto, sem, contudo, me eximir da inteira responsabilidade do argumento; e à FAPESP pelas bolsas concedidas, sem as quais esse trabalho não seria possível. REFERÊNCIAS BALÉE, William. Biodiversidade e os índios amazônicos. In: CARENIRO DA CUNHA, Manuela; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Amazônia Etnologia e História Indígena. São Paulo: NHII, USP, 1993.

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O mundo da horticultura Ka’apor: práticas, representações e as suas transformações The world of Ka’apor horticulture: practices, representations and their transformations Claudia Leonor López Garcés Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI. Belém, Pará, Brasil

Resumo: Com base em pesquisas etnográficas efetuadas nos últimos anos entre os indígenas Ka’apor das aldeias Xiepihu-rena e Paracui-rena, na Terra Indígena Alto Turiaçu, localizada na Amazônia maranhense (Brasil), o artigo aborda o mundo das representações e práticas hortícolas Ka’apor, considerando aspectos das narrativas orais que contextualizam estes conhecimentos dentro da cosmovisão indígena, as características da horticultura na atualidade em termos da diversidade dos cultivos, assim como as mudanças na organização do trabalho hortícola na conjuntura atual, caraterizada pelos conflitos gerados pela exploração ilegal de madeira na Terra Indígena Alto Turiaçu e a influência das políticas públicas. Palavras-chave: Horticultura indígena. Conhecimentos tradicionais. Povo indígena Ka’apor. Amazônia maranhense. Brasil. Abstract: This article is based on ethnographic research conducted in recent years among the indigenous Ka’apor of the Xiepihurena and Paracui-rena villages in the Alto Turiaçu indigenous reserve, located in the Brazilian Amazonian state Maranhão. The article relates to the world of representations and horticultural practices of the Ka’apor, discussing aspects of oral narratives that contextualize this knowledge within the indigenous world view. It furthermore elaborates on present-day horticultural characteristics in terms of crop diversity, as well as changes in the current organization of horticultural work, due to public policies and the conflicts generated by illegal timber exploitation in the Alto Turiaçu indigenous reserve. Keywords: Indian horticulture. Traditional knowledge. Ka’apor indigenous people. Amazon region of Maranhão. Brazil.

LÓPEZ GARCÉS, Claudia Leonor. O mundo da horticultura Ka’apor: práticas, representações e as suas transformações. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 133-158, jan.-abr. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.812 22016000100008. Autor para correspondência: Claudia Leonor López Garcés. Museu Paraense Emilio Goeldi/MCTI. Tv. Mariz e Barros, 2665, apto 603. Belém, PA, Brasil. CEP: 66093-090 (clapez@museu-goeldi.br). Recebido em 19/12/2014 Aprovado em 28/03/2016

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O mundo da horticultura Ka’apor: práticas, representações e as suas transformações

INTRODUÇÃO Para o povo Ka’apor que habita a Terra Indígena (TI) Alto Turiaçu, localizada na Amazônia maranhense (Brasil), a horticultura constitui uma das práticas culturais mais destacadas no seu cotidiano. Além de ser uma das principais atividades de reprodução material, da qual esse povo obtém grande parte dos alimentos de origem vegetal, a horticultura é permeada por representações baseadas em aspectos cosmológicos que remetem aos tempos míticos, quando foram criados os ancestrais, estabeleceram-se os princípios da ordem social e das relações entre seres humanos e não humanos que convivem no mundo, tal como concebido pelos Ka’apor. Nas atuais práticas hortícolas dos Ka’apor, observamse mudanças em termos da diversidade de plantas cultivadas e da organização do trabalho. Estas últimas estão relacionadas com as políticas públicas e com os conflitos interétnicos no contexto da Amazônia maranhense, caracterizados pelos processos de invasão da Terra Indígena Alto Turiaçu por parte de diversos atores não indígenas, principalmente madeireiros vinculados à exploração ilegal de madeiras nobres nesse território. Ditas situações de conflito tornam-se críticas para os povos indígenas em geral, dado que as Terras Indígenas e as demais áreas protegidas constituem hoje os últimos remanescentes de floresta amazônica no cenário do chamado Arco de Desmatamento da Amazônia Legal brasileira, que se estende desde o sudeste do estado do Maranhão, norte de Tocantins, sul do Pará, parte do Mato Grosso, Rondônia, sul do Amazonas e sudeste do estado do Acre (Ferreira et al., 2005, p. 159). Mais de duas décadas depois da publicação dos trabalhos de Balée e Gély (1989a) e Balée (1993), fazse necessário um estudo atual da horticultura Ka’apor, buscando identificar as transformações desta prática cultural por comparação com os trabalhos anteriores efetuados por Ribeiro (1976) e pelos autores já mencionados. Nesse sentido, e a partir de uma perspectiva etnográfica, o presente artigo objetiva fazer uma caracterização contemporânea da horticultura Ka’apor, considerando aspectos das narrativas

orais que contextualizam estes conhecimentos dentro da cosmovisão do grupo, práticas rituais associadas, espaços de cultivo, associações de espécies, assim como as mudanças em termos da diversidade de plantas cultivadas e da organização do trabalho hortícola. Desta maneira, pretendese avançar em um enfoque de cunho antropológico que mostre as transformações da horticultura Ka’apor nos últimos anos e possibilite a análise desta prática cultural na contemporaneidade.

O ENFOQUE E O MÉTODO Considerando a distinção efetuada por Gasché (2010) entre os conceitos de “agricultura” e “horticultura”, para definir as práticas de cultivo dos Ka’apor opto pelo conceito de “horticultura”, do latim hortus (horta), que, segundo o autor, define o cultivo transitório (máximo de três anos) em solos pobres, baseado na técnica de corte e queima, em meios florestais primários ou secundários, criando pequenas clareiras, as quais, depois do período produtivo, são abandonadas para que o bosque possa se regenerar, conferindo assim fertilidade ao solo, para logo ser novamente aproveitado; esta técnica de cultivo é praticada pela maior parte dos povos indígenas na Amazônia. Em contraposição, como argui o autor, o conceito “agricultura”, vem do latim ager, que significa “campo aberto” e define a técnica de cultivo efetuada em campos abertos com solos homogêneos que podem ser aproveitados permanentemente, fazendo rotar as espécies cultivadas, criando monoculturas com manejo de fertilidade constante. Na Amazônia, o conceito de agricultura, segundo o mesmo autor, só pode ser aplicado para se referir aos cultivos praticados nas estreitas franjas de terras médias e baixas das ribeiras aluviais dos grandes rios, que são fertilizadas anualmente pelas crescentes, isto é, nas várzeas. Em se tratando do povo Ka’apor, para efeitos de análise, considero instigante o enfoque da “antropologia do conhecimento local”, que, segundo Arturo Escobar (1999, p. 292), analisa os diversos sistemas de significados da natureza e as práticas concretas efetuadas pelos povos

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indígenas e sociedades locais, perguntando-se pelas representações, distinções e classificações do biológico e as linguagens, incluindo tradições orais, mitos e rituais, em que essas distinções são expressadas, assim como as práticas através das quais são efetuadas essas distinções. Seguindo este autor, busco analisar e compreender a horticultura Ka’apor como uma prática cultural baseada em conhecimentos ancestrais, aspectos simbólicos e rituais, atrelada também às mudanças e às transformações hoje vivenciadas por este povo. Com base nas recomendações de Escobar (1999), busca-se também analisar como a conjuntura atual, caracterizada pelos conflitos em torno da prática de exploração ilegal de madeira e das políticas públicas brasileiras de apoio às famílias mais vulneráveis, está influindo nas mudanças na horticultura praticada pelos Ka’apor. Por outro lado, recorre-se também a categorias analíticas e metodológicas provenientes da perspectiva etnobotânica, enfoque interdisciplinar que “estuda as interações entre seres humanos e plantas” (Balée, 1993, p. 4), considerando as formas de classificação das plantas e as “atividades-contexto”, isto é, as interações dos Ka’apor com as plantas, tal como proposto por Balée (1993). Desta maneira, a pesquisa abre-se para um enfoque interdisciplinar, uma vez que se aproxima e interage com ferramentas metodológicas tanto da Antropologia, desde o método etnográfico, como da Etnobotânica, recorrendo a inventários de plantas cultivadas nas roças e quintais. A pesquisa etnográfica foi realizada principalmente na aldeia Xiepihu-rena e, durante um período menos extenso,

na aldeia Paracui-rena, localizadas no sul da Terra Indígena Alto Turiaçu, Maranhão. Trata-se de uma das regiões mais afetadas pela exploração ilegal de madeira desde as décadas de 1980 e 1990, tendo se intensificado no decorrer do século XXI, até o ano 2013, quando os Ka’apor iniciam um movimento etnopolítico que desembocou na expulsão dos invasores e na articulação de um processo organizativo voltado para a defesa do território. Os dados etnográficos foram coletados durante oito temporadas de trabalho de campo, com duração de quinze dias cada, efetuadas entre os anos 2007 a 2012, no contexto de dois projetos de pesquisa1. Durante os diversos períodos de trabalho de campo foram registradas narrativas orais que contextualizam a horticultura no pensamento e na cosmovisão Ka’apor; efetuaram-se levantamentos das plantas cultivadas em onze roças (kupixa) e dezessete quintais (kura), por meio de visitas guiadas pelos indígenas, homens e mulheres, nestes espaços de cultivo; realizaram-se entrevistas com homens e mulheres sobre conhecimentos e práticas hortícolas, aspectos cosmológicos e rituais relacionados à horticultura, indagando também sobre as possíveis mudanças nas práticas hortícolas ocasionadas, entre outros fatores, pelo impacto das atividades predatórias ilegais de exploração madeireira por parte de atores externos, além da influência das políticas públicas brasileiras. Também se efetuou registro audiovisual, fotográfico e fílmico durante todo o processo de pesquisa, documentando aspectos importantes da horticultura Ka’apor, tais como narrativas tradicionais, cantigas e aspectos rituais.

O projeto “Conhecimento tradicional Ka’apor sobre o manejo de florestas: repovoamento com espécies de uso tradicional em áreas devastadas da Reserva Indígena Alto Turiaçu – MA” contou com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do Brasil, Edital MCT/MMA/SEAP/SEPPIR/CNPq n. 26/2005. Foi solicitada e concedida autorização de acesso a conhecimento tradicional associado à biodiversidade (autorização n. 20, de 2006) do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético/ Ministério do Meio Ambiente (CGEN/MMA). O subprojeto “Laboratório de práticas sustentáveis em Terras Indígenas próximas ao Arco do Desmatamento” está ligado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT): “Biodiversidade e uso da terra na Amazônia”, projeto de pesquisa interinstitucional sediado no Museu Paraense Emílio Goeldi, com financiamento do CNPq-Brasil, e conta com a devida autorização de acesso a conhecimento tradicional associado à biodiversidade, n. 054-A/2011, Processo 02000.002716/2009-13 do CGEN/MMA; também com a autorização de ingresso em terras indígenas n. 85/CGEP/10; processo n. 0945/06, da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Brasília, Distrito Federal. O trabalho de campo na Terra Indígena Alto Turiaçu também contou com o financiamento do projeto de pesquisa “Gobernanza ambiental en América Latina y el Caribe – ENGOV”, “WP5: construyendo e intercambiando saberes sobre los recursos naturales”, financiado pela União Europeia.

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O mundo da horticultura Ka’apor: práticas, representações e as suas transformações

Com base nestas ferramentas metodológicas, optamos por um enfoque de carácter antropológico que possibilite contextualizar a horticultura Ka’apor não só como uma atividade econômica importante para este povo, mas como um aspecto sociocultural permeado por práticas e representações em constante transformação.

O POVO INDÍGENA KA’APOR: CONTEXTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO Segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, são em torno de 1.584 indígenas os que habitam na Terra Indígena Alto Turiaçu, Maranhão (Figura 1). A maior parte desta população autoidentifica-se como Ka’apor, povo falante de uma língua

do tronco macrolinguístico Tupi, família Tupi-guaraní. Esta Terra Indígena abarca parte dos municípios de Araguanã, Centro Guilherme, Centro Novo do Maranhão, Maranhãozinho, Nova Olinda do Maranhão, Santa Luzia do Paruá e Zé Doca, território que os Ka’apor compartilham com outros povos indígenas, como os Tembé e AwáGuajá (língua Tupi) e os Timbira (língua Jê), com os quais convivem em estreita relação, mantendo casamentos interétnicos, compartilhando a cotidianidade nas aldeias, mas também vivenciando situações de conflito (López Garcés et al., 2015). A Terra Indígena Alto Turiaçu foi demarcada em 1978, reconhecida oficialmente em 1982, e conta com uma extensão de 5.304 km2. Faz parte de um conjunto

Figura 1. Terra Indígena Alto Turiaçu, Maranhão. Mapa elaborado pela equipe técnica do Centro de Sensoriamento Remoto, Museu Paraense Emílio Goeldi.

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de terras indígenas contíguas, localizadas no vale do rio Gurupi, que marca a divisa entre os estados brasileiros do Pará e do Maranhão, sendo elas: a Terra Indígena Alto Rio Guamá (Pará), onde habitam os Tembé-Tenetehara; a Terra Indígena Awá (Maranhão), onde vivem os AwaGuajá; a Terra Indígena Caru (Maranhão), território do povo Guajajara. Este conjunto de terras indígenas e a contígua Reserva Biológica (ReBIO) Gurupi, única unidade de conservação de floresta amazônica de uso indireto do Estado brasileiro, localizam-se na região biogeográfica denominada Centro de Endemismo Belém, considerado o mais ameaçado de toda a Amazônia em termos de perda de biodiversidade (Martins e Oliveira, 2011). Desde finais do século XIX, esta região é cenário de conflitos interétnicos ocasionados por processos de invasão dos territórios indígenas por parte de atores sociais não indígenas, vinculados à intensificação não controlada de economias extrativas, tais como exploração de minério em pequena escala ou ‘garimpo’, exploração madeireira e posterior avanço da pecuária. Estes processos de ocupação dos territórios indígenas levaram os Ka’apor a se deslocarem da região do rio Piriá, onde moravam antigamente, para a região do rio Gurupi, por volta de 1873, onde permanecem até hoje (Balée, 1993, p. 35). Em inícios do século XX, na região dos rios Turiaçu e Gurupi, houve enfrentamentos entre os Ka’apor e a população regional que explorava seringa, óleo de copaíba, madeira, e também com fazendeiros e os construtores das linhas telegráficas. Em 1911, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) instalou o Posto Felipe Camarão, no igarapé Jararaca, a fim de pacificar os então chamados ‘índios urubus’. Entre os anos 1927 e 1928, foi instalado o Posto Pedro Dantas, principal centro de operações da chamada “pacificação” dos Ka’apor (Ribeiro, 2006, p. 26-27). Com a “pacificação”, chegaram doenças, principalmente uma

epidemia de gripe, que dizimou consideravelmente a população Ka’apor, mas, a partir da década de 1950, quando inicia-se o incremento da população deste povo indígena, percebe-se uma estabilização populacional (Ribeiro, 2006). As dinâmicas de expansão da fronteira agropecuária e madeireira no Maranhão começam a se consolidar a partir da década de 1960, com a construção da via BelémBrasília (Moura et al., 2011). A abertura da via BR-222, que conecta a rodovia Belém-Brasília com São Luís, a capital do estado, gerou dinâmicas de avanço sobre as florestas primárias da Amazônia maranhense, promovendo o surgimento de pequenos povoados, hoje convertidos em municípios (Moura et al., 2011). Segundo Almeida et al. (2005), nesta mesma década inicia-se também um processo acelerado de desmatamento, associado à produção pecuária para carne de exportação, cultivo de soja, plantações de eucalipto para produção de celulose, exploração madeireira e atividades de mineração. Na década de 1980, os Ka’por enfrentaram um processo de intensificação dos conflitos territoriais, quando cerca de 1.300 posseiros e madeireiros invadiram a Terra Indígena Alto Turiaçu, inclusive após sua demarcação e reconhecimento, em 1981, assim como também a Reserva Biológica Gurupi, extraindo grandes quantidades de madeira, especialmente de pau d’arco (Tabebuia sp.). Na década de 1990, houve ataques às aldeias indígenas por parte de posseiros e madeireiros e contra-ataques dos Ka’apor aos acampamentos e serrarias estabelecidos ilegalmente dentro da Terra Indígena (Balée, 2005). A luta pela defesa da Terra Indígena Alto Turiaçu permanece na memória dos Ka’apor como um evento histórico de grande impacto na sua vida2. Estes conflitos motivaram deslocamentos da população indígena e a criação de novas aldeias estrategicamente localizadas nos limites da Terra Indígena, visando à vigilância

Esta temática é abordada no artigo da minha autoria, intitulado “La lucha es de derecho, no es a garrotazos: conflictos territoriales, usos y significados de los recursos maderables en la tierra indígena Alto Turiaçú – MA (Brasil)” (López Garcés, no prelo).

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da mesma. Algumas áreas foram mais afetadas pela extração de madeira, tais como o extremo sul e os arredores das atuais aldeias Xiepihu-rena e Paracui-rena, criadas em 2002 por lideranças Ka’apor, a fim de evitar futuras invasões (Balée, 2005). As aldeias Xiepihu-rena e Paracui-rena, onde foi efetuada a pesquisa, estão localizadas na região sul da TI Alto Turiaçu, sendo possível chegar a elas após percorrer 157 km, por uma estrada de terra que as comunica com a cidade de Paragominas, Pará, principal centro urbano aonde os Ka’apor se dirigem para o atendimento em saúde na unidade local da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), denominada Casa de Saúde Indígena (CASAI), além também de irem para receber o dinheiro das aposentadorias e bolsas que o governo federal lhes proporciona, comprar roupas e alimentos que complementam sua dieta, baseada na horticultura, na caça e na coleta de frutos da floresta (López Garcés et al., 2015). No transcurso do século XXI, a TI Alto Turiaçu tem sido novamente alvo das ações predatórias ilegais e violentas por parte de madeireiros não indígenas. Até 2012, estes atores aliciaram lideranças indígenas na exploração ilegal de madeira, por meio da criação de relações de dependência e negociações fraudulentas de troca de madeiras nobres da floresta, por serviços como a manutenção de estradas ou de bens materiais, como veículos (motos e caminhonetes), e construção de casas. Estes processos geraram algumas mudanças no estilo de vida indígena, sendo evidente a maior circulação de recursos monetários, o que redunda no maior acesso a novos objetos de consumo, como bicicletas, motos, eletrodomésticos (televisão, DVD player, fogão, geladeira, celulares), roupas e comidas industrializadas. A atuação ilegal de madeireiros não indígenas na Terra Indígena Alto Turiaçu gerou conflitos internos em nível local e regional. No transcurso de dez anos acompanhando a história local destas aldeias, foram perceptíveis divergências e conflitos entre pessoas que aceitaram o envolvimento da comunidade nas atividades de exploração ilegal madeireira

e entre aqueles que se opunham a estas práticas, com base em critérios de defesa do território indígena e dos recursos que ali se encontram. Percebem-se também mudanças na representação política, pois as mulheres começaram a assumir cargos de liderança política em reconhecimento do seu compromisso na defesa do território e dos recursos da floresta. Hoje, a maior parte das 21 aldeias da Terra Indígena Alto Turiaçu encontra-se espalhada no contorno limítrofe do território. Nos últimos anos, devido a constantes invasões e ataques violentos por parte dos madeireiros, novas aldeias foram criadas, seguindo o mesmo padrão de localização estratégica, desta vez na região denominada Gurupi-una, visando a vigilância da área. Cabe destacar que a criação de novas aldeias vai acompanhada da abertura de novas roças e, nesse sentido, a horticultura Ka’apor é parte fundamental nos processos de apropriação e defesa do território, tendo, assim, um importante papel político. A partir do ano 2013, o povo indígena Ka’apor tomou a decisão de expulsar os madeireiros da Terra Indígena Alto Turiaçu, retomando de maneira unificada a defesa do território e de seus recursos. Esta decisão gerou respostas violentas de parte dos madeireiros não indígenas, empreendendo ataques a diversas aldeias, queimando casas, cultivos, tocando fogo na floresta, espancando pessoas e assassinando lideranças. Após o assassinato de Eusébio Ka’apor, em abril de 2015, o último ataque violento, em dezembro de 2015, foi perpetrado na aldeia Turizinho, criada por famílias oriundas da aldeia Xie e próxima desta.

A HORTICULTURA NA VISÃO DE MUNDO KA’APOR Na sua língua do tronco Tupi, a palavra “Ka’apor” pode ser traduzida como “gente que mora na mata” (Ribeiro, 1976; Balée, 1993). O etnônimo com que se identifica este povo indígena reflete uma profunda relação com seu hábitat de floresta amazônica, principalmente com os ambientes de terra firme onde os Ka’apor preferem

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construir suas aldeias e fazer suas roças. Esta estreita relação dos Ka’apor com o meio ambiente amazônico se expressa também nos nomes das pessoas, geralmente relacionados com plantas e animais, e no conhecimento e manejo do tempo, baseado nas percepções sobre os ciclos de floração e frutificação das espécies vegetais e da abundância de espécies animais. Além de ser seu principal meio de subsistência, a floresta é também o espaço do pensamento e da história do povo indígena Ka’apor, expressos em narrativas orais que remetem à origem deste povo e dos seus principais aspectos socioculturais. Estas retóricas discursivas narram os acontecimentos mito-históricos dos ancestrais, nos tempos cosmológicos em que seres humanos, plantas e animais partilhavam uma mesma linguagem e uma mesma cultura, característica que, segundo Viveiros de Castro (2002), é própria do pensamento ameríndio (López Garcés, 2011). Para compreender como os Ka’apor posicionam seus conhecimentos e práticas hortícolas no seu pensamento e estilo de vida, é necessário nos aproximarmos do mundo das suas narrativas e encenações que expressam o pensamento indígena sobre origem e os princípios que ordenam o mundo, quer dizer, da sua cosmovisão. Estas narrativas são contadas por velhos e jovens com extremo detalhe, mostrando sempre enorme prazer na narração destas histórias. Entre as várias versões destas narrativas recompiladas no transcurso do trabalho de campo, tenho selecionado os principais trechos que contextualizam a horticultura na cosmovisão Ka’apor:

Passados dois dias, Mair, Troto e Kapiõ foram visitar Uruwatã na sua casa. Quando chegaram lá, Uruwatã fez chibé para eles. Mair, Troto e Kapiõ estavam com a barriga cheia. Eles foram vomitar no mato e voltaram onde [estava] Uruwatã. A esposa de Uruwatã foi espiar aonde eles estavam vomitando.

Quando Mair surgiu, saíram outras duas pessoas com ele. Mair surgiu do pau-brasil. O avô dos Ka’apor se chamava Troto, ele saiu do pau-d’arco (ipê). O avô dos Urubu-Rei era de nome Kapiõ, ele surgiu do jatobá.

O pensamento indígena expresso na narrativa mostra que os ancestrais dos Ka’apor estão associados às árvores da floresta: Mair ao pau-brasil; Troto, o avô dos Ka’apor, ao pau-d’arco ou ipê, espécie que abunda no território Ka’apor e uma das mais cobiçadas pelos madeireiros; Kapiõ ao jatobá. A narrativa situa a origem da horticultura em uma ordem social diferenciada daquela dos ancestrais dos

Outro homem tinha por nome Uruwatã, ele saiu do pé de anawyra (árvore da beira do igarapé), com a sua mulher. Eles comiam bem. Quando saiu Uruwatã já tinha mandioca, tinha banana, tinha batata, todas as frutas ele tinha.

– Por que que eles estão vomitando? – perguntou a esposa de Uruwatã. (...) Mair falou que eles não tinham cu para fazer cocô, por isso eles vomitavam. Eles comiam e botavam tudo pela boca. Uruwatã falou para eles: - amanhã, cedinho, vocês vêm de novo. No dia seguinte os irmãos foram de novo. Uruwatã fez chibé de banana para eles. Os irmãos ficaram de barriga cheia. Foi Troto quem primeiro encheu a barriga. – Embora para cá, se abaixa – diz Uruatã a Troto. Troto se abaixou. Uruwatã apontou um galho de urucum. Uruwatã furou a bunda de Troto, e furou também a bunda da mulher de Troto. Logo furou também a bunda de Kapiõ. Mair não gritou quando furaram a bunda dele. Uruwatã acabou de furar a bunda deles. Troto ficou com vontade de fazer cocô e foi na capoeira e fez cocô. Depois foi o outro irmão. Depois foi Mair. Mair falou para Uruwatã que eles não tinham mandioca. Uruwatã falou que lá na casa deles iam ter tudo. Mair e seus irmãos voltaram para sua casa. Eles acharam uma roça lá. Olharam uma roça grande, cheia de mandioca. Mair ficou muito alegre quando viu a roça cheia de mandioca (texto e tradução de Geraldo Ka’apor, baseado em narrativa oral de Jupará Ka’apor) (López Garcés, 2011, p. 19-20).

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Ka’apor. Foi Uruwatã quem facilitou os produtos da roça (mandioca, banana, batata, frutas) aos três irmãos. Ter acesso a esses produtos por meio da ingestão de alimentos, especificamente de chibé, bebida tradicional que resulta da mistura de farinha de mandioca, água e, às vezes, frutas, é um ato que humaniza os ancestrais dos Ka’apor. Na narrativa, Mair, Troto e Kapiõ se diferenciavam de Uruwatã pelo fato de não terem ânus, sendo necessário vomitar depois de consumir os alimentos. Foi Uruwatã quem “furou a bunda” dos ancestrais dos Ka’apor e estes adquirem a capacidade de defecar. Mair chama atenção para o fato de eles não possuírem produtos da roça, principalmente mandioca. Uruwatã confirma que iam ter esses produtos. Ao retornarem a seu lugar de vida, os ancestrais dos Ka’apor encontram uma roça de mandioca. Nessa ordem de ideias, no pensamento Ka’apor, é possível situar a horticultura como um fato que os torna verdadeiramente humanos, permitindo-lhes obter plantas comestíveis e instituindo o hábito de comer e defecar que, antes do contato com a horticultura, não tinham. No pensamento Ka’apor, como acontece também entre outros povos indígenas amazônicos (Robert et al., 2012; Zent e Zent, 2012), a existência de plantas, inclusive as catalogadas como silvestres, está associada à agência de figuras míticas. Encontramos estas representações em outros trechos das narrativas: Mair andava muito, gostava de tocar fogo na terra. Só queria pessoa que obedecia ele. A gente se matava, brigava, comia a filha. Aí Mair tocava fogo de novo. Quando ele toca fogo no mundo, fica só terreirão assim, não tem árvores. Só ele que existe, porque acabou com tudo, com a gente que estava encima da terra, acabou com tudo. Mair ficou andando sozinho e plantando semente de novo, de ipê, titiba, tawari, tudinho árvore (Valdemar Ka’apor). Quando Mair existia aqui neste mundo, ele vivia queimando a terra. Ele plantou as sementes de todas as árvores da floresta, assim como nós plantamos nossos produtos na roça (Mariuza Ka’apor) (López Garcés, 2011, p. 24).

Lembremos que os ancestrais dos Ka’apor estão associados a árvores da floresta, isto é, espécies florestais não cultivadas pelos indígenas, o que revela a distinção, já assinalada por Balée (1989b, 1993), que os Ka’apor efetuam entre plantas cultivadas e não cultivadas. Esta distinção entre árvores da floresta plantadas por Mair e produtos da roça plantados pelos Ka’apor estabelece uma ordem nas representações relacionadas com a classificação de plantas cultivadas e não cultivadas e sobre as práticas de cultivo. De acordo com seu ponto de vista, os Ka’apor só plantam espécies usadas na alimentação, na pesca, na elaboração da sua cultura material e algumas plantas medicinais, enquanto que as árvores da floresta são plantadas por Mair. A vigência destas representações se fez evidente no âmbito de um projeto de pesquisa desenvolvido com participação dos Ka’apor, no qual um dos objetivos previa a instalação de um viveiro para produção de mudas de espécies florestais nativas para recomposição de áreas próximas às aldeias que tinham sido desflorestadas pelos fazendeiros e madeireiros, quando invadiram a TI Alto Turiaçu nos anos oitenta. Uma vez produzidas as mudas e chegado o momento de plantar, foi evidente a sua preferência por plantar espécies como o cupuaçu e a pupunha nos seus quintais, pelo fato de serem aquelas que iriam proporcionar alimentos; enquanto espécies como ipê, cumaru, jatobá não foram consideradas importantes para serem plantadas, em razão de serem árvores da floresta: “é o Mair quem planta”. Segundo os estudos da nomenclatura da etnobotânica Ka’apor efetuados por William Balée, não existe uma palavra na língua dos Ka’apor que abarque todo o universo das plantas (Balée, 1989b), mas o autor reporta três formas de classificação botânica deste povo indígena, baseadas em características morfológicas: mira (árvores), sipo (cipós) e ka’a (ervas) (Balée, 1989b, 1993). Ele afirma que os Ka’apor usam estes termos para se referirem a plantas não domesticadas, mas esta classificação morfológica não é aplicada às tradicionais

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plantas domesticadas. A estrutura dos nomes compostos das plantas cultivadas é diferente da estrutura dos nomes aplicados a outras plantas. Agrega ademais que nomes para plantas não domesticadas podem ser usados por analogia com plantas domesticadas, mas não ocorre o contrário. Com base nestas considerações que, segundo o autor, também podem ser aplicadas a outras línguas da família Tupi-guarani, Balée (1989b) conclui que a horticultura afetou os sistemas de nomenclatura para plantas em Ka’apor e em outras línguas Tupi, em formas padronizadas altamente regulares. Estas breves considerações contribuem para contextualizar a horticultura como um aspecto sociocultural que ocupa um lugar importante no pensamento e no estilo de vida do povo indígena Ka’apor. Estas representações simbólicas situam a horticultura como um aspecto que humaniza o povo Ka’apor. A importância da horticultura para os Ka’apor reflete-se também na distinção entre plantas cultivadas e não cultivadas, expressas nas classificações linguísticas deste povo.

contextualiza-se dentro do marco geral do manejo florestal no qual os indígenas manipulam populações de plantas domesticadas e semidomesticadas e de animais, produzindo diferentes zonas vegetacionais e ecótonos. Estes “habitats culturais” e aqueles que não são afetados pelas atividades humanas exibem diferentes configurações de recursos que são aproveitados segundo diversos propósitos humanos (Balée e Gély, 1989a, p. 130). Segundo os mesmos autores, os Ka’apor distinguem seis principais zonas vegetacionais de acordo com a idade, grau de manipulação, espécies indicadoras, estrutura e pelas principais atividades humanas que acontecem nestas zonas, sendo elas: a) os hortos das casas ou quintais (kar)3; b) as roças novas (kupiša), campos de cultivo até com dois anos depois da queima; c) as roças velhas (taperer), campos de cultivo de dois a quarenta anos depois da primeira queima; d) capoeira (taper), antigos espaços de ocupação, de quarenta a cem anos de idade; e) floresta madura (ka’a-te); f) floresta alagada (iapo). Para efeitos de análise, vou me concentrar nas roças novas (kupixa)4 e quintais (kura), principais espaços onde os Ka’apor praticam a horticultura e nos quais foram efetuados os inventários de plantas cultivadas no transcurso da pesquisa. Como acontece na maior parte dos grupos humanos, as práticas hortícolas dos Ka’apor estão relacionadas com o ciclo estacional da região tropical amazônica onde moram. Nos estudos efetuados nos anos cinquenta entre os então chamados “índios Urubus”, Ribeiro (1976) menciona quatro períodos importantes no ciclo estacional que influenciam nas suas “atividades de subsistência”, assim por ele chamadas: um período de ‘chuvas’, que vai de fevereiro a maio, época em que os Ka’apor permanecem mais tempo em casa; um período de ‘enchentes’, que começa em maio e vai até

A HORTICULTURA KA’APOR HOJE Mais do que uma ‘atividade de subsistência’, a horticultura dos Ka’apor é um importante aspecto cultural que envolve interações entre seres humanos, plantas, animais e seres espirituais, sendo também um mundo permeado por práticas rituais e valores éticos e estéticos, conformando um complexo de interações entre seres humanos e não humanos, expresso tanto nas suas práticas cotidianas como no pensamento indígena. Como já foi assinalado por Balée e Gély (1989a), a horticultura de corte e queima praticada pelos Ka’apor não é uma técnica de subsistência isolada da caça e/ou de coleta de produtos não domesticados na floresta. Segundo estes autores, a horticultura Ka’apor

Nas minhas pesquisas etnográficas, encontrei que a palavra na língua Ka’apor para horto caseiro ou quintal é kura, expressão que será usada neste texto. 4 Neste artigo, opta-se pela ortografia comumente usada na aldeia Xiepihu-rena. Para esclarecimentos sobre o uso atual da ortografia na língua Ka’apor, ver artigo de Nogueira e Santos (2011). 3

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agosto e no qual, devido às inundações, muitas vezes os indígenas ‘ficam ilhados’ nas suas aldeias; um período de estiagem ou ‘vazante’, que se prolonga até novembro; e um período de ‘seca’, época em que igarapés e rios vão secando, provocando escassez de água nas aldeias. Na atualidade, percebem-se algumas mudanças que podem ser relacionadas com as recentes alterações climáticas em nível planetário. O período de chuvas (amã ar) inicia em dezembro e janeiro e se estende até o mês de maio, época em que também acontecem as enchentes, quando as águas dos rios e igarapés da Terra Indígena Alto Turiaçu aumentam seu caudal, provocando inundações e, como já assinalou Ribeiro (1976), deixando “ilhados” os moradores nas suas aldeias; no mês de junho, com o começo do verão (warahy ar), as águas começam a vazar, até que nos meses de agosto e setembro os pequenos igarapés secam completamente. Esta é a época de abrir as novas roças, processo que implica escolher o terreno, limpar a vegetação mais grossa (ka’a wyro), derrubar as árvores (myra mono), deixar secar as árvores cortadas e logo tocar fogo (kupixa hapy) na clareira aberta. São aguardadas as primeiras chuvas de dezembro e janeiro para serem feitas as plantações (jyty) nos novos campos de cultivo (kupixa). Cada família nuclear, isto é um casal com seus filhos, possui um quintal na parte posterior da sua casa e abre uma roça nova (kupixa), geralmente a cada ano, de um tamanho que varia entre 0,5 a 2,5 hectares, segundo os estudos de Balée (1993), podendo também ser reutilizadas as capoeiras de antigas roças (taperer). Em contadas ocasiões, são abertas roças de maior tamanho, as quais são trabalhadas por famílias extensas (um casal de meia idade e as famílias nucleares das suas filhas e/ ou filhos casados), que se reúnem para abrir e cuidar de uma roça grande, mas que não excede os cinco hectares. Nos últimos anos, foram criadas ‘roças comunitárias’, a cargo de associações de pessoas que têm interesses comuns, como é o caso das mulheres artesãs da aldeia Xiepihũ-rena.

A pesquisa etnográfica e os levantamentos efetuados em onze roças (kupixa) e dezessete quintais (kura) na aldeia Xiepihũ-rena possibilitam uma aproximação com o mundo dos saberes e as práticas hortícolas contemporâneas dos Ka’apor. Os inventários de plantas cultivadas efetuados correspondem ao total dos quintais das residências na aldeia Xiepihũ-rena: três roças trabalhadas por famílias extensas e oito roças por famílias nucleares. Os resultados mostram que as roças (kupixa), localizadas no entorno das aldeias, são espaços destinados às principais culturas, caracterizadas pelo cultivo em maior escala e reconhecimento de diversas variedades. Da mandioca (Manihot esculenta Crantz), uma das mais importantes fontes de alimento dos povos amazônicos, os Ka’apor distinguem três principais variedades: a mandioca (maniok), usada na elaboração de farinha depois de lhe extrair o suco tóxico; a macaxeira (makaser), usada para comer cozida ou frita, já que contém pouquíssimas quantidades de substâncias tóxicas; e a mani aka, variedade com grande conteúdo de açúcar, usada para fazer uma bebida ritual não fermentada (manjucaba), adotada na festa da menarca das jovens Ka’apor. Também cultivam banana (Musa paradisiaca L.), batata doce (Ipomoea batatas (L.) Lam.), cará ou inhame (Dioscorea spp.), milho (Zea mays L.), abóbora (Cucurbita spp.), melancia (Citrullus lanatus (Thunb.) Matsum. & Nakai), abacaxi (Ananas comosus (L.) Merr.) e arroz (Oryza sativa L.), cujo cultivo foi incentivado pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), em tempos do contato oficial. Estas espécies, em sua totalidade de uso na alimentação, são plantadas principalmente nas roças (kupixa), podendo haver ocasionalmente algumas delas nos quintais das casas (kura), no entanto, não em considerável quantidade, como se costuma plantar nas roças. Ainda que em menor proporção, também são cultivadas outras plantas alimentícias, como feijão (fava), quiabo, gergelim, curauá (usado na elaboração de cultura material – arte plumária, utensílios domésticos) e três espécies de plantas ictiotóxicas usadas para pescar.

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Com base em diversos estudos sobre horticultura indígena na Amazônia, Gasché (2002) estabelece uma tipologia dos chamados “politicultivos” ou “cultivos mistos”, isto é, “roças onde pelo menos três diferentes culturas aparecem misturadas”. Com base nas pesquisas de Balée e Gély (1989a apud Solarte, 1991), Gasché considera que as roças Ka’apor correspondem ao subtipo “policultivo em grupos biespecíficos”: As roças dos Ka’apor (subtipo policultivo em grupos biespecíficos) contêm 8 grupos com associações biespecíficas, mas também incluem quatro grupos monoespecíficos (entre eles a mandioca que cobre aproximadamente a metade da roça) e um [grupo] misturado com três espécies (Gasché, 2002, p. 342, minha tradução).

Com efeito, minhas observações em campo confirmam a predominância da mandioca como principal cultivo monoespecífico, sendo ela o principal acompanhante dos policultivos biespecíficos predominantes, em associações mandioca-batata, madioca-milho, mandiocaalgodão. Também foi encontrada uma associação triespecífica mandioca-milho-arroz. Nas suas práticas hortícolas, os Ka’apor espacializam as variedades desta espécie, estabelecendo campos diferenciados de mandiocas (de maior toxicidade) e macaxeiras (pouquíssimo conteúdo de substâncias tóxicas). A Tabela 1 mostra o inventário das principais plantas cultivadas nas roças (kupixa), segundo o conhecimento tradicional Ka’apor. Os levantamentos em campo reportaram à predominância de outras espécies, como banana, batatadoce, inhame, abóbora, milho, sendo plantadas em maior proporção e das quais os Ka’apor distinguem maior número de variedades. Estas classificações varietais correspondem a distinções por cor, forma, tamanho, lugar de origem, além da classificação ‘verdadeiro’ e ‘falso’, assinalada com os sufixos (-te) e (-rã), respectivamente, frequente nas línguas Tupi. Foi constatado o cultivo de algumas espécies tanto nas roças quanto nos quintais, todavia não na mesma quantidade, como acontece com as espécies

predominantes cultivadas exclusivamente nas roças. Trata-se de algumas plantas frutíferas, como abacaxi (nana) e mamão (mamã), das plantas usadas na elaboração de cultura material e do artesanato que são comercializados nos mercados locais, principalmente curauá (kirawa), Canna indica L. (awai), algodão (maneju) e cabaça (kawasu), e de uma espécie ictiotóxica usada nas atividades de pesca (kanami). Pela presença destas plantas nos dois principais espaços de cultivo, poder-se-ia inferir a importância delas na vida dos Ka’apor. Já nos quintais (kura), como mostra a Tabela 2, as principais plantas cultivadas são as espécies frutais, as plantas utilizadas na elaboração de cultura material, as usadas como condimentos na alimentação, espécies medicinais e uma ictiotóxica. Entre as espécies frutais, destaca-se o caju (akaju), fruto de grande importância ritual para os Ka’apor, pois com ela preparam o kawĩ, bebida fermentada utilizada em ocasião do principal ciclo cerimonial deste povo indígena no qual se comemora a nominação das crianças, a menarca das moças, os casamentos e a posse dos novos caciques. Outras frutíferas cultivadas nos quintais são o cupuaçu (kupi hu), coco (kuk), abacaxi (nana), manga (mã), graviola, goiaba (guajaba), diversas espécies de ingá, jambo, mamão, banana, abacate, acerola, pitanga, pupunha e cítricos como limão, laranja e tangerina. Também se cultivam nos quitais as plantas usadas na elaboração de cultura material: curauá (kirawa), cuia (kui), algodão (maneju), lágrima-de-nossa-senhora ou santa-maria (puirisa), sementes de Canna indica (awair) e tucumã (tukum). Nos quintais também se cultivam diversas variedades de pimenta (Capsicum baccatum L.) e outras plantas usadas como condimentos das comidas, tais como chicória, coentro, alfavaca e cebolinha; plantas medicinais, como capim-limão e gengibre, e as duas espécies usadas na pintura facial e corporal: urucum (uruku) e jenipapo (jenipa). Outras plantas cultivadas na maior parte dos quintais são espécies ictiotóxicas usadas para pescar nos igarapés, principalmente a denominada kanami.

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O mundo da horticultura Ka’apor: práticas, representações e as suas transformações

Tabela 1. Plantas cultivadas pelos Ka’apor nas roças novas (kupixa). Nome científico (família/espécie)

Nome em português

Nome da espécie reconhecida pelos Ka’apor

(Continua)

Nome de variedades reconhecidas pelos Ka’apor

Presente nas roças novas/ kupixa/

Ocasional nos quintais /kura/

Atividades/ contexto

x

x

Alimentação/ bebida ritual

x

x

Pesca

Tikir

x

x

Alimentação

Hu

x

x

Alimentação

Howi

x

x

Cultura material

Pitang

x

x

Cultura material

x

x

Cultura material

x

x

Alimentação

x

Alimentação

Anacardiaceae Anacardium occidentale L.

Caju

Akaju Asteraceae

Clibadium sylvestre (Aubl.) Baill.

Cunambi

Kanamĩ Bromeliaceae

Ananas comosus (L.) Merr.

Ananas lucidus Mill.

Abacaxi

Curauá

Nana

Kirawa

Cannaceae Canna indica L.

Awai Caricaceae Mamão

Carica papaya L.

Mamão

Mãmã

Mamãozinho-domato Convolvulaceae

Ipomoea batatas (L.) Lam.

Batata-doce

Jytyk

Tawa

x

Alimentação

Maru

x

Alimentação

Pirã

x

Alimentação

Pihũ

x

Alimentação

Tuir

x

Alimentação

Cucurbitaceae

Cucurbita sp.

Citrullus lanatus (Thunb.) Matsum. & Nakai

Abóbora

Melancia

Pua

x

Puku

x

Alimentação

x

Alimentação

Tuir

x

Alimentação

Tawa

x

Alimentação

Jurumu

Waraxi

x

Tuir

x

Jawar

x

Alimentação

Pirã

x

Alimentação

Howi

x

Alimentação

144

x

Alimentação

Alimentação


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 133-158, jan.-abr. 2016

Tabela 1.

(Continua)

Nome científico (família/espécie)

Nome em português

Nome da espécie reconhecida pelos Ka’apor

Lagenaria siceraria (Molina) Standl.

Cabaça

Kawasu

Nome de variedades reconhecidas pelos Ka’apor

Presente nas roças novas/ kupixa/

Ocasional nos quintais /kura/

Atividades/ contexto

x

x

Cultura material

Dioscoreaceae

Dioscorea spp.

Inhame

Hu

x

Alimentação

Pihũ

x

Alimentação

x

Alimentação

Puku

x

Alimentação

Mamã

x

Alimentação

Tua

x

Alimentação

Taxi

x

Alimentação

Curuçá

x

Mani pihu

x

Alimentação

Tawa

x

Alimentação

Tuir

x

Alimentação

Kuru

x

Alimentação

Kara

Euphorbiaceae

Mandioca

Maniok

Manihot esculenta Crantz.

Macaxeira

Makaser

mandiocaba

Mani aka

Phaseolus vulgaris L.

Feijão

Kamana

Deguelia amazonica Killip.

Timbó

Ximo-i

Deguelia utilis (A.C. Sm.) A.M.G. Azevedo

Timbó

Kururu-timo

x

Alimentação

Pihum

x

Alimentação

Taxi tawir

x

Alimentação

Otawir

x

Alimentação

Inaja

x

Alimentação

Tekui

x

Alimentação

Olho-verde

x

Alimentação

Chapéu-de-sol

x

Alimentação

Picuí

x

Alimentação

Tawa

x

Alimentação

Tuir

x

Alimentação

x

Alimentação/ bebida ritual

x

Alimentação

Fabaceae

Ximo-i

x

x

145

x

Pesca

Pesca


O mundo da horticultura Ka’apor: práticas, representações e as suas transformações

Tabela 1. Nome científico (família/espécie)

(Conclusão) Nome em português

Nome da espécie reconhecida pelos Ka’apor

Nome de variedades reconhecidas pelos Ka’apor

Presente nas roças novas/ kupixa/

Ocasional nos quintais /kura/

Atividades/ contexto

x

x

Cultura material

Malvaceae Gossypium hirsutum L.

Algodão

Abelmoschus esculentus (L.) Moench

Quiabo

Maneju

x

Alimentação

Musaceae Hu

x

x

Alimentação

Howi

Musa x paradisiaca L.

Banana

Pako

Te

x

Alimentação

Kukui

x

Alimentação

Katumé (maçã)

x

Alimentação

Kururu pakó

x

Alimentação

Tawa

x

Alimentação

Inaja

x

Alimentação

Piha

x

Alimentação

Maçã

x

Alimentação

Xiri

x

Alimentação

Wy

x

Alimentação

Axi pako

x

Alimentação

Aja pako

x

Alimentação

Banana anã

x

Alimentação

Banana roxa

x

Alimentação

Pedaliaceae Sesamum indicum L.

Gergelim

x

Manui

x

Alimentação

Poaceae Oryza sativa L.

Arroz

Awaxi apo Arrui

Zea mays L.

Milho

Awaxi

x

Alimentação

Tuwir

x

Alimentação

Howi

x

Alimentação

Pirang

x

Alimentação

Tawa

x

Alimentação

Pui

x

Alimentação

Tera

x

Alimentação

146


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 133-158, jan.-abr. 2016

Tabela 2. Plantas cultivadas pelos Ka’apor nos quintais (kura). Nome científico (família/espécie)

Nome em português

(Continua)

Nome da espécie reconhecida pelos Ka’apor

Nome de variedades reconhecidas pelos Ka’apor

Ocasional nas roças novas / kupixa/

Presente nos quintais /kura/

Atividades/ contexto

Tawa

x

Alimentação/ bebida ritual

Hu

x

Alimentação/ bebida ritual

Pinã

x

Alimentação/ bebida ritual

Howi

x

Alimentação/ bebida ritual

Ipihũ

x

Alimentação/ bebida ritual

Minhã

x

Alimentação/ bebida ritual

Kaju açu ou caju-do-mato

x

Alimentação/ bebida ritual

x

Alimentação

x

Alimentação

x

Alimentação

x

Alimentação

x

Alimentação

Anacardiaceae

Anacardium occidentale L.

Mangifera indica L.

Caju

Manga

Akaju

Mã Annonaceae

Annona muricata L.

Graviola

Aratikum Alliaceae

Allium schoenoprasum L.

Cebolinha Apiaceae

Coriandrum sativum L.

Coentro

Eryngium foetidum L.

Chicória

Ka’a pyher Arecaceae

Astrocaryum vulgare Mart.

Tucumã

Tucum

x

Cultura material

Bactris gasipaes Kunth

Pupunha

Pupuĩ

x

Alimentação

Cocos nucifera L.

Coco

Kuk

Coco

x

Alimentação

Coco-do-mato

x

Alimentação

Euterpe oleracea Mart.

Açaí

Wasai

x

Alimentação

x

Pesca

x

Medicinal

Asteraceae Clibadium sylvestre (Aubl.) Baill.

Cunambi

x

Kanamĩ Bignonaceae

Fridericia chica (Bonpl.) L.G. Lohmann

Pariri

Kamĩ ka’a

147


O mundo da horticultura Ka’apor: práticas, representações e as suas transformações

Tabela 2.

(Continua)

Nome científico (família/espécie)

Nome em português

Nome da espécie reconhecida pelos Ka’apor

Crescentia cujete L.

Cuia

Kuj

Nome de variedades reconhecidas pelos Ka’apor

Ocasional nas roças novas / kupixa/

Presente nos quintais /kura/

Atividades/ contexto

x

Cultura material

x

Alimentação/ pintura corporal

x

Cultura material

Pakuri-do-mato

x

Alimentação

Pakuri rair

x

Alimentação

x

Higiene pessoal

x

Cultura material

x

Pesca

Bixaceae Bixa orellana L.

Urucum

Urukũ Cannaceae

Canna indica L.

x

Awai Clusiaceae

Platonia insignis Mart.

Bacuri

Pakuri

Cucurbitaceae Luffa aegyptiaca Mill.

Buxa Fabaceae

Adenanthera pavonina L.

Tentocarolina

Puir pirang

Deguelia amazonica Killip.

Timbó

Timo-i

Hymenaea courbaril L.

Jatobá

Tarapai

x

Alimentação

Inga spp.

Ingá

Inga alba (Sw.) Willd.

x

Inga

x

Alimentação

Inga hu

x

Alimentação

Ingá-xixica

Inga xixi

x

Alimentação

Ormosia sp.

Olho-decabrapequeno

Fruto do mato pequeno

x

Cultura material

Schizolobium amazonicum Huber ex Ducke

Paricá

Parika

x

Medicinal

x

Alimentação

x

Alimentação

x

Alimentação

Lamiaceae Ocimum basilicum L.

Manjericão

Arapawa Lauraceae

Persea americana Mill.

Abacate

Apacaxi Malpighiaceae

Malpighia glabra L.

Acerola

Iwa pirang

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 133-158, jan.-abr. 2016

Tabela 2.

(Continua)

Nome científico (família/espécie)

Nome em português

Nome da espécie reconhecida pelos Ka’apor

Hibiscus sabdariffa L.

Vinagreira

Theobroma cacao L. Theobroma grandiflorum (Willd. ex Spreng.) K. Schum.

Nome de variedades reconhecidas pelos Ka’apor

Ocasional nas roças novas / kupixa/

Presente nos quintais /kura/

Atividades/ contexto

Pira pupur namuhar

x

Alimentação

Cacau

Kaka wira

x

Alimentação

Cupuaçu

Kupi hu

x

Alimentação

x

Medicinal

Malvaceae

Meliaceae Carapa guianensis Aubl.

Andiroba

Andiro Myrtaceae

Eugenia brasiliana (L.) Aubl.

Pitanga

Iwa pitã

x

Alimentação

Psidium guajava L.

Goiaba

Wajaba

x

Alimentação

Syzygium malaccense (L.) Merr. & L.M. Perry

Jambo

x

Alimentação

Poaceae Coix lacryma-jobi L.

Santa-maria

Puirisa

x

Cultura material

Cymbopogon citratus (DC.) Stapf.

Capimlimão

Limã ka’api

x

medicinal

Gynerium sagittatum (Aubl.) P. Beauv.

Flecheira

U’i-wa

x

Cultura material

Rubiaceae Coffea arabica L.

Café

Caser

x

Alimentação

Genipa americana L.

Jenipapo

Jenipa

x

Pintura corporal

Rutaceae Citrus sinensis (L.) Osbeck

Laranja

Narã

x

Alimentação

Citrus limon (L.) Osbeck

Limão

Limã

x

Alimentação

Citrus reticulata Blanco

Tangerina

Tahari

x

Alimentação

x

Alimentação

Dedo-de-moça

x

Alimentação

De cheiro

x

Alimentação

Roxa

x

Alimentação

Amarela

x

Alimentação

Solanaceae Solanum lycopersicum L.

Capsicum baccatum L.

Tomate

Pimenta

Ky’i

149


O mundo da horticultura Ka’apor: práticas, representações e as suas transformações

Tabela 2. Nome científico (família/espécie)

(Conclusão) Nome em português

Nome da espécie reconhecida pelos Ka’apor

Nome de variedades reconhecidas pelos Ka’apor

Ocasional nas roças novas / kupixa/

Presente nos quintais /kura/

Atividades/ contexto

x

x

Cultura material

x

Medicinal

Strelitziaceae Phenakospermum guyannense (A.Rich.) Endl. ex Miq.

Sororoca Zingiberaceae

Zingiber officinale Roscoe

Gengibre

Marakatai

Do total de 61 espécies cultivadas pelos Ka’apor nas roças e nos quintais, a maior parte, isto é, 40 espécies, está destinada à alimentação; seguem em importância numérica as destinadas à fabricação de cultura material e artesanato (dez espécies); continuam as plantas medicinais (cinco espécies); as plantas ictiotóxicas usadas para pescar (três espécies); as de uso na pintura corporal (duas espécies); outros usos (uma espécie). Chama a atenção o fato de encontrarmos poucas plantas cultivadas de uso medicinal, o que nos faz supor que a farmacopeia dos Ka’apor baseia-se em plantas não cultivadas, extraídas da floresta, mas até o momento não existem pesquisas que caracterizem este aspecto. Por outro lado, os resultados dos levantamentos in situ mostram que os quintais (kura) são o espaço onde os Ka’apor cultivam maior diversidade de plantas (44 espécies), consolidando-se como laboratórios de experimentação de novas plantações, que vão se constituindo por meio de práticas cotidianas de plantio de sementes e mudas de espécies adquiridas, principalmente pelas mulheres, nas suas viagens às cidades vizinhas e nas visitas a outras aldeias. Desta maneira, pode-se argumentar que as mulheres Ka’apor assumem um papel importante na inovação hortícola e na manutenção da horticultura tradicional, dada sua participação ativa no processo hortícola, principalmente na plantação, nos cuidados com as plantas, na colheita dos produtos, no

processamento e na preparação de alimentos. Chernela (1997) também observou o papel inovador das mulheres Tukano na diversidade de mandiocas. Isso corrobora a afirmação de Gasché (2002), sobre o fato de que as intervenções das mulheres constituem o principal agente transformador da horticultura indígena entre os povos amazônicos.

PENSAMENTO E RITUAIS ASSOCIADOS À HORTICULTURA No universo Ka’apor, a horticultura está associada a uma complexa “trama de significados” (Geertz, 2008), baseada em uma visão de mundo que é expressa em narrativas míticas e encenações, em cantos e práticas rituais relacionados com o ato de plantar, de colher os frutos, de socializar e de distribuir os produtos hortícolas, e no senso de propriedade relacionado às plantas cultivadas, entre outros fatores. Nesse sentido, a horticultura Ka’apor se insere em um contexto de significados no qual conhecimentos, práticas hortícolas e valores morais constituem um universo em constante transformação. O mundo da horticultura Ka’apor abarca aspectos cosmológicos manifestos nas narrativas tradicionais que contam a origem de certas plantas cultivadas e estabelecem normas de comportamento que regulam as práticas hortícolas. A seguinte narrativa coletada na aldeia Xiepihurena contextualiza a origem das plantas cultivadas:

150


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 133-158, jan.-abr. 2016

Foi dessa vez que veio o curauá, acho que dessa vez também veio o algodão. Por isso é que temos hoje abacaxi também, batata, pimenta também veio de lá (Mariuza Ka’apor, aldeia Xiepihu-rena, 2010).

Morreu um velhinho, bem velhinho. Enterraram ele. O filho dele chorava por querer ver ele. – Eu também vou me matar! Ele trepou naquela escada de jabuti [árvore]. Ele chegou num caminho, ele seguiu esse caminho e chegou lá no lugar da mãe dele. A mãe dele tinha morrido há muito tempo já. Chegou lá e primeiro viu a mãe dele.

Tal como acontece entre outros povos indígenas da Amazônia, por exemplo, entre os Mebêngôkre-Kayapó (Robert et al., 2012), para o povo Ka’apor, segundo a sua cosmovisão, as plantas cultivadas têm sua origem fora da esfera onde habitam os seres humanos. Nesta narrativa, chama atenção a associação das plantas cultivadas com o lugar onde moram os mortos. Uma outra versão desta narrativa, coletada por Balée (1993, p. 152), associa algumas espécies introduzidas, tais como a melancia e algumas variedades de banana, ao mundo dos mortos. Outra narrativa relaciona a horticultura Ka’apor com a cobra maje, jiboia que sai da barriga de uma moça, no tempo da coleta da castanha. Os irmãos da moça cortaram o rabo da cobra, nesse momento surge uma roça e uma menina, Kũjã maje, que cuida das roças:

– O que tu vem fazer? A mãe dele perguntou. – Eu vim atrás do meu pai. Meu pai morreu e eu vim me embora, eu queria me matar. – Não, tu não podes vir agora, ainda tu tens muito tempo lá. A mãe dele botou ele dentro de um quarto e deixou ele lá. – Aqui tu vais ficar, não vais andar por aí, não, porque por aqui é muito perigoso. Ele ainda não tinha morrido, não. –Teu pai chegou aqui porque ele está muito velho, ele já criou os filhos dele. Teu pai não morreu, não, ele está aqui, só que tu não vais ver ele. Ele não morreu não, ele olhava o pai dele. Estava cheio de terra as costas do pai dele.

Quando a moça foi apanhar castanha, o irmão [da moça] cortou o rabo da cobra. Nesse momento, fez muito vento, quebrou os paus e virou uma roça grande. O irmão pensou que os paus mataram a irmã. Mas, a cobra levou ela para o céu. O irmão foi lá queimar os paus para fazer uma roça para ele, mas a cobra já tinha queimado e plantado muita coisa: banana, batata, mandioca, macaxeira e cará.

– Vai se limpar! Ele diz para o pai – Agora não, porque ele está de resguardo. De aqui a uns 15 dias ele vai se limpar. Tu não vais ver ele agora, não. Dizia a mãe dele. – Tu vais voltar e vais criar todos teus filhos. Eles estão sentindo a tua falta. Quer ver? Escuta!

O marido da moça, a cobra, estava capinando. O rabo que o irmão cortou virou uma menina muito bonita. A menina cantava a cantiga do milho: “o milho nasceu perto do pau”.

Quando ele escutava ele ouvia a esposa dele e os filhos chorando, pensando que o pai dele foi morrer para lá, foi morrer enforcado.

O irmão olhou a cobra e falou para a moça:

Ele foi ver o pai dele. Ele ficou cinco dias lá e depois a mãe dele veio deixar ele.

– Eu pensei que teu marido era gente – diz o irmão. Mesmo assim, ele falou com a cobra:

Ele trouxe banana, abacaxi, curauá, urucum, batata, é de lá que vem também. A mãe dele juntou tudo e falou: “tu vais levar só essas coisas contigo, as outras coisas tu não vais levar não”. A banana era tudo grandão.

– Fui eu que cortei teu rabo para liberar minha irmã, mas não teve jeito, você levou ela. – É verdade, você cortou meu rabo. Eu vou embora daqui, eu vou levar tua irmã e vou cuidar dela – a cobra respondeu.

– Mas esse de aqui tu não vais levar não, quando tu morrer tu vais vir e comer esse daqui. Esse daqui tu vais levar e vais plantar.

– A roça vai ficar para vocês, eu já provei tudo e não vai fazer mal para vocês – continuou falando a cobra.

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O mundo da horticultura Ka’apor: práticas, representações e as suas transformações

– Então, nós vamos ficar com essa roça – disse o irmão da moça. A cobra diz para o cunhado: – Se vocês fizerem roça e plantarem as frutas, não é para qualquer um comer. É só o dono que tem que comer primeiro. Se não for assim, vai acontecer do mesmo jeito que aconteceu com tua irmã. Por isso, nós Ka’apor temos medo de comer as frutas da roça nova. É o dono da roça que tem que provar primeiro, para logo os outros comerem. Até hoje existe a cobra Kũjã maje no céu (narrativa de Mariuza Ka’apor) (López Garcés, 2011, p. 53).

Ao se referir às castanheiras, esta narrativa é um indicador de que antigamente os Ka’apor moravam

em um lugar de castanhais, possivelmente entre os rios Xingu e Tocantins, como a literatura antropológica assinala (Balée, 1993). Mas o que a narrativa traz ao nosso entendimento é que horticultura Ka’apor está sujeita a uma série de normas comportamentais e rituais que acompanham todas as etapas do processo hortícola, desde o plantio até a colheita dos produtos da roça. Esta narrativa mostra de forma clara os comportamentos estabelecidos e desejados que mediam o senso de propriedade dos produtos da roça na sociedade Ka’apor, ao mesmo tempo relacionados com uma ordem de seres que compartilham características humanas e não humanas, sendo agentes criadores de normas de comportamento social (Figura 2).

Figura 2. Kũjã maje. Desenho de Reila Tembé (Aldeia Xiepihũ-rena, 2008).

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 133-158, jan.-abr. 2016

No mundo da horticultura Ka’apor existem representações estéticas e práticas rituais associadas às plantas cultivadas. Na pesquisa, identificou-se a existência de cantos associados às plantas cultivadas, coletando em campo uma cantiga associada ao milho, interpretada por uma mulher no momento em que adentramos na sua roça nova. Isto leva a entender que a horticultura Ka’apor comporta também um conjunto de valores estéticos expressados na arte musical, sendo necessárias pesquisas sobre este aspecto, na interfase com estudos etnomusicológicos, seguindo o exemplo dos estudos efetuados por Aldé (Sustentando o cerrado..., 2013) sobre os cantos associados à horticultura entre os Kraho do cerrado. Entre as plantas cultivadas pelos Ka’apor, o curauá (kirawa) (Ananas erectifolius L.B. Sm.), usado na elaboração de cultura material, requer especial atenção no ato da plantação; trata-se de uma prática ritual que deve ser observada caso se pretenda um bom crescimento das folhas desta planta, das quais se extrai uma fibra de grande resistência, usada na confecção da destacada arte plumária deste povo indígena e também na elaboração de artesanato (colares, pulseiras e brincos) destinado à venda; é conhecida também como “planta corda” (Balée, 1993), já que serve para fazer cordas para amarrar e laçar. Desta planta, os Ka’apor distinguem duas variedades: kirawa howi, de folhas verdes, chamado também “kirawa da cidade”, pelo fato de ser cultivado principalmente pelos não indígenas (karai), e o kirawa pitang, ou curauá vermelho, devido à coloração das folhas, de uso tradicional entre os Ka’apor e considerado de maior resistência (Araújo, 2013). A plantação do kirawa é feita por mudas ou pequenas plântulas retiradas de uma plantação anterior, as quais são levadas aos novos campos de cultivo, seja nas roças ou nos quintais, onde são plantadas somente pelos homens, utilizando um arco de madeira de ipê ou de pau-brasil – objeto da cultura material somente usado pelos homens na caça e na guerra –, no momento de plantar a muda no buraco feito na terra com a draga. O uso do arco no momento da plantação do curauá (Figura 3) confere à

Figura 3. Plantação de curauá com arco. Foto: Claudia López.

planta a capacidade de se desenvolver com um bom comprimento, característica desejada, dado que se requer extrair uma boa fibra das folhas. Já no processo de extração da fibra, podem participar tanto homens quanto mulheres. Com base nestas considerações, pode-se arguir que a horticultura Ka’apor constitui um complexo de representações cosmológicas, conhecimentos e práticas hortícolas e rituais, valores éticos e estéticos que vêm se consolidando e modificando historicamente, de acordo com as conjunturas sociais, econômicas e políticas que este povo indígena tem vivenciado ao longo do tempo.

A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO NA HORTICULTURA KA’APOR: MUDANÇAS COMTEMPORÂNEAS No transcorrer da pesquisa, observou-se que as práticas hortícolas dos Ka’apor correspondem, em aspectos

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O mundo da horticultura Ka’apor: práticas, representações e as suas transformações

como cultivos predominantes e associações de espécies, às práticas tradicionais já descritas por Ribeiro (1976) e Balée e Gély (1989a), não sendo interpeladas pela intervenção de novos saberes e práticas promovidos por Organizações Não Governamentais (ONG), agências de desenvolvimento, instituições de pesquisa agropecuária etc. Não obstante, observam-se mudanças no que se refere às formas de organização do trabalho hortícola, devido a influência de maior circulação de dinheiro, até alguns anos atrás relacionada à atividade de exploração madeireira, mas principalmente ao incentivo das políticas públicas, por meio de programas sociais, como o Bolsa Família, que o governo federal proporciona às famílias brasileiras consideradas de escassos recursos (categoria em que são inseridas as famílias indígenas) e as aposentadorias. Os processos de exploração ilegal de madeira na Terra Indígena Alto Turiaçu, por parte de atores não indígenas (karai), têm sido cíclicos, mas constantes nesta região desde a década de 1980, quando foi demarcada. No transcorrer do século XXI, o povo Ka’apor tem vivenciado uma das mais fortes arremetidas por parte de madeireiros que, utilizando-se de diversas estratégias, como o roubo de madeira das áreas mais isoladas até a cooptação de lideranças indígenas e negociações fraudulentas com as comunidades, têm adentrado na Terra Indígena para explorar ilegalmente as madeiras nobres da floresta. Por outro lado, a maior circulação de renda nas aldeias Ka’apor, por meio dos salários dos indígenas que trabalham no serviço público (professores indígenas, agentes indígenas de saúde, merendeiras, funcionários da FUNAI) e de políticas públicas, a exemplo das aposentadorias para os trabalhadores rurais e do programa Bolsa Família, assim como as novas formas de organização sociopolítica caracterizadas pela influência do associativismo como forma organizativa cada vez mais frequente entre os povos indígenas, vem ocasionando mudanças nas formas de organização do trabalho hortícola. Vejamos isso em detalhe. Na forma tradicional de organização do trabalho hortícola entre os Ka’apor, cada família nuclear faz os

trabalhos de abertura de uma nova roça, apelando à prática da ajuda mútua (jaho ahu), a qual se insere no sistema de reciprocidade, entendido, nos termos de Mauss (1981 [1923], p.362), como a “obrigação de dar e retribuir presentes, característica de todas as sociedades humanas”. Esta discussão é referendada por Sabourin (2000, p. 3), na sua análise das relações de reciprocidade e trocas em comunidades camponesas do Nordeste (Brasil), arguindo que “a lógica do sistema de reciprocidade considera não só a produção exclusiva de valores de uso ou de bens coletivos, mas também a criação do ser, da sociabilidade” (tradução da autora). Com efeito, o processo de abertura de uma nova roça é realizado por meio do sistema de reciprocidade, sendo que o presente ou o dom é, neste caso, a força de trabalho no ‘mutirão’ ou no trabalho comunitário, atividade em que também são reforçadas e/ou ampliadas as relações sociais e afetivas (parentesco, amizade, compadrio). Percebe-se a divisão do trabalho por gênero: os homens dedicam-se ao trabalho de cortar as árvores para abrir a clareira na floresta, usando uma motosserra, as mulheres ocasionalmente ajudam na limpeza da clareira e preparam a comida que será servida aos participantes do mutirão. Em troca, o dono da roça aberta compromete-se a ajudar a todas as pessoas que colaboraram no trabalho. Na aldeia Xiepihu-rena, percebem-se mudanças relacionadas às formas de organização do trabalho e na maneira como opera o trabalho agrícola. De um lado, devido à maior circulação de renda, o trabalho de ajuda mútua na abertura da roça está sendo substituído pelo pagamento de diárias a trabalhadores indígenas e não indígenas, contratados unicamente para este trabalho de abertura de roças na floresta. Esta modalidade opera entre as famílias que possuem maiores rendas, seja porque algum dos seus membros possui um emprego e salário, seja porque recebe aposentadoria. Outra mudança na forma de organização do trabalho agrícola percebida nas aldeias Xiepihum-rena e Paracui-rena é a abertura de grandes roças por parte de famílias extensas

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 133-158, jan.-abr. 2016

(um casal de meia idade e as famílias dos seus filhos e filhas casados que moram na mesma aldeia), a fim de juntar a renda necessária para pagar os trabalhadores indígenas e não indígenas que fazem o trabalho de abertura da roça. O surgimento conjuntural de novas formas de organização de caráter associativo, como foi o caso da Associação das Mulheres Artesãs nas aldeia Xiepihum-rena e Paracui-rena, motivou a abertura de uma grande roça comunitária, com pagamento de diárias a trabalhadores não indígenas, para plantação de mandioca, que, uma vez pronta para a colheita, foi vendida a uma pessoa que chegou na aldeia com um caminhão para colher a produção. Foi este o único caso de produção hortícola para comercialização, pois esta atividade entre os Ka’apor é destinada principalmente ao autoconsumo. Não obstante estas mudanças nas formas de organização do trabalho hortícola, ocasionadas pela maior circulação de renda nas aldeias, longe de suscitar o desmoronamento das práticas hortícolas tradicionais, como poderia se esperar, devido ao maior poder aquisitivo e acesso a recursos industrializados, parecem ter redundado no fortalecimento das práticas hortícolas dos Ka’apor, incentivando a abertura de roças maiores e a continuidade das práticas tradicionais de policultivos para autoconsumo. Os recursos monetários que hoje circulam em maior quantidade nas aldeias Ka’apor incentivam a abertura de maiores campos de cultivo por meio do intercâmbio de força de trabalho por dinheiro, mantendo, assim, a tradição hortícola característica deste povo. Sobre a diferença entre intercâmbio e reciprocidade, Temple (1999 apud Sabourin, 2000, p. 3) afirma que “a operação de intercâmbio corresponde a uma permuta de objetos, enquanto a estrutura de reciprocidade constitui uma relação reversível entre sujeitos” (tradução da autora). Nesse sentido, entre os Ka’apor coexistem ambas práticas porquanto o sistema de reciprocidade se evidencia em outros aspectos do processo de produção hortícola, por exemplo, na distribuição de produtos da roça na época das colheitas; no processo de produção de farinha baseado

na ajuda mútua entre famílias, inclusive de outras aldeias; nas formas de sociabilidade estabelecidas com ocasião das festas e comemorações (festa do cauim, mingau de moça nova etc.). Nesta ordem de ideias, as práticas hortícolas contemporâneas dos Ka’apor estão permeadas pelos conhecimentos e hábitos ancestrais, mas também, como afirma Escobar (1999, p. 299), refletem o fato de que “os modelos locais não estão isolados, eles estão em contato com modelos modernos de natureza e economia que os influencia” (tradução da autora) e, nesse sentido, abrem-se para formas de organização do trabalho hortícola baseadas no sistema de troca de força de trabalho por dinheiro, sem que isso signifique que a horticultura Ka’apor tenha entrado no sistema de produção capitalista. Pelo contrário, estamos perante um caso em que a maior circulação de dinheiro está sendo direcionada para o fortalecimento dos conhecimentos e práticas hortícolas ancestrais.

CONCLUSÕES Ao fazer um balanço comparativo da horticultura Ka’apor ao longo do tempo, em termos da diversidade de plantas cultivadas, encontramos que, segundo os estudos efetuados por Darcy Ribeiro, os Ka’apor cultivavam em torno de 28 plantas na década de 1950 (Ribeiro, 1976, p. 32). As pesquisas de Balée e Gely, na década de 1980, reportam uma estimativa de 56 espécies observadas nas roças novas e quintais, das quais 28 são plantadas pelos Ka’apor (Balée e Gély, 1989a, p. 133). Os levantamentos nas roças novas (kupixa) e quintais (kura) efetuados no transcurso desta pesquisa arrojam um número de 61 espécies diferentes encontradas nestes espaços de cultivo, as quais podem ser consideradas como pertencentes à categoria “biodiversidade domesticada” (Gasché, 2002), porquanto são objeto de manejo por parte dos Ka’apor, seja pelo fato de serem plantadas ou pelo fato de “deixar crescer”. Todas estas espécies são apropriadas pelos Ka’apor em termos das diversas interações, usos e significados.

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O mundo da horticultura Ka’apor: práticas, representações e as suas transformações

Se considerarmos estes resultados numéricos sobre biodiversidade domesticada em perspectiva histórica comparada, encontramos que, ao invés de perdas, percebe-se um contínuo aumento do número de espécies de plantas cultivadas pelos Ka’por ao longo do tempo. Este aumento deve-se, entre outros fatores, à obtenção de novas espécies antes não cultivadas, aspecto em que, como já observado por Gasché (2002), as mulheres indígenas têm um importante papel. De fato, na aldeia Xie constatouse que as mulheres são as principais motivadoras das inovações hortícolas, por meio da obtenção de sementes e mudas em aldeias indígenas e cidades vizinhas. O maior incremento de plantas cultivadas se percebe na categoria plantas alimentícias (frutíferas), cultivadas principalmente nos quintais (kura), bem como a de plantas usadas na elaboração de cultura material e artesanato, o que constata a importância sociocultural que esta atividade tem na forma de vida do povo Ka’apor, conduzindo-o a interagir com novas espécies de plantas consideradas importantes para este propósito. Ressalte-se também o fato de o maior incremento de plantas alimentícias cultivadas ser uma clara evidência de que os Ka’apor, até o presente, estão conseguindo manter a sua segurança alimentar, complementada também com a grande diversidade de frutos coletados na floresta que não fizeram parte deste estudo. Este aspecto deve ser aprofundado em futuras pesquisas. Porém, se fizermos comparações em termos das espécies cultivadas, perceberemos a ausência contemporânea de algumas espécies que no passado teriam sido importantes para os Ka’apor, tais como a priprioca (Killingia sp.), reportada por Ribeiro (1976), plantas alimentícias, como o amendoim (Arachis hypogaea L.) e o maxixe (Cucumis anguria L.), e o tabaco (Nicotiana tabacum L.), de uso medicinal e ritual, reportados nos levantamentos efetuados pelos dois autores. Faz-se necessário que sejam realizados levantamentos de plantas cultivadas em outras aldeias Ka’apor para constatar se, de fato, estas espécies não são mais cultivadas por este povo.

Por outro lado e seguindo as recomendações de Escobar (1999, p. 299), segundo as quais as formas de uso-significado do entorno devem ser contextualizadas etnograficamente com as formas de poder que as afetam e em relação com as forças globais em que se inserem (tradução da autora), pode-se constatar que, na conjuntura atual caracterizada pela invasão, conflitos violentos e exploração ilegal de madeira no território dos Ka’apor, a abertura de novas roças e quintais que acompanha a criação de novas aldeias contextualiza-se dentro dos processos de ocupação e defesa do território por parte dos Ka’apor. Nesse sentido, queremos chamar a atenção sobre o transfundo sociopolítico que a horticultura dos Ka’apor adquire nessa conjuntura atual, constituindo-se como um instrumento eficiente de reconstrução territorial e defesa dos direitos coletivos deste povo indígena. Finalmente, esta aproximação antropológica ao mundo da horticultura Ka’apor possibilita entender este importante aspecto no estilo de vida deste povo indígena como um rico e complexo mundo, expresso em práticas, representações e significados, cujo entendimento e compreensão não se esgotam no conteúdo deste artigo. Além de constituir uma atividade fundamental dentro do conjunto de práticas econômicas das quais derivam seu sustento, a horticultura Ka’apor está inserida em uma complexa trama de representações simbólicas e práticas rituais, valores morais e estéticos contextualizados na sua forma específica de visão de mundo. A horticultura Ka’apor vai se transformando de acordo com as situações econômicas e sociopolíticas contemporâneas, aspectos que fazem da horticultura deste povo indígena um fator sociocultural complexo, vivo e em constante transformação.

AGRADECIMENTOS Ao povo indígena Ka’apor, principalmente aos que moram na aldeia Xiepihum-rena, por ter me permitido interagir em seu cotidiano. Agradeço especialmente a Valdemar Ka’apor e Lucineia Tembé, Mariuza Ka’apor, Teon Ka’apor e Elizete Tembé, pelas longas conversas e visitas às roças. À

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Márlia Coelho-Ferreira, pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi, pela colaboração na revisão dos nomes científicos neste texto.

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O mundo da horticultura Ka’apor: práticas, representações e as suas transformações

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SUSTENTANDO O CERRADO na respiração do Maracá: conversas com os Mestres Krahô. Direção de Veronica Aldè. Goiânia: Produção independente, 2013. 1 DVD (30 min).

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 159-192, jan.-abr. 2016

Redes e observatórios da agrobiodiversidade, como e para quem? Uma abordagem exploratória na região de Cruzeiro do Sul, Acre Networks and observatories of agrobiodiversity, how and for whom? A survey in the Cruzeiro do Sul area, Acre Laure EmperaireI, III, Ludivine EloyII, III, Ana Carolina SeixasIV I

Institut de Recherche pour le Développement. Paris, França II

Centre National de la Recherche Scientifique. Paris, França III

Universidade de Brasília. Brasília, Distrito Federal, Brasil

Escola de Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação.

IV

Secretaria de Eduacação do Distrito Federal. Brasília, Distrito Federal, Brasil

Resumo: A diversidade de plantas cultivadas, selecionadas e conservadas pelos agricultores tradicionais, é de interesse tanto local quanto nacional, além de constituir um patrimônio biológico e cultural. No caso da Amazônia, apesar de atualmente dispormos de uma suma de dados sobre a agrobiodiversidade, a diversidade das opções metodológicas mobilizadas torna difícil uma visão sintética de suas dinâmicas. Para entendê-las, torna-se imprescindível assegurar um monitoramento, em longo prazo, de localidades sentinelas ou observatórios, e construir indicadores a serem compartilhados entre populações locais, pesquisadores e formuladores de políticas públicas. Como exemplo, propomos uma abordagem exploratória da agrobiodiversidade levantada junto a 52 agricultores de duas comunidades da região de Cruzeiro do Sul (Acre), a partir de uma abordagem qualitativa sobre as formas locais de denominação das plantas e quantitativa, fundamentada sobre a medida da riqueza (número de espécies ou variedades presentes). A amplitude da riqueza é de 338 plantas, principalmente variedades locais, levantadas com uma alta frequência de espécies ou de variedades apenas cultivadas por um ou dois agricultores, sua estruturação é marcada pela presença de um modelo aninhado, sendo evidenciado o núcleo de plantas de maior coesão. Palavras-chave: Amazônia. Inventário. Agrobiodiversidade. Saberes locais. Métodos. Conservação. Abstract: The diversity of cultivated plants that are selected and preserved by traditional farmers attracts local and national interest, and constitutes an important biological and cultural heritage. In the case of the Amazon, besides the existence of a great set of data on agrobiodiversity, the wide range of methods hampers a synthetic view of its dynamics. To understand this, it is essential to have a monitoring system in the long term in specific sites, or to build observatories and indicators to be shared among local populations, researchers and public policy makers. As an example, we propose an exploratory approach to the agrobiodiversity managed by 52 farmers in two communities of the Cruzeiro do Sul region (Acre), from a qualitative (based on the local names of plants) and quantitative approach (based on the measure of richness). The amplitude of the richness is of 338 cultivated plants, mainly landraces, with a high frequency of species or varieties present in only one or two farmers plots. The structure of this diversity is characterized by the presence of a nested pattern, with a core of plants with greater cohesion. Keywords: Amazonia. Survey. Agrobiodiversity. Local knowledge. Methods. Conservation.

EMPERAIRE, Laure; ELOY, Ludivine; SEIXAS, Ana Carolina. Redes e observatórios da agrobiodiversidade, como e para quem? Uma abordagem exploratória na região de Cruzeiro do Sul, Acre. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 159-192, jan.-abr. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000100009. Autor para correspondência: Laure Emperaire. UMR 208 IRD-MNHN “Patrimoines locaux et gouvernance” (PALOC), MNHN, Département HNS, 45 rue Buffon, CP 51, 75231 Paris Cedex 05, France (laure.emperaire@ird.fr). Recebido em 28/02/2015 Aprovado em 03/03/2016

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Redes e observatórios da agrobiodiversidade, como e para quem? Uma abordagem exploratória na região de Cruzeiro do Sul, Acre

INTRODUÇÃO A diversidade de plantas cultivadas, selecionadas e conservadas pelos agricultores tradicionais, é de interesse tanto local quanto nacional (resistência a pragas e doenças, adaptação a um leque de condições ecológicas, soberania alimentar, seleção de novas cultivares etc.), além de constituir um patrimônio agrobiológico e cultural. Como conservar esse patrimônio e assegurar sua adaptação a novos contextos ecológicos? Como propor melhorias nos sistemas de produção locais, compatíveis com as representações e práticas locais da diversidade das plantas cultivadas? Como avaliar os efeitos induzidos pelas novas conexões que se estabelecem entre uma agrobiodiversidade territorialmente diferenciada e fluxos cada vez mais intensos de mercadorias e commodities, de novos saberes e práticas ou novos instrumentos jurídicos que tendem a ser mais restritivos? Responder a essas perguntas exige ter dados de referência sobre o estado da diversidade em determinados momentos e locais, e entender os processos que levam a esse estado. Tal cartografia permite também melhor compreensão da própria natureza dinâmica da agricultura tradicional, feita de incorporações de novas plantas, adaptações, inovações técnicas e sociais, de circulação de bens materiais e imateriais, como instrumentos, produtos, plantas e saberes associados e, em escala menor, das etapas da história da agrobiodiversidade. No caso da Amazônia, apesar de atualmente dispormos de uma suma de dados sobre a agrobiodiversidade, a diversidade das opções metodológicas mobilizadas torna difícil uma visão sintética de suas dinâmicas. O mapa dos complexos de plantas cultivadas, tais como mandioca, milho e outras, estabelecido por Galvão (1960), precisa ser atualizado e detalhado. No entanto, não se trata apenas de definir um estado da agrobiodiversidade, identificado por uma lista de espécies ou variedades, mas de entender a estrutura dessa diversidade. Os estudos de tipo diacrônico são ainda escassos. Ora, há fortes índices de perda de diversidade genética e

dos conhecimentos associados. Uma pesquisa realizada no rio Negro mostra que o número de variedades de mandioca cultivadas em uma comunidade caiu pela metade em dez anos, com 66 variedades recenseadas, em 1996, para cinco agricultoras, e 28 para quatro agricultoras, em 2006 (Emperaire et al., 2010). Os estudos de Marchetti (2012), Marchetti et al. (2013), Peroni e Hanazaki (2002), Salick e Lundberg (1990) confirmam essa tendência em outras situações. A análise sincrônica de Grenand (1996) mostra como a perda de diversidade é relacionada a mudanças socioculturais. Em paralelo, estudos apontam para a existência de um imenso leque de recursos genéticos mantidos pelos agricultores, tanto em contexto rural como em urbano (Castro Pinto, 2012; Siviero et al., 2011; Winklerprins, 2002; Akinnifesi et al., 2010, entre outras referências). Porém, as escolhas metodológicas e as dos locais de pesquisa refletem escolhas acadêmicas, e não esforços sistemáticos de amostragem em médio e longo prazo capazes de dar conta dessas evoluções. Promover um sistema de observatórios ou de localidades sentinelas com a participação dos detentores dessa agrobiodiversidade permitiria uma melhor compreensão dos processos em jogo, em várias escalas espaciais e temáticas, desde a da genética até a do sistema produtivo ou do sistema agrário regional. Tal embasamento é necessário para definir instrumentos de políticas públicas que apoiem as próprias escolhas dos agricultores e a implementação de complementaridades entre a conservação in e ex situ dessa agrobiodiversidade.

UM NOVO QUADRO DE ANÁLISE DA AGROBIODIVERSIDADE Sirenes de alarme sobre a perda da diversidade das plantas cultivadas e dos saberes a elas associados foram disparadas a partir dos anos 1990 (The Government of the Federal Republic of Brazil et al., 1995; FAO, 2010). No entanto, o reconhecimento da eficiência dos sistemas locais de manejo das sementes, ou sistemas sementeiros (seeds systems ou systèmes semenciers), na conservação de uma ampla base

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genética é recente (Bajracharya et al., 2012; Coomes et al., 2015; Demeulenaere et al., 2008; Emperaire et al., 2003; Kumar et al., 2010; Jarvis et al., 2008; Junqueira et al., 2010; Osman e Chable, 2009). Apesar da conservação ex situ, em bancos de germoplasma, continuar a drenar a maior parte dos investimentos financeiros e científicos, as duas modalidades, ex situ e in situ, não podem mais ser pensadas independentemente (Hammer, 2003; Santonieri et al., 2011; Dulloo et al., 2010). A distância é grande entre o artigo fundador de Iltis (1974) sobre a conservação in situ, que defendia o isolamento de áreas ricas em biodiversidade agrícola e a situação atual, na qual começam a se desenhar interesses convergentes entre populações locais, pesquisadores e gestores de políticas (Bonneuil e Demeulenaere, 2007; Bonneuil et al., 2006; Correia et al., 2013; Dias, 2003). Como destacam Almeida e Carneiro da Cunha (2001) a respeito da conservação da biodiversidade, as relações entre os diversos atores já não se configuram mais em vínculos de apoio, mas incorporam significados de troca e parceria. Produzir, garantir a segurança alimentar das famílias, abastecer o mercado e, para tanto, melhorar a produtividade são os principais objetivos atribuídos pelas políticas públicas à agricultura tradicional. Mas a prática agrícola encontra-se também no centro de um espaço multidimensional ainda em construção, que é solicitada para responder a objetivos de conservação da biodiversidade e de serviços ambientais (Hall, 1997; Tancoigne et al., 2015). O contexto das mudanças climáticas e o das degradações ambientais geradas pela agricultura convencional, pela redução da sua base genética, renovam o interesse nas práticas e saberes agrícolas locais e nos recursos biológicos a eles associados. Vários estudos recentes apontam para a robustez de sistemas locais de conservação e de manejo da agrobiodiversidade (Cavechia et al., 2014; Coomes et al., 2015). As políticas públicas começam a reconhecer as dimensões territoriais e culturais das formas tradicionais de produzir. Esse patrimônio cultural e biológico é reabilitado paulatinamente, e diversos instrumentos são mobilizados

com esse objetivo (Santilli, 2009; Pinton, 2003). Assim, as Indicações Geográficas, inicialmente pensadas no Brasil para produtos com fortes potencialidades econômicas, são vistas como um instrumento de desenvolvimento local (Lages et al., 2007). As novas reflexões sobre os mosaicos de áreas protegidos vão ao mesmo sentido: reforçar as bases ecológicas e culturais de um desenvolvimento territorial (Delelis et al., 2010). Em 2010, o ‘Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro’ foi reconhecido como patrimônio cultural brasileiro (Emperaire et al., 2010). Na escala mundial, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) implementou, em 2002, um reconhecimento dos Globally Ingenious Agricultural Heritage Systems (GIAHS) (Ramakrishnan, 2004). Há também, na escala nacional ou regional, o reconhecimento de patrimônios bioculturais (Boege, 2008; Graddy, 2013). Essas diversas formas de certificações de produtos e serviços das agriculturas tradicionais promovem uma conservação da agrobiodiversidade a elas associadas. Outras experiências recentes de conservação de sementes, como as dos bancos comunitários, operam nesse mesmo sentido, porém ainda é cedo para avaliar seus resultados.

REDES E OBSERVATÓRIOS DA AGROBIODIVERSIDADE: PARA QUEM E COMO? A maioria dos dados disponíveis sobre agrobiodiversidade provém de pesquisas científicas, muitas vezes interdisciplinares. Permite avanços no plano metodológico, de compreensão das dinâmicas da agrobiodiversidade, mas ainda pouco autoriza comparações interlocalidades, comparações diacrônicas ou o estabelecimento de um quadro macrorregional das dinâmicas da agrobiodiversidade. Os dados, produzidos e formatados em uma linguagem científica, abrem poucas possibilidades de interfaces entre as populações e os formuladores e executores de políticas públicas. Essas colocações vão ao encontro da noção de Evidence Based Policy (EBP), inicialmente elaborada no âmbito da medicina, frente à dificuldade dos médicos em acessar e sintetizar inúmeras publicações científicas para

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se manterem atualizados. Apesar de críticas sobre um possível ‘pragmatismo simplificador’ ou uma ‘despolitização dos debates’, nos termos de Laurent et al. (2012), essa metodologia, por propor zonas de convergências entre pesquisa e decisões políticas, ganhou espaço nas esferas do desenvolvimento sustentável (Laurent et al., 2009) e da implementação de novos modelos agrícolas (Carneiro e Danton, 2012). Há uma forte preocupação de integrar a sociedade nesse debate incentivando “a comunicação entre política, sociedade e pesquisadores ou [a necessidade] de tornar acessíveis os conhecimentos produzidos por estes” (Carneiro e Danton, 2010). No entanto, nos campos da agrobiodiversidade e da agricultura, bem como em outros domínios passíveis de tais análises, falta ainda agregar ao debate os própios produtores e detentores de conhecimentos, os agricultores. Tal procedimento reforçaria o reconhecimento direitos dos agricultores formulado no Tratado Internacional sobre os Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura, ratificado pelo Brasil em 2006 (Moore e Tymowski, 2008; FAO, 2007; Santilli, 2009) e a participação deles na ‘determinação e elaboração de indicadores’ relativos à biodiversidade, como recomenda a Comissão dos Recursos Genéticos para Alimentação e Agricultura (FAO, 2013, § 21, p. 4). Goffaux et al. (2011) e Bonneuil (2012) mostraram, a respeito da dinâmica da diversidade dos trigos, ao longo do século XX, que o grupo de indicadores considerados mais fidedigno é o da diversidade genética. Da estrutura genética depende o sucesso de reprodução e adaptação de populações de plantas cultivadas e sua análise permite uma abordagem extremamente precisa das dinâmicas da agrobiodiversidade em longo prazo. Porém, a diversidade genética é, por enquanto, um indicador culturalmente distante das realidades locais, de custo elevado e ainda de pouca visibilidade para os agricultores, políticos e pesquisadores de outras áreas. No entanto, vários

trabalhos indicam que a diversidade nomeada pelas populações locais reflete em larga medida essa diversidade genética1, o que realça a consistência das formas locais de conhecer e reconhecer a diversidade agrícola. Recentes sínteses evidenciam o interesse de indicadores do registro do sensível. A síntese de Jarvis et al. (2008) sobre a diversidade dos principais cultivos manejada em oito países apóia-se no uso de apenas dois indicadores, riqueza (número de espécies presentes) e ocorrência (evenness), que reflete a distribuição quantitativa das espécies ou variedades entre agricultores. São indicadores simples, aparentemente, de serem levantados e ‘socialmente accessíveis’, que permitem planejar ulteriores abordagens de cunho genético. O trabalho mais recente de Last et al. (2014) menciona a escolha desse mesmo grupo de indicadores por uma plataforma composta de cientistas e atores de vários horizontes (representantes de agricultores e de consumidores, políticos etc.). Foram considerados como acessíveis e relevantes: (i) o número de espécies cultivadas por agricultor (Crop Species Richness – CSR), (ii) a diversidade de cultivares por cultivo (CCD), seja a relação entre o número total de acessos2 ou o número de espécies (CSR) presentes, e (iii) a porcentagem de variedades locais (landraces) por agricultor. Apesar dos dois estudos versarem sobre objetos diferentes – o principal cultivo alimentar em Jarvis et al. (2008) e o número total des espécies de populações espontâneas ou cultivadas em Last et al. (2014) –, eles compartilham do mesmo núcleo metodológico, ao alcance dos interessados na implementação de um esquema de monitoramento da agrobiodiversidade. Propomos aqui, a partir de um inventário da agrobiodiversidade realizado em duas localidades, Croa e São Pedro, da região de Cruzeiro do Sul (Acre), entre 2007 e 2009, aportar elementos metodológicos à questão do monitoramento da agrobiodiversidade e fornecer uma linha-base da diversidade agrícola presente. Com base nos

Ver, no caso da mandioca, Elias et al. (2004); Emperaire et al. (2003); Faraldo et al. (2000); Peroni (2004); Peroni et al. (2007). O termo de acesso se refere aqui às variedades presentes, de origem comercial ou local.

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indicadores de riqueza e de ocorrência, desenvolvemos duas abordagens: uma qualitativa, sobre o significado do instrumento ‘lista ou inventário de plantas’, ressaltando a necessidade de construir um diálogo entre nomenclaturas científicas e local e de definir o campo de interpretação de uma e outra; e uma quantitativa, que visa, a partir de diversos métodos, entender a amplitude e a estrutura da riqueza inventoriada e suas principais características. No entanto, o levantamento da riqueza dá conta apenas de uma imagem fixa e não do turn-over de variedades e espécies, sem que esse último signifique obrigatoriamente uma perda de diversidade. Na sua vertente aplicada, a abordagem visa, a partir de dados localmente enunciados, formular questões e resultados, a serem discutidos localmente e nas instituições que atuam junto à agrobiodiversidade.

UM QUADRO REGIONAL: BORRACHA E AGRICULTURA NO ALTO JURUÁ A história agrícola do alto Juruá, de Cruzeiro do Sul até a fronteira peruana, entremeia dois registros culturais, o indígena e o mais recente, de um século e meio, dos seringueiros. Os dois combinam, em seu sistema produtivo, agricultura e extrativismo, como é descrito a seguir, a partir dos dados de Almeida et al. (2002), Coffaci de Lima (2002), Mendes (2002) e Valle de Aquino e Piedrafita Iglesias (2002). A borracha tem sido explorada a partir dos anos 1850: milhares de nordestinos foram recrutados para trabalhar na floresta sob o controle dos seringalistas. Os Katukina e os Kaxinawá, de línguas pano, foram também vítimas da borracha. Perseguidos nas suas terras, exterminados, dizimados pelas doenças, alguns dos sobreviventes, na impossibilidade de manter sistemas produtivos tradicionais fundados sobre a agricultura e a caça, tornaram-se, nos anos 1920, seringueiros, enquanto outros se refugiaram a montante dos afluentes do Juruá. Os Ashaninka, chegados provavelmente nos anos 1940 do Ucayali e do Tambo na Amazônia peruana, mantiveram um sistema produtivo baseado na borracha e na agricultura (Mendes, 2002).

O mercado da borracha ampliou-se até 1912, ano do desmoronamento do preço do produto amazônico frente à concorrência das plantações asiáticas. As estratégias dos seringueiros diversificaram-se então: alguns foram explorar outros seringais, outros permaneceram sobre suas estradas e desenvolveram uma agricultura voltada para o consumo da unidade doméstica, outros ainda se instalaram na vizinhança da cidade de Cruzeiro do Sul, onde, a partir dos anos 1920, se desenvolveu uma pequena agricultura comercial. Os patrões também diversificaram suas atividades comerciais, combinando produtos extrativistas e agrícolas, como “milho, mandioca, feijão, arroz, cana-de-açúcar, tabaco, algodão, café, carne-seca, cacau, óleo de copaíba, oléo de andiroba e jarina” (Almeida et al., 2002, p. 119). Na Segunda Guerra, com o bloqueio das vias marítimas para a Ásia, a exploração da borracha amazônica foi incentivada. O mercado se organizou sob o controle do Estado. Foi o período dos soldados da borracha e de uma segunda leva de migrantes do Nordeste. A preciosa borracha absorveu, como antes, o essencial da mão-de-obra. Mas, nesse sistema controlado pelo Estado, os seringueiros tiveram o direito de consagrar um dia por semana a suas atividades agrícolas (Almeida et al., 2002). Esse ciclo da borracha durou apenas alguns anos. A seguir, frente às importações da borracha malaia, o governo subsidiou uma produção nacional oriunda da exploração florestal na Amazônia e de plantios no estado de São Paulo. A atividade agrícola foi se ampliando, principalmente com a produção de farinha de mandioca, base da alimentação do seringueiro e do barracão do seringalista. Com o fim dos subsídios, em 1986, e a queda do preço da borracha, em 1993, os patrões aumentaram as pressões sobre os seringueiros, que se organizaram para reveindicar sua autonomia econômica e social e seus direitos sobre a floresta e recursos dela. O movimento foi marcado tragicamente pelos assassinatos de Wilson Pinheiro, em 1980, e de Ivair Igino e Chico Mendes, em 1988, mas a luta levou à criação, em 1990, da primeira Reserva Extrativista, a do alto Juruá. Pouco depois, o preço da borracha desabou e apenas alguns projetos

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governamentais, apoiados em inovações tecnológicas (folha fina) e em mercados de nicho (couro vegetal), permitiram a sobrevivência da atividade, enquanto o componente agrícola do sistema de produção se ampliava. Na escala regional, a agricultura do alto Juruá é caracterizada por um ambiente ecológico amazônico, práticas de queima e pousio, um funcionamento econômico do tipo familiar, com baixos insumos técnicos e alta diversidade biológica, uma base de plantas cultivadas indígenas, com aportes trazidos pelos seringalistas, missionários e comerciantes, saberes e práticas resultantes de elementos indígenas e nordestinos (Emperaire et al., 2012; Velthem, 2007). Hoje, a crescente influência dos centros urbanos induz a inovações agrotécnicas (espécies madereiras, frutíferas enxertadas ou adubo verde) e estimula atividades comerciais destinadas ao abastecimento local (Katz, 2010) ou, no caso da famosa ‘farinha de

Cruzeiro do Sul’, à exportação. Nesse panorama regional, as duas localidades estudadas mostram dinâmicas agrícolas diferenciadas.

AS LOCALIDADES DO CROA E DE SÃO PEDRO Croa (7° 44’ S/72° 33’ W) e São Pedro (7° 43’ S/72° 44’ W), ambas localidades situadas a menos de 20 km de Cruzeiro do Sul (Figura 1), correspondem a dois modelos de ocupação territorial: o primeiro com moradias dispersas ao longo do Croa, afluente do Juruá; o segundo resulta de uma colonização agrária ao longo da BR-364, com o desenvolvimento de um pequeno núcleo urbanizado. No Croa, o contexto fundiário é de uma fraca pressão sobre a terra e de uma diversificação das estratégias familiares, enquanto em São Pedro observa-se uma degradação das terras no entorno do povoado e a abertura de novos ramais, cada vez mais remotos, em áreas de floresta.

Figura 1. Mapas das localidades estudadas indicando as dinâmicas de ocupação de 1986 a 2007.

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Nos dois casos, a mandioca ou ‘roça’, principal cultivo, é destinada à produção da farinha de Cruzeiro do Sul, elemento central da alimentação cotidiana e produto altamente valorizado em escala regional e nacional. Não há relações particulares que liguem Croa a São Pedro. Com o enfraquecimento do mercado do látex, a agricultura se desenvolveu nas margens do Croa nos anos 1960-1970. Após uma fase de ocupação livre das terras, durante a qual os que primeiro chegaram se instalaram nas melhores, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) interveio e atribuiu a cada família um lote de 500 m de frente ao rio e 2.000 m de fundo. Em 2005, foi solicitada a criação de uma Reserva Extrativista para garantir aos habitantes um território de 113.000 ha, encaixado entre colônias do INCRA, BR364, propriedades privadas, terra indígena e unidade de conservação, ao sul. A comunidade do Croa compreende 40 famílias, oriundas de trajetórias diversas. Consta de um ‘centro’ com algumas casas e de habitações dispersas ao longo de 5 km. As estratégias econômicas são múltiplas. O epicentro da comunidade é apropriado fortemente por um grupo familiar que aposta, como fonte de renda, em turismo de cunho ‘xamânico’, amparado no daime (Banisteriopsis caapi e Psychotria sp.). Outro grupo familiar investe mais na venda de artesanato de fibras. Contudo, a maior parte dos habitantes vive da agricultura voltada para o autoconsumo e uma pequena comercialização de suas produções, sendo que alguns vivem da criação de gado. A multiplicidade de estratégias de utilização dos recursos e das terras cria tensões e leva a certo distanciamento entre unidades familiares (Souza Seixas, 2008). São Pedro resulta de uma colônia agrícola criada nos anos 1960. Seus 200 habitantes são, na maior parte, descendentes de seringueiros advindos dos seringais próximos. Da BR-364, que atravessa o vilarejo, saem estradas secundárias, os ramais. Os mais antigos situam-se perto de São Pedro, os mais recentes e mais distantes,

como os de Arco Íris e de Buritirana, estendem-se para as zonas ainda florestais (Figura 1). A esses dois tipos de ramais correspondem duas situações agroecológicas. Os antigos ramais, próximos da BR-364, via hoje asfaltada, são caracterizados por uma saturação do espaço disponível para abrir novos roçados, devido à expansão de pastagens plantadas e ao esgotamento dos solos. As parcelas que produziam antes mandioca, arroz e milho estão invadidas hoje pela pluma (Pteridium aquilinum). Nessa situação, alguns agricultores apostam no uso de uma roçadeira e de adubos verdes para restaurar a fertilidade. Eles diversificam também suas estratégias com plantações de frutíferas (limão enxertado), de espécies maderáveis ou de forrageiras. Nos novos ramais, os assentamentos dispõem de uma reserva de terras férteis e investem na produção de farinha para o comércio, apesar das dificuldades de acesso ao mercado de Cruzeiro do Sul (Eloy e Emperaire, 2011; Emperaire et al., 2012). As duas localidades compartilham uma mesma história regional, porém com perfis diferenciados.

MÉTODO DE CAMPO A unidade de base dos levantamentos foi a doméstica, na qual inventariou-se a totalidade das plantas cultivadas. Por planta cultivada entendemos qualquer planta situada em um espaço transformado (roçado, quintal, horta etc.) cuja presença é intencional. São assim consideradas como cultivadas tanto as que são semeadas ou transplantadas quanto as que nasceram no local (ingás, goiabeiras etc.) e que intencionalmente foram conservadas, ou ainda as que resultam de uma ocupação anterior (cuieira, castanheira etc.). Vinte e cinco agricultores3 do Croa participaram da pesquisa (trabalhos de Seixas em 2006 e 2007), 19 de São Pedro (trabalhos Emperaire e Eloy em 2006, 2007, 2008 e 2009), três do ramal de Buritirana e cinco do ramal de Arco Íris (trabalhos de Eloy em 2009), havendo um total de 27 levantamentos para a região de São Pedro. O pequeno número de levantamentos nos ramais novos não permitiu

A seguir, utilizamos o termo ‘agricultor’ no sentido amplo, seja homem e/ou mulher, o responsável pela unidade doméstica.

3

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que fossem analisados de modo separado, desse modo, eles foram agregados aos levantamentos de São Pedro. A diversidade é, na sua quase totalidade, representada por variedades locais (landraces). As plantas consideradas como introduzidas são uma variedade de mandioca, a panati, difundida pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) em razão de sua alta produtividade e sua resistência à podridão (Melo Moura e Teixeira Cunha, 1998), as forrageiras, uma variedade de limão, que é enxertada, e espécies para adubo verde. Cada estadia no campo foi iniciada por uma reunião com os agricultores. Foram expostos os objetivos e as modalidades de realização da pesquisa, o que lhes permitiu decidir se participariam ou não do estudo. Outras pessoas, vizinhos ou famíliares, se agregaram depois à pesquisa. A base metodológica foi a do projeto Populações, Agrobiodiversidade e Conhecimento Tradicional Associado (PACTA, 2005), com o levantamento das histórias de vida, das genealogias, dos espaços manejados (roçados, quintais etc.), do recenseamento nesses diversos espaços de todas as plantas cultivadas e de suas origens, além da constituição de uma base documental por fotografias, sem coleta de amostras. A unidade de base informativa foi a presença de uma planta em um determinado tipo de espaço situado em uma unidade doméstica x. O inventário abrangeu a totalidade das plantas cultivadas, considerando a agrobiodiversidade como uma unidade funcional global nas suas múltiplas dimensões (alimentar, econômica, fundiária, estética, afetiva, recreativa, patrimonial etc.). Essa abordagem tem dois ônus, o de ocultar a dimensão temporal e cumulativa da

construção da agrobiodiversidade em um lugar e o de equalizar os valores de uso das plantas, dando o mesmo peso a cada uma, levando apenas em conta um conjunto de recursos fitogenéticos na sua globalidade.

ANÁLISE DOS DADOS A análise se fundamenta no postulado de que a presença de um único indivíduo de uma determinada planta cultivada é reveladora do esforço de conservação da agrobiodiversidade realizado pelo agricultor. Sua presença potencializa a conservação do recurso nas escalas individual ou coletiva mediante a circulação de mudas ou sementes, isso independentemente de outras variáveis atreladas à planta, como sua distribuição espacial, sua temporalidade (anual, plurianual ou perene) ou sua abundância (números de indivíduos). A primeira etapa, qualitativa, foi de estabelecer a lista das plantas cultivadas com suas identificações botânicas4, etapa aparentemente trivial, mas que levanta a questão das correspondências entre dois registros de saberes, local e científico. Os dados quantitativos, fundamentados no indicador de riqueza de táxons5 (aqui as plantas cultivadas tais como foram denominadas pelo entrevistado), foram analisados, de modo explorátorio, segundo vários métodos: estátistico de base6, de ecologia quantitativa e de análise estrutural, com o intuíto de (i) estimar a riqueza total presente e (ii) evidenciar diferenças entre as localidades, grupos de plantas e grupos de agricultores que incorporaram, ou não, inovações agrotécnicas; (iii) analisar a estrutura da matriz de plantas cultivadas – agricultores em termos de distribuição das plantas raras entre agricultores;

A identificação das plantas em nível específico foi realizada a partir das bases de dados disponíveis na internet (Kew, Missouri Botanical Garden etc.). Aplicamos a nomenclatura de The Plant List (2013). Para dois grupos de plantas, seguimos outras fontes: (i) para as pimentas do gênero Capsicum, consideramos como próximas as espécies Capsicum frutescens, C. chinense e C. annuum (Ibiza et al., 2011); (ii) para os Citrus, a nomenclatura seguida é de Mabberley (1997). 5 Vários autores utilizam o conceito de etnovariedade, mas, ao nosso ver, este opõe variedade e etnovariedade, enquanto o reconhecimento das duas se apóia no registro do perceptível. Outra forma de denominação é dada pelo termo morfótipo, que designa a representação padrão de uma dada categoria de seres vivos. Por fim, um táxon é uma entidade classificatória independente do seu nível; optamos por esse termo, aqui sinônimo de planta cultivada, sem que essa denominação seja plenamente satisfatória. 6 Todos os testes foram realizados para a probabilidade p = 0,05. 4

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(iv) identificar, a partir de uma análise de rede, os núcleos (cores, em inglês) de maior coesão da agrobiodiversidade.

A LISTA DAS PLANTAS: UM CONJUNTO HETEROGÊNEO Lembramos que os nomes das ‘plantas cultivadas’ – expressão a rigor redundante, visto que qualquer ‘planta’ resulta do ato de ‘plantar’, na perspectiva dos agricultores – são constituídos de um termo de base e um determinante (Friedberg, 1997), assimilados aqui às noções locais no Acre de ‘tipo’ e ‘qualidade’ (Emperaire, 2002). A definição do termo de base é atrelada à noção “de nível de abstração de base para o qual se obtém uma informação máxima com o esforço cognitivo mínimo” (Rosch et al., 1976 apud Friedberg, 1986). Friedberg (1997, p. 10) ressalta que “frequentemente, para essas plantas [cultivadas], os termos de base correspondem à espécie e os determinantes, às variedades; quer dizer que a diversidade aqui se situa no nível infraespecífico”. No entanto, os recortes dados pelos nomes locais não operam no mesmo nível que os da taxonomia científica, e os valores informativos outorgados a essas formas de dar conta da diversidade das plantas, ou de outros grupos, são dificilmente comensuráveis (Friedberg, 1997; Grenand, 2008). De modo pragmático, respondendo aos objetivos do artigo, ressaltamos dois aspectos. Por um lado, não há sempre correspondência entre os níveis de espécie e variedade e os de tipo e qualidade. Por outro, o grau de acurácia mobilizado nas denominações das plantas cultivadas não é uma constante, ao contrário da classificação botânica. Varia segundo a planta, seu uso, sua importância cultural ou produtiva. Assim, uma lista de nomes locais com suas respectivas identificações científicas coloca em paralelo valores informativos referentes a duas formas de expressão da diversidade biológica: uma local, flexível e que incorpora vários significados, outra apoiada em normas

estandardizadas e hierarquizadas (família, gênero, espécie, eventualmente subespécie ou variedade). Dar conta da riqueza da diversidade das plantas cultivadas segundo a perspectiva local e de sua tradução em um sistema de referência que permita abordagens comparativas implica entender essa distância (Oliveira, 2012). Foram 2.977 informações de base (presença de uma determinada planta em um dado espaço cultivado) obtidas junto aos 52 agricultores. A primeira etapa de construção da matriz presença-ausência foi homogeneizar os nomes das qualidades com seus prováveis sinônimos (graúda/ grande; amarela/amarelinha; de cabaça/de cuia etc.) para um mesmo tipo (Apêndice). A seguir, diferenciamos o grupo das plantas que, quase sempre, é nomeado até o determinante (a qualidade) das plantas, cuja identificação se limita muitas vezes ao nome de base (o tipo). O caso das plantas ornamentais é singular, pois, no geral, elas são apenas referenciadas por sua categoria de uso (flor, enfeite etc.) e não em decorrência da própria planta. Desenha-se, assim, na perspectiva local, um gradiente informativo decrescente no enunciado dos nomes das plantas cultivadas. Consideramos dois grupos: o de diversidade alta (A) é constituído das plantas reconhecidas até o nível da qualidade com denominações bastante estáveis (abrange as 71 qualidades de mandioca, bananeira, cana, feijão, coqueiro e pimenta, todas plantas centrais na alimentação ou nas atividades econômicas); o outro grupo, o de diversidade baixa (B), é formado dos 267 outros vegetais cultivados representados por uma ou poucas qualidades. A maior parte do valor informativo do nome está embutida no nome de base ou tipo (urucu, abacate, caju etc..) e há uma certa variabilidade nos nomes das qualidades, quando essas são mencionadas. O grupo B incluiu as 75 plantas ornamentais7, das quais 27 foram nomeadas em nível de tipo e 48, apenas categorizadas pela sua função, enfeite, flor, planta ou como ‘sem nome’.

Os levantamentos de campo indicaram um total de 150 plantas ornamentais, com prováveis sobreposições, entre as quais 75 não puderam ser identificadas nem em nível de família, sendo descartadas da análise.

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Dessa etapa, resulta uma matriz de 52 agricultores e 338 plantas cultivadas, repartidas nos grupos A e B, com 228 nomes de base diferentes e 110 determinantes8, pertencendo a 263 espécies botânicas (218 gêneros de 72 famílias). Dados que podem ser comparados ao que é conservado nos bancos de germoplasma da EMBRAPA/ Recursos genéticos e biotecnologia, cujo acervo é de 787 espécies, pertencendo a, aproximadamente, 300 gêneros (Bustamante e Ferreira, 2011).

RIQUEZA ESPECÍFICA E ESFORÇO DE AMOSTRAGEM A riqueza específica é um indicador simples que se refere ao número de espécies presentes em uma localidade, aqui representada por uma unidade produtiva. Foram estabelecidas curvas de acumulação9 dos táxons levantados (Magurran, 2013, p. 89), as quais permitem avaliar o esforço de captura de informações: quantas novas espécies, caso aumente a amostragem? A partir de quando se pode

avaliar que a amostragem é satisfatória? Qual é a estimativa da riqueza? Os resultados indicam (i) uma riqueza total observada, compreendida entre 320 e 356 táxons, (ii) uma diferença significativa de amplitude da riqueza entre Croa e São Pedro, (iii) a importância de táxons de baixa frequência 1 ou 2, com unicatas e duplicatas que representam mais de 40% dos táxons levantados (Tabela 1). Os valores dos estimadores permitem avançar a hipótese de uma riqueza total compreendida para as 52 amostras entre 384 e 505 táxons, ou seja, acima de 400 táxons. Fazendo a aproximação de que a agrobiodiversidade tem o mesmo comportamento em termos de riqueza do que a diversidade biológica, pode-se considerar que a amostragem realizada abarca de 60 a 85% da riqueza, segundo o estimador, a localidade e o grupo A, B ou o total. O caráter limitado da amostragem se reflete nas curvas de acumulação geradas com o algoritmo Mao Tau (Colwell et al., 2004): em decorrência da alta frequência

Tabela 1. Numéro de táxons levantados em São Pedro e no Croa, para os grupos A, B e o total, segundo diversos estimadores (dados software EstimateS7.5.1). Legendas: N = número de agricultores; S = número de táxons; Sobs = número de espécies observadas; Unicatas ou Duplicatas = número de espécies encontradas apenas em 1 ou 2 amostras. N/S

Sobs Mao Tau [95 %]

25/232

232 217,8-246,2

73 (31 %)

38 (16 %)

São Pedro 27/271

271 254,5-287,5

98 (36 %)

Croa

Unicatas (%) Duplicatas (%) Chao2 [95 %]

jacknife1

jacknife2

Bootstrap

296,7 270,7-340,2

302,1

335,7

264,5

48 (18 %)

364,4 331,0-416,3

365,4

413,4

313,7

A

52/71

71 63-79

20 (28 %)

9 (13 %)

89,6 78,2-119,5

90,6

101,4

79,8

B

52/267

267 250,9-283,1

85 (32 %)

39 (14 %)

354,5 321,7-407,1

350,4

395,3

304,5

Total

52/338

338 320-356

105 (31 %)

48 (14 %)

447,3 409,6-504,9

441,0

496,7

384,3

Não foram consideradas as subvariedades, por exemplo, mandioca branquinha de talo roxo. O software EstimateS 7.51 (Colwell, 2005) calcula a riqueza observada, com uma randomização das amostras, e a riqueza estimada segundo método de reamostragem a partir de algoritmos de vários estimadores. Os estimadores Chao 2 e jacknife 1 e 2, aqui utilizados, são fundamentados sobre a ocorrência dos táxons de baixa frequência, os unicatas ou duplicatas representados apenas em uma ou duas amostras. Sobre as equações dos estimadores, ver o guia de uso de EstimateS (s.d.). O software Ecosim (Entsminger, 2014) estabelece curvas de rarefação que não foram utilizadas aqui.

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dos táxons raros, salvo para as plantas do grupo diversidade A de curva assintótica, as outras curvas não apresentaram assíntotas (Figura 2).

A DIVERSIDADE GLOBAL, POR LOCALIDADE E POR CATEGORIA DE USO Das 338 plantas, 232 estão presentes no Croa e 271 em São Pedro. A diferença entre as proporções de plantas dos grupos A e B nas duas localidades está no limite de significância10. As duas comunidades apresentam um grau

de endemismo importante (nessa escala de análise), com 29% (8+59) dos táxons próprios ao Croa e 39% (74+32) a São Pedro, o que se podia inferir da proporção de unicatas e duplicatas. A alta proporção de táxons próprios a São Pedro é principalmente devida a táxons do grupo A (Figura 3). Cada agricultor cultiva entre 1 e 99 táxons, com uma média de 40,4 (33,9-46,8) e uma mediana de 41. Há uma diferença significativa entre as duas localidades apenas para o número de táxons de tipo A mais elevado em São Pedro do que no Croa11.

Figura 2. Curvas de acumulação para a riqueza total*, a dos grupos A e B e a das localidades São Pedro e Croa (dados software EstimateS7.5.1). * O intervalo de confiança foi representado apenas para a curva A+B (p = 0,05).

Figura 3. Distribuição das plantas cultivadas entre as localidades Croa (trama vertical) e São Pedro (trama horizontal), segundo o grupo de plantas A (cinza) ou B (branca).

Desvios reduzidos: grupo A |ε|= 1,964, grupo B |ε|= 1,929. Teste de Mann-Whitney para o grupo A (z = 3,3974; p = 0,00068; U value = 151,5); B (z = 0,7417; p = 0,4539; U value = 296,5).

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No plano funcional, a riqueza se decompõe em 175 plantas alimentícias, 71 do grupo A, com as roças ou mandiocas (22), as bananas (15), as pimentas (14), os coqueiros (8), os feijões (7), as canas (5), e 61 frutíferas e 43 outros cultivos, como carás, batatas-doces e outras. Além das alimentícias, foram recenseadas 57 medicinais e plantas protetoras, 75 ornamentais, 12 para uso técnico, 3 para adubo verde, 8 forrageiras e 8 madeiráveis. A distribuição por categoria de uso dessa agrobiodiversidade é similar nas duas localidades12. As três últimas categorias respondem a dinâmicas de diversificação das atividades iniciada há uns quinze anos. Dezoito dos 27 agricultores de São Pedro e 13 dos 25 do Croa desenvolveram, em graus diversos, novos sistemas de plantios. Com uma riqueza média dos agricultores de perfil ‘inovador’ e de perfil ‘tradicional’ de, respectivamente, 47,3 e 33,8 em São Pedro e 44,8 e 22,2 no Croa, diferenças no limite da significância13, verifica-se que a introdução de novas plantas não se dá somente em contexto de baixa diversidade. No entanto, apenas pesquisas focadas sobre a temática da inovação permitiriam consolidar essas observações e contextualizá-las de modo mais aprofundado nas estratégias produtivas e comerciais dos agricultores14.

ANÁLISE DA ESTRUTURA DA MATRIZ Uma outra série de perguntas visa entender como se estrutura a riqueza das plantas cultivadas entre os agricultores. As plantas raras são elementos constitutivos da diversidade presente nos agricultores que manejam a mais alta diversidade, ou elas fazem parte de amostras de riqueza mais reduzida? A estrutura da riqueza presente no Croa e em São Pedro varia significativamente ou não? Serão as dinâmicas regionais ou as mais locais que determinam o perfil da agrobiodiversidade em um lugar específico?

O termo de aninhamento, tradução de nestedness, refere-se globalmente ao grau de ordem/dispersão de uma matriz espécies-localidades (aqui táxons – agricultores). O conceito de aninhamento e as métricas resultantes provêm da ecologia e foram inicialmente elaborados para correlacionar a distribuição de espécies com variáveis ecológicas, em particular em situações de fragmentação da paisagem. A análise visa entender se um conjunto de espécies presentes em uma localidade constitui uma subamostra de um conjunto mais amplo – no caso de um aninhamento forte – ou se sua composição é determinada por variáveis locais (Ulrich, 2008). A quantificação global do grau de ordem da matriz é dada pela sua temperatura (T), que varia entre 0 e 100: desde conjuntos extremamente estruturados – congelados – até valores altos, que caracterizam uma dispersão alta das plantas, aqui entre agricultores. O conceito de temperatura como indicador é fundamentado sobre a “hipótese de ordem biogeográfica que é que ausências nas áreas da matriz predominantemente ocupadas [com presenças] e ocorrências em áreas onde os vazios [com ausências] predominam são menos prováveis (mais informativos) que as respectivas ocorrências ou ausências” (Ulrich et al., 2009, p. 9). Em outros termos, a ausência de um táxon de frequente ocorrência junto a um agricultor que maneja uma alta diversidade ou a presença de um táxon de baixa frequência junto a um agricultor que maneja uma baixa riqueza são mais informativas do que suas respectivas presença ou ausência. O princípio da avaliação da temperatura repousa sobre uma reordenação da matriz espécies-localidades, de modo a obter uma temperatura mínima, ou seja, sua organização máxima. O cálculo, com modelos nulos, da probabilidade dessa matriz reordenada é oriundo de um processo aleatório de atribuição das

Teste χ2 com agrupamento das categorias de frequência < 5 (Qobs = 7,9603, p = 0,437, ddl = 8). Teste de Mann-Whitney para São Pedro (z = 1,9288; p = 0,053; U value = 43) e para Croa (z = 2,0397; p = 0,041; U value = 40). Teste de Student (Qobs = 2,263, p = 0,039, ddl = 14,07 para São Pedro e Qobs = 2,31, p = 0,030, ddl = 22,41 para Croa). 14 A questão da inserção comercial dos agricultores não foi abordada nas entrevistas. No entanto, o mercado de Cruzeiro do Sul, muito ativo, oferece um amplo leque de produtos de origem local: 96 espécies alimentícias e duas medicinais (Katz, 2010) foram recenseadas. Dessas, 62 estão presentes nos levantamentos e nove, presentes no mercado, nove não foram levantadas (Bactris cf. concinna, Eruca sativa, Poraqueiba sericea, Sechium edule, Garcinia cf. brasiliensis, Caryocar sp., Solanum aethiopicum, Solanum melongena, Syzygium aromaticum). 12 13

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presenças para uma mesma densidade de presenças na matriz (Guimarães Jr. e Guimarães, 2006). O segundo indicador, independente do tamanho da matriz, ao contrário do primeiro, é o grau de aninhamento. Ele visa descrever “um padrão no qual as espécies presentes em localidades de baixa diversidade são subconjuntos de espécies das localidades mais ricas em espécies” (Ulrich e Almeida-Neto, 2012, p. 2), o que escrevem também Almeida-Neto et al. (2008). A métrica do Nestedness metric based on overlap and decreasing fill (NODF) tem como valor máximo 100 para uma matriz perfeitamente aninhada (o contrário da temperatura, que seria de 0). Permite entender qual é a distribuição das plantas entre agricultores: se as de baixa frequência fazem parte ou não do conjunto das plantas dos agricultores que manejam uma alta diversidade ou se são restritas aos outros agricultores. Temperatura e aninhamento, duas métricas diferentes, foram calculadas respetivamente com o software Binmatnest (Rodríguez-Gironés e Santamaría, 2010, 2006) e o módulo NODF (Almeida-Neto et al., 2008; Guimarães Jr. & Guimarães, 2006).

conjuntos de plantas mais ricos têm como subconjuntos os de riqueza mais baixa. Em outros termos, as plantas cultivadas de baixa frequência não se encontram em nichos especializados, fazendo parte do perfil de plantas manejadas pelos agricultores mais ricos em diversidade. A contribuição do grupo B e do Croa, pelos valores baixos que apresentam, é importante nessa configuração, enquanto o grupo A e São Pedro têm uma tendência para um perfil mais especializado para as plantas mais raras, mas a comparação é limitada pelos tamanhos diferentes das matrizes.

Aninhamento Os valores dos NODF, significativamente superiores aos valores dos modelos nulos (Tabela 3), permitem inferir a incorporação da diversidade de plantas das localidades mais pobres em diversidade pelos agricultores que detêm a maior diversidade. Em outros termos, como o vimos com T, a distribuição das plantas cultivadas raras não é restrita a agricultores que teriam um perfil especializado com poucas plantas. Comparamos o aninhamento de dois conjuntos de plantas centrais na alimentação e na obtenção de renda econômica, as mandiocas e as bananeiras. Os valores de N são altos, salvo para as mandiocas no Croa, levando à conclusão de que as ‘roças’ ou as ‘bananeiras’ de baixa frequência são um subconjunto das de alta frequência; em outros termos, as variedades raras são cultivadas pelos agricultores generalistas, segundo as palavras de Cavechia et al. (2014), cujos resultados, a respeito das variedades de mandioca cultivadas na costa atlântica, vão

Temperatura As temperaturas das matrizes apresentaram valores significativamente diferentes dos modelos nulos que geram temperaturas mais elevadas, apontando, assim, para um grau de aninhamento (Tabela 2). A temperatura da matriz 52 agricultores x 338 táxons é baixa, de 10,76, para 11,33% de presencias. Pode-se inferir que os locais mais ricos abrangem a riqueza dos locais menos ricos, e que os

Tabela 2. Temperaturas das matrizes espécies-localidades e de três modelos nulos (dados do software Binmatnest). Legendas: P = número de plantas cultivadas; A = número de agricultores; T = temperatura; N01, 2, 3 = modelos nulos; var = variância. Conjunto

P

A

T

N01

p-value

var.

N02

p-value

var.

N03

p-value

var.

Total

338

52

10,76

44,47

0,000

1,51

27,75

0,000

1,22

29,83

0,000

1,02

Croa

232

25

9,88

48,71

0,000

20,49

21,16

0,000

0,07

31,95

0,000

1,14

São Pedro

271

27

20,75

50,51

0,000

2,53

39,46

0,000

0,81

39,94

0,000

1,67

grupo A

71

52

14,74

38,59

0,000

0,05

29,46

0,000

0,36

30,88

0,000

7,11

grupo B

267

52

8,88

42,41

0,000

5,42

26,22

0,00

1,43

28,39

0,000

2,47

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Redes e observatórios da agrobiodiversidade, como e para quem? Uma abordagem exploratória na região de Cruzeiro do Sul, Acre

Tabela 3. NODF das matrizes espécies-localidades e comparação com os valores dos modelos nulos (software Aninhado, Guimarães Jr e Guimarães, 2006). Legendas: P = número de plantas cultivadas; A = número de agricultores; N = grau de aninhamento; N(Er) e N(Ce) = modelos nulos; p(Er) e p(Ce) = p-value. P

A

N

N(Er)

p(Er)

N(Ce)

p(Ce)

Total

338

52

24,47

12,98

0,00

16,90

0,00

Croa

232

25

35,57

17,21

0,00

22,28

0,00

São Pedro

271

27

26,38

17,93

0,00

21,51

0,00

Grupo A

71

52

25,81

15,03

0,00

19,46

0,00

Grupo B

267

52

24,84

12,72

0,00

16,89

0,00

Croa bananas

10

21

49,47

21,21

0,00

33,51

0,00

Croa mandioca

14

9

13,24

13,44

0,48

15,98

0,67

São Pedro bananeiras

14

19

61,58

29,86

0,00

38,51

0,00

São Pedro mandioca

19

25

43,68

26,90

0,00

33,52

0,00

ao encontro desses. Valores de N baixos teriam levado a concluir, ao contrário, que os agricultores especialistas incorporariam apenas uma parte restrita da diversidade manejada pelos generalistas. O cálculo do grau de aninhamento para dois grupos de plantas de primeira importância alimentar e econômica, as bananeiras e as mandiocas, indica um alto grau de aninhamento para as primeiras nas duas localidades e um perfil diferenciado para as mandiocas, com uma maior dispersão da diversidade de mandiocas no Croa, ou seja, com perfis mais individualizados.

ANÁLISE DE REDES A questão colocada nesta última parte é a da identificação do núcleo de plantas coeso sobre o qual a agrobiodiversidade repousa. Qual é o grau máximo de associação entre plantas? Uma resposta pode ser dada pela análise de redes. Fundamentada na teoria dos grafos e inicialmente aplicada ao campo da sociologia, essa análise e suas formalizações gráficas aplicam-se a objetos variados (transportes, relações diplomáticas, citações, redes sociais

etc.). Seu objetivo é evidenciar e caracterizar estruturas através da análise de relações, e não de categorias. A análise de redes já foi bastante aplicada à agrobiodiversidade, principalmente no que se refere às regras de circulação das plantas, em função de normas sociais ou de trajetórias de vida (Delêtre et al., 2011; Eloy e Emperaire, 2011; Emperaire e Oliveira, 2010; Labeyrie et al., 2014a, 2014b; Souza Seixas, 2008), os impactos genéticos dessa circulação (Thomas et al., 2012; Pautasso et al., 2013) ou para simulações de situações de vulnerabilidade (Cavechia et al., 2014; Pautasso, 2014). Um determinado táxon é representado por um vértice ligado aos outros táxons, presente junto a um mesmo agricultor por arestas. Essas conexões espelham as decisões de cada agricultor de manter um determinado conjunto de plantas na sua unidade produtiva. A rede total é formada pelos 52 conjuntos de táxons, conectados por plantas compartilhadas. Quatro redes foram analisadas separadamente (grupos A, B, do Croa e de São Pedro), com a finalidade de identificar partições nesses grupos de plantas15. As redes foram caracterizadas globalmente e o k-core identificado.

Vários algoritmos permitem identificar essas partições, repousando sobre tipos de redes (tamanho e densidade), objetivos e procedimentos diferentes, mas levando a resultados próximos. Optamos pela identificação de k-núcleos ou k-core que evidencia “a sub-rede máxima na qual cada vértice tem pelo menos um grau k [de conexão] na sub-rede” (Nooy et al., 2005, p. 70), ou seja, a sub-rede de maior conectividade interna. Os dados foram obtidos com o software Pajek (Nooy et al., 2005; Pajek, s.d.).

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As quatro redes são caracterizadas por densidades elevadas16, compreendidas entre 40 e 55%. O grau de centralização, mais alto para São Pedro-B, indica a variação entre as conexões observadas e a da figura de maior conectividade (forma de estrela). Esses dois parâmetros apontam para uma mesma estrutura geral das quatro redes, densas e centralizadas (Tabela 4).

A leitura do k-core pode ser explicitada a partir do caso do Croa-B, composto de 195 plantas. Nessa rede, há uma sub-rede formada de 87 plantas que apresentam, no mínimo, 85 conexões entre elas (k = 85). Esta subrede absorve 45% das plantas presentes no Croa-B. A rede formada por esse núcleo é representada na última linha da Tabela 5.

Tabela 4. Principais caractéristicas das redes conformadas pelas plantas cultivadas presentes nas localidades de Croa e São Pedro, para os grupos A e B (software Pajek). Localidade

Croa

Grupo

São Pedro

A

B

A

B

Número de vértices (riqueza)

39

193

63

208

Conexões realizadas

418

9636

917

8448

Densidade %

55

52

47

39

Grau de centralização

0,46

0,47

0,43

0,57

k-core max

17

85

25

59

Número e % de plantas no k-core max

18 (46,1%)

87 (45,0%)

30 (47,6%)

88 (42%)

Tabela 5. Representação das redes completas (I) e restritas ao k-core (II) para as plantas cultivadas no Croa e em São Pedro, para os grupos A e B com as categorias de uso e a frequência de ocorrência (tamanho do círculo) para as redes (II) (software Pajek). A Croa

B São Pedro

Croa

São Pedro

I - Rede completa

II - Rede do k-core max

Legenda (apenas para as principais categorias de plantas)

Grupo A: preto: mandiocas; branco: bananeiras; cinza escuro: canas; cinza claro: pimentas

Grupo B: branco: medicinais; preto: frutíferas; cinza: alimentícias

A densidade é o número de conexões realizadas sobre o número de conexões possíveis. A centralização é uma medida que se refere à rede na sua totalidade: mede a diferença entre o grau máximo possível de centralidade de um vértice e a centralidade realizada para cada vértice. Esse indicador contribue para caracterizar a estrutura global de uma rede.

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Redes e observatórios da agrobiodiversidade, como e para quem? Uma abordagem exploratória na região de Cruzeiro do Sul, Acre

A vizualização das redes permite inferir núcleos de plantas de maior conectividade de perfil diferente no Croa e em São Pedro, fundamentados principalmente nas bananeiras para o Croa e nas mandiocas para São Pedro, no que se refere aos táxons de grupo A e da importância das frutíferas, alimentícias e medicinais para os táxons do grupo B, dados que podiam ser parcialmento inferidos das frequências dessas plantas. A visualização das redes resultantes mostra que o núcleo da diversidade cultivada é composto de plantas de vários registros, e não apenas das mais visíveis em termos de produção. Trata-se principalmente das alimentícias da roça e do quintal – com as frutíferas –, medicinais e ornamentais para as plantas do grupo B e de mandiocas e bananeiras para as plantas do grupo A, com ênfase nas primeiras em São Pedro e nas segundas no Croa, além de pimentas, cana e feijão.

CONCLUSÃO Essa última parte consta de dois aspectos, o da análise da agrobiodiversidade, presente nas duas comunidades, e o de uma reflexão em escala maior sobre a necessidade de reforçar sinergias, e apoios, aos agricultores que produzem essa agrobiodiversidade. A primeira questão levantada é a da pertinência de um levantamento global da agrobiodiversidade presente. Essa escolha metodológica espelha escolhas e histórias de vida, além da presença do agricultor em um certo lugar, e não apenas suas opções econômicas. Retrata formas de circulação das sementes e plantas e laços sociais. A humanidade vive de calorias, mas também de cuidados e relações afetivas e estéticas com seu entorno bioecológico, e de relações sociais. Tal abordagem dá conta das contribuições práticas e cognitivas, muitas vezes diferenciadas, de todos os membros da unidade doméstica, já que abrange espaços manejados por homens e mulheres, adultos e crianças. Um de seus aportes

é permitir analisar dinâmicas globais da agrobiodiversidade em termos de emergência ou do enfraquecimento de categorias de plantas. Assim, a categoria das ornamentais responde por parte da integração de modelos urbanos de manejo das plantas, no caso da Amazônia brasileira17, enquanto o grupo das plantas protetoras perde em visibilidade. Abordar a totalidade da agrobiodiversidade dá conta do quadro de vida e do sistema agrícola das populações e, pela sua abrangência, permite comparações com levantamentos realizados em escalas menores. A seguir, ressaltamos a amplitude da agrobiodiversidade manejada no Croa e em São Pedro. Enquanto um levantamento focado sobre as mandiocas teria dado conta de uma diversidade reduzida de variedades em relação a outros grupos cuja planta central é também a mandioca, o levantamente mostra um leque de plantas cultivadas compreendidas entre 320 e 356 táxons, com 40 a 55% delas somente presentes junto a um ou dois agricultores. Um aspecto a ser aprofundado é o da relação entre inovação e conservação da agrobiodiversidade; por enquanto, não aparece uma disjunção forte entre esses dois perfis. A amplitude da diversidade manejada por agricultor no Croa e em São Pedro é similar, com intervalos de 25-47 e 38-50 plantas, apesar de essas duas comunidades terem dinâmicas agrícolas diferentes, sendo mais inseridas no mercado em São Pedro. A análise separada dos dois grupos de plantas, de alta ou baixa diversidade de variedades, evidenciou que a amostragem foi suficiente no caso das plantas de alta diversidade (as centrais, na alimentação e na economia), porém limitada no caso das plantas do grupo B (frutíferas, medicinais, outras alimentícias etc.). Os agricultores de São Pedro dão maior ênfase às plantas do grupo A, na sua maioria de inserção econômica, do que os do Croa. De modo global e na escala das comunidades, o estudo do anihamento mostrou que as plantas de mais baixa frequência encontram-se nos agricultores que cultivam a

No México, as relações dos humanos com o mundo espiritual são mediadas pelas flores e a categoria ornamental faz parte da cultura tradicional (ver, por exemplo, Hill, 1992).

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maior diversidade de plantas (como mostraram Cavechia et al., 2014, a respeito das mandiocas na mata atlântica). No entanto, no Croa, o perfil de manejo das mandiocas é mais especializado. Por fim, mostramos, pela análise das redes, que há um núcleo de plantas altamente conectadas constituindo o elemento central da diversidade manejada e que sua composição varia segundo o grupo A ou B de plantas e a localidade. Esses resultados, por mostrarem diferenças e não apenas uma imagem genêrica da agrobiodiversidade, reforçam a necessidade de levantamentos que abrajam a totalidade das plantas cultivadas. Em síntese, as duas comunidades estudadas apresentam perfis da diversidade agrícola diferentes na sua estrutura e composição, porém inseridos em uma história regional compartilhada e marcada na sua componente agrícola pela produção da conhecida ‘farinha de Cruzeiro do Sul’, o que dá destaque apenas às mandiocas, enquanto existe uma altíssima diversidade manejada. Do modo pragmático, a questão é de como tornar esses resultados operacionais para implementação de um sistema de sítios sentinelas? A resposta não é estatística, mas se encontra no campo de uma mobilização de uma rede de atores, agricultores, pesquisadores, agentes da extensão rural e escolas, cujo modelo de ensino dá ainda pouca atenção para o conhecimento do espaço local de vida e a transmissão desse conhecimento (Carneiro da Cunha e Elizabetsky, no prelo). Qualquer que seja sua escala, levantamentos, desde que tenham bases metodológicas compartilhadas, aportarão resultados que poderão ser interpretados em bases analíticas e de distribuição espacial e temporal da agrobiodiversidade, permitindo, assim, identificar processos, vetores de mudança e formas de resistência e/ou adaptação. Os resultados aqui apresentados vão ao encontro dos trabalhos de Last et al. (2014) e Jarvis et al. (2008) sobre o interesse de dispor de indicadores de manuseio simples, como a riqueza, que, no

entanto, permite uma série de questionamentos e análises. Discussões sobre a vulnerabilidade das espécies e variedades cultivadas devem ser acrescentadas a esses indicadores. Para implementar esses observatórios, um primeiro passo é inventariar os avanços já alcançados e sintetizá-los. Montar um esquema que dê conta da diversidade cultural presente no país, no entanto, torna-se um desafio imenso e alcançável apenas com participação das populações locais e de uma rede de pesquisadores, promovendo, assim, novas modalidades colaborativas de produção de conhecimentos.

AGRADECIMENTOS Ao Projeto Populações, Agrobiodiversidade e Conhecimento Tradicional Associado (PACTA); aos acordos entre o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/Universidade Estadual de Campinas e o Institut de recherche pour le développement (CNPqUNICAMP/IRD n° 492693/2004-8 e 490826/2008-3), cujos responsáveis são Mauro Almeida (UNICAMP) e Laure Emperaire (IRD), autorização do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) n° 139 (DOU 4/4/2006 e 26/03/2014)18. Aos financiamentos do CNPq, IRD, projeto “Des productions localisées aux Indications géographiques : quels instruments pour valoriser la biodiversité dans les pays du Sud ?” da Agência Nacional de Pesquisa (ANR-Biodivalloc), do Bureau des Ressources Génétiques (BRG), e do Programme Interdisciplinaire de Recherche Ville et Environnement do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS-PIRVE) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) para a bolsa de mestrado (2006-2008) de Ana Carolina Seixas. Agradecemos aos moradores que participaram da pesquisa: na comunidade do Croa, Gean Carlos de Oliveira, Davi Nunes de Paula, João Cordovez da Silva, Irene Chaves de Melo, Edélson de Melo Silva, José

O acesso às informações disponibilizadas nessa publicação para as finalidades de bioprospecção e desenvolvimento tecnológico necessitam de obtenção de Anuência Prévia e de assinatura de Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios junto às comunidades envolvidas e de autorizações específicas do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético ou outra entidade responsável.

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Francisco Menezes da Costa, Zuíla Melo da Silva, Jorge Nunes da Costa, Raimunda Lucas da Silva, José Francisco Silva da Costa, Eliana Silva da Costa, Elissandro Silva da Costa, Adriano Silva da Costa, José Bussons de Oliveira, Antônia Sueli Saraiva de Oliveira, José Alberto Saraiva de Oliveira, José Bussons de Oliveira Neto, Amâncio Mendonça de Oliveira, Maria de Castro Falcão, Maria José Falcão de Oliveira, Flavia Maria Falcão de Oliveira, Ildemberg Falcão de Oliveira, Josemberg Falcão de Oliveira, Francisco José Lopes de Almeida, Jurgleice Bussons de Oliveira, João Saraiva de Mendonça, Ceilson Garcia Mendonça, Maria Consuelo Silva do Nascimento, Francisco Romão Teixeira da Costa, Francisca Nazaré da Souza Costa, Vera Lúcia da Costa Oliveira, Ana Maria Lima da Costa, Anderson Cláudio Lima da Costa, Maria Elizabete de Souza, Anazildo Siqueira Cruz, Ana Cleide de Souza Silva, Adaíldo de Souza Cruz, Maria Helena Siqueira, Édson de Souza Silva, Raílda Ferreira da Silva, Antônio Elecildo Ferreira Gomes, Antonio Ferreira Gomes, Francinei Ferreira Gomes, Raimundo Eugênio Bezerra Frota, Terezinha Paulino de Souza, Rafael de Souza Araújo, Carlos Alberto da Penha, Graciene Marçal dos Santos, Elaine Santos da Penha, Omar de Oliveira Marçal, Alcineide Nascimento da Silva, Antonio Oliveira da Silva, Raimundo Lima dos Santos, Maria da Glória Farias; em São Pedro, Adalgiso Vieira, Aldenora Roque de Oliveira, Anailson Silva da Cruz e família, Elenilda Cruz da Costa, Francisco Amadeu, Francisca Barbosa do Nascimento, Francisco Casimiro de Oliveira, Francisco de Oliveira Costa, Genildo Silva Bezerra, Iolanda da Silva Nascimento, João Roque de Oliveira, Selene da Cruz, Jorge Cruz da Costa e família, José Paulo de Cavalcante Almeida, Luciene Gomes de Nascimento, Francisco de Assis, Manoel Correa, Maria Conceição de Souza, Pedro Freitas da Silva, Pedro Gonzaga da Cruz e família, Raimunda Nonata Bezerra da Silva, Rosa Gomes do Nascimento, Teresa Costa da Cruz e família; em Arco Íris, Gilmar Fereira da Silva, Pedro Caetano Bezerra, Marlí Ramalho da Silva, Maria Conceição de Souza,

Pedro Freitas da Silva, Luciene Gomes de Nascimento, Francisco de Assis, Francisca Carmen Nascimento, Edson Ferreira da Conceição; em Buritirana, Francinete de Almeida Bezerra, José Evilasio Tavares Medalha, Leonia de Almeida, Francisco Bezerra, Maria Luciane da Silva, Reginaldo Gomes da Silva, José Henrique da Silva.

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Redes e observatórios da agrobiodiversidade, como e para quem? Uma abordagem exploratória na região de Cruzeiro do Sul, Acre

Apêndice. Lista, por grande categoria de uso, das plantas cultivadas, levantadas junto a 52 agricultores da região do Croa e de São Pedro (município de Cruzeiro do Sul, Acre), entre 2006 e 2008. São indicados os nomes locais (tipo e qualidade), os nomes científicos das plantas e suas frequências (%) entre os 52 agricultores. Legenda: * = tipo ou qualidade de planta presente também nas vendas do mercado da cidade (Katz, 2010); Frq = frequência; n.i. = não identificado. (Continua) Nome do tipo Nome da qualidade Frq Nome científico Família Plantas alimentares Roças amarela /amarelinha/amarelona

25,0

arara

1,9

branquinha (de talo vermelho, de talo roxo)

36,5

caboclinha/caetana

34,6

chico angio

23,1

curimeia branca

19,2

curimeia preta

11,5

curimeia roxa

34,6

curimem doida

1,9

fortaleza/juriti

3,8

ligeirinha

1,9

mansibraba

36,5

manteguinha

5,8

maria-faz-ruma

17,3

milagrosa

9,6

mulatinha

5,8

olho roxo

1,9

panati

1,9

rasgadinha (amarela, branca, preta)/surubim

23,1

roxinha/roxa/canela de inambu

9,6

santa maria

9,6

santa rosa

3,8

Bananas* anão/baé

17,3

branca

1,9

chifre de boi/de bode

11,5

de seda/sapo

15,4

enfarta menino

1,9

grande

57,7

inajá

17,3

maçã

40,4

182

Manihot esculenta var. esculenta

Euphorbiaceae

Musa x paradisiaca var. paradisiaca

Musaceae


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 159-192, jan.-abr. 2016

APÊNDICE. Nome do tipo

(Continua) Nome da qualidade

Frq

ouro

3,8

pão-de-açúcar

3,8

prata

36,5

rosa

23,1

sapira

1,9

tosquina/peixe boi

5,8

três palmas

3,8

Pimentas* amarela

3,8

azeitona

1,9

banana

1,9

de cheiro

23,1

peito de moça

3,8

pinga de nego

1,9

rabo de galo/esporão de galo

3,8

rosa

40,4

comprida

1,9

de mesa

1,9

de tempero

13,5

malagueta

19,2

olho de peixe

9,6

pimentinha

5,8

Coqueiros* amarelo

30,8

anão/baé

30,8

anão gigante

1,9

gigante/da praia

13,5

palheiro

1,9

roxo

11,5

verde

9,6

vermelho

3,8

Feijões*

Nome científico

Família

Complexo Capsicum chinense frutescens - annuum

Solanaceae

Cocos nucifera

Arecaceae

Vigna unguiculata Phaseolus vulgaris

Fabaceae Papilionoideae

arigó

7,7

Vigna unguiculata

branquinho

1,9

Phaseolus/Vigna

caboclo

1,9

Phaseolus vulgaris

183


Redes e observatórios da agrobiodiversidade, como e para quem? Uma abordagem exploratória na região de Cruzeiro do Sul, Acre

APÊNDICE. Nome do tipo

(Continua) Nome da qualidade

Frq

Nome científico

mudubim de rama

5,8

Phaseolus/Vigna

preto

1,9

Phaseolus/Vigna

quarentão

13,5

Phaseolus/Vigna

roxinho

5,8

Phaseolus/Vigna

Canas* caiana

48,1

canafita/roxa

11,5

flo de cuba

5,8

pj

1,9

nordestina

1,9

Família

Saccharum officinarum

Poaceae

Alimentares outras Abobrinha*

1,9

Cyclanthera pedata

Cucurbitaceae

Açafroa*

42,3

Curcuma longa

Zingiberaceae

Agrião*

9,6

Spilanthes acmella

Asteraceae

Alface*

rainha de maio

3,8

Lactuca sativa

Asteraceae

Alfavaca/hortelã

26,9

Ocimum micranthum

Lamiaceae

Alho*

de fio

3,8

Allium sativum

Liliaceae

Araruta

1,9

Calathea allouia

Marantaceae

Arroz*

agulhinha/de três meses ligeiro/vermelhão

28,8

Oryza sativa

Poaceae

Batata*

-/branca

15,4

Ipomoea batatas

Convolvulaceae

Batata (chico-zé)

inglesa

1,9

Curcuma sp.

Zingiberaceae

Berdoega/nove-horas

-

5,8

Portulaca oleracea

Portulacaceae

Beterraba

-

3,8

Beta vulgaris

Chenopodiaceae

Café

camilon

1,9

Coffea canephora

Rubiaceae

Café

-/de sombra

23,1

Coffea arabica

Rubiaceae

Cebola*

de cabeça

1,9

Allium cepa

Liliaceae

Cebola*

de palha

59,6

Allium fistulosum

Liliaceae

Cenoura

-

1,9

Daucus carota

Apiaceae

Chicória*

-

32,7

Eryngium foetidum

Apiaceae

Coco dendê

-

17,3

Elaeis guineensis

Arecaceae

Coentro*

-

17,3

Coriandrum sativum

Apiaceae

Couve*

-/branco/chinesa/coqueiro/ folha rasgada/manteiga

55,8

Brassica oleracea

Brassicaceae

Cubiu

17,3

Solanum sessiliflorum

Solanaceae

Feijão

de metro

1,9

Phaseolus sesquipedalis

Fabaceae Papilionoideae

Gergelim*

11,5

Sesamum indicum

Pedaliaceae

184


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 159-192, jan.-abr. 2016

APÊNDICE. Nome do tipo

(Continua) Nome da qualidade

Frq

Nome científico

Família

Guaraná*

1,9

Paullinia pinnata

Sapindaceae

Inhame*

de batata/branco/cavalo/roxo

42,3

Dioscorea trifida

Dioscoreaceae

Jatobá*

1,9

Hymenea sp.

Fabaceae Caesalpinioideae

Jerimum*

caboclo/cajá/de leite/de pescoço

32,7

Cucurbita moschata, C. maxima, C. pepo

Cucurbitaceae

João-gomes

1,9

Talinum paniculatum

Portulacaceae

Maxixe*

19,2

Cucumis anguria

Cucurbitaceae

Melancia*

15,4

Citrullus lanatus

Cucurbitaceae

Milho*

comum/de massa/do governo/ pipoca

57,7

Zea mays

Poaceae

Milho d’angola

1,9

Sorghum bicolor

Poaceae

Pepino*

17,3

Cucumis sativus

Cucurbitaceae

Pimenta-do-reino*

9,6

Piper nigrum

Piperaceae

Pimentão*

-

11,5

Capsicum annuum

Solanaceae

Quiabo*

-

9,6

Abelmoschus esculentus

Malvaceae

Repolho*

-

3,8

Brassica oleracea

Brassicaceae

Salsa/salsinha*

-

5,8

Petroselinum crispum

Apiaceae

Sem nome

-

1,9

Xanthosoma sp.

Araceae

Tomate

santa clara/maçã/grande/de quina

40,4

Lycopersicon esculentum

Solanaceae

Urucu*

amarelo/roxinho/vermelho

51,9

Bixa orellana

Bixaceae

Vinagreira

-

7,7

Hibiscus sabdariffa

Malvaceae

Persea americana

Lauraceae

Frutíferas de fruto grande/verde/cuia/ coite/cabaça/comum/roxo/ de bicão/branco/paulista

53,8

Abiu*

17,3

Pouteria caimito

Sapotaceae

Açaí

comum/nativo/da mata

7,7

Euterpe precatoria

Arecaceae

Açaí*

de planta/do pará

11,5

Euterpe oleracea

Arecaceae

Açaí

19,2

Euterpe spp.

Arecaceae

Acerola*

15,4

Malpighia glabra

Malpighiaceae

Amora

1,9

Morus nigra

Moraceae

Ananás/abacaxi*

abacaxi grande

57,7

Ananas comosus

Bromeliaceae

Apuruí

1,9

Alibertia sp.

Rubiaceae

Araticum*

11,5

Annona crassifolia

Annonaceae

Ata

3,8

Annona squamosa

Annonaceae

Azeitona

32,7

Syzygium cumini

Myrtaceae

Abacate*

185


Redes e observatórios da agrobiodiversidade, como e para quem? Uma abordagem exploratória na região de Cruzeiro do Sul, Acre

APÊNDICE. Nome do tipo

(Continua) Nome da qualidade

Frq

Nome científico

Família

Bacaba

11,5

Oenocarpus balickii

Arecaceae

Bacabinha

1,9

Oenocarpus cf. mapora

Arecaceae

Bacuri

1,9

cf. Platonia

Clusiaceae

Biribá

42,3

Rollinia mucosa

Annonaceae

Buriti*

26,9

Mauritia flexuosa

Arecaceae

Cacau*

19,2

Theobroma cacao

Sterculiaceae

Cacaui/cacauzinho*

7,7

Herrania mariae

Sterculiaceae

Cajá*

3,8

Spondias mombin

Anacardiaceae

Cajarana*

11,5

Spondias dulcis

Anacardiaceae

Caju*

55,8

Anacardium occidentale

Anacardiaceae

Carambola*

7,7

Averrhoa carambola

Oxalidaceae

5,8

Bertholletia excelsa

Lecythidaceae

Castanha-do-pará* Cocão-do-seringal

5,8

Attalea cf. tessmannii

Arecaceae

Cupu*

46,2

Theobroma grandiflorum

Sterculiaceae

Cupuí

3,8

Theobroma subincanum

Sterculiaceae

Fruta-pão*

7,7

Artocarpus altilis

Moraceae

Goiaba*

vermelha/branca/rosa/verde

42,3

Psidium guajava

Myrtaceae

Graviola*

55,8

Annona muricata

Annonaceae

Ingá*

capucho/cipó/d’água/de corda/ comprido

30,8

Inga edulis

Fabaceae Mimosoideae

Ingá

milhito

3,8

Inga laurina

Fabaceae Mimosoideae

Ingás

ingazinho/redondo/de macaco/ de beira do rio

9,6

Inga spp.

Fabaceae Mimosoideae

Jaca*

dura/mole

26,9

Artocarpus heterophyllus

Moraceae

Jaci

1,9

Attalea butyracea

Arecaceae

Jambo amarelo

5,8

Syzygium jambos

Myrtaceae

Jambo vermelho*

34,6

Syzygium malaccense

Myrtaceae

Jenipapo

1,9

Genipa americana

Rubiaceae

Jiru

7,7

Bunchosia glandulifera

Malpighiaceae

Laranja

cidra

3,8

Citrus x aurantium

Rutaceae

Laranja*

comum

67,3

Citrus x aurantium

Rutaceae

Laranja

enxertada

9,6

Citrus x aurantium

Rutaceae

Laranja*

lima

25,0

Citrus x aurantium

Rutaceae

Limão*

comum/limãozinho/tahiti

50,0

Citrus x aurantiifolia

Rutaceae

Limão

enxertado

7,7

Citrus x aurantiifolia

Rutaceae

Limão

enxertado sem semente

1,9

Citrus x aurantiifolia

Rutaceae

Limão

galego

15,4

Citrus x limon

Rutaceae

186


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 159-192, jan.-abr. 2016

APÊNDICE. Nome do tipo

(Continua) Nome da qualidade

Frq

Nome científico

Família

Limão

tangerina

23,1

Citrus x limon

Rutaceae

Mamão*

alto/banana/comum/goiaba (comprido, redondo)/havaí/ pera/roxo

59,6

Carica papaya

Caricaceae

Manga*

comum/maçã/manguita/rosa/roxa

48,1

Mangifera indica

Anacardiaceae

Maracujá*

amarelo/peroba/pintadinha

38,5

Passiflora spp.

Passifloraceae

Morango

1,9

Fragaria sp.

Rosaceae

Murici

1,9

Byrsonima sp.

Malpighiaceae

Patauá

5,8

Oenocarpus bataua

Arecaceae

Pitanga

11,5

Eugenia uniflora

Myrtaceae

Pupunha*

amarela/de espinho/de óleo/lisa/ sem espinho /vermelha (com espinho)

63,5

Bactris gasipaes

Arecaceae

Tangerina

enxertada

1,9

Citrus reticulata

Rutaceae

Tangerina*

51,9

Citrus reticulata

Rutaceae

Uricuri

1,9

Attalea phalerata

Arecaceae

Uvaia/araçá*

40,4

Eugenia pyriformis var. uvalha

Myrtaceae

Medicinais e/ou de sorte Brasileirinho/tajá

3,8

Caladium humboldtii

Araceae

Comigo-ninguémpode

21,2

Dieffenbachia seguine

Araceae

Dinheirinho

3,8

Pilea microphylla

Urticaceae

Espada

1,9

Tradescantia spathacea

Commelinaceae

Espada-de-são-jorge

3,8

Agave angustifolia

Agavaceae

Espada-de-são-jorge/ jiboia

5,8

Sansevieria trifasciata

Liliaceae

Fruta ou semente elétrica/grão-de-bode/ castanha

9,6

Thevetia peruviana

Apocynaceae

Jagube

5,8

Banisteriopsis caapi

Malpighiaceae

Manacá

1,9

Brunfelsia grandiflora

Solanaceae

Pinhão

branco

17,3

Jatropha curcas

Euphorbiaceae

Pinhão

pajé

5,8

Jatropha podagrica

Euphorbiaceae

Pinhão

roxo

26,9

Jatropha gossypiifolia

Euphorbiaceae

Rainha

15,4

Psychotria sp.

Rubiaceae

Tabaco

5,8

Nicotiana tabacum

Solanaceae

Taioba/tajá

11,5

Caladium spp.

Araceae

187


Redes e observatórios da agrobiodiversidade, como e para quem? Uma abordagem exploratória na região de Cruzeiro do Sul, Acre

APÊNDICE. Nome do tipo

(Continua) Nome da qualidade

Frq

Nome científico

Família

Tipi

13,5

Petiveria alliacea

Phytolaccaceae

Vassourinha

11,5

Scoparia dulcis

Scrophulariaceae

Algodão

30,8

Gossypium barbadense

Malvaceae

Anador/meracilina/ melhoral/corama

15.4

Kalanchoe pinnata

Crassulaceae

Arruda

11,5

Ruta graveolens

Rutaceae

Babosa

17,3

Aloe vera

Liliaceae

Balão/fone/flor-fina

3,8

Brugmansia suaveolens

Solanaceae

Batata

de purga

7,7

Operculina sp.

Convolvulaceae

Boldo

9,6

Plectranthus neochilus

Lamiaceae

Boldo

3,8

Vernonia condensata

Asteraceae

Caapeba

1,9

Piper umbellatum

Piperaceae

Capim-santo

38,5

Cymbopogon citratus

Poaceae

Carajiru/calito

30,8

Arrabidaea chica

Bignoniaceae

Chapéu-de-couro

3,8

n.i.

Piperaceae

Cidreira

23,1

Lippia alba

Verbenaceae

Copaíba

1,9

Copaifera langsdorffii

Fabaceae Caesalpinioideae

Coquinho

inho

9,6

Eleutherine bulbosa

Iridaceae

Corama

1,9

Kalanchoe blossfeldiana

Crassulaceae

Elixir

5,8

Piper sp.

Piperaceae

Esperaí/unha-de-gato

1,9

Uncaria guianensis

Rubiaceae

Gel/vick

5,8

Curcuma zedoaria

Zingiberaceae

Gengibre*

19,2

Zingiber officinale

Zingiberaceae

(Nome não levantado)

1,9

n.i.

Lamiaceae

Hortelã

roxinha

9,6

Mentha x piperita

Lamiaceae

Hortelã

1,9

Alternanthera brasiliana

Amaranthaceae

Japana

3,8

Ayapana triplinervis

Asteraceae

Juca

3,8

Caesalpinia cf. ferrea

Fabaceae Caesalpinioideae

Lacre

1,9

Vismia sp.

Gutiiferae

Macela

15,4

Epaltes brasiliensis

Asteraceae

Malvarisco

26,9

Plectranthus amboinicus

Lamiaceae

Manjerioba/sena/ sena-de-horta

23,1

Senna cf. occidentalis

Fabaceae Caesalpinioideae

Mastruco/mastruz*

28,8

Chenopodium ambrosioides

Chenopodiaceae

Milagre-do-irmãojosé/sangue-dedragão/japana

15,4

Justicia secunda

Acanthaceae

188


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 159-192, jan.-abr. 2016

APÊNDICE. Nome do tipo

(Continua) Nome da qualidade

Frq

Nome científico

Família

Oriza

3,8

Pogostemon heyneanus

Lamiaceae

Patchuli/catinga-damulata

9,6

Aeollanthus suaveolens

Lamiaceae

Peniciline

1,9

n.i.

Amaranthaceae

Pimenta

longa

1,9

Piper cf. hispidinervum

Piperaceae

Quebra-pedra

3,8

Phyllanthus brasiliensis

Euphorbiaceae

Rabo de.../arnica

3,8

Solidago sp.

Asteraceae

Sem nome

1,9

Pfaffia sp.

Amaranthaceae

Sororoca

amarela/vermelha/de enfeite

15.4

Heliconia episcopalis

Heliconiaceae

Sororoca

pajé

5,8

Alpinia zerumbet

Zingiberaceae

Ornamentais Açucena

3,8

Dracaena fragrans

Liliaceae

Agrião/planta-doirmão-josé/alecrim/ coentro-do-mar

9,6

Portulaca elatior

Portulacaceae

Alecrim

roxo

1,9

Portulaca sp.

Portulacaceae

Alfinete/maravilha

11,5

Impatiens spp.

Balsaminaceae

Baile

3,8

Coleus sp.

Lamiaceae

Balão/fone/flor-fina

rosa

9,6

Hibiscus rosa-sinensis

Malvaceae

Bananeira-de-enfeite

9,6

Anthurium sp.

Araceae

Barba-de-bode

1,9

n.i.

Euphorbiaceae

Begônia

3,8

Begonia spp.

Begoniaceae

Bonina

amarela

5,8

Mirabilis jalapa

Nyctaginaceae

7.7

Clerodendrum thomsoniae

Verbenaceae

Boquejo-de-noiva/ Trocha-de-velho/ Brinco-de-noiva Bredo

11,5

Celosia argentea var. cristata

Amaranthaceae

Brinco-de-ouro

5,8

Clerodendrum x speciosum

Verbenaceae

Canela-de-jacamim

1,9

Cordyline fruticosa

Agavaceae

Capim

para grama

1,9

Paspalum sp.

Poaceae

Carrapicho

agulha

3,8

Cosmos sulphureus

Asteraceae

Carrapicho

de jardim

7,7

Wedelia trilobata

Asteraceae

Cecília

1,9

Zinnia violacea

Asteraceae

Cravo-de-defunto

7,7

Tagetes patula

Asteraceae

Dedo-de-deus, santoantônio

5,8

Euphorbia tirucalli

Euphorbiaceae

Enfeite

1,9

Acalypha wilkesiana var. hoffmanii

Euphorbiaceae

189


Redes e observatórios da agrobiodiversidade, como e para quem? Uma abordagem exploratória na região de Cruzeiro do Sul, Acre

APÊNDICE. Nome do tipo

(Continua) Nome da qualidade

Frq

Nome científico

Família

Enfeite

1,9

Breynia nivosa

Euphorbiaceae

Enfeite

1,9

Commelinaceae n.i.2

Commelinaceae

Enfeite

1,9

Crossandra infundibuliformis

Acanthaceae

Enfeite

1,9

Ixora chinensis

Rubiaceae

Enfeite

1,9

n.i.

Bignoniaceae

Enfeite

3,8

Tecoma stans

Bignoniaceae

Enfeite

1,9

Zephyranthes candida

Amaryllidaceae

Eu e tu

1,9

Euphorbia milii

Euphorbiaceae

Ficus/apuí

9,6

Ficus benjamina

Moraceae

9,6

Iresine diffusa f. lindenii

Amaranthaceae

Figo-de-boi/enfeite/ terramicina Flor

1,9

Iresine herbstii

Amaranthaceae

Flor-de-finado

3,8

Heliconia sp.

Heliconiaceae

Girassol

1,9

Helianthus annuus

Asteraceae

Grama

de flor amarela

17,3

Arachis pintoi

Fabaceae Papilionoideae

Grama/capim-tapete

5,8

Zoysia japonica

Poaceae

Grinalda-de-noiva/ amor-agarradinho

de flor rosa

1,9

Antigonon leptopus

Polygonaceae

Hortência/orquídea

5,8

Hydrangea macrophylla

Saxifragaceae

Ingá

de planta

21,2

Inga cf. capitata

Fabaceae Mimosoideae

Jacarandá

1,9

n.i.

Fabaceae Papilionoideae

Jasmim

branco

3,8

Hedychium coronarium

Zingiberaceae

Jasmim

3,8

Gardenia jasminoides

Rubiaceae

Loucura

3,8

Lagerstroemia indica

Lythraceae

Mandacaru

3,8

Cereus jamacaru

Cactaceae

Margarida

1,9

cf. Brachycome

Asteraceae

Menininha/flor-de-cera

3,8

Cuphea gracilis

Lythraceae

Onze-horas/alecrim

vermelha

19,2

Portulaca grandiflora

Portulacaceae

Palma-do-cão/ palmeira/membeca

7,7

Opuntia sp.

Cactaceae

Pega-rapaz/jiboia

11,5

Scindapsus aureus

Araceae

Perpétua

roxa

3,8

Gomphrena globosa

Amaranthaceae

Pingo-de-ouro/crote

de folha estreita

23,1

Codiaeum variegatum

Euphorbiaceae

Pinheiro/árvore-denatal

9,6

Cupressus macrocarpa

Cupressaceae

Planta

de cheiro

1,9

Callisia fragrans

Commelinaceae

Pluma

7,7

Tanacetum vulgare

Asteraceae

190


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 159-192, jan.-abr. 2016

APÊNDICE.

(Continua)

Nome do tipo

Nome da qualidade

Frq

Nome científico

Família

Rosa

menina/branca

17,3

Rosa sp.

Rosaceae

Samambaia

1,9

n.i.

Pteridaceae

3,8

Euphorbia tithymaloides

Euphorbiaceae

Sapatinho-de-nossasenhora Saudade

3,8

Chrysanthemum sp.

Asteraceae

Sem nome

1,9

Chlorophytum comosum

Liliaceae

Sem nome

3,8

Tibouchina sp.

Melastomataceae

Sem nome

1,9

Agave sp.

Agavaceae

Sem nome

1,9

Allamanda cathartica

Apocynaceae

Sem nome

5,8

Polyscias spp.

Araliaceae

Sem nome

1,9

Delonix sp.

Fabaceae Caesalpinioideae

Sem nome

1,9

Aster sp.

Asteraceae

Sem nome

1,9

Catharanthus roseus

Apocynaceae

Sem nome

3,8

Chamaecrista rotundifolia

Fabaceae Caesalpinioideae

Sem nome

1,9

Hippeastrum sp.

Amaryllidaceae

Sem nome

1,9

Hymenocallis sp.

Liliaceae

Sem nome

1,9

Lophanthera lactescens

Malpighiaceae

Sem nome

1,9

Mussaenda erythrophylla

Rubiaceae

Sem nome

1,9

Plumeria pudica

Apocynaceae

Sem nome

1,9

Ruellia sp.

Acanthaceae

Sem nome

1,9

Clitoria fairchildiana

Fabaceae Papilionoideae

Sem nome

1,9

Neomarica caerulea

Iridaceae

Sem nome

1,9

Spathoglottis plicata

Orchidaceae

Violeta

1,9

Saintpaulia ionantha

Gesneriaceae

Crotalaria sp.

Fabaceae Papilionoideae

Para adubo Crotalaria

5,8

Feijão-de-porco

1,9

Canavalia ensiformis

Fabaceae Papilionoideae

Mucuna

preta

7.7

Mucuna pruriens var. utilis

Fabaceae Papilionoideae

1,9

Arachis pintoi

Fabaceae Papilionoideae

Forrageiras Amendoim

para galinhas

Cana

de ração

1,9

Saccharum officinarum

Poaceae

Capim

braquiária

11,5

Brachiaria spp.

Poaceae

Capim

brizantão

9,6

Brachiaria brizantha

Poaceae

Capim

quicuio

9,6

Pennisetum sp.

Poaceae

Capim

11,5

n.i.

Poaceae

Capim

roxo/capim de ração

1,9

Pennisetum purpureum

Poaceae

191


Redes e observatórios da agrobiodiversidade, como e para quem? Uma abordagem exploratória na região de Cruzeiro do Sul, Acre

APÊNDICE. Nome do tipo

Nome da qualidade

Frq

Nome científico

(Conclusão) Família

Maderáveis Aguano

19,2

Swietenia macrophylla

Meliaceae

Amarelinha

3,8

cf. Aspidosperma

Apocynaceae

Andiroba

5,8

Carapa guianensis

Meliaceae

Cedro

1,9

Cedrela sp.

Meliaceae

Jacareúba

1,9

Calophyllum sp.

Gutiiferae

Matamata

1,9

Eschweilera sp.

Lecythidaceae

Mulateiro

5,8

Calycophyllum spruceanum

Rubiaceae

Pau-d’arco

1,9

Tabebuia sp.

Bignoniaceae

Uso técnico Bucha

1,9

Luffa aegyptiaca

Cucurbitaceae

Cabaça

1,9

Lagenaria sericea

Cucurbitaceae

Contas-de-nossasenhora

11,5

Coix lacryma-jobi

Poaceae

Cuieira/coite

grande

11,5

Crescentia cujete

Bignoniaceae

Cumaru

3,8

Dipteryx sp.

Fabaceae Papilionoideae

Jarina

1,9

Phytelephas macrocarpa

Arecaceae

Mulungu

vermelho

3,8

Ormosia sp.

Fabaceae Papilionoideae

Oaca

1,9

Clibadium sylvestre

Asteraceae

Oiti

7,7

Couepia sp.

Chrysobalanaceae

Paxiubinha

1,9

Socratea exorrhiza

Arecaceae

Samaúma

1,9

Ceiba pentandra

Bombacaceae

Seringa

5,8

Hevea brasiliensis

Euphorbiaceae

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 193-205, jan.-abr. 2016

Crop domestication in the upper Madeira River basin Domesticação de plantas cultivadas na bacia do alto rio Madeira Charles Roland ClementI, Doriane Picanço RodriguesII, Alessandro Alves-PereiraIII, Gilda Santos MühlenIV, Michelly de Cristo-AraújoI, II, Priscila Ambrósio MoreiraI, II, Juliana LinsI, Vanessa Maciel ReisII I

Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Manaus, Amazonas, Brasil II

III

Universidade Federal do Amazonas. Manaus, Amazonas, Brasil

Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, Universidade de São Paulo. Piracicaba, São Paulo, Brasil IV

Universidade Federal de Rondônia. Rolim de Moura, Rondônia, Brasil

Abstract: Most native Amazonian crops were domesticated in the periphery of the basin. The upper Madeira River basin is an important part of this periphery where several important crops were domesticated and others are suspected to have been domesticated or arrived early. Some of these crops have been reasonably well studied, such as manioc, peanut, peach palm, coca and tobacco, while others are not as well known, such as the hot peppers Capsicum baccatum and C. frutescens, and still others need confirmation, such as cocoyam and annatto. We review the information available for manioc, peach palm, Capsicum, peanut, annatto and cocoyam. The state-of-the-art for Capsicum frutescens, annatto and cocoyam is insufficient to conclude definitively that they were domesticated in the upper Madeira, while all the others have at least one of their origins or centers of diversity in the upper Madeira. Keywords: Amazonian crops. Center of domestication. Crop domestication. Southwestern Amazonia Resumo: A maioria dos cultivos nativos da Amazônia foi domesticada na periferia da bacia. A bacia do alto rio Madeira é uma parte importante dessa periferia, onde se suspeita que vários cultivos importantes foram domesticados, alguns são confirmados e outros possivelmente chegaram há muito tempo na região. Alguns destes cultivos foram razoavelmente bem estudados, tais como mandioca, amendoim, pupunha, coca e tabaco, enquanto outros não são tão bem conhecidos, como as pimentas Capsicum baccatum e C. frutescens, e ainda outros precisam de confirmação, como taioba e urucum. Revisamos as informações disponíveis para a mandioca, pupunha, Capsicum, amendoim, urucum e taioba. O estado da arte de Capsicum frutescens, urucum e taioba é insuficiente para concluir definitivamente que eles foram domesticados no alto rio Madeira, enquanto todos os outros têm pelo menos uma das suas origens ou centros de diversidade na região. Palavras-chave: Cultivos amazônicos. Centro de domesticação. Domesticação de cultivos. Sudoeste da Amazônia

CLEMENT, Charles Roland; RODRIGUES, Doriane Picanço; ALVES-PEREIRA, Alessandro; MÜHLEN, Gilda Santos; CRISTO-ARAÚJO, Michelly de; MOREIRA, Priscila Ambrósio; LINS, Juliana; REIS, Vanessa Maciel. Crop domestication in the upper Madeira River basin. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 193-205 jan.-abr. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.812 22016000100010. Autor para correspondência: Charles Roland Clement. Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Av. André Araújo, 2936 – Petrópolis. Manaus, AM, Brasil. CEP 69067-375 (cclement@inpa.gov.br). Recebido em 21/10/2013 Aprovado em 05/02/2016

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Crop domestication in the upper Madeira River basin

INTRODUCTION The Madeira River drains a large portion of southwestern Amazonia, with a complex of headwater rivers that arise either in the Andes, hence with sediment-rich ‘white’ waters, or the western edge of the Brazilian shield, with sediment-poor ‘clear’ or ‘black’ waters. Soils vary from nutrient-rich volcanic soils in the foothills to less nutrient-rich Ultisols in the main basin, with nutrientrich floodplain soils along the white-water rivers. In the upper basin, vegetational types vary from closed canopy humid forests, to open canopy sub-humid forests, to scrub forests to savanna, with the Llanos de Mojos an especially important part of the region. This ecological complexity offered numerous useful plants to arriving hunter-gathers (Lombardo et al., 2013), some of which were domesticated in various parts of the upper basin over the next millennia. The arrival of humans in lowland South America may have occurred as early as 20,000 years before present (BP) (Lahaye et al., 2013), but surely by 13,000 BP (Roosevelt, 2013). Pre-ceramic societies occupied the area of Porto Velho, Rondônia, as early as 12,000 BP (Miller, 1992a), Lombardo et al. (2013) report initially preceramic shell mounds in the Llanos de Mojos, lowland Bolivia, dated to 10,600 BP, and Neves et al. (2015) are excavating a similar mound along the Guaporé River, Rondônia, so we can accept early occupation of the upper Madeira River basin as confirmed. This is important because some of the species that originated there may have started to be domesticated in this time frame. The first still pre-ceramic societies that were sedentary enough to generate terra preta de índio, or Amazonian Dark Earths, appeared by 4,800 BP along the Jamari River, not far from Porto Velho (Miller, 1992b), and along the Guaporé River (Neves et al., 2015) (Figure 1). Over the next millennia the upper Madeira River basin became the home of numerous complex societies who were responsible for various kinds of earthworks (raised fields, habitation mounds, geoglyphs, dike and canals etc.)

(Dickau et al., 2012) and spoke numerous languages (Eriksen, 2011). The upper Madeira is the homeland of Tupi (Eriksen and Galucio, 2014) and is adjacent to the probable origin of Arawak in the upper Purus River (Walker and Ribeiro, 2011; Eriksen and Danielsen, 2014), the two most expansive language families of South America. The archaeobotany of the region is just starting to be explored with modern methods (Dickau et al., 2012; Whitney et al., 2014; Watling et al., 2015), although the species we will examine are seldom reported to date. Better preservation occurs along the dry Pacific coast of Peru, where many of these species are reported quite early (Pearsall, 1992). The periphery of Amazonia appears to be where the majority of Amazonian crops were domesticated (Clement et al., 2010). The upper Madeira River basin, hereafter upper Madeira, is an important part of the periphery and has been recognized as a probable or confirmed region of crop origins for some time, e.g., Piperno and Pearsall (1998; see also Piperno, 2011), who mentioned two hot peppers (Capsicum baccatum, C. pubescens), three legume seeds (Arachis hypogaea, Canavalia plagiosperma, Phaseolus vulgaris), and cocoyam (Xanthosoma sagittifolium). The Andean foothills and immediately adjacent lowlands of the upper Madeira also provided important drugs, e.g., coca (Erythroxylum coca; Plowman, 1984) and tobacco (Nicotiana tabacum; Gerstel and Sisson, 1995). The major root crop of Amazonia, manioc (Manihot esculenta) was confirmed to have originated in the upper Madeira (Schaal et al., 2006) and new information suggests the same for peach palm (Bactris gasipaes) (Cristo-Araújo et al., 2013). Clement et al. (2010) had modified Schultes’ hypothesis (1984) about annatto (Bixa orellana) having originated in Acre to include the upper Madeira, since wild annatto is found frequently in Rondônia (Moreira et al., 2015); however, these authors did not confirm the upper Madeira as the origin. Over the millennia between crop origins and European conquest, crops were dispersed from the upper

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Figure 1. Map of the upper Madeira River basin in southwestern Amazonia, highlighting known earthwork areas and other archaeological sites (extracted from Clement et al., 2015, with assistance from AndrĂŠ Braga Junqueira, Wageningen University).

Madeira as far as Mexico, e.g., manioc, peanut, tobacco and annatto (Brown, 2010), and others arrived from there, e.g., maize (Zea mays) (Piperno, 2011), and elsewhere. At the time of European conquest, the complex societies of the Llanos de Mojos and adjacent areas of the upper Madeira cultivated numerous crops and certainly managed hundreds of species, leading Clement (1999) to propose a micro-center of diversity of crop genetic resources in the Llanos de Mojos (Clement et al., 2010). A micro-center is a geographically restricted area with an abundance of crop genetic resources used in both agroecosystems and in other domesticated landscapes. In this contribution we will review principally the genetic evidence, but also some morphology, biogeography and ethnography, for manioc,

peach palm, Capsicum peppers, especially C. baccatum and C. frutescens, cocoyam and annatto, some of which originated in the upper Madeira and others of which were produced there before European conquest.

MANIOC Manioc (Manihot esculenta Crantz, Euphorbiaceae) is grown throughout the tropics, and it is the primary source of carbohydrates for about 800 million people (Lebot, 2009). The origin of manioc as a crop has long been debated; it was once considered a cultigen (without a wild conspecific ancestral population) and was thought to have originated from a series of introgression events among wild species (Rogers and Appan, 1973). Based on phenotypic

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Crop domestication in the upper Madeira River basin

traits, Allem (2001) proposed that manioc consists of three subspecies: Manihot esculenta ssp. esculenta (cultivated form), M. esculenta ssp. flabellifolia (the closest wild relative) and M. esculenta ssp. peruviana (probably not involved in manioc domestication). Together with M. pruinosa, these form the primary gene pool of manioc. The relationships among cultivated varieties of manioc and wild populations of M. esculenta ssp. flabellifolia and M. pruinosa were investigated with three different molecular markers [sequencing of the nuclear gene glyceraldehyde 3-phosphate dehydrogenese (G3pdh; Olsen and Schaal, 1999), Simple Sequence Repeats (Olsen and Schaal, 2001), and Single Nucleotide Polymorphisms (Olsen, 2004)]. In all cases, the genetic variability found in cultivated manioc is a subset of the genetic variability found in the populations of ssp. flabellifolia that occur in and adjacent to the upper Madeira (Schaal et al., 2006). These genetic results strongly suggest that manioc was domesticated only once from ssp. flabellifolia populations occurring in the upper Madeira of Mato Grosso and Rondônia states, and adjacent areas in the upper Purus and upper Juruá Rivers, Acre state, Brazil, and certainly in adjacent areas of Bolivia that were not sampled. Divergent selective pressures gave origin to the two major groups of currently cultivated varieties: “sweet” manioc and “bitter” manioc (Mühlen et al., 2000; Elias et al., 2004). Sweet varieties have low amounts of cyanogenic glycosides (< 100 ppm fresh weight) and can be safely consumed with simple processing (cooking or sometimes even raw). On the other hand, bitter varieties have large amounts of cyanogenic glycosides (> 100 ppm fresh weight) and demand considerable detoxification and processing before consumption. Although this classification is dichotomous, continuous variation among manioc varieties and related wild species is observed, suggesting that sweet and bitter manioc are derived from an ancestor with intermediate toxicity (McKey and Beckerman, 1993). However, populations of ssp. flabellifolia in the interfluve between the central Guaporé River and the upper Machado River, in Rondônia, centrally

located in the center of origin of domestication, are toxic (Perrut-Lima et al., 2014). New data on the patterns of the distribution of genetic variation of the largest sweet and bitter manioc Brazilian sampling casts new light on the diffusion of the crop after its initial domestication (Mühlen et al., 2013). Although this study lacks manioc samples from the center of origin in Rondônia, the two major groups of cultivated manioc showed somewhat different patterns of diffusion across Brazilian ecogeographic regions. Sweet manioc appears to have diffused first from the center of origin, while bitter manioc appears to have originated later in a more central area of Amazonia, as hypothesized by ArroyoKalin (2010). Curiously, the Native Amazonians who first considered manioc to be important enough to have a name that can be reconstructed today were the Southern Arawak, of the Peruvian Amazonian lowlands in the upper Ucayali River, whose name for manioc reconstructs to 4,400 BP (Brown et al., 2013a), while the Tupi, who are closer to the origin in the eastern upper Madeira, are later (3,500 BP). However, manioc is thought to have originated as a domesticate much earlier, probably by 10,000 BP, given early archaeological finds in northwestern South America by 8,500 BP (Isendahl, 2011), which eliminates the Arawak as the original domesticators.

PEACH PALM The peach palm (Bactris gasipaes Kunth, Palmae) is the only Neotropical palm with domesticated populations (Clement, 1988). It may have been selected initially for its wood, preferred for tool making, and later for its abundant oily fruits, and finally for starchiness in the fruits, making them good for fermentation (Clement et al., 2009a). The species presents considerable morphological and genetic variability in its wild and cultivated populations, due to adaptation to different environments and different stages of domestication, respectively. Thousands of years of domestication have resulted in landraces, each of which has common morphological, chemical and productive

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characteristics due to a common genetic origin (Mora Urpí et al., 1997). These landraces are widely distributed in the humid Neotropics, especially Amazonia. Throughout the 20th century, peach palm was considered a cultigen, with no wild ancestor. The revision of Bactris (Henderson, 2000) gathered all cultivated populations of peach palm into var. gasipaes and all wild populations (previously identified as species) into var. chichagui (H. Karsten) Henderson, permitting phylogenetic hypotheses that can be tested with genetic tools. Within var. chichagui Henderson proposed three types, examined in detail by Clement et al. (2009b), who proposed that type 3 is not truly wild, but is the incipient domesticate. There is considerable speculation about the origin of the founder event(s) that lead to domesticated peach palm populations, with three hypotheses under consideration until recently: a) a single domestication event in southwestern Amazonia (Clement, 1995), with some morphological (Ferreira, 1999) and molecular (Random Amplified Polymorphic DNA, a dominant marker; Rodrigues et al., 2004a) evidence, and the sympatry of one wild type (type 1) and the incipient domesticate (type 3); b) a single domestication event in northwestern South America, with archaeological coincidences (Morcote-Rios and Bernal, 2001), but with the occurrence of the incipient domesticate (type 3); and c) multiple domestication events in the distribution of the wild type 1 and the incipient domesticate (type 3), with coincidences in common SSR allele frequencies between var. chichagui and var. gasipaes in some localities (Mora-Urpí, 1999; Hernández-Ugalde et al., 2008, 2011). Several genetic studies have been conducted over the last decade to understand the great genetic variability within and among landraces, and are reviewed in Clement et al. (2010). During the last decade, numerous microsatellite primers were developed and tested (Martínez et al., 2002; Billotte et al., 2004; Rodrigues et al., 2004b). Four of the first set were used to examine relationships among seven wild and eleven cultivated

populations (Hernández-Ugalde et al., 2008, 2011). Unfortunately, they did not analyze the cultivated and wild populations separately, and created a neighbor-joining dendrogram from Nei’s minimum genetic distance, which they interpreted as showing three domestication events, even though the topology of the dendrogram was not much different from the first RAPD study (Rodrigues et al., 2004a). Although quite intriguing, the small number of microsatellites does not permit much precision. A study by Reis (2009) examined the relationships within the landrace complex represented in the newly created core collection (Cristo-Araújo et al., 2015), which has 40 accessions, with 17 microsatellite loci. This analysis used the program Structure (Pritchard et al., 2000) to revalidate landraces and Nei’s (1978) genetic distance to create a neighbor-joining dendrogram, which was quite similar to the first and subsequent RAPD dendrograms (Rodrigues et al., 2004a; Cristo-Araújo et al., 2010), as well as the first microsatellite dendrogram (Hernández-Ugalde, 2005). The analyses with nuclear microsatellites confirmed previous analyses that showed a deep split between the eastern Amazonian landraces, on the one hand, and western Amazonian to Central American landraces, on the other (Rodrigues et al., 2004a; Cristo-Araújo et al., 2010; Hernández-Ugalde et al., 2011). As mentioned, however, these markers alone are insufficient for determining if the split represents two or more domestication events, as suggested by Mora Urpí (1999) and Hernández-Ugalde et al. (2011), or one event with two dispersal routes, as suggested by Rodrigues et al. (2004a) and Cristo-Araújo et al. (2010). A universal chloroplast DNA sequence (Shaw et al., 2007) was used to determine the phylogenetic relationships among cultivated and wild populations in the core collection, as well as the closely related B. riparia and the more distantly related B. simplicifrons, both used as outgroups. The chloroplast haplotypes distinguish the eastern and southwestern cultivated populations from the western populations by a 12 base

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pair deletion (Cristo-Araújo et al., 2013), supporting the deep divergence among these groups observed by all studies with nuclear markers. Most important, however, the wild var. chichagui type 1 from Rio Branco, Acre, adjacent to the upper Madeira, contains both the eastern and the western chloroplast haplotypes, and groups with cultivated populations from Plácido de Castro, Acre, and Madre de Dios, Peru, both in the upper Madeira (Cristo-Araújo et al., 2013). These new analyses suggest a single domestication event in southwestern Amazonia, probably in the upper Madeira, although the upper Ucayali River cannot yet be ruled out. After domestication, cultivated peach palm was dispersed down the Ucayali River and throughout western Amazonia, northwestern South America and southern Central America. At the same time, but perhaps later, because the fruits are less derived, cultivated peach palm was dispersed along the Madeira River to eastern Amazonia.

CAPSICUM PEPPERS The genus Capsicum (Solanaceae) is represented by an extremely variable group of sweet and, principally, hot peppers. By the time of European conquest the chili peppers were present from northern Chile and Argentina, throughout the Andean and lowland South American countries, through Central America to northern Mexico and the southern United States (Barbieri and Neitzke, 2008; Pickersgill, 1969). Today they are distributed worldwide, and grown in temperate and tropical areas for use as spices, vegetables, ornamental plants, medicine and even defense (Reifschneider, 2000), and represent one of the most economically important vegetable crops worldwide (Albrecht et al., 2012). Different species of Capsicum were domesticated independently in several regions of the Americas (Heiser Jr., 1995; Pickersgill, 2007): Mesoamerica (C. annuum, possibly C. frutescens), the mid-elevation Andes (C. pubescens), the mid-to-low elevation Andes

and immediately adjacent lowlands of Bolivia and Peru (C. baccatum) (Albrecht et al., 2012), and the tropical lowlands of South America (C. chinense and possibly C. frutescens) (Pickersgill, 2007). The first peoples who considered Capsicum peppers important enough to be clearly named were the southern Arawak (Brown et al., 2013b) in the Amazonian lowlands of southern Peru, suggesting that C. baccatum may have been involved since it was domesticated in the northwestern upper Madeira and adjacent southern upper Ucayali (Albrecht et al., 2012). In each area of origin, one species was brought into domestication and they were then dispersed to different areas where they continued to be selected, resulting in distinct morphological types. Domestication resulted in change, especially in the fruits. The fruits of the wild types are small, erect, red and deciduous, while fruits of domesticates are larger, often pendent, not deciduous and varied in color. Domestication also resulted in changes in reproduction and the level of pungency (Heiser Jr., 1995). During our recent expeditions in Brazilian Amazonia four of these domesticated species were found (M. Cristo-Araújo, personal observation): 1) C. annuum (chili, cayenne) was found in Roraima and in Southern Amazonia from Humaitá to Rondônia, along the upper Madeira, but not along the Solimões River; 2) C. baccatum (girl’s finger, chili, ají) was found only along the Mamoré River in Rondônia, close to its origin in northwestern Bolivia (Albrecht et al., 2012); 3) C. frutescens (malagueta, tabasco) presented very little variation in fruit appearance (size, shape, color) and was found along the north-south (Roraima-Rondônia) axis, especially along the upper Madeira, and in lower abundance along the Solimões River; 4) C. chinense (murupi, cumari, biquinho) was abundant along the Solimões River, in Roraima, in the northern Madeira-Purus interfluve and, in greater abundance, in the upper Madeira. In all localities visited there were more plants of C. chinense, with great variability in size, pungency, color and shape of the fruits. Some plants presented characteristics of two species

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and appeared to be hybrids, most likely C. chinense x C. frutescens (B. Pickersgill, personal communication). An apparently wild sample of C. chinense was found in Roraima (Barbosa et al., 2002), offering the possibility of a more precise origin for this species. However, no wild populations of C. frutescens have yet been found in Amazonia (or elsewhere), although the cultivated form is abundant in the upper Madeira, which is suggestive, but not proof.

PEANUT The peanut (Arachis hypogaea L., Fabaceae) was domesticated for its seed, one of the few producers of underground seeds among cultivated plants. The genus Arachis is composed of 80 species (Krapovickas and Gregory, 1994; Valls and Simpson, 2005), with A. hypogaea the best-known and most widely dispersed in the Neotropics before conquest (Fávero and Valls, 2009). Arachis hypogaea contains two subspecies and six varieties: subsp. hypogaea, var. hypogaea and var. hirsuta; subsp. fastigiata, var. aequatoriana, var. fastigiata, var. peruviana and var. vulgaris (Krapovickas and Gregory, 1994). A recent molecular genetic study used a chloroplast sequence and the non-transcribed spacer of the nuclear 5S rDNA to decipher the origin of cultivated peanut (Grabiele et al., 2012): A. duranensis and A. ipaensis hybridized and gave rise to the wild tetraploid A. monticola, in northern Argentina. A. hypogaea was selected from A. monticola in northern Argentina and southern Bolivia, from where it was dispersed and diversified into two subspecies with six varieties, providing a clear example of a domestication event followed by diversification, as outlined by Meyer and Purugganan (2013). The domestication of the peanuts must have started 6000-7000 BP (Fávero and Valls, 2009). The oldest archaeological peanut record is from the Huarmey valley, near the Peruvian coast, dating to 3,500-4,500 years BP (Pearsall, 1992), although it is not clear which subspecies and variety is involved. Several diversification events

occurred across the savanna regions of lowland South America and adjacent open forests south of Amazonia, as well as adjacent to the Atlantic Forest, leading to the centers of diversity identified by Krapovickas (1995). In the western Llanos de Mojos, subsp. fastigiata var. peruviana was especially diverse, while in the extreme south of the upper Madeira subsp. hypogaea var. hypogaea presented a diversity of runner, bunch and erect types (Fávero and Valls, 2009), suggesting the great importance of both subspecies in the upper Madeira.

ANNATTO Annatto (Bixa orellana L., Bixaceae) is a shrubby plant domesticated in the Neotropics as a colorant used in many different cultural contexts for the red-orange pigment in the arils around its seeds (León, 2000). Domesticated populations of annatto were well distributed throughout the Neotropics at the time of conquest (Donkin, 1974). Its common name in Portuguese (urucum) comes from Tupiguaraní languages (Balée, 2000) and means red, while the common name achiote in Central America comes from achiotl in Nahuatl (Ocampo, 1983). In Mexico it was one of the ingredients used in the preparation of pre-conquest chocolate, a drink “thickened with maize, heated with chilies, spiced with vanilla, tinted with achiote” (Norton, 2008). For many years, B. excelsa, a large tree found in Southern Amazonia, was accepted as its wild ancestor (Ducke, 1946; Schultes, 1984; Clement et al., 2010). Recently, spontaneous populations of annatto, that should be called B. orellana var. urucurana (Kuntze, 1925), were identified as the wild ancestor (Moreira et al., 2015). The variety urucurana occurs in open forests or anthropogenic landscapes, although never cultivated, and always associated with riparian environments. While cultivated annatto always produces abundant pigment around its seeds, the variety urucurana contains variable amounts. In areas where they co-exist, gene flow between them results in changes of pigment production,

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especially in the cultivated types. The exact location where annatto was domesticated is still unclear because of the wide distribution of variety urucurana in northern South America. In southwestern Amazonia, annatto use has long been present for dying cotton (Lévi-Strauss, 2004), but it also has symbolic values in passage rites and a painted body is associated with vitality, beauty and fertility among the Kaxinawa and Suruwaha people (Lagrou, 2006; Aparicio, 2015). Ethnographies describe annatto as a plant of superior quality because it arose from the ashes, which suggests selection practices and fire management during the process of annatto domestication (Lévi-Strauss, 2004). The Nambicuara, of the Guaporé River basin, cultivated annatto in homegardens along the bluffs after burning and opening gallery forests (Lévi-Strauss, 1948), while young individuals of annatto were also transplanted near to home (Lévi-Strauss, 1957). The only archaeological record of annatto in Amazonia comes from the Llanos de Mojos, in lowland Bolivia, dated to 2400 years before present (BP) (Erickson, 1995), but there are older dates in the Caribbean, suggesting Arawak dispersal (Moreira et al., 2015).

COCOYAMS Cocoyams or taiobas (Xanthosoma spp, Araceae) are perennial herbs, some with edible corms, others with edible leaves and still others used for medicinal purposes (Bown, 2000; Lebot, 2009). The name tajá or taiá is popularly used in Brazil as a generic term for Araceae species (Sauer, 1987; Silva, 2007) and is synonymous with taioba in Amazonian legends and myths (Martins and Teixeira, 2006). Wild types have high levels of calcium oxalate crystals in the corms that irritate the mucous membranes of the mouth, hence the side corms used must be dried, cooked or fermented to be eaten (Bown, 2000). There is linguistic evidence of this crop in Central America since 3000 BP (Hawkes, 1989). In South America, taioba pollen grains were registered in

raised field archaeological sites in the Llanos de Mojos in the upper Madeira (Erickson, 1995). The taxonomy of the genus Xanthosoma is unclear (Plucknet, 1976; Lebot, 2009). There are some 40 types of cultivated cocoyams, but in general these are lumped together as X. sagittifolium (Bown, 2000). All of them have 26 chromosomes and differ by pigmentation of leaves, plant height, shape, color and number of corms. These morphological features vary depending on environmental conditions (Lebot, 2009), suggesting significant plasticity (genotype by environment interaction). Traditionally, cocoyams are cultivated on low mounds mulched with dead leaves and grass with sufficient water for growth (Bown, 2000), although they are more tolerant of insufficient water than taro (Colocasia esculenta). Molecular analysis based on RAPD of two cultivated inter-fertile species (X. violaceum and X. caracu) from the West Indies showed low genetic variation (Jacobson et al., 1999), which suggests that some recognized species of Xanthosoma may be just clones. It is still impossible to determine a center of origin of domesticated populations, especially because wild congenerics occur in both Central and South America (Piperno, 2011). It is possible that clones selected in Central America could have been introduced quite early (e.g., 3400 BP) into South America (Colunga-GarcíaMarín and Zizumbo-Villarreal, 2004) and Purseglove (1972) argued that domestication occurred in Central America because of the high regional diversity. Others argued for an origin in northern South America (Giacometti and Leon, 1994; Piperno and Pearsall, 1998; Lebot, 2009; Piperno, 2011), with dispersal into Central America. At this point it is impossible to affirm that cocoyams started to be domesticated in the upper Madeira, even though the diverse ecosystems of the area contain Xanthosoma and it is found in local home gardens and swiddens, where local Indians (Kaxinawá) recognize four ethnovarieties named by the generic term Yubi that can be differentiated by color, such as taioba branca and taioba roxa (Bianchini, 2006).

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CONCLUSIONS There is no doubt about the location of the center of domestication of manioc within the upper Madeira River basin, although immediately adjacent areas may also be involved. Likewise, peach palm has its center of domestication here also, although immediately adjacent areas in the upper Ucayali cannot be ruled out. Capsicum baccatum is firmly located in this area, but evidence for C. frutescens is less clear. Important domesticated populations of peanut are also securely located in the area, although the primary domestication of peanut occurred further south. While there are wild populations of annatto and cocoyam in the region, the information available today is insufficient to affirm that they started to be domesticated in the upper Madeira. ACKNOWLEDGEMENTS We thank Claudia López, Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), and Laure Emperaire, Institut de Recherche pour le Développement (IRD), for the invitation to participate in this Dossiê, Barbara Pickersgill, University of Reading, and two anonymous reviewers for useful criticism and suggestions on the manuscript. CRC thanks the Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) for a research fellowship (n. 303851/2015-5). REFERENCES ALBRECHT, Elena; ZHANG, Dapeng; SAFTNER, Robert A.; STOMMEL, John R. Genetic diversity and population structure of Capsicum baccatum genetic resources. Genetic Resources and Crop Evolution, Dordrecht, v. 59, n. 4, p. 517-538, 2012. ALLEM, Antonio C. The origin and taxonomy of cassava. In: HILLOCKS, Rory J.; THRESH, J. M.; BELLOTTI, Anthony C. (Eds.). Cassava: biology, production and utilization. Oxford: CAB International, 2002. p. 1-16. APARICIO, Miguel. Espíritos não humanos, espíritos desumanos: o mundo da sobrenatureza nos Suruwaha do Rio Purus. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 9, n. 3, p. 63-85, 2015. ARROYO-KALIN, Manuel. The Amazonian Formative: crop domestication and anthropogenic soils. Diversity, Basel, v. 2, n. 4, p. 473-504, 2010.

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Realidade, ciência e fantasia nas controvérsias sobre o Mapinguari no sudoeste amazônico Reality, science and fantasy in the controversies about the Mapinguari in southwestern Amazonia Felipe Ferreira Vander Velden Universidade Federal de São Carlos. São Carlos, São Paulo, Brasil

Resumo: A existência de um monstro conhecido como Mapinguari é amplamente registrada em inúmeras localidades na Amazônia. Os Karitiana, povo de língua Arikém (Tupí) que habita o estado de Rondônia, também discorrem sobre o Mapinguari – termo com o qual eles nomeiam, em português, o monstro que, na sua língua, chamam Owojo ou Kida harara –, relatando terríveis encontros com a criatura nas matas regionais. Nesse sentido, se o Mapinguari vem sendo tratado pela literatura como exemplo de crença ou de folclore, para os Karitiana não parece haver dúvidas sobre sua realidade – ou seja, não parece se tratar de uma crença, mas de um dado deste mundo indígena –, o que pode ser apreendido facilmente nos efeitos que a presença do ‘bicho’ (kida) – modo como os Karitiana conceituam os seres perigosos das matas – têm no cotidiano indígena, incluindo as formas pelas quais este grupo indígena ocupa e explora seu território. Soma-se a esta controvérsia a sugestão, por parte de alguns pesquisadores, de que o Mapinguari pode ser o que restou das preguiças gigantes, animais considerados extintos, mas que alguns julgam ainda habitar certos recônditos amazônicos. É sobre este diálogo entre crenças folclóricas, ontologias indígenas e hipóteses científicas que este trabalho se debruça. Palavras-chave: Mapinguari. Índios Karitiana. Ontologia. Mito. Ficção. Folclore. Abstract: The monster known as Mapinguari is widely mentioned throughout Amazonia. The Karitiana people (speaking a Tupí language of the Arikém family) in northern Rondônia state equate the Portuguese term “Mapinguari” with a monster they call Owojo or Kida harara in their own language, relating tales of frightening encounters in the jungle. Whereas the Mapinguari is generally treated in the literature as a folkloric belief (i.e. an “Amazonian yeti or bigfoot”), there is no doubt among the Karitiana that this creature exists. We can perceive the monster’s reality in the effects it has on the ways the Karitiana occupy and explore their territory. Moreover some scholars have suggested that the Mapinguari could be a kind of living fossil, or folkloric memory of the Giant Sloths that used to roam in this region in the past, and that perhaps is still around. The present article focuses on the dialogue between folkloric beliefs, indigenous ontologies, and scientific hypotheses. Keywords: Mapinguari. Karitiana Indians. Ontology. Myth. Fiction. Folklore.

VANDER VELDEN, Felipe Ferreira. Realidade, ciência e fantasia nas controvérsias sobre o Mapinguari no sudoeste amazônico. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 209-224, jan.-abr. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222 016000100011. Autor para correspondência: Felipe Ferreira Vander Velden. Universidade Federal de São Carlos. Rua das Primaveras, 46. Bairro Cidade Jardim. São Carlos, SP, Brasil. CEP 13566-510 (felipevelden@yahoo.com.br). Recebido em 21/05/2015 Aprovado em 18/01/2016

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“Uma coisa é tão verdadeira quanto a outra” (H. P. Lovecraft) “Não pode ser, mas é” (Jorge Luiz Borges) “O maior truque já realizado pelo diabo foi convencer o mundo de que ele não existe” (Mário Quintana)

Os Karitiana – povo indígena com cerca de 320 indivíduos falantes de uma língua Arikém do tronco Tupí, e que habita cinco aldeias no norte do estado de Rondônia1 – mencionam frequente e abundantemente a existência, em sua região, de uma criatura monstruosa que eles denominam, na língua portuguesa, de Mapinguari2. Todos já ouviram falar da criatura, e vários indivíduos – majoritariamente homens e caçadores – podem mesmo narrar horripilantes encontros com este medonho ser nas noites das florestas que cobrem a maior parte de sua terra indígena e zonas circunvizinhas. Mas quem é este Mapinguari que habita a terra indígena Karitiana? Qual a relação dele com o monstruoso (e lendário) Mapinguari pan-amazônico (Vegini et al., 2014), que assombra populações indígenas e não indígenas por toda a Amazônia (estados de Rondônia, Amazonas, Acre e Pará) e figura proeminentemente tanto na literatura popular quanto na erudita e acadêmica, tanto na regional como na nacional? Este trabalho debruça-se sobre algo do que vem sendo dito a respeito do Mapinguari, com foco no que contam os Karitiana sobre o monstro e também a respeito do que se diz sobre a mesma criatura a partir do que dele narram os Karitiana. Espero demonstrar que as interpretações que tratam o Mapinguari como lenda, crença, mito (no senso comum) ou folclore, por um lado, ou como evidência de uma hipótese científica, por outro, ambas violentam o estatuto ontológico deste ser para os Karitiana, uma

vez que ignoram a realidade experiencial habitada por este povo indígena, negando-a, quando a expõe como folclórica, falsa, literária ou supersticiosa, ou reduzindo-a a uma expressão equivocada de um objeto de conhecimento autorizado, mas ainda à espera de confirmação. É sobre um complexo diálogo entre crenças folclóricas, ontologias indígenas e hipóteses científicas que trato aqui, sem, claro, a pretensão de avançar mais do que um breve tratamento analítico de uma pequena e localizada questão. Longe de mim, com esta discussão, querer negar o valor dos estudos literários acerca de narrativas indígenas, cuja contribuição para nosso conhecimento dos saberes nativos está mais do que comprovada, ainda que eu seja algo cauteloso quanto à equação entre mito e literatura, tendo por base os argumentos de Lévi-Strauss (1975, 2004 [1964]). Como textos, as narrativas ou discursos indígenas (míticos ou de outra natureza) podem ser analisados de muitas formas concernentes à teoria literária (Medeiros, 1991) ou à linguística (Sherzer e Urban, 1986; Basso, 1990; Ferreira, 2015), embora, aqui, eu esteja majoritariamente escrevendo contra a ideia de que textos como estes estejam veiculando conteúdos fantasiosos e, por esta razão, devam ser tratados como fantasias, lendas, contos, fábulas ou mesmo mitos, no sentido popular que o termo assume correntemente; o que não significa, claro, que não possam ser apreciados e estudados por suas qualidades literárias, estilísticas ou poéticas. Meu argumento dirige-se, sobretudo, contra análises antropológicas (ou de inspiração antropológica) das narrativas indígenas como se fossem somente contos ou lendas. Talvez seja o caso de subscrever as palavras de Sá (2012, p. 26), em seu esclarecedor estudo das interpenetrações entre literaturas indígenas e não indígenas na Amazônia e na América indígena em geral:

Mais informações sobre os Karitiana podem ser encontradas em Vander Velden (2012) e Araújo (2014). Uma decisão teve de ser tomada quanto a grafar este termo com inicial maiúscula ou minúscula. Trata-se de definir se o Mapinguari é um único monstro que assola o território Karitiana ou se há um coletivo de mapinguaris, referido sempre no singular, mas, expressando sempre um entre vários de um mesmo tipo (ou espécie). Creio que esta questão não se coloca para os Karitiana que, como em outras cosmologias amazônicas, afirmam noções análogas àquela definida como “pessoa magnificada” (Fausto, 2008), em que a unidade contém a multiplicidade e esta não está, necessariamente, em conflito com aquela. Optei, então, pela grafia Mapinguari porque se trata, afinal, de um nome próprio, preservando a forma com caixa baixa apenas quando assim empregada por outros autores.

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‘filho do irmão da mãe’4; alguns Karitiana glosam o termo como ‘comedor de gente’), Kida harara (‘coisa/bicho que ri’, ‘ogro que ri’, segundo Araújo, 2014, p. 171 – harara, certamente uma onomatopeia, nome que, segundo eles, não deve ser pronunciado no interior da floresta), ou Kida so’emo (‘coisa/bicho da cara preta’, provavelmente em função da coloração negra da abundante pelagem que cobre sua face horrenda)5. Alguns Karitiana sustentam que uma criatura que denominam Bicho-preguiça gigante (O’i ty, literalmente ‘bicho-preguiça grande’) é um ser diferente do Mapinguari, hipótese com a qual concordam Vegini et al. (2014, p. 78-79), sugerindo que a fusão do Mapinguari com o Bicho-preguiça gigante decorre da penetração das mídias e dos conhecimentos das populações rondonienses do entorno entre as gerações indígenas mais novas (dois dos quais são jovens entrevistados pelos autores). A maioria dos meus informantes Karitiana afirma, entretanto, que o Mapinguari e o Bicho/Macaco-preguiça gigante são o mesmo horripilante ser, e suas características coincidem em termos gerais: diz-se do Bicho-preguiça ou Macacopreguiça gigante que não morre com tiros porque seu peito e costas “têm pedra”; tem a altura de um homem (cerca de dois metros) ou é grande “como tratorzinho”; dispõe de braços fortes que matam animais com um abraço, e de unhas e dentes enormes; e, quando é encontrado na mata, grita como porco, o que engana caçadores, os quais pensam se tratar de porcos do mato e, incautos, aproximam-se. Parece-me, em suma, que tratamos do mesmo ente, mas nomeado de formas diversas. As denominações Macaco-gorila ou preguiça-gorila foram-me

Quanto à sacralidade dos mitos e às funções que supostamente lhes seriam específicas, como a explanação e a legitimação de valores culturais, elas não excluem, a meu ver, seu papel como literatura, como pode demonstrar qualquer estudo sobre Hesíodo, Homero ou a Bíblia. Isso não quer dizer que eu queira eliminar dos vocabulários ocidentais a palavra “mito” e seus derivados, ou que pretenda sugerir que “literatura” deva substituir “mito” em todos os contextos. Ler os textos indígenas como literatura é só uma possibilidade entre várias, e que ainda está por ser mais explorada, especialmente no que diz respeito às Américas.

Com efeito, tratar os aspectos ou qualidades estéticas de mitos não necessariamente implica questionar a veracidade ou verossimilhança destas narrativas. Como dizem Vegini e Vegini (2015a, p. 2-3), em estudo sobre o mapinguari, não se deve confundir “‘mito’ ou ‘lenda’ (...) com ‘inverdade’, ‘imaginação’ ou ‘fantasia’”, buscando-se, assim, transcender a oposição “maniqueísta ‘verdade/ mentira’”. Entretanto, não estou seguro de que a simples substituição dos referidos termos pela noção de “narrativa”, conforme sustentam os dois autores (Vegini e Vegini, 2015a, p. 2-3), afasta o problema, e discordo totalmente da afirmação, feita também por eles, de que “pouco importa se ela [a narrativa] retrat[e] o real ou o imaginário”. Tal questão importa muito, pois constitui pedra de toque fundamental na definição do modo como tratamos a textura da realidade habitada por outros povos.

O MAPINGUARI KARITIANA Os Karitiana traduzem com o difundido termo Mapinguari3o nome de uma criatura que, na sua língua, denominam de Owoj (ou Owojo, literalmente ‘avô materno’ ou também

Ser que eles também denominam, em português, de pé-de-garrafa (em função do formato arredondado de suas pegadas) ou, cada vez mais, de bicho-preguiça, macaco-preguiça gigante (O’i ty) ou mesmo macaco-gorila. 4 Nomes (aqueles na língua Karitiana) e algo que podemos chamar, por falta de termo melhor, de identidades, são transmitidos, entre os Karitiana, entre gerações alternadas; desta forma, o neto recebe o nome de seu avô, que o denominará de ‘meu eu novo’ ou ‘eu renovado’. Assim, a posição estrutural de avô materno e filho do irmão da mãe é idêntica do ponto de vista de ego, já que os dois indivíduos possuem o mesmo nome e a mesma identidade (o nome de ego masculino é herdado do pai de seu pai; logo, seu primo cruzado matrilateral receberá o nome de seu avô paterno, pai da mãe de ego). 5 Câmara Cascudo (2002, p. 223) sugere, para a etimologia do nome mapinguari, uma contração de mbaé-pi-guari, do Tupi “a cousa que tem o pé torto, retorcido, ao avesso”. Nisso pode-se notar que o Mapinguari Karitiana difere em alguns pontos sensíveis do monstro, como relatado por não indígenas. 3

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fornecidas por um interlocutor que teve a oportunidade de ver um gorila (Gorilla gorilla) na cidade de Porto Velho, animal que lhe ofereceu imediato objeto de comparação e forma de demonstração de algumas das características do Mapinguari, especialmente a cor da pelagem e o tamanho6. O Mapinguari Karitiana pertence a uma categoria de seres (talvez mais um estado ou condição de vários seres) cuja tradução pode ser o termo genérico em português ‘coisa’ (como em kida’o, ‘coisa redonda’, fruta) ou ‘bicho’, no sentido de criatura agressiva, terrível, assassina, assustadora, monstruosa, excessiva, perigosa, mortal. O termo kida – que Íris Araújo (2014, p. 111-116) prefere grafar como kinda e traduzir como “ogro” – é usado para descrever desde seres que chamamos de sobrenaturais7, até alguns que a zoologia classifica como animais, mas que são caracterizados pelos Karitiana por sua ferocidade, sua disposição homicida, sanguinária e canibal, e sua disposição em investir agressivamente contra os humanos – onças, serpentes, piranhas, jacarés, mas também até mesmo carrapatos, aranhas e lacraias (Vander Velden, 2012). As características deste Mapinguari Karitiana são comuns – ao menos algumas delas – às de outras figurações amazônicas da criatura, sumarizadas de forma ampla, mas sinteticamente, em Vegini et al. (2014, p. 102) e Vegini e Vegini (2015a, p. 4-5; 2015b). Trata-se de uma enorme criatura (“tem 3 metros de altura”, dizem) coberta de pelos pretos, mas que parece gente. Possui unhas em forma de gancho, dentes enormes (“de 20 centímetros”) para fora da boca e olhos vermelhos “como fogo”. Antropófago, “comedor de gente”, ataca com os braços levantados (como os “espíritos maus”) e mata as pessoas arrancando braços e pernas antes de devorá-las. Balas e flechas não conseguem perfurar seu peito e barriga, que são “como

pedra” ou “têm pedra”, e que nada pode furar (chumbo seguramente não; balas talvez furem, postulam os Karitiana; mas ele é, segundo a maioria dos interlocutores, imortal). Dorme em pé e, grande “como tratorzinho”, anda pela floresta dia e noite, fazendo a terra tremer, arrastando o pé e derrubando árvores, quebrando e arrebentando palmeiras de babaçu (que ele gosta de comer) – por isso não é prudente caminhar sozinho pela mata na escuridão. Vive em uma caverna no rumo sudeste da aldeia de Kyõwã, uma caverna grande em que “cabem quatro caminhões” e na qual ninguém pode ou deve entrar, pois está guardada por enormes morcegos vampiros, que só existem ali, além de jacarés e poraquês (peixes-elétricos). Diz-se, ainda, que estes poraquês são sua borduna (ou lança) e que o sangue humano é sua chicha (a apreciada cerveja de mandioca). Vegini et al. (2014, p. 60) assim descrevem o Mapinguari (“Bicho-preguiça gigante” ou “Macacãopreguição”), a partir das narrativas experienciais de seus três informantes Karitiana: [A] caçada teve início durante o dia, mas o Bicho-Preguiça gigante foi avistado no entardecer e à noite enquanto o Macaco-Preguiça gigante, somente durante o dia; esse bicho ou macacão andava na mata, meio devagar, era muito feio, grandão e amedrontador, tinha um enorme braço, com o qual circundava cipozão e árvores, a cabeça era igual a de um macacão preguição, cabeça grande, tamanho da lua, era binocular, tinha dois pés grandes e feios, tinha unhas, pele lisa, pelo por todo o corpo e cara, ou sem pelo na cabeça, no rosto e no peito, e/ou tinha pedra pelo corpo inteiro, era invulnerável à bala e valente, arrebentava cipó, fazia zoada na mata batendo os dentões, quebrava tudo, parecia um trator, parecia uma máquina, quebrava árvores, gritava feio, berrava, roncava grande, roncava alto, ficava de/em pé e perseguia os caçadores, que tinham que fugir para não morrer (itálicos no original).

Lembremos que os símios sul-americanos são todos muito menores do que os gorilas e outros, grandes macacos do Velho Mundo. Noto, ademais, que, na taxonomia Karitiana, o bicho-preguiça parece ser classificado juntamente com os macacos (por isso, o’i é glosado em português como ‘macaco-preguiça’). 7 Como, por exemplo, o Curupira – Dopa, na língua Karitiana – e um conjunto de espíritos – psam’em, traduzidos às vezes como ‘espíritos maus’ – e outros monstros assustadores da floresta ou seres aberrantes os quais figuram em narrativas do passado que chamamos de mítico (o tempo antigamente dos Karitiana). 6

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Parece haver, assim, boa dose de semelhança entre o Owoj/Kida harara/Kida so’emo (o Mapinguari Karitiana) e o Mapinguari, digamos, ‘clássico’, conhecido das recoleções de lendas e contos populares tradicionais desde Câmara Cascudo (2002); das coletâneas de causos de seringueiros no Acre (Melo, 1989; Costa Sobrinho, 20098); no Amazonas (Saldanha Sobrinho, [1995], p. 117-120) e em Rondônia (Bariani, 2013; Santos, 2014); de trabalhos etnográficos em várias regiões amazônicas (Wawzyniak, 2012); no rio Tapajós, Pará, por exemplo9; e também da literatura de expressão nacional, como no conto de Rachel de Queiroz, “Mapinguari”, publicado originalmente em 1972 (Queiroz, 1989). Tais materiais foram bem analisados por Vegini et al. (2014) e também por Vegini e Vegini (2015a, 2015b), que coligiram extenso corpus (incluindo narrativas de três indivíduos Karitiana), de modo a determinar as características da criatura “pan-amazônica”, como sustentam – ecoando Câmara Cascudo (2002, p. 222), para quem “o Mapinguari é o mais popular dos monstros da Amazônia” –, quase em tudo coincidentes com aquelas que, aqui, descrevem o Mapinguari Karitiana10. Mas como tratar estas coincidências? O Mapinguari que vive próximo às aldeias Karitiana é o mesmo que vaga por seringais acreanos ou por outras remotas paragens amazônicas? Como compreender esta aparente vasta difusão territorial do temido ogro, este “verdadeiro demônio do Mal”, nas palavras de Câmara Cascudo (2002, p. 222)?

MUNDOS REAIS E IMAGINÁRIOS Vegini et al. (2014, p. 89-96) tratam detalhadamente o fenômeno da difusão das imagens análogas do Mapinguari amazônida a partir da noção de um amálgama (um “cadinho

cultural luso-indígena”), efetuado ao longo da história dos contatos, na Amazônia, de narrativas de origem europeia (majoritariamente portuguesas), de crenças originárias no nordeste brasileiro e trazidas para o norte pelos imigrantes atraídos pela economia da borracha e pela colonização do oeste, e de mitos indígenas locais e ancestrais. Ideias, como pessoas, circulam, e na medida dos contatos entre diferentes tradições foi-se paulatinamente homogeneizando e cristalizando uma imagem relativamente comum do ogro antropófago: nas palavras dos autores, em outro artigo (Vegini e Vegini, 2015b, p. 6), “o surgimento do Mapinguari [note-se, não das narrativas sobre o Mapinguari], fruto de inúmeras adaptações de personagens monstruosas da tradição europeia e indígena” teria ocorrido “(...) durante os ciclos da borracha na Amazônia no final do século XIX e nas primeiras cinco décadas do século XX”. Como antropólogo, temo não ter as ferramentas para discutir esta hipótese, e considero plausível supor que as descrições que hoje os Karitiana fornecem do Mapinguari – incluindo, claro, sua opção por assim denominar, com o termo regional, a monstruosa criatura – podem ser resultado de reflexões conjuntas com seringueiros nordestinos, com quem estão em contato há pelo menos cem anos, e com a cultura rondoniense e amazônica em geral. O meu problema dirige-se, particularmente, contra a ideia de que o Mapinguari seja uma personagem mítica, um tropo narrativo ou uma criatura lendária, ou seja, uma crença. Encontros reais com o Mapinguari são narrados por vários caçadores Karitiana – histórias também coletadas por Vegini et al. (2014, p. 55-65, 135-141) –, os quais afirmam que o bicho habita uma caverna na Serra Moraes, formação rochosa que se espraia pela porção sudeste da terra indígena, evitada reiteradamente pelos índios em função do perigo: andar por aquela região é condenar-

Em Costa Sobrinho (2007) pode-se ver ainda a conhecida pintura do Mapinguari pelo artista acreano Hélio Melo. Uma criatura notavelmente semelhante ao Mapinguari em seu corpo e seus hábitos, chamada Segamai, existe entre os Matsigenka na Cordillera de Vilcabamba, Peru (Shepard Jr. e Chicchón, 2001, p. 172-173). 10 A diferença mais significativa está por conta da “posição anômala da boca, rasgada verticalmente até a barriga ou o umbigo”, que Vegini e Vegini (2015a, p. 5) identificam em 55% das narrativas por eles analisadas, mas que não é mencionada pelos Karitiana. 8 9

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se ao inescapável encontro fatal com a fera agressiva e antropófaga. Relataram-me, por exemplo, em uma conversa, Carlito, Roberto e Marinete Karitiana: Uma vez estávamos caçando e começamos a ouvir espocadas – “pá, pá, pá...” –, e pensamos que era carro, mas não era. De noite às vezes a gente escuta barulho dele espocando [quebrando, arrebentando] babaçu na mata. Um índio, uma vez, encontrou preguiça gigante no igarapé que passa na roça dele, perto da aldeia [Kyõwã], atirou, o bicho caiu um pouco pra trás, mas não morreu. Este bicho tem pedra no corpo, é de pedra, por isso não adianta atirar, não morre. O Mapinguari come as pessoas, não é bom andar sozinho no mato. Mapinguari vive também na Serra Morais. Ele é invisível, aparece e some; seu dente parece estaca, ele é peludo. Bicho mau, quando sente presença de pessoa, mata e come. Faz zoado como fogo, vira fogo, não pode chegar perto dele. O bicho da Serra do Morais se transforma em gente quando encontra alguém, conversa com pessoa e depois come seu espírito; a pessoa volta na aldeia, fica doente e morre. Ele também se transforma em outros animais. Se não incomodado, não faz nada, mas ataca se for atrás dele, com as mãos levantadas, como espírito dos mortos [psam’em]. Nome dele é kinda harara, mas não pode chamar o nome no mato, pois aí o bicho aparece e mata a pessoa. Também é chamado de owoj. Quando ele anda, a terra treme. Uma vez ele veio até a aldeia, e todo mundo correu (informação verbal, aldeia Kyõwã, setembro de 2006).

Via interessante de análise, talvez, seja não questionarmos diretamente o estatuto deste ser – se produto cultural compartilhado ou presença real –, mas observarmos, etnograficamente, os efeitos de sua existência nas imediações das aldeias e na vida cotidiana dos Karitiana. Esta opção sugere que a descrição de outros mundos – povoados, pois, por outros seres – não implica, necessariamente, a aposta em um conflito entre a versão científica – que enuncia, logicamente, verdades – sobre o mundo e outras versões sobre outros mundos. Porque não se trata de investigar o que os Karitiana

dizem a respeito do mundo, mas como o experimentam na sua faina diária ou em eventos extraordinários. Conforme Koss-Chioino (2010, p. 135), certos seres (como os espíritos, no caso da autora) não precisam ser, mandatoriamente, objetos de ciência, posto que sua existência queda confirmada pelo que “we can apprehend only sometimes through our usual or special senses”. Não é o caso, pois, de ‘acreditar’ no que dizem os Karitiana, e nem de tomar seus ‘discursos’ como verdadeiros, mas sim de reconhecer a validade de suas experiências do mundo em que habitam, um mundo estranho para nós, mas, seguramente, o mundo real deste povo indígena, talvez o único de que eles dispõem. Tratase, pois, não de explicar o mundo Karitiana – verificação que serve tão somente para destruir o possível (Viveiros de Castro, 2002, p. 131) – e, desta forma, domesticá-lo em um tipo de realidade em que o antropólogo possa adentrar com segurança (com a mente e em carne e osso): eu não tenho a menor intenção de andar pelas matas que delimitam as aldeias Karitiana com medo do encontro potencialmente fatal com o Mapinguari, embora esteja certo de que meus companheiros indígenas temem, mesmo que no íntimo, tal possível infortúnio. E, como se verá, eu mesmo, ao fim e ao cabo, não me considero imune a esta possibilidade de ser tocado por uma “experiência extraordinária” (Goulet e Miller, 2007)11. O que estou querendo sugerir é que podemos tratar o que dizem os Karitiana sobre seu mundo como afirmações acerca do real porque elas se expressam não apenas por palavras, mas também por experiências efetivas e afetivas, as quais, se são a mim acessíveis porque narradas, não obstante afetam consideravelmente aqueles que já toparam com o monstro ou conhecem as histórias de fontes seguras. Não tomo, portanto, como meu objeto de reflexão aqui, apenas o “pensamento” indígena (Viveiros de Castro, 2002, p. 130), mas também as “experiências” indígenas do e no mundo. As verdades sobre o mundo

Que, conforme Koss-Chioino (2010, p. 137), só pode ser extraordinária para mim, antropólogo fora de casa, uma vez que o que defendo aqui é justamente que a experiência do encontro com o Mapinguari é algo aberto à experiência ordinária dos Karitiana.

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não interessam apenas como expressões do pensamento – ainda que este pensamento esteja, claro, intimamente vinculado às experiências que estruturam mundos ameríndios –, mas de ações e reações, e o pressuposto aqui, tal como brilhantemente discutido por Almeida (2013, p. 9), é o de que “ontologia e encontros pragmáticos não são separáveis”, ainda que aquela vá muito além destes, ao conferir-lhes sentido, “pois nesses encontros, que chamamos também de eventos pragmáticos, ‘tudo se passa como se’ o mundo existisse de fato conforme a ontologia em questão” (Almeida, 2013, p. 9). Desta forma, o Mapinguari Karitiana – o Owoj/Kida harara/Kida so’emo – deixa de ser uma lenda ou uma crença – ele, de fato, não o pode ser (Viveiros de Castro, 2002, p. 130-132) – e torna-se matéria do mundo real, do mundo tal como os Karitiana habitam. Os Karitiana não acreditam no Mapinguari, pois dizê-lo seria suspeitar que uma camada de crença – produção, pois, da mente (para interpretações psiconeurológicas) ou do espírito (para interpretações de matiz religioso) – que recobre um mundo duro, real, realmente existente, no qual – sabemos todos nós, fieis à ciência – Mapinguaris não existem. Os Karitiana viveriam, assim, em erro, ilusão ou loucura: sua realidade não seria a realidade real, aquela única, que as várias disciplinas científicas se ocupam em descortinar e nossa experiência cotidiana serve (ou, ao menos, deve servir) para confirmar. Pior: tomado como uma lenda, ou narrativa mítica, será preciso supor que os Karitiana viveriam em uma espécie de paranoia, tendo horripilantes encontros na floresta com uma criatura imaginária e evitando porções de seu território – ricas em caça, dada a ausência prolongada de predadores humanos – por uma arraigada fidelidade a uma narrativa literária vazia de referentes. Ecos de mentalidades pré-lógicas ou de confusão mental nos espreitam aqui. E discutir ou questionar as afirmações Karitiana pode servir, afinal, apenas para separá-los de nós: como diz Tsing (2005, p. 138), “debates about the existence of the supernatural [sic] deepen the chasm between city and countryside (...)”.

PALEONTOLOGIA (ALGO FANTÁSTICA) E CRIPTOZOOLOGIA Parece-me, contudo, que seguimos obstinadamente recusando a realidade de outros seres, de outros mundos, que não aqueles autorizados por nossos estreitos cinco sentidos e pelas complexas elucubrações científicas ou filosóficas nas quais acreditamos (e, aqui, vai um juízo de valor, note-se) sem pestanejar. Uma das saídas frequentes para a necessidade de explicar o inexplicável, por assim dizer, é o recurso ao mistério: asseverar que uma crença ou lenda pode ser verdadeira, ou descrever a realidade real (a única, claro), desde que as narrativas indígenas sejam reduzidas a um objeto científico mais ou menos autorizado, ainda que totalmente dependente das técnicas de confirmação desenvolvidas pelas diferentes disciplinas. A Amazônia – assim como outras partes do Brasil – sempre foi repleta de mistérios, e desde os primeiros relatos da conquista esconde mulheres guerreiras, cidades perdidas e reinos dourados (Giucci, 1992; Langer, 1997; Silveira, 2010); Rondônia, claro, não escapa da força deste tropo colonial, em que príncipes incas em fuga escondem tesouros fabulosos em minas esquecidas (Pinto, 2012). Por que não poderia seguir ocultando uma criatura que apenas os índios, seringueiros e velhos ribeirinhos conhecem? Real, portanto, ainda que elusiva para a ciência e seus praticantes obcecados pela verdade e pela comprovação de hipóteses bem pensadas? É isso que fazem alguns pesquisadores, ao identificarem o Mapinguari amazônico com as preguiças gigantes (também chamadas megatérios ou preguiças terrestres), animais enormes (o nome se traduz como ‘besta gigante’) – e parentes distantes dos bichos preguiça atuais (ordem Xenarthra) – que comprovadamente habitaram a região meridional do continente americano (do Peru à Argentina, incluindo a Amazônia; ver Ranzi, 2000, 2008) até o final do período pleistocênico, tendo se tornado extintos há cerca de 10 mil anos. Desde o final do século XIX, o paleontólogo argentino Florentino Ameghino já sugeria que histórias indígenas provenientes

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de diversas partes das Américas que tratavam de criaturas monstruosas (como a do Mapinguari) poderiam estar fazendo referência ao conhecimento experiencial – atual, ou passado, mas transmitido por incontáveis gerações – de preguiças gigantes: estas criaturas representariam “a sobrevivência de algumas preguiças gigantes (...) no interior da Floresta Amazônica” (Vegini e Vegini, 2015b, p. 2)12. Mais recentemente, o ornitólogo estadunidense David Oren tem sido incansável defensor da tese de que preguiças gigantes ainda vagam pelas florestas da imensa planície, desconhecidas pela ciência, mas presentes na experiência vivida das populações nativas que, mais do que ninguém, conhecem os mistérios da Amazônia (Oren, 1993). A criatura que as populações amazônicas chamam de Mapinguari seria, então, um fóssil vivo, uma preguiça gigante, “the world’s last living giant ground sloth” (Bugge, 2001). Oren já organizou diversas expedições em busca desses animais ao longo de 20 anos, mas, ao que se sabe, jamais teve sucesso no que viria a ser a “mais espetacular descoberta zoológica do século” (Shepard Jr. e Chicchón, 2001, p. 173)13. Penso que a busca de Oren tem sido infrutífera porque o que ele procura, e o que as populações

amazônicas contam a ele, são dois objetos de conhecimento completamente distintos: o animal pré-histórico e o bicho Karitiana (e, creio, também os Mapinguaris de outras partes da hileia) são dois seres muito diferentes14, que habitam mundos distintos. Não podemos, assim, dissolver um no outro, sob o risco de afirmar que o conhecimento indígena da realidade só adquire validade a partir do momento em que se torna chancelado pela descoberta de um objeto científico autorizado: ou seja, se o Mapinguari é um bicho-preguiça gigante sobrevivente, ele é real (e objeto de ciência), se não, ele é lenda (e objeto de crença e, depois, talvez, de literatura). O trabalho de tentar converter, por assim dizer, o mundo Karitiana ao mundo real, acaba por chancelar o reconhecimento de que este mundo indígena não é um ‘mundo possível’ para nós, posto que sua atualização só pode operar via confirmação científica de que o Mapinguari é o bicho-preguiça gigante remanescente. Como Mapinguaris não são, para nós, citadinos contemporâneos, nem reais e nem virtuais – ele não é uma possibilidade deste nosso mundo –, o relegamos ao estatuto da crença ou da lenda. Mapinguaris sequer podem ser atualizados por nosso mundo como objeto científico, posto que, feito isso, ele se converte em um

Ver Mapinguari (2015). Em um paralelo evocativo, o padre Tastevin (Tastevin, 1925 apud McCallum, 2001, p. 147) registrou, nos anos de 1920, que os Kaxinawa no rio Muru consideravam grandes fósseis encontrados na região como os ossos dos Hidabe, os gigantes que habitavam o mundo antes de uma grande inundação. Neste caso, os ossos fósseis de animais (objetos de ciência) são os vestígios de uma humanidade pretérita (objeto do mito). Em uma interessante anedota, registrada em Shepard Jr. e Chicchón (2001, p. 173), um jovem Matsigenka, que tem a oportunidade de ver um modelo em tamanho real de uma preguiça-gigante em um museu de história natural em Lima (Peru), exclama, fazendo uma clara associação (e confirmando, obviamente, sua existência) entre o animal extinto e o Segamai, monstro que os Matsigenka afirmam existir em sua região: “Remember that story about the Segamai? Well it’s not just a story! I saw one at the Museum!”. 13 Vários sítios na web trazem as considerações de Oren acerca da identidade entre preguiças-gigantes e o mapinguari. Ver, por exemplo, Cientistas... (2007), Woolheater (2005) ou Rohter (2007). 14 concordamos: o Mapinguari “é personagem muito distinta do Megatério”. Mas concordamos por razões diferentes: os dois autores citados afirmam que as características do Mapinguari – aferidas por meio da excelente recoleção de textos que produzem – são muito distintas daquelas com que a paleozoologia descreve o Megatério, destacando-se o fato de que preguiças-gigantes tinham cauda (conhecidas pelo registro fóssil), ao passo que nenhuma história do Mapinguari menciona um apêndice caudal. Detalhes menores, em minha opinião, que bem podem ter sido omitidos das descrições orais ou literárias do monstro: meu ponto é localizar a diferença não no corpo dos dois seres, mas nos mundos que habitam e onde produzem efeitos divergentes, um mundo da ciência e outro mundo dos Karitiana (e outras populações tradicionais). De todo modo, subscrevo a afirmação dos autores (Vegini e Vegini, 2015b, p. 7-8) de que “foi, é e será inútil pesquisadores empreenderem expedições científicas para tentar comprovar a sobrevivência de algumas preguiças gigantes no interior da floresta amazônica, e estou ainda mais de acordo com sua conclusão, de que mais inútil ainda, é e será tentar estabelecer relação entre esses animais com as narrativas que falavam e ainda falam do Mapinguari em comunidades isoladas [sic] no interior da Amazônia, que é uma questão de outra ordem”. 12

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objeto relativamente estável e previsível – já que atestado pelo registro fóssil –, designado bicho-preguiça gigante. Não posso negar, de todo modo, e por razões várias, que bichos-preguiça gigantes possam ainda, depois de 10 ou 12 mil anos de esquecimento, vagar pelas partes mais inóspitas da Amazônia: afinal, a descoberta de novas espécies de grandes mamíferos não é incomum – embora seja evento relativamente raro – mesmo nos dias de hoje, globalizados e hiperpovoados (McElwee, 2007). E isso vale, inclusive, para a região habitada pelos próprios Karitiana, onde uma nova espécie de anta (a anta pretinha, Tapirus kabomani) foi “descoberta” pela biologia em 2013 (Cozzuol et al., 2013), após anos de insistentes alegações, da parte do grupo indígena, de que ali sempre existiram antas de “tipos” diferentes. Esta busca científica por espécies (ou espécimes) fabulosas, lendárias ou monstruosas, claro, não é nova. Ela inflama a imaginação ocidental desde o medievo, com sua rica fauna de seres estranhos encontrados na Europa de tempos antigos, mas, sobretudo, nos confins de terras distantes ocasionalmente visitadas por audazes viajantes. Este fabulário fantástico transferiu-se para as Américas já desde Cristóvão Colombo (Palencia-Roth, 1996), e para o Brasil (D’Escragnolle-Taunay, 1998; Del Priore, 2000; Bellei, 2000), locais onde dialogou com narrativas indígenas sobre criaturas monstruosas e entes mais-do-que-humanos ou menos-do-que-humanos (Magaña, 1992; Mason, 1990; Magaña e Mason, 1987)15. Diálogo seguramente embebido em uma profusão de mal-entendidos, ele vêm contribuindo para reforçar certa construção de uma imagem colonial das Américas, e da Amazônia em particular, como lugares do mistério e, daí, do tesouro, cujo destino natural é serem prospectados e explorados até a exaustão. Há de se notar, ainda, que a etnografia das terras baixas sul-americanas ilustra a profusão de seres estranhos

e amedrontadores que povoam a floresta e ameaçam a vida dos mais incautos, criaturas que habitam o tempo dos mitos – que, como passado absoluto, nas palavras de Viveiros de Castro (2006, p. 323), em devir permanente no tempo do agora, “passado que nunca foi presente e que portanto nunca passou, como o presente não cessa de passar” – mas que também percorrem as profundezas das matas, especialmente nas madrugadas, em busca de carne humana para matar, devorar e saciar-se (Gonçalves, 2001; Araújo, 2014; Souza, 2015; Shepard Jr. e Chicchón, 2001). Entre os Karitiana não é diferente, e tais personagens monstruosas povoam não apenas as vizinhanças de suas aldeias, mas cumprem papel importante em suas reflexões acerca da pessoa, dos corpos e dos eventos do mundo, como demonstrou extensamente Araújo (2014). O progressivo desencantamento do mundo promovido pela ciência leva tais mundos singulares à sua redução a partir da afirmação ontológica da unidade da natureza diante da variabilidade cultural da humanidade – única variação possível, diga-se de passagem. Assim que narrativas tradicionais sobre seres humanoides se convertem em evidências de convívio experiencial com hominídeos primitivos atestados pelo registro fóssil, mesmo na antropologia (Forth, 2012). Ou, pelo lado oposto, como exemplares da temível degeneração da cultura em natureza animal realizada, entre outros, pelas chamadas crianças selvagens, busca que Lévi-Strauss (1982 [1949]) demonstrou ser mais um tropo colonial dos séculos XVIII e XIX do que propriamente ciência. E monstros indígenas tornam-se avatares de animais pré-históricos, o que cabe aos novos intrépidos viajantes caçar – fotografar e, se possível, capturar, pelo bem do registro e da documentação científica, nessa atividade, meio séria e meio jocosa, que se costuma designar como ‘criptozoologia’ ou ‘zoologia fantástica’. A mídia, é evidente,

Note-se que o Mapinguari amazônico (e Karitiana) apresenta várias semelhanças com criaturas monstruosas encontradas em outras partes do mundo, como o Bigfoot (Pé-grande) norte-americano, o Sasquatch canadense e o Yeti (“o abominável homem das neves”) (Siiger, 1978; Buhs, 2009) tibetano. Estas semelhanças certamente têm parte no interesse da National Geographic (e de seu público) pelo ogro amazônico.

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explora com gosto esta pretensa oscilação entre fato bruto e produção imaginária – pretensa, porque a busca por criaturas lendárias perdidas mundo afora (pés-grandes, yetis, chupa-cabras, mapinguaris, lobisomens, vampiros e mesmo alienígenas, entre muitos outros) explora as pistas fornecidas por narrativas locais, trabalha, de fato, com a iminência do que seriam confirmações destas, por meio da observação meticulosamente anotada e da consequente chancela científica. Se o povo acredita em monstros, eles podem mesmo existir, mas a ‘crença’ popular – ‘crença’, note-se, não afirmação sobre o mundo real – deve imperativamente ser substituída pela evidência científica. Destarte, o Mapinguari Karitiana deverá ser convertido, em seu devido momento, em um megatério remanescente. Tal interface midiática entre ciência e histórias locais sobre monstros e criaturas incomuns acabou por ter um impacto sobre os próprios Karitiana, visitados por uma equipe do canal de televisão norte-americano National Geographic Channel em 2011. O canal gravou, entre os Karitiana, um programa – intitulado “Nightmare of the Amazon” e exibido nos EUA em 4 de março de 2011 (e, no Brasil, em 22 de maio do mesmo ano) – da série “O caçador de monstros” (“Beast hunters”), sobre o Mapinguari. Nele, o Mapinguari é descrito, em inglês, como “a manlike creature”, e é denominado “a brazilian bigfoot”16, em uma referência clara para os telespectadores nos Estados Unidos, muitos deles aficionados na procura pelo famoso Pé-grande. No programa, o cientista e biólogo Pat Spain viaja até os Karitiana para investigar a realidade da existência do Mapinguari a partir das histórias que contam os indígenas, incluindo horripilantes encontros com a criatura na floresta; a metodologia da ‘investigação’ de Spain, conforme sua autoapresentação, “typically involves interviews with local

witnesses, setting up camera traps, and in some cases, searching for similar animals in the local fossil record”, e o episódio, com 45 minutos de duração, opera uma miscelânea de procedimentos científicos, truques de câmera, e práticas e narrativas indígenas com, obviamente, uma (boa) pitada de descrença, que beira mesmo à gozação17. O programa exibido pelo NatGeo, óbvio, não comprovou a existência do Mapinguari. Tampouco fez qualquer coisa por sua negação: ambos os resultados seriam impossíveis, tal como defendo neste artigo. De fato, quando estive entre os Karitiana em junho de 2012 o grupo estava particularmente irritado com os trabalhos da equipe do show televisivo, que, segundo eles, não havia pagado aquilo que prometera aos seus informantes privilegiados. Um rapaz na casa dos 35 anos que, no programa, narra seu encontro com a fera na estrada que dá acesso a uma das aldeias Karitiana – e um dos principais interlocutores de Pat Spain na ocasião – estava visivelmente constrangido com toda a situação, posto que nada havia recebido, segundo ele, do dinheiro que fora acordado entre a produção e os indígenas. Na ocasião, os Karitiana teriam procurado o Ministério Público Federal em Rondônia para denunciar o ocorrido, mas não disponho, lamentavelmente, de maiores informações a respeito. Os Karitiana fazem menções a outras visitas de pessoas que eles chamam genericamente de ‘americanos’, e que estiveram na terra indígena para tentar filmar o Mapinguari ou ainda, contam – não sem certo humor –, para matá-lo. Ninguém o encontrou, ninguém o matou: o Mapinguari Karitiana não habita o mundo duro, unificado e purificado (Latour, 1994) das disciplinas científicas, nem o, por vezes, tresloucado mundo da (pseudo)disciplina criptozoológica, que só pensam em atirar, capturar, taxidermizar e colecionar.

Dados disponíveis em Beast Hunter (2005) e em Lup (2011). O programa do NatGeo apresenta uma variedade de questões e merece uma análise mais detalhada do que é possível fazer aqui, especialmente explorando a relação de Pat Spain com o conhecimento Karitiana e com a natureza da terra indígena e as técnicas que, combinando ciência e televisão, são empregadas para obter provas da existência do ‘pesadelo amazônico’. Trailers do programa podem ser conferidos em Amazon Nightmare... (s.d.) e em Nightmare of the Amazon (s.d.) (este último site apresenta conteúdo adicional ao programa de televisão).

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Ele habita o mundo em que vivem os Karitiana, e se para dar cabo do monstro é preciso coragem e sangue frio no tiro de precisão, para encontrá-lo é imperativo, talvez, ser afetado (Favret-Saada, 2005; Goldman, 2003) por seu cheiro nauseabundo e seus urros horríficos. Assim, multiplicamos nosso mundo, “povoando-o de todos esses exprimidos que não existem fora de suas expressões” (Deleuze, 1969 apud Viveiros de Castro, 2002, p. 132).

OBJETO INSÓLITO Estamos, então, diante de três distintos discursos (que constituem, cada um em sua especificidade, afirmações ontológicas) que versam sobre a figura comumente denominada Mapinguari na Amazônia brasileira, e que se configuram como genuínos “problemas ontológicos” (Almeida, 2013)18: •

O Mapinguari dos Karitiana, o ser nomeado como Owoj, Kida harara ou Kida so’emo, real habitante das perigosas matas que cobrem a Serra Moraes, nos confins da terra indígena, bicho-monstro-ogro homicida e antropófago com quem os Karitiana por vezes topam em encontros aterrorizantes, que buscam sempre evitar; O Mapinguari como um bicho-preguiça gigante ou megatério remanescente da fauna pleistocênica da Amazônia, fóssil vivo conhecido apenas pelos habitantes nativos (e antigos), mas escapando renitentemente da observação científica; espécie de imagem mítica de uma realidade científica, parafraseando, de certo modo, Sahlins (2008 [1981]);

O Mapinguari como mito, crença ou lenda do folclore pan-amazônico, que não descreve a realidade porque figura apenas no discurso ou imaginário, e pode expressar várias outras coisas – medos ancestrais, terrores atávicos, conforme teoria recorrente sobre monstros e monstruosidades, como comentários culturais, ainda que a contrário, sobre o temor da dissolução da forma (física, psíquica e cultural) humana (Del Priore, 2000)19 –, mesmo que nunca expresse um objeto real. Nesse sentido, trata-se de rechaçar prontamente as afirmações alheias como ‘primitivas’ por meio do instrumental científico (a razão e a tecnologia) que, não localizando seres deste tipo na natureza, relega-os a certos estados da mente ou da cultura: O lado científico, claro, diz que os espíritos [e seres como o Mapinguari] não têm nada a ver conosco, baseados na inexistência do mundo espiritual e na afirmação de seres sobrenaturais não passarem de projeções vazias da mente humana, que podem ingenuamente ganhar credibilidade em estágios rudimentares de cultura, mas que devem ser inevitavelmente abandonadas à luz da tecnologia e pensamento modernos (Hancock, 2011, p. 396-397).

Talvez não seja o caso de pedir que se escolha entre os três, acho, declarando-me, assim, com alguma forma de fé no multinaturalismo: o relevante é fazer proliferar mundos possíveis (Viveiros de Castro, 2002). Talvez também não venha ao caso julgar um pelos critérios dos demais, deixando cada um às voltas com seus problemas disciplinares. No entanto, é forçoso posicionar-me. E, assim, defendo que o

Creio ser possível afirmar que o encontro pragmático aqui se dá entre os três discursos – os quais afirmam e/ou são sustentados por realidades/ontologias distintas – que, como “resíduo ontológico” – aquilo que pode levar a transformações nos pressupostos ontológicos (Almeida, 2013) –, sustentam o esforço de diálogo entre os Karitiana e a ‘zoologia’ (de fósseis ou de seres fantásticos), expresso, por exemplo, na identificação entre o Mapinguari e o gorila (feito por alguns caçadores Karitiana), ou no modo como os Karitiana distinguem, na língua portuguesa, os animais dos seres substantivadamente (mas não adjetivadamente) agrupados sob a categoria kida. 19 A melhor ilustração desta ‘função-monstro’ como articuladora dos temores ancestrais do tênue limite entre cultura e natureza em nós (Ingold, 1995) continua sendo, claro, a de Robert Louis Stevenson no clássico “O médico e o monstro”. Bariani (2013, p. 21), por exemplo, sugere que o Mapinguari seria “mais uma das demonstrações do medo do desconhecido [sempre ele...] e do insondável dentro do dia a dia do povo interiorano”. 18

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Mapinguari Karitiana não é lenda do folclore, como também não é pan-amazônico: o Owoj não é o Mapinguari dos migrantes que, originários do sertão nordestino, viraram seringueiros, senão, talvez, como uma tradução daquele, de forma a permitir o diálogo entre estes adventícios e os povos indígenas nativos. O Mapinguari Karitiana também não é o bicho-preguiça gigante que alguns cientistas querem ver andando pelos recônditos amazônicos porque, ainda que sejam objetos de ‘conhecimento do real’ – indígena ou científico –, reduzir aquele a este significa negar que os Karitiana possam conviver com uma criatura monstruosa, a não ser que ela seja domesticada, se assim posso dizer, pelo olho da ciência, que tudo quer ver, entender e registrar: se não há preguiça-gigante, não pode haver, evidentemente, Mapinguari. Naturalmente, o Mapinguari dos Karitiana e o bicho-preguiça gigante da zoologia (ou criptozoologia) se opõem diretamente ao Mapinguari como lenda, fabulação ou crença: aqueles são reais, sejam animais ou monstros, enquanto este não passa de ficção, mito, ou tão somente literatura oral. Creio que tudo isso faz do Mapinguari um perfeito exemplar de ‘objeto insólito’.

O MAPINGUARI À SOLTA: CONSIDERAÇÕES FINAIS Perguntar-se, pois, sobre a realidade do Mapinguari Karitiana (o Owoj/Kida harara/Kida so’emo), sobre a real existência desta monstruosa criatura desde as nossas ontologias, a ciência ou a narrativa (folclórica, literária ou mítica20) – e é isso que me interessa particularmente aqui –, é tarefa que não faz sentido. Não se trata, do ponto de vista dos Karitiana, de um problema de crença: os Karitiana não ‘acreditam’, como já dito acima, no Mapinguari porque, se assim colocarmos, supõe-se, por definição, que a existência do Mapinguari está vinculada a uma decisão puramente mental ou intelectual de um povo e seus indivíduos. O bicho (kida), assim, não passaria de

uma ideia, um credo, algo em que se acredita, mas em que também se pode, no momento seguinte, não se acreditar. O Mapinguari, ao contrário, é um fato, um dado bruto do mundo real, do mundo vivido e pensado pelos Karitiana, algo verdadeiramente existente, em que não se pode crer porque simplesmente é. Isso pode ser avaliado nos efeitos muito palpáveis que a existência do monstro – também muito real – têm na vida dos Karitiana, que raramente frequentam imensa área de seu território (a Serra Moraes, zona muito rica em caça) por causa da presença do ogro canibal. Tais narrativas – míticas ou experienciais – são justamente o material que nos permite cartografar o mundo habitado pelos Karitiana. Existem, ainda, as próprias experiências de aterradores encontros com o Mapinguari em cantos perdidos na floresta, que são relatadas por vários caçadores Karitiana. Tais encontros não podem ser atribuídos a uma paranoia geral, ou a uma espécie de ilusão compartilhada: isso seria, uma vez mais, condenar os Karitiana ao mundo pré-racional encantado e habitado por criaturas tão somente fantásticas e, por esta razão, ilusórias, irreais. Mas, mesmo que os relatos de encontros não existissem, não haveria razão para duvidarmos da existência do monstro: reza o ditado que a ausência de evidência não é evidência de ausência. Isso porque é nosso (ocidental moderno) critério de verdade que é tão fundamentado na confirmação visual dos fenômenos: é preciso ver para crer ou, mais propriamente, é preciso ver para se certificar da realidade21. Mas, talvez, para outras epistemologias – e isso parece ser bem estabelecido pela etnografia amazônica (Basso, 1990) –, ver não seja tão crucial na constituição do mundo, e o que se ouve falar por alguém que viu ou esteve lá é suficiente para estabelecer a verdade e a substância da realidade. Eu não vi, mas meu avô, que viu, contou-me, e assim é. Logicamente, tal mecanismo de atribuição de verdade/realidade, ao parecer transferir a autoridade do objeto em si para o sujeito que o descreve,

‘Mítica’, neste caso, da nossa perspectiva, não da deles, os Karitiana. O mesmo pode ser dito, em certo sentido, de ‘narrativa’. Existem, naturalmente, outras formas de confirmação da textura do real no ocidente, tal como a matemática e inscrições diversas produzidas por máquinas e instrumentos tecnológicos (Latour, 1994).

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pode abrir brechas para novas suposições de crença ou produção mental, intelectual ou espiritual – difunde-se não a experiência (visual) de uma coisa, mas um discurso sobre esta coisa. E discursos, como se sabe, podem ser verdadeiros ou falsos. Mas não é disso que se trata: a autenticidade do narrador não está em questão porque a experiência de alguém cuja autoridade é reconhecida por este mesmo narrador não está, também ela, em questão: em algum lugar há o contato com a realidade, por mais estranha que ela nos pareça. E isto basta. Portanto, há de se concluir que tratar o Owoj/Kida harara/Kida so’emo como criatura fantástica ou personagem de lendas folclóricas é tratar o conhecimento Karitiana do mundo – e, portanto, tratar o mundo Karitiana – como se feito, ele próprio, de fantasia e lenda. É desconfiar que os Karitiana, os quais, por vezes, e inadvertidamente, topam com o ogro nas matas, transitam pela cortina de fumaça mítica – produto, claro, da sua cultura – que recobre, como visão de mundo – algo equivocada, ou embotada note-se bem –, o mundo real habitado pelos colecionadores e pesquisadores de mitos e histórias folclóricas. E por aqueles que procuram megatérios baseados na noção de que os indígenas estão certos, mas por razões erradas: haveria, pois, uma enorme criatura peluda vagando pelas matas do sudoeste amazônico; mas esta não seria o Mapinguari, mas o bicho-preguiça gigante que, no passado, assim como hoje, podia ser encontrado mascando demoradamente as folhas das grandes árvores da região. Tomar o Mapinguari dos Karitiana como criatura fantástica ou críptica – ser irreal ou animal oculto – viola o princípio básico que define o próprio fantástico – “contrastar o fenômeno sobrenatural como nossa concepção do real” (Roas, 2014, p. 39, grifo nosso) –, quando esta “nossa concepção do real” está sendo requisitada por línguas que habitam outros mundos, outros reais. Os efeitos da presença sempre perigosa do Mapinguari continuam sendo sentidos – ou seja, a experiência real neste particular mundo possível (possível, repito, para mim, não para aqueles que o habitam) – pelos Karitiana e pelas populações ribeirinhas em Rondônia,

conforme a matéria publicada no jornal eletrônico Rondoniaaovivo.com, em 8 de outubro de 2014, e discutida por Vegini e Vegini (2015a, p. 8). De acordo com o noticiário:

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A notícia de que um grupo de catadores de açaí teriam avistado um mapinguari na Reserva Florestal Sumaúma deixou os moradores da Vila dos Pescadores apavorados. Localizada na cabeceira da ponte sobre o rio Jamari, há cerca de 85 quilômetros de Porto Velho, a Vila dos Pescadores é formada por mais de 30 famílias, todas sobreviventes da pesca e da extração do açaí. O fato aconteceu no início do mês de setembro [de 2014], quando um grupo de extrativistas foram [sic] realizar a coleta do açaí no rio Japiim, onde fica localizada a Reserva Sumaúma, próximo a uma grande Serra. De acordo com um dos extrativistas, que prefere não se identificar, essa é uma viagem muito perigosa, pois são cerca de 5 horas de viagem de motor Rabeta para chegar lá. “Na Reserva Sumaúma é onde está a maior quantidade de açaí silvestre, mas por ser uma mata onde ninguém adentrou, ficamos expostos a vários riscos, entre os quais, inúmeras espécies de cobras e onças”, afirma. Para outro catador que fazia parte do grupo, tudo teria começado quando eles ouviram um grito floresta adentro. “Comecei a imitar o grito e percebi que o som se aproximava de nós. Foi quando começamos a ouvir um forte estralo e de maneira intermitente. Nesse momento, apareceu uma criatura de cor escura e de aproximadamente dois metros de altura, com apenas um olho avermelhado como chamas”, disse. Assustados, todos deixaram o açaí que tinham colhido e correram para a beira do rio, pegaram o Rabeta e voltaram para uma barraca improvisada que eles tinham feito. Mas ao chegar próximo da barraca, o medo foi ainda maior, quando viram novamente a criatura próximo da barraca. Na mesma hora, todos retornaram para a canoa, ligaram o Rabeta rapidamente e voltaram atemorizados em direção a Vila. “Já estava escuro quando saímos da reserva, sem lanterna e deixamos tudo para trás. A viagem de volta foi mais perigosa, pois não enxergávamos quase nada”, disse um deles. O susto foi tão grande que alguns deles não conseguiram dormir por alguns dias. A notícia logo se espalhou na Vila e devido ao ocorrido, nenhum extrativista se arrisca a ir mais naquela reserva (Bosco, 2014).


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Não são apenas “as narrativas que tratam da personagem monstruosa do Mapinguari da Amazônia que estão mais vivas do que nunca” (Vegini e Vegini, 2015a, p. 8), mas é a própria criatura, em dentes, garras e berros, como se pode notar, que vaga pelas matas do sudoeste da Amazônia brasileira, aterrorizando as comunidades e provocando atribulações cujos resultados têm impactos diretos na vida cotidiana das pessoas. Pego numa espécie de encruzilhada de mundos (entre os quais o antropológico não tem menos relevância), eu mesmo oscilo entre acreditar ou não em espíritos, e esta oscilação parece dizer algo sobre este mesmo fenômeno: se acredito, eles passam a existir; se não acredito, eles deixam de existir. É algo como o gato de Schröedinger, cruelmente fechado em uma caixa que não nos permite saber se está morto ou vivo, forçando-nos a concluir, lógica mas paradoxalmente, que está vivo e morto ao mesmo tempo. Assim é a crença. É difícil, contudo, suportar a incerteza: sei disso por conta própria. Nesse sentido, minha mãe, que é espírita, é mais feliz do que eu: a existência de espíritos, para ela, não é questão de crença. Espíritos são tão reais quanto minha mesa, meu computador ou este antropólogo que aqui escreve, e não está em questão acreditar neles ou não22. E, para os espíritas, “faith and belief are not at issue” (Koss-Chioino, 2010, p. 137). Tal como diz o dito popular (ecoando, certamente, Jorge Luiz Borges): você pode não acreditar em Deus, mas Deus seguramente acredita em você. E isto basta. Volto, enfim, ao Mapinguari, e à conclusão de um dos casos narrados por Saldanha Sobrinho ([1995], p. 120), viajante habitual de um rio Guaporé habitado por muitos seres estranhos, que ilumina de forma magistral, talvez sem querer, o argumento deste artigo: “Existe o Mapinguary?” – o autor se pergunta; e responde – “Só os que o viram saberão dizer”.

AGRADECIMENTOS Agradeço a Valdir Vegini, que gentilmente compartilhou comigo alguns de seus trabalhos sobre o Mapinguari rondoniense, e a Glenn Shepard Jr. e Hein van der Voort pelas sugestões. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Mauro W. Barbosa de. Caipora e outros conflitos ontológicos. R@u – Revista de Antropologia da UFSCar, São Carlos, v. 5, n. 1, p. 7-28, jan.-jun. 2013. Disponível em: <http:// www.rau.ufscar.br/wp-content/uploads/2015/05/vol5no1_01. MauroAlmeida.pdf>. Acesso em: 13 maio 2015. AMAZON NIGHTMARE: mapinguari mythology. Produção de National Geographic Channel. [S.l.]: National Geographic Channel, [s.d.]. Disponível em: <http://natgeotv.com.au/videos/beast-man/ amazon-nightmare-mapinguari-mythology-3C1FD927.aspx>. Acesso em: 20 fev. 2015. ARAÚJO, Íris Morais. Osikirip: os ‘especiais’ Karitiana e a noção de pessoa ameríndia. 2015. 176 f. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. BARIANI, Walter de Oliveira. A morte do Mapinguari. Porto Velho, RO, 2013. BASSO, Ellen (Org.). Native Latin American cultures through their discourse. Bloomington: Folklore Institute, Indiana University, 1990. BEAST HUNTER. In: Wikipedia, the free encyclopedia, 1 out. 2005. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Beast_Hunter>. Acesso em: 4 abr. 2015. BELLEI, Sérgio Luiz Prado. Monstros, índios e canibais: ensaios de crítica literária e cultural. Florianopolis: Insular, 2000. BOSCO, João. Mistério - Catadores de açaí afirmam ter visto um Mapinguari. Rondoniaaovivo.com, 7 out. 2014. Disponível em: <http://www.rondoniaovivo.com/noticias/misterio-catadores-deacai-afirmam-ter-visto-um-mapinguari/119282#.VVHsbyHBzGd>. Acesso em: 12 maio 2015. BUGGE, Axel. Howling Amazon monster just an Indian legend? Reuters News Service, 18 dez. 2001. Disponível em: <http:// www.bigfootencounters.com/articles/brazil.htm>. Acesso em: 25 abr. 2015. BUHS, Joshua Blu. Bigfoot: the life and times of a legend. Chicago: The University of Chicago Press, 2009.

É por esta razão que o espiritismo kardecista não é uma religião, mas uma ciência, e os espíritos devem ser investigados por métodos científicos; eles não são uma questão de dogma, crença ou fé (Koss-Chioino, 2010) e, obviamente, menos ainda de literatura.

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 225-241, jan.-abr. 2016

Do avortado ao comprado: práticas alimentares e a segurança alimentar da comunidade quilombola do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará From production to market: food habits and food safety of the quilombola community of baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará Elcio Costa do NascimentoI, Gutemberg Armando Diniz GuerraI I

Universidade Federal do Pará. Belém, Pará, Brasil

Resumo: Este trabalho apresenta a análise e compreensão das diferentes estratégias de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) desenvolvidas pelas famílias da Comunidade Quilombola do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará. A comunidade enfrenta mudanças em suas práticas alimentares, devido à redução dos recursos naturais (animais de caça, peixes e camarões), à diminuição das áreas para produção agrícola e ao aumento do valor comercial da produção. Utilizando uma abordagem qualitativa e os procedimentos de observação participante, entrevista semiestruturada, registro fotográfico, listagem livre e oficinas sobre hábitos alimentares, buscou-se obter informações que permitissem uma compreensão das práticas produtivas e alimentares localmente desenvolvidas. Observou-se maior especificação da produção, diminuindo a diversidade das espécies cultivadas e reduzindo a autossuficiência das famílias; aumento da importância do extrativismo do açaí como fator econômico gerador de renda; substituição de produtos naturais (sucos, chás) por produtos industrializados (café, refrigerante); aumento do poder aquisitivo, estimulado pelo comércio e pelos benefícios sociais recebidos (bolsa família, aposentadoria e seguro defeso). Essa realidade tem influenciado as práticas produtivas e alimentares das famílias, interferindo nas decisões produtivas e na aquisição dos alimentos, tornando-as cada vez mais dependentes do comércio e da geração de renda para garantir a SAN das famílias quilombolas. Palavras-chave: Agricultura familiar. Autossuficiência. Extrativismo. Autoconsumo. Abstract: This research presents the analysis of different strategies of Food and Nutritional Security (SAN) developed by the families of the Quilombola Community of baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará. The community is facing changes in their eating habits due the reduction of natural resources (hunting animals, fish and shrimps), decrease of the area for agricultural production and increase of the commercial value of production. Using a qualitative approach and the following procedures: participant observation, semi-structured interviews, photographic record, itemized lists and workshops on eating habits, we investigated the community and their production and food practices. We observed a higher specialization of production, decreasing the diversity of local production and of the families’ self-sufficiency; increasing in the importance of extraction of açaí as an income generator; substitution of natural products (natural juices, teas) for industrial products (coffee, soda); increase in purchasing power, stimulated both by market trades and the social benefits received (bolsa família, pension and seguro defeso). This reality has significantly influenced the production practices and eating habits of the local families, interfering with production decisions and food acquisition, making families dependent on trade and income generation in order to ensure the SAN of the quilombola families. Keywords: Family farming. Self-sufficiency. Extractivism. Self-consumption.

NASCIMENTO, Elcio Costa do; GUERRA, Gutemberg Armando Diniz. Do avortado ao comprado: práticas alimentares e a segurança alimentar da comunidade quilombola do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 225-241, jan.-abr. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000100012. Autor para correspondência: Elcio Costa do Nascimento. Rua São Domingos, Passagem Canaã, 628. Belém, PA, Brasil. CEP 66077-005 (elcioncosta@gmail.com). Recebido em 24/10/2013 Aprovado em 11/04/2016

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Do avortado ao comprado: práticas alimentares e a segurança alimentar da comunidade quilombola do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará

INTRODUÇÃO As práticas e hábitos alimentares são socialmente construídos. As escolhas e o consumo dos alimentos são, segundo Peña e Molina (1999, p. 4), influenciados por diversos fatores, como os saberes locais, os costumes, a cultura, a disponibilidade e o acesso ao alimento. Estes fatores, conjuntamente com as experiências gustativas, as condições sociais, ambientais e locais de existência, refletem na construção de uma identidade alimentar própria e específica, que designa as práticas e as ações aceitas por um determinado grupo, contribuindo para a aquisição de certos hábitos (Pacheco, 2008, p. 218, 221; Castro, 1967, p. 38; Maciel, 2001, p. 149). Brondízio e Neves (1997, p. 168) afirmam que o caboclo amazônico desenvolveu um sistema adaptado “sustentado por práticas de subsistência eminentemente indígenas”. Estas práticas tinham como estratégia principal a combinação de atividades e usos dos recursos naturais, como a agricultura, a pesca, o extrativismo e a caça (Cerdeira et al., 1997, p. 1). Segundo Brondízio et al. (2002, p. 68-70), as comunidades caboclas combinam produções direcionadas tanto para o consumo familiar quanto para os mercados locais e/ou regionais, garantindo, dessa forma, a continuidade da unidade de produção, indiferentemente dos altos e baixos preços praticados nas redondezas. Murrieta et al. (1989, p. 148) afirmam que o caboclo amazônico desenvolveu um sistema adaptativo que objetiva estabelecer uma harmonia entre o homem e a natureza, baseada na preservação do espaço, dos recursos naturais e não destruição “do delicado e complexo equilíbrio” existente entre as florestas e os rios da região, necessários para sua reprodução social, cultural e alimentar (Allegretti, 1996, p. 26). Segundo Fuller (1990), as comunidades amazônicas possuem a capacidade de desenvolver práticas que vão além da produção agrícola, executando atividades de transformação e venda direta da produção, garantindo a segurança alimentar, a manutenção de características sociais e culturais, aliadas à proteção da natureza (Cazella e Roux, 1999; Cazella et al., 2009). Entre essas práticas, Wagley (1988)

descreveu a importância do extrativismo para a reprodução social, cultural e econômica de comunidades amazônicas, principalmente durante os “surtos” econômicos que remontam à história do desenvolvimento da região. Castro (1965), apesar de criticar e chamar a prática extrativista de “destrutiva”, demonstra diferentes atividades desenvolvidas na Amazônia, que vão desde a simples coleta de sementes, frutos, raízes e cascas de árvores, a caça e a pesca, até a extração do látex, de óleos e de resinas vegetais. Estas atividades eram desenvolvidas tanto com objetivos comerciais (geração de renda) quanto de autoconsumo. Castro (1965) comenta sobre o papel que as frutas nativas, principalmente o açaí, detêm na alimentação da população amazônica. No âmbito amazônico, a prática alimentar, largamente difundida, concentra-se no binômio peixe e mandioca (Adams et al., 2005; Murrieta, 1998, 2001). Murrieta (1998) afirma que outros elementos, como frutas, cereais, arroz e feijão, também fazem parte da dieta, porém atuam de maneira complementar, aparecendo com menos frequência no prato do amazônida. Maciel (2001, p. 149) afirma que tal característica foi influenciada pelo meio ambiente, pelas técnicas produtivas utilizadas, pelas crenças e, principalmente, pelos recursos naturais disponíveis localmente, capazes de garantir o acesso a uma alimentação de qualidade e em quantidade suficiente. Para as comunidades negras, o extrativismo desenvolveu papel importante no processo de fixação e escolha dos seus territórios (Almeida, 2002, p. 49). A viabilidade agrícola e a existência de recursos naturais passíveis de utilização foram, segundo Marin e Castro (1998, p. 41) e Nascimento Junior et al. (2000, p. 50), características importantes na ocupação quilombola na região amazônica. Os autores descrevem a importância das comunidades negras para o comércio regional, fornecendo produtos como café, tabaco, castanha, salsaparrilha e cacau nativo. Estes fatores – capacidade agrícola e acessibilidade dos recursos naturais – são essenciais para a garantia da segurança alimentar e nutricional (SAN) de um grupo, povo

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ou sociedade (Brasil, 2006). De acordo com Bentes (2003, p. 149), fatores impeditivos de acesso aos recursos locais que prejudiquem uma produção adequada e o acesso a uma alimentação de qualidade são as principais razões para situações de fome e insegurança alimentar. Entre as comunidades quilombolas, podemos acrescentar a falta de posse de terra, a ausência de uma renda monetária, o aumento de doenças, fatores ambientais, a marginalidade e o analfabetismo (Silva et al., 2008) como aspectos restritivos à obtenção de segurança alimentar. A comunidade quilombola do baixo Acaraqui, alvo desta pesquisa, apesar de ter seu território reconhecido em 2002 e, dessa forma, garantido o acesso livre aos recursos naturais, vem enfrentando desafios na busca de melhorias de qualidade de vida e na garantia da reprodução das famílias locais. O desmatamento, a redução no quantitativo de

animais de caça, peixes e camarões (elementos que fazem parte da dieta local), a diminuição do tamanho das áreas destinadas à produção agrícola, a falta de saneamento básico, de água potável e de acesso a direitos básicos, como saúde e educação, acarretam em vulnerabilidade social, prejudicando a garantia da segurança alimentar das famílias da localidade. Nesse contexto, objetivou-se, a partir de uma abordagem qualitativa de pesquisa, observar as práticas alimentares e produtivas, analisar e compreender as estratégias de segurança alimentar e nutricional desenvolvidas pelas famílias da comunidade quilombola do baixo Acaraqui.

SITUANDO E CARACTERIZANDO A COMUNIDADE A comunidade quilombola do baixo Acaraqui (Figura 1) situa-se no município de Abaetetuba, a 56 km da

Figura 1. Localização da comunidade quilombola do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará. Fonte: adaptado de Santos e Coelho-Ferreira (2012, p. 3).

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Do avortado ao comprado: práticas alimentares e a segurança alimentar da comunidade quilombola do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará

capital paraense, Belém. Forma, junto com outras sete comunidades quilombolas (médio Itacuruçá, médio Acaraqui, alto Itacuruçá, baixo Itacuruçá, Arapapu, rio Tauaré-açu e Jenipaúba) o território quilombola das ilhas de Abaetetuba. O acesso à comunidade é feito somente por via fluvial. Da sede do município de Abaetetuba, desloca-se aproximadamente por 20 a 30 minutos pelo rio Pará, passando pelo rio Arapapu e, em seguida, pelo rio Acaraqui, onde fica localizada a comunidade estudada (ITERPA, 2010, p. 4). O sistema de fornecimento de água potável é inexistente, desse modo, as famílias quilombolas locais recorrem à água do rio Acaraqui nos afazeres diários (lavar louça, roupa etc.) e para a higiene pessoal, sendo necessários produtos industrializados, como o sulfato de alumínio, para o clareamento da água utilizada na lavagem das roupas. A água empregada no consumo familiar é adquirida em poços existentes em áreas de terra firme, geralmente distantes, e as famílias fazem esse deslocamento em barcos, carregando baldes, garrafas, carotes1 e garrafões, para realizar o transporte da água potável para seus lares. O saneamento básico também não existe e as famílias fazem uso de banheiros com fossa a céu aberto, geralmente distantes das casas. O lixo é queimado no fundo dos quintais, uma vez que não há sistema de coleta de resíduos sólidos. A educação básica na comunidade é garantida pelas duas escolas da localidade: Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental Santa Ângela. Ambas oferecem educação até a 4ª série ou 5º ano, em salas multisseriadas. Após esse período, os estudantes se deslocam para a cidade de Abaetetuba, para dar continuidade aos estudos. Em ambas as escolas há merenda escolar para as crianças, porém, segundo os moradores, oferecem predominantemente produtos industrializados, como bolachas, achocolatados, sucos industrializados e enlatados. Conforme informações obtidas nas escolas, apenas o açaí é inserido como produto

natural na merenda escolar, sendo fornecido somente na época da safra do fruto, na forma de mingau, geralmente misturado com arroz e, mesmo assim, em poucas ocasiões.

COLETA DE DADOS Antes do início da pesquisa, foram realizadas reuniões com membros da Associação dos Remanescentes de Quilombo das Ilhas de Abaetetuba (ARQUIA), que representa as comunidades do território quilombola, nas quais foi explicada a natureza e os objetivos da pesquisa, Solicitando o consentimento para a realização da mesma na região, bem como foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para as famílias entrevistadas, as quais, ao assinarem o documento, demonstraram consentimento em participar da pesquisa Foram realizadas quatro visitas à comunidade quilombola do baixo Acaraqui, três realizadas no período de maio a outubro de 2012, e uma em janeiro de 2013. O tempo de permanência em cada uma das visitas foi, em média, de 15 dias. Foram entrevistadas 25 das 35 famílias residentes na comunidade quilombola, alcançando-se, dessa maneira, 68,5% das famílias locais. A média de habitantes por unidade familiar é de cinco pessoas. A renda das famílias é proveniente, principalmente, do extrativismo do açaí (Euterpe oleracea Mart.), do buriti (Mauritia flexuosa L. f.), da pesca e da produção e comercialização do carvão e da mandioca. Os benefícios do governo federal aparecem como a segunda fonte de renda mais importante na comunidade quilombola do baixo Acaraqui. Das 25 famílias entrevistadas, 13 (52%) declaram receber recurso do Programa Bolsa Família (PBF) e 9 (36%) declaram receber a aposentadoria. Os dados foram coletados por meio de observação participante, entrevista semiestruturada, registro de áudio e de imagens (Poulain e Proença, 2003, p. 374), listagem livre (Santos e Coelho-Ferreira, 2012, p. 3) e oficina sobre os hábitos alimentares (Weitzman, 2008, p. 89).

Termo utilizado para identificar os vasilhames utilizados para carregar a água dos poços para as casas das famílias.

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 225-241, jan.-abr. 2016

A observação participante, utilizada durante todo o trabalho de campo, teve como princípio direcionador o maior envolvimento entre o pesquisador e a comunidade em foco, através da convivência com as famílias, e proporcionou a apropriação de informações que permitiram uma compreensão sobre o funcionamento da comunidade e de suas práticas produtivas e alimentares (modo de vida, formas de produção e aquisição de alimentos, moradia, transporte e práticas desenvolvidas e não informadas durante as entrevistas). As entrevistas semiestruturadas tiveram por objetivo estimular o entrevistado a falar abertamente, sem perder o foco da pesquisa e nem o direcionamento da entrevista. Buscouse criar um ambiente confortável, no qual o entrevistado pudesse se expressar livremente, sem as limitações criadas por um questionário. As entrevistas foram gravadas, anotadas e posteriormente transcritas, para favorecer a análise. O registro fotográfico foi utilizado como ferramenta para captação de imagens das práticas, dos costumes, das atividades e como registro cronológico da pesquisa de campo. Para os registros do áudio, foi utilizado um gravador, para melhor transcrição e análise das falas das famílias. A listagem livre parte do princípio de que os produtos primeiramente citados, e com maior frequência de citações, são os que têm maior importância cultural (Santos e Coelho-Ferreira, 2012, p. 3). Esta técnica foi adotada para identificar os alimentos mais consumidos e comercializados pelas famílias da comunidade quilombola do baixo Acaraqui (frutas, animais e mariscos2) e as mudanças nas práticas alimentares ao longo do tempo. A oficina teve como objetivo proporcionar uma visão geral das práticas alimentares das famílias quilombolas em comparação com as informações obtidas nas entrevistas individuais. Utilizou-se a dinâmica da oficina “mudanças

nos hábitos alimentares ao longo dos anos”, proposta por Weitzman (2008, p. 89, 90). Buscou-se, com esta técnica: a) perceber a diferença e/ou mudança entre os hábitos alimentares “no tempo das avós e dos avôs”, “no tempo dos pais e das mães” e no “tempo atual”; b) analisar as causas das mudanças nos hábitos alimentares e pensar em alternativas para recuperar alguns alimentos que eram consumidos antigamente, assim como visualizar as perspectivas de futuro das famílias quilombolas. Foram produzidos cartazes fazendo referência às práticas alimentares e às refeições do “passado”, “presente” e “futuro”.

DO “AVORTADO” AO COMPRADO A referência a um passado de fartura3, ou avortado4, foi recorrente nas falas das famílias entrevistadas da comunidade quilombola do baixo Acaraqui. Quando questionados sobre como era a alimentação “no tempo dos pais” em comparação com a alimentação “no tempo presente”5, os entrevistados fizeram alusões tanto à quantidade quanto à facilidade na obtenção dos alimentos, principalmente no que concerne aos mariscos (peixes e camarões) provenientes do rio Acaraqui, dos igarapés, e às caças obtidas em excursões “mata adentro”: Os pais dela, principalmente, gostavam muito da caça, né? Na casa deles não falhava a caça. De noite, quando ele tinha folga, ia pro mato caçar... Tinha tatu, veado, porco-do-mato, paca, cutia (Seu Luis, aposentado). (...) na época que a gente se criou era mais fácil a alimentação, né! Você saía pra colocar uma rede aqui no rio, colocar uma linha6, era fácil pra pegar o peixe. Tinha uma quantidade maior. Você colocava uma rede aqui, você com pouco minuto tirava e vinha cheio de peixe (Dona Maria da Glória, lavradora e dona de casa).

É a maneira que as famílias da comunidade quilombola do baixo Acaraqui se referem aos peixes em geral e aos camarões. Situação semelhante foi observada nos trabalhos de Nascimento (2006, p. 26) e Woortmann (1992). 4 Terminologia amplamente utilizada pelas pessoas do baixo Acaraqui, assim como nas demais comunidades quilombolas da região e na cidade de Abaetetuba. Significa fartura à vontade, grandes quantidades. 5 Período da pesquisa: 2012-2013. 6 Modo de pescaria realizado pelos moradores da comunidade do baixo Acaraqui, que consiste na utilização de uma linha de nylon contendo o anzol e um pedaço de chumbo. As minhocas são o tipo de isca comumente utilizado nesse sistema de pescaria. 2 3

229


Do avortado ao comprado: práticas alimentares e a segurança alimentar da comunidade quilombola do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará

A facilidade na obtenção, a fartura existente, a quantidade e, principalmente, a acessibilidade a uma alimentação contínua foram as principais mudanças apontadas pelas famílias locais com relação à alimentação atual. Nas falas anteriormente apresentadas, observa-se a variedade de opções alimentares (diversas espécies de caça e pesca) e a facilidade na obtenção desses alimentos existentes “no tempo dos pais” (Tabela 1). Vale ressaltar a importância dos produtos agrícolas como a mandioca (Manihot esculenta Crantz), o maxixe (Cucumis anguria L.), o milho (Zea mays L.), o feijão (Phaseolus vulgaris L.) e o arroz (Oryza sativa L.) na alimentação local.

A alimentação das famílias da comunidade quilombola do baixo Acaraqui tem como base o açaí (Euterpe oleracea Mart.), os mariscos e a farinha de mandioca (Figura 2), recursos de maior disponibilidade na região, refletindo, dessa forma, na construção de uma prática alimentar influenciada pelo meio e pelos recursos disponíveis. Essa realidade está associada ao desenvolvimento de práticas alimentares com um elevado grau de adaptação ao ambiente, construídas pelas famílias locais ao longo do tempo. A influência do meio ambiente e dos recursos naturais na construção de hábitos alimentares e na formação de uma identidade

Tabela 1. Alimentos consumidos “no tempo dos pais”, de acordo com cada refeição, segundo as famílias da comunidade quilombola do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará. (Continua) Refeição

Café da manhã

Merenda da manhã

Almoço

Alimentos

Número de citações

Local de aquisição

Sucos de diversas frutas

14

Quintal

Tapioca

12

Roça (subproduto da mandioca)

Beiju chica e d’água

8

Roça (subproduto da mandioca)

Bolachas e roscas

6

Feira de Abaetetuba

Chá de capim-santo ou capim-marinho (Cymbopogon citratus (DC.) Stapf) e canela (Cinnamomum zeylanicum Breyn).

6

Quintal

Caribé (mingau)

25

Roça (subproduto da mandioca)

Mingaus diversos (farinha de mandioca, miriti, banana e de açaí com banana verde)

25

Quintal e/ou floresta

Pupunhas cozidas

20

Quintal

Castanhas

15

Quintal e/ou floresta

Vinho de miriti

10

Quintal e/ou floresta

Peixes: tucunaré (Cichla monoculus Spix & Agassiz, 1831.), tambaqui (Colossoma macropomum Cuvier, 1818), mapará (Hypophthalmus edentatus Spix & Agassiz, 1829), mandií (Pimelodus blochii Valenciennes 1840), mandubé (Ageneiosus inermis Linnaeus, 1766)

25

Rio Acaraqui

Carne de caça7: capivara (Hydrochoerus hydrochaeris Linnaeus, 1766), jacarés (Caiman crocodilus Linnaeus, 1758 e Melanosuchus niger Spix, 1825)8, tatu (Dasypus spp.), veado (Mazama sp.), cutia (Dasyprocta sp.), paca (Cuniculus paca Linnaeus, 1766), mucura (Didelphis marsupialis Linnaeus, 1758), porco-do-mato (Tayassu pecari Link, 1795), catitu (Pecari tajacu Linnaeus, 1758)

25

Floresta, quintal e/ou rios da região

Os mamíferos, de modo particular os ungulados, como a anta, o veado, a queixada e o caititu, representam o principal grupo de caça consumido e comercializado pelas famílias e nas feiras de Abaetetutba (Baía Júnior, 2006). 8 Jacaré-tinga e jacaré-açu, respectivamente. Segundo informações das famílias locais, as formas de consumo da carne desses animais são: jacaré a limão, jacaré salgado e carne de jacaré fresco. 7

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 225-241, jan.-abr. 2016

Tabela 1. Refeição

Almoço

Merenda da tarde Jantar (quando tinha) Jantar (quando não tinha)

(Conclusão) Local de aquisição

Alimentos

Número de citações

Carne de serimbabo9: frango, galinha caipira, porco, pato e peru

25

Quintal

Camarão de água doce (espécies diversas)

25

Rio Acaraqui

Açaí (Euterpe oleracea Mart.) in natura com farinha de mandioca

25

Quintal

Uruá: espécie de caramujo (Neritina (Vitta) zebra Bruguière, 1792)10

6

Rio Acaraqui

Pães, bolachas, rosca

12

Feira de Abaetetuba

Chás

6

Café

4

Quintal Mercearias locais e feira de Abaetetuba

Repetição dos alimentos consumidos no almoço

-

Mingau de arroz, de açaí, de farinha ou da curera ou caruera da farinha11

19

alimentar, cultural e social pode ser observada nos trabalhos de Maciel (2001), Murrieta et al. (1989), Murrieta (1998), Moran (1990), Setton (2002), Brondízio e Neves (1997), Brondízio et al. (2002), Marin e Castro (1998, 2004). Constatou-se a importância da combinação de diferentes sistemas de produção/obtenção dos alimentos como a caça, a pesca, a produção agrícola, a coleta e extração de frutas, entre elas o açaí (Cerdeira et al., 1997), nas estratégias sociais, econômicas e culturais das famílias da comunidade. As dificuldades na obtenção de renda enfrentadas pelas famílias locais eram devidas, principalmente, à baixa valorização dos seus produtos no mercado local “no tempo dos pais” e pela dificuldade de acesso ao comércio da cidade de Abaetetuba (distância e falta de infraestrutura). Segundo alguns relatos feitos pelos entrevistados, estas dificuldades foram decisivas no desenvolvimento das práticas alimentares locais, influenciando nos sistemas de

Roça e quintal

Figura 2. Refeição típica das famílias do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará: A) camarões (mariscos); B) farinha de mandioca; C) açaí. Foto: Gutemberg Guerra, 2012.

produção direcionados para a prática da caça, da pesca, do extrativismo e da produção agrícola, tendo como espécies cultivadas de maior relevância a mandioca, o feijão e o arroz, destinados quase que exclusivamente para o consumo da unidade familiar. Seu Miguel comenta:

Termo utilizado pelas famílias ao se referirem aos animais criados no quintal. Espécie de molusco que, no Brasil, ocorre desde o Pará até Cabo Frio (Rio de Janeiro), ocorrendo também no Suriname. No estado do Pará, esta espécie é utilizada como alimento e fonte de renda para famílias ribeirinhas, sendo sua concha também utilizada na preparação de argamassa de taipa, junto com outros componentes, como a água e o barro (Barroso, 2009). 11 Sobras não aproveitadas da mandioca na fabricação da farinha: talos ou partes duras não amolecidas. 9

10

231


Do avortado ao comprado: práticas alimentares e a segurança alimentar da comunidade quilombola do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará

Naquela época era difícil de vender as coisas. Não é que nem agora, que você leva mil pencas de maxixe e você vende rapidinho; a um real é mil reais que você faz. Naquela época não, a gente levava, a gente trocava no mercado de carne, papai tinha uns amigos lá que ele trocava por bucho ou cabeça de boi pra gente trazer, por que a gente não conseguia vender a dinheiro. Papai tirava a tapioca levava já trocado, não é como agora que tudo que você leva pra Abaeté você vende, consegue vender. Aí se torna fácil por essas partes (Seu Miguel, lavrador e pescador).

Durante as entrevistas e na oficina sobre hábitos alimentares, quando questionados sobre como eram as refeições “no tempo dos pais” (café, merenda da

manhã, almoço, merenda da tarde e jantar), observouse uma maior ocorrência de alimentos naturais ou de seus subprodutos, extraídos ou produzidos localmente, provenientes da floresta, dos quintais e da roça (Tabela 1). Porém, quando comparada com a alimentação “no tempo presente” (Tabela 2), essa realidade se modificou significativamente, com maior inclusão de produtos industrializados e de fácil preparação (macarrão instantâneo, enlatados e embutidos), elevada presença de sucos industrializados e refrigerantes, acarretando em aumento dos gastos com alimentos adquiridos nos mercados locais (mercearias e mercadinhos existentes na comunidade) ou na feira de Abaetetuba12.

Tabela 2. Alimentos consumidos “no tempo presente”, de acordo com cada refeição na comunidade quilombola do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará. (Continua) Refeição

Café da manhã

Merenda da manhã

Almoço

Alimentos

Número de citações

Local de aquisição

Pão francês, pão caseiro e pão torrado13

25

Cidade de Abaetetuba

Café com leite

19

Cidade de Abaetetuba

Bolachas e roscas

15

Cidade de Abaetetuba

Manteiga

13

Cidade de Abaetetuba

Refrigerante

18

Cidade de Abaetetuba

Sucos de frutas

14

Quintal

Suco de pacote ou Ki-suco (industrial)

12

Cidade de Abaetetuba

Bolo de macaxeira

8

Roça (subproduto da mandioca)

Caribé ou mingau de farinha de mandioca

6

Roça (subproduto da mandioca)

Mingau de miriti (Mauritia flexuosa L. f.), de arroz e de banana

6

Quintal, florestas e ou roça (banana e arroz)

Peixes: tucunaré (Cichla monoculus Spix & Agassiz, 1831), tambaqui (Colossoma macropomum Cuvier, 1818), mapará (Hypophthalmus edentatus Spix & Agassiz, 1829), mandií (Pimelodus blochii Valenciennes 1840), mandubé (Ageneiosus inermis Linnaeus, 1766)

25

Rio Acaraqui

Carne vermelha, geralmente bovina

25

Cidade de Abaetetuba

Levou-se em consideração, para avaliar o aumento no consumo e no gasto familiar, a inexistência nas falas das famílias locais do consumo de alimentos industrializados, no “tempo dos pais”, e uma participação maior de produtos localmente produzidos ou seus subprodutos. 13 Feito do pão que resta de um dia para o outro. 12

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 225-241, jan.-abr. 2016

Tabela 2. Refeição

Almoço

Merenda da tarde

(Conclusão) Alimentos

Número de citações

Local de aquisição

Carne de galinha de granja, galinha caipira (somente aos domingos)

25

Quintal (caipira), cidade de Abaetetuba (granja)

Camarão de água doce (diversas espécies)

25

Rio Acaraqui

Açaí in natura com farinha de mandioca

25

Quintal

Feijão com charque (raramente), geralmente aos domingos

21

Cidade de Abaetetuba

Enlatados e embutidos: mortadela, carne defumada, linguiça, carne enlatada

17

Comércio local e na cidade de Abaetetuba

Pães, bolachas, rosca

25

Cidade de Abaetetuba

Café, suco de pacote (Ki-suco) e de fruta

25

Comércio local e na cidade de Abaetetuba

Refrigerante

18

Comércio local e na cidade de Abaetetuba

25

Quintal e roça (arroz)

Jantar (quando tem)

Repetição dos alimentos consumidos no almoço

Jantar (quando não tem)

Mingau de arroz, de açaí, de miriti

A presença de variados tipos de frutas, consumidas tanto in natura quanto em forma de sucos (Tabela 3), dos chás, dos mingaus e, principalmente, do açaí, indica a importância das árvores frutíferas e das ervas na alimentação das famílias do baixo Acaraqui. O consumo de beijus, tapioca e da farinha de mandioca propriamente dita, tanto in natura quanto em forma de mingaus (caribé), como acompanhamento nas refeições (almoço e jantar) ou misturada ao açaí, aponta para o grau de relevância que a produção agrícola possui, tendo como base principal o cultivo da mandioca, na vida social, cultural e econômica da comunidade. O preço baixo obtido pelas famílias por sua produção incentivou o desenvolvimento de estratégias de obtenção de bens ou de produtos que não eram feitos pela unidade familiar. O sistema de troca e/ou comercialização entre familiares, amigos e vizinhos foi amplamente disseminado, garantindo uma maior variedade de tipos de alimentos disponíveis. Além

de ampliar os laços de amizade entre as famílias locais, segundo Marques et al. (2007), esses tipos de relações são capazes de “selar alianças”, através de uma reciprocidade mútua entre os praticantes, a qual, entre as famílias locais, é demonstrada pelo favorecimento na hora da comercialização ou troca, pois quando a transação não é realizada com recursos monetários, é feita por meio de escambo entre as famílias da comunidade:

233

Eu tenho um casal de porco, vive só preso, esbandalha todo o terreno, o porco a gente mata, tira pra bóia, vende pros vizinhos (Seu Miguel, lavrador e pescador). É pro consumo (a criação de xerimbabos), como eu falei pra você, meu sonho assim é de criar e dar assim pro meus filhos. Eu não tenho assim uma ambição assim, vamos supor eu criar, 20, 15 frangos, quer dizer que eu vou vender tudinho aquelas criação? E quando precisar como é? Às vezes a gente vai comprar muito mais caro do que a gente vendeu (Dona Ivanilda, lavradora e dona de casa).


Do avortado ao comprado: práticas alimentares e a segurança alimentar da comunidade quilombola do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará

Entre esses produtos, os mais destacados pelas famílias foram a farinha de mandioca, os mariscos (peixes e camarão) e a criação dos xerimbabos. Outra característica que estimulou o sistema de trocas e/ou comercialização foi o fato de que nem todas as famílias da comunidade possuem roça. Por isso, adquirem a farinha trocando-a por peixes e camarões no inverno. No verão, de agosto a dezembro, época da safra do açaí, esse produto é utilizado nos processos de troca por outros alimentos. O relato da troca de açaí, peixes e camarões, principalmente pela farinha, com moradores da comunidade quilombola do médio Acaraqui14, foi apontado pelas famílias locais nas entrevistas. Durante as entrevistas, as famílias descreveram as espécies de animais de caça (Tabela 1) e as espécies vegetais cultivadas nas roças “no tempo dos pais” e “no tempo presente” (Tabela 4). Observa-se que “nos tempos dos pais”, os principais alimentos que constituíam a base da alimentação da unidade familiar, como o arroz e o feijão, eram produzidos localmente, barateando os custos e facilitando o acesso aos alimentos:

Tabela 3. Relação das frutas mais consumidas pelas famílias da comunidade quilombola do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará. Nome comum

Eu (me) lembro bem que meu pai plantava muito arroz, feijão. Eles plantavam muito, era... Meu pai plantava muito arroz, a casa vivia cheia, cortada pelo bocado de arroz, (que) a gente guardava dentro da casa. Não tinha máquina pra moer, era pisado. Pisado e enchia aquelas saca e saía pra vender, mas vendia barato. Era pro consumo e pra vender, o arroz vendia mais; o feijão não, a minha avó plantava feijão, mas era mais pro consumo, não tinha saída (Dona Maria da Glória, lavradora e dona de casa).

Cascudo (1983) e Barbosa (2007) discorrem sobre a importância e predileção do binômio arroz e feijão no prato dos brasileiros, realidade igualmente observada na comunidade durante esta pesquisa. Atualmente, embora esses alimentos ainda consistam na base alimentar da

Nome científico

Abacaxi

Ananas sativus Schult. & Schult. f.

Abiu

Pouteria caimito (Ruiz et Pavon) Radl.

Açaí

Euterpe oleracea Mart.

Acerola

Malpighia punicifolia L.

Ajuru

Chrysobalanus icaco L.

Bacaba ou abacaba

Oenocarpus bacaba Mart.

Bacuri

Platonia insignis Mart.

Banana

Musa sp.

Buriti ou miriti

Mauritia flexuosa L. f.

Cacau

Theobroma cacao L.

Caju

Anacardium occidentalis L.

Cana-de-açúcar

Saccharum officinarum L.

Castanha-do-pará

Bertholletia excelsa Bonpl.

Coco

Cocos nucifera L.

Cupuaçu

Theobroma grandiflorum (Willd. ex Spreng.) K. Schum.

Ingá

Inga edulis Mart.

Inajá

Maximiliana maripa (Aubl.) Drude

Jambo vermelho

Syzygium malaccense (L.) Merr. & L.M. Perry

Jambo rosa

Syzygium jambolanum (Lam.) DC.

Laranja

Citrus sp.

Limão

Citrus sp.

Mamão

Carica papaya L.

Manga

Mangifera indica L.

Pupunha

Bactris gasipaes Kunth

Tangerina

Citrus reticulata Blanco

Tucumã

Astrocaryum vulgare Mart.

comunidade, juntamente com o açaí, eles necessitam ser comprados na cidade de Abaetetuba ou nas mercearias da comunidade, uma vez que sua produção diminuiu,

Comunidade quilombola que se encontra a cerca de 20 minutos rio acima da comunidade do baixo Acaraqui. A área é constituída, principalmente, de terra firme, podendo, dessa forma, desenvolver a produção agrícola com mais facilidade do que a comunidade do baixo Acaraqui, localizada em área de várzea.

14

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 225-241, jan.-abr. 2016

Tabela 4. Relação das espécies vegetais cultivadas nas roças “no tempo dos pais” e “no tempo presente” na comunidade quilombola do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará. Nome comum

Nome científico

Tempo dos pais

Tempo presente

Maniva/macaxeira

Manihot esculenta Crantz

X

X

Milho

Zea mays L.

X

X

Maxixe

Cucumis anguria L.

-

X

Melancia

Citrullus lanatus (Thunb.) Matsum. & Nakai

X

X

Jerimum

Cucurbita pepo L.

X

X

Arroz

Oryza spp.

X

-

Feijão

Phaseolus vulgaris L.

X

-

Gergelim

Sesamum indicum L.

-

X

sendo que, no momento desta pesquisa, era quase inexistente. A mudança na prática de produção foi acarretada, segundo os moradores, devido aos seguintes fatores: a) a saída dos jovens da comunidade em busca de empregos na cidade de Abaetetuba; b) a preferência por práticas extrativistas, tais como a coleta do açaí, a qual, segundo as famílias estudadas, é uma atividade menos penosa e mais rentável; e c) a concentração da produção em espécies de maior interesse econômico, como o maxixe15 e a mandioca. O aumento na valorização da produção local, principalmente do açaí, devido ao crescimento na demanda por esse produto16, é uma das principais causas para a mudança de direcionamento da produção agrícola do autoconsumo para a comercialização. As famílias quilombolas do baixo Acaraqui optaram por investir em atividades, agrícolas ou extrativistas, com maior interesse econômico, especializando a produção e, por essa razão, diminuindo a diversidade de espécies existentes nas roças. A redução da penosidade do trabalho na roça é outra das razões apontadas pelas famílias para as mudanças nas práticas de produção.

A diversidade da produção local, “no tempo dos pais”, proporcionava uma menor dependência com relação ao mercado e maior autonomia da unidade de produção, uma vez que essa produção se destinava, prioritariamente, ao consumo da unidade familiar. A especialização aponta para uma elevação na relação entre a comunidade e o comércio local, com o aumento de sua participação nas transações locais de compra e venda de alimentos, aumento na geração de renda e a possibilidade de acesso a bens antes não acessíveis pela comunidade, como geladeira, televisão, ventilador, liquidificador, máquina de lavar roupa, bicicleta, entre outros. “No tempo dos pais”, a carne de caça tinha uma participação corriqueira na mesa e na alimentação das famílias locais, devido à facilidade de obtenção desses animais na mata. Durante as entrevistas, 17 moradores, 70% dos entrevistados, comentaram sobre a importância da carne de caça na alimentação “no tempo dos pais”, enquanto que “no tempo presente” apenas 20% afirmaram manter esse hábito em suas práticas alimentares, apesar da dificuldade em encontrar esses animais nas florestas. A persistência no consumo da carne de caça, além do caráter econômico e alimentar, para alguns moradores, é tida como uma

A importância do maxixe no sistema de produção aumentou devido à rapidez no ciclo de produção, à facilidade no transporte e na comercialização, ao valor R$ 1,00 um pacote com 14 maxixes. 16 Ver Brondízio et al. (2002). 15

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Do avortado ao comprado: práticas alimentares e a segurança alimentar da comunidade quilombola do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará

prática de lazer. Durante as entrevistas, surgiram histórias relacionadas a essa atividade, em sua maioria se reportando ao passado. Segundo as famílias da comunidade, o aumento do desmatamento e das queimadas da floresta para a produção agrícola, principalmente da mandioca, são as principais causas da diminuição no quantitativo desses animais na região nos últimos 15 a 20 anos. Da mesma forma que o desmatamento e as queimadas reduziram o número dos animais de caça nas matas, a pesca predatória ameaça o quantitativo de espécies de peixes encontradas no rio Acaraqui. O uso indiscriminado de redes, geralmente com malhas muito pequenas, e a pouca seletividade na apreensão dos peixes quanto ao seu tamanho são os principais fatores apontado pelas famílias quilombolas para a redução na quantidade de peixes na localidade. Isso foi notório nas declarações sobre uma maior facilidade em se adquirir o peixe para a alimentação das famílias, “no tempo dos pais”. Embora em 2012 esse alimento continuasse presente diariamente na alimentação dos moradores da comunidade (Figura 3), a penosidade (tempo e distância) para consegui-lo aumentou consideravelmente. Antigamente, esse produto era adquirido na porta das casas das famílias e, no tempo da pesquisa, fazia-se necessário ir mais longe, rio acima, para conseguir um quantitativo de peixes suficiente para a alimentação da

A diminuição dos animais de caça, da diversidade de espécies cultivadas, da quantidade de mariscos nos rios e, principalmente, o aumento da valorização monetária da produção local são os principais fatores que acarretam mudanças nas estratégias de reprodução social das famílias

Figura 3. Tucunaré pescado com caniço na comunidade quilombola do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará. Foto: Elcio Nascimento, 2012.

Figura 4. Camarões capturados com o uso do matapí na comunidade quilombola do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará. Foto: Elcio Nascimento, 2012.

unidade familiar, acarretando, consequentemente, em um maior gasto de tempo para sua obtenção. A oferta de camarão consumido na comunidade diminuiu, de acordo com as famílias locais (Figura 4). A causa mais apontada pelos moradores para esta diminuição do camarão foi o aumento no número das famílias na comunidade e, consequentemente, o aumento do consumo. Costa (2006, p. 172) relata a mesma situação com relação à diminuição da fauna aquática na região das ilhas do município de Cametá e as dificuldades enfrentadas pelos moradores da região. Dona Ivanilda, moradora da comunidade do baixo Acaraqui, comentou sobre essa mudança: Quando meu pai vinha do rio, vinha com “mina” assim de peixe. Hoje em dia a pessoa coloca. Ontem meu marido colocou a rede, você acredita que ele pegou dois “pixinhos”? [peixinhos] Dois “pixinhos” ele pegou... Aí eu acho muita diferença. Que no tempo deles [dos pais] eu achava que era melhor da pessoa se ajeitar, mais fácil. Hoje eu acho mais difícil (Dona Ivanilda, lavradora e dona de casa).

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 225-241, jan.-abr. 2016

do baixo Acaraqui. Anteriormente, essas práticas eram baseadas em estratégias de subsistência e autoconsumo, porém, com uma maior facilidade na comercialização e com o aumento na valorização dos produtos, o objetivo da produção familiar está em transformação, direcionando-se para o comércio e a geração de renda e o cultivo de espécies de maior interesse econômico, embora a produção para o autoconsumo ainda persista. A melhora na obtenção de renda “no tempo presente” foi uma característica apontada pelas famílias do baixo Acaraqui como uma mudança positiva quando comparada com “o tempo dos pais”. Com o aumento da valoração do açaí, das frutas e dos produtos da roça, o rendimento das famílias aumentou e o acesso a bens de consumo cresceu conjuntamente, situação apontada por 100% das famílias entrevistadas. A chegada da energia elétrica, somada a uma maior participação no comércio local e à inclusão dos benefícios sociais (bolsa família, aposentadoria e seguro defeso) na renda das famílias proporcionaram aumento no poder aquisitivo local, elevando a compra de bens de consumo, como geladeira, televisão, motores para as embarcações, localmente chamados de rabudo 17, despolpadeiras de açaí, máquinas de lavar roupa, entre outros eletrodomésticos. Esses fatores contribuíram para a melhoria na qualidade de vida das famílias locais, segundo os próprios moradores. Esses equipamentos contribuíram para situações como a) diminuição da distância entre a comunidade e a cidade de Abaetetuba; b) conservação dos alimentos, aumentando sua durabilidade18; c) trabalho de beneficiamento da produção do açaí, facilitando e agilizando o processo; d) redução das dificuldades do dia a dia na lida da casa.

Esses fatos estão ocasionando uma mudança significativa nos padrões alimentares das famílias da comunidade do baixo Acaraqui. Enquanto “no tempo dos pais” a alimentação era diversificada e proveniente da unidade de produção, “nos tempos atuais” podemos observar uma maior dependência com relação ao comércio local e à cidade de Abaetetuba, principalmente no consumo de produtos industrializados: enlatados, embutidos, refrigerantes, entre outros (Tabela 3). Antes, o arroz e o feijão eram produzidos localmente, agora necessitam ser adquiridos no comércio local. A proteína animal, anteriormente obtida nas matas por intermédio da caça, passou a ser adquirida nos supermercados ou na feira de Abaetetuba. Observou-se também a crescente referência à aquisição de produtos industrializados, como enlatados, salgadinhos, macarrão instantâneo e mortadela, motivado pela facilidade do preparo e de acesso ao centro urbano (Abaetetuba) e aos mercadinhos locais. Os sucos de frutas estão sendo substituídos pelos refrigerantes. O café está tomando o lugar dos chás de capim-santo (Cymbopogon citratus (DC.) Stapf.), de canela (Cinnamomum zeylanicum Breyn), da casca da laranja (Citrus spp.), comumente consumidos no lanche da tarde, no passado. Conforme relato de Dona Ivanilda (lavradora e dona de casa): “(...) por aqui é só mercearia. A gente compra na mercearia. Esse negócio de ovo, mortadela, que é o que eles vendem por aqui (...) deslatado (enlatado) assim. Meus filhos adoram essas coisas de Miojo19 [risos]”. A fala de Dona Ivanilda ilustra a mudança nos hábitos alimentares da comunidade, na qual a presença de produtos industrializados e adquiridos nos comércios locais está se tornando cada vez mais frequente,

A compra desse tipo de equipamento cresceu também por razões de segurança, principalmente pela facilidade de mobilidade, uma vez que esse tipo de máquina pode ser retirada da embarcação e guardada dentro da residência, evitando seu furto, situação recorrente na comunidade. 18 Antes da chegada da energia, os alimentos e a água para o consumo eram mantidos em isopores com gelo. Segundo Dona Ivanilda, algumas famílias misturavam o gelo com sal para aumentar a durabilidade do gelo, elevando o tempo de conservação dos alimentos. 19 Marca de macarrão instantâneo. 17

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substituindo os produtos locais. Observa-se que até o ovo, embora parte seja produzida localmente, passou a ser comprado nos mercadinhos, sinalizando uma modificação nos hábitos alimentares, qual seja a preferência por produtos industrializados, e uma diminuição da autossuficiência alimentar das famílias quilombolas do baixo Acaraqui. A renda foi um tema recorrente na fala de 80% dos entrevistados (20 famílias) durante a pesquisa de campo. Quando questionados sobre as mudanças, tanto nos hábitos alimentares quanto na qualidade de vida “nos tempos dos pais” e “no tempo presente”, declarações sobre a dificuldade na obtenção de renda eram comuns, devido aos fatores já mencionados, porém, quando se tratava especificamente sobre a alimentação, declaravam que chegava a faltar dinheiro para a aquisição do alimento e, por isso, “tinham que dar o jeito” e esse “dar o jeito” era recorrer ao mingau de farinha, ao mingau de açaí, ao peixe, ao camarão e/ ou ao açaí in natura. Esta informação demonstra que as famílias possuíam um aporte alimentar considerável no passado, garantido pelos recursos naturais ou cultivados existentes nas florestas, nos rios locais, nas roças e nos quintais. Apesar dessa realidade, as famílias, em sua maioria, afirmam que “no tempo presente” as condições de vida na comunidade melhoraram, fazendo alusão principalmente ao aumento do poder aquisitivo e à possibilidade de aquisição de bens de consumo e alimentos, que antes não lhes eram acessíveis: Ás vez faltava, né? Dinheiro às vezes a gente não tinha. A mulher pegava farinha fazia mingau branco, tinha açaí. Pronto. Por que a gente não tinha condição. Eles [os filhos] não tinham “pavulagem”20, até a gente dar o jeito no outro dia (...) a gente pegava uma mucura. Puxava uns “pixinho” [peixinhos] e ajeitava pro outro dia (...) tinha várzea boa pra tapar (Seu Humberto, lavrador).

Apesar da diminuição da autossuficiência (redução da caça, da aquisição de mariscos e da produção de autoconsumo) e aumento da dependência do mercado local, observa-se, nesta fala, como o extrativismo (animal e vegetal) ainda se faz presente – mesmo de maneira reduzida, no caso da caça – e é uma importante ferramenta na garantia da alimentação diária local (Figura 5), até que a família consiga dar “jeito no outro dia” e que, apesar das dificuldades na obtenção de renda “no tempo dos pais”, o alimento propriamente dito se fazia presente na mesa das famílias do baixo Acaraqui, devido, principalmente, à produção destinada ao autoconsumo. Com a presença dos benefícios do governo (bolsa família, aposentadoria e seguro defeso), as famílias desta comunidade quilombola necessitam reorganizar seu sistema de produção e suas

Figura 5. Geladeira com produtos oriundos de recursos naturais utilizados na alimentação pela comunidade quilombola do baixo Acaraqui, Abaetetuba, Pará: A) camarões; B) peixes capturados no rio Acaraqui; C) açaí. Foto: Elcio Nascimento, 2012.

Conforme o “Dicionário Aulete”: “1. Presunção, empáfia, fatuidade: ‘E depois aquela pabulagem que era homem de bem, que era isto, aquilo’ (Viriato Correia, Contos do sertão); 2. Fanfarrice, bravata; 3. Embuste, mentira” (Aulete Digital, s. d.).

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estratégias para aquisição de alimentos, superando as dificuldades ambientais e econômicas, possibilitando, dessa forma, a continuidade do seu modo de vida e garantindo a reprodutibilidade da unidade familiar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS As estratégias de produção e de acesso aos alimentos das famílias quilombolas da comunidade do baixo Acaraqui tinham como foco principal, no passado recente, o autoconsumo. As estratégias usadas eram possibilitadas pela abundância de recursos naturais (peixes, camarões, frutas, caças) e pela facilidade no acesso, na obtenção e no quantitativo desses recursos. Esta realidade já não é mais observada com a mesma frequência na comunidade quilombola estudada, sendo necessário o desenvolvimento de novas estratégias, tanto produtivas quanto as que garantam uma alimentação em quantidade e de qualidade suficiente, preservando o modo de vida da comunidade, assim como a reprodução social, econômica e ambiental das famílias do baixo Acaraqui. Na questão produtiva, a elevação do valor da produção local acarretou um aumento no valor comercial dos recursos da comunidade, tanto agrícolas quanto extrativistas (frutos). Nesse contexto, produtos que tinham pouco interesse econômico no passado, como o açaí, e que eram destinados apenas para o consumo dos membros das famílias ou utilizados em relações de trocas estão sendo destinados sistematicamente para a comercialização. Essa comercialização da produção local nas feiras locais e/ou regionais e sua venda/troca entre vizinhos, amigos e familiares têm contribuído para o aumento da renda das famílias locais, em determinadas épocas do ano, para sua permanência na comunidade e colaborando com o desenvolvimento econômico local. Porém, ao mesmo tempo, vêm acarretando maior dependência com relação aos mercados locais para compra de alimentos e, consequentemente, aumento nos gastos com alimentação e maior necessidade de obtenção de renda para garantir uma alimentação variada, de qualidade e em quantidades suficientes. Essas

mudanças nas práticas de produção, no entanto, podem ter tornado essas atividades instáveis frente às flutuações do mercado local, principalmente no inverno, quando as opções de produção e geração de renda diminuem, nessa época, deixando as famílias com incertezas quanto ao seu suprimento alimentar e dependentes dos benefícios do governo federal para garantir o acesso à alimentação.

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Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil) The burial patterns in the Archaeological Site of Lapa do Santo (early Holocene, east-central Brazil) André StraussI, II, III, IV I Eberhard Karls Universität Tübingen. Tübingen, Alemanha II Universidade de São Paulo. São Paulo, São Paulo, Brasil III IV

Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology. Leipzig, Alemanha

Centro de Arqueologia Annette Laming-Emperaire. Lagoa Santa, Minas Gerais, Brasil

Resumo: No Brasil, esqueletos humanos do início do Holoceno são raros, impedindo um estudo detalhado das práticas funerárias desse período. O sítio arqueológico Lapa do Santo é uma exceção. Entre 2001 e 2009, foram exumados 26 sepultamentos do Holoceno Inicial, que são aqui descritos e distribuídos em sete padrões distintos. A inumação dos mortos na Lapa do Santo tem início entre 10300-10600 cal AP, com enterros simples e articulados (Padrão 1). Entre 9400-9600 cal AP, as práticas funerárias caracterizavam-se pela manipulação perimortem e o subsequente enterro dos ossos desarticulados de múltiplos indivíduos (Padrão 2). Entre 8200-8600 cal AP, esqueletos desarticulados de um único indivíduo, cujos ossos longos comumente apresentam fraturas perimortem, eram depositados em covas circulares (Padrão 3). Os demais padrões incluem esqueletos cujos membros foram removidos (Padrão 4), enterro de esqueleto completo desarticulado na forma de feixe (Padrão 5), cremação (Padrão 6) e enterro em cova circular, recoberto por blocos de arenito (Padrão 7). Caracteriza uma diversidade de sepultamentos desconhecida para o Holoceno Inicial, que contrasta com a homogeneidade tecnofuncional e de hábitos alimentares atribuída a esses grupos. Indica também constantes transformações ao longo do tempo, contradizendo a visão de que esses grupos seriam avessos a inovações culturais. Palavras-chave: Arqueologia da morte. Práticas mortuárias. Ritos funerários. Lagoa Santa. Bioarqueologia. Caçadores-coletores. Abstract: Human skeletons dating from the early Holocene are rare, preventing a detailed study of the funerary practices of that period. The archeological site Lapa do Santo is an exception. Between 2001 and 2009, 26 burials dated to the early Holocene were exhumed. Here they are described and classified into seven distinct burial patterns. The site started to be used as a burial ground between 10300-10600 cal BP with simple articulated burials (Pattern 1). Between 9400-9600 cal BP, funeral practices are characterized by the perimortem handling of the corpse and subsequent burial of disarticulated bones of multiple individuals (Pattern 2). Between 8200-8600 cal BP, disarticulated skeletons of single individuals, whose long bones show perimortem fractures, were deposited in circular pits (Pattern 3). The other burial patterns include skeletons whose members were removed (Pattern 4), burials of complete skeletons in bundles (Pattern 5), cremation (Pattern 6) and disarticulated burials covered with sandstone blocks (Pattern 7). This assemblage characterizes a unique diversity of funerary practices for the early Holocene. It contrasts sharply with the homogeneity traditionally attributed to the lithic technology and dietary habits of these groups. It also points to constant changes over time, contradicting the view that these groups were averse to cultural innovation. Keywords: Archaeology of death. Mortuary practices. Funerary rituals. Lagoa Santa. Bioarchaeology. Hunter-gatherers.

STRAUSS, André. Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 243-276, jan.-abr. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000100013. Autor para correspondência: André Strauss. Universidade de São Paulo. Instituto de Biociências, Departamento de Genética e Biologia Evolutiva. Rua do Matão, 277. São Paulo, SP, Brasil. CEP 05508-090 (andre_strauss@eva.mpg.de). Recebido em 21/04/2015 Aprovado em 11/11/2015

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Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil)

Ainda que estudos recentes tenham retomado a possibilidade de que a América do Sul já estivesse ocupada há 28.000 anos ou mais (Vialou, 2005; Boëda et al., 2013, 2014; Lahaye et al., 2013; Dillehay et al., 2015), remanescentes esqueléticos humanos devidamente datados só aparecem no registro arqueológico brasileiro a partir do início do Holoceno (e.g. Arnaud et al., 1984; Mello e Alvim e Ferreira, 1985; Guidon, 1989; Prous, 1992-1993; Peyre, 1993; Montardo, 1995; Prous e Schlobach, 1997; Guidon et al., 1998, 2009a, 2009b; Lessa e Guidon, 2002; Vergne, 2002; Guerin et al., 2002; Martin, 2005; Nelson, 2005; Da-Silva, 2005; Felice, 2006; Hubbe et al., 2007; Almeida e Neves, 2009; Peyre et al., 2009; Py-Daniel, 2009, 2015; de Castro, 2009; de Morais, 2009; Araujo e Pugliese, 2010; Strauss, 2010; Strauss et al., 2011; Fischer, 2012; Neves et al., 2013; Bueno et al., 2013; Luz, 2014). Atualmente, o esqueleto diretamente datado a partir de “colágeno” extraído do osso mais antigo do Brasil é oriundo da Lapa do Braga, em Lagoa Santa (1126011110 cal AP, Beta-1747361). Entretanto, como é o caso para todas as datas em osso feitas pelo laboratório Beta Analytic, não há parâmetros de qualidade disponíveis para essa amostra que permitam avaliar se o material datado era de fato colágeno ou, em caso positivo, se havia algum tipo de contaminação (DeNiro, 1985; Ambrose, 1990; van Klinken, 1999). O esqueleto mais antigo do Brasil datado a partir de colágeno que foi devidamente avaliado para sua qualidade, é o Sepultamento 27 da Lapa do Santo, datado em 10545-10270 cal AP (MAMS-15247). Dois esqueletos do Brasil aos quais tradicionalmente se atribui grande antiguidade são os de Luzia (Lagoa Santa) e o da Toca do Garrincho (Serra da Capivara). Os ossos de Luzia e os dentes do Garrincho foram enviados ao laboratório Beta Analytic, que optou, mediante a não obtenção de nenhuma substância que poderia ser considerada colágeno, por datar o chamado 1

‘material sobrenadante’, gerado como remanescente do tratamento ácido ao qual as amostras foram submetidas. Seguindo orientação da Beta Analytic, foi proposta a interpretação segundo a qual essas seriam ‘datas mínimas’, porém diretas, para esses esqueletos. Entretanto, essa peculiar interpretação não encontra respaldo na literatura especializada, na medida em que a natureza e a origem desse ‘material sobrenadante’, bem como sua relação com a amostra de osso/dente do qual ele provêm, são completamente desconhecidas (Longin, 1971; Brown et al., 1988; Higham et al., 2006). Portanto, a data obtida para esse ‘material sobrenadante’ não guarda, necessariamente, relação com o material a que se pretende datar. Inclusive, em laboratórios acadêmicos especializados em datação de remanescentes esqueléticos o ‘material sobrenadante’, quando encontrado, é sempre descartado, e jamais enviado para datação (Talamo e Richards, 2011). Portanto, até que sejam obtidas datas diretas em colágeno (preferencialmente com parâmetros de controle de qualidade), a antiguidade de Luzia e do esqueleto da Toca do Garrincho depende exclusivamente das interpretações estratigráficas que são atribuídas a esses esqueletos, os quais não devem ser considerados como ‘diretamente’ datados. De toda forma, durante o Holoceno Inicial a maior parte das diferentes paisagens do continente americano já se encontrava ocupada por grupos que estavam bem adaptados a elas (Dias, 2004; Aceituno et al., 2013; Capriles e Albarracin-Jordan, 2013; Martínez et al., 2013; Mazz, 2013; Melgar, 2013; Prates et al., 2013; Rademaker et al., 2013). Tais grupos são relativamente bem estudados no que se refere a seus padrões de mobilidade e suas estratégias de subsistência, sendo caracterizados como forrageiros generalistas, com uma forte ênfase na exploração de recursos animais, vegetais e aquáticos, conforme disponibilidade dos mesmos (Kipnis, 1998, 2002;

Todos os intervalos cronológicos apresentados neste trabalho são de 95,4% e as calibrações são baseadas na curva SHCal13 e obtidas por meio do programa OxCal 4.1 (Ramsey, 2009; Ramsey e Lee, 2013).

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Scheinsohn, 2003; Borrero, 2015). No que se refere a aspectos simbólicos e rituais, no entanto, a informação disponível é mais limitada (Dillehay, 1997). Os grafismos rupestres são difíceis de serem datados (Neves et al., 2013; Pessis, 2013), deixando a maioria das informações sobre o comportamento simbólico durante o Holoceno Inicial para a análise dos sepultamentos humanos. A relativa escassez de esqueletos deste período impediu uma caracterização detalhada das práticas funerárias durante o Arcaico Inicial. No oeste do continente, a situação é um pouco melhor e, recentemente, importantes esforços foram feitos, tanto no sentido de aumentar o número de esqueletos desse período, como também no sentido de fornecer novos referenciais interpretativos para esses contextos funerários (Santoro et al., 2005). Em uma síntese das evidências disponíveis sobre a região andina, Santoro e colaboradores (2005, p. 330) concluíram que a manipulação e a transformação de cadáveres eram mais comuns do que se imaginava durante o Holoceno Inicial. A ênfase na manipulação do corpo humano como parte de rituais funerários foi, portanto, considerada um fenômeno andino e alguns autores postulam que essas práticas precederam os rituais de sacrifício que posteriormente viriam a fazer parte de diversas sociedades nesta região (Ferguson, 1990; Cordy-Collins, 1992; Verano et al., 1999; Santoro et al., 2005). Na porção leste do continente, sítios arqueológicos com esqueletos que datam do Holoceno Inicial são raros, impedindo o estudo adequado das dimensões rituais desses grupos2. Uma importante exceção a essa escassez é a região de Lagoa Santa, de onde centenas de esqueletos humanos, entre os quais dezenas diretamente datadas do início do Holoceno, foram exumadas em quase dois séculos de pesquisa (Araujo et al., 2012; Neves et al., 2013). Entretanto, apesar da quantidade de esqueletos exumados, muito pouco foi discutido em relação às práticas funerárias na região. De

acordo com as poucas descrições disponíveis na literatura, as práticas mortuárias em Lagoa Santa foram caracterizadas como sendo simples e homogêneas, incluindo apenas enterros primários de um único indivíduo e sem nenhum tipo de acompanhamento funerário3. Mais recentemente, no âmbito das escavações dos sítios arqueológicos da Lapa das Boleiras (Araujo et al., 2008) e da Lapa do Santo (Neves et al., 2014), esse quadro começou a mudar e a presença de sepultamentos mais elaborados, muitas vezes incluindo o enterro de ossos desarticulados, passou a ser reconhecida como um componente importante nos sítios da região (Araujo et al., 2012). O objetivo da presente contribuição é descrever os 26 sepultamentos humanos que foram exumados da Lapa do Santo entre 2001 e 2009, e apresentar uma proposta de como agrupá-los em distintos padrões de sepultamento. Antes, porém, serão apresentadas algumas considerações teóricas sobre o conceito de padrão de sepultamento e uma breve síntese do contexto arqueológico do sítio.

CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A DEFINIÇÃO DE PADRÕES DE SEPULTAMENTO Uma etapa fundamental em todo estudo de arqueologia funerária é a definição dos chamados padrões de sepultamento. De maneira mais ou menos explícita, existe a expectativa de que esses padrões reflitam o comportamento normativo gerado pelas prescrições de uma dada sociedade em relação ao tratamento de seus mortos. Seria a realização daquele que constitui um dos principais anseios do arqueólogo: vislumbrar, ainda que de forma parcial, o comportamento que precedeu a formação do registro material. No caso dos sepultamentos, isso seria particularmente valioso, pois é difícil imaginar qualquer outro momento que esteja mais embebido em significado, ou cujos gestos sejam norteados por princípios mais simbólicos, do que um ritual funerário.

Ver Strauss (2010, 2014) e Strauss et al. (2015a), para uma revisão das prátias mortuárias na América do Sul. Ver Strauss (2010), para uma revisão histórica das pesquisas sobre práticas funerárias na região de Lagoa Santa.

2 3

245


Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil)

Ainda que existam rituais igualmente importantes (e.g. menarca, iniciação, casamento, nascimento etc.), nenhum deles é capaz de gerar um registro material tão evidente e facilmente acessível quanto os ritos funerários. Entretanto, existe uma ambiguidade inerente a esse conceito, que nem sempre é devidamente considerada. Em sua versão mais abrangente, entende-se que os padrões de sepultamento refletem o comportamento normativo gerado no âmago de cada cultura sobre como lidar (ou não lidar) com o corpo do falecido. Em sua versão mais pragmática (i.e. arqueológica), entretanto, um padrão de sepultamento é simplesmente o agrupamento de covas e esqueletos que compartilham um conjunto de propriedades formais julgadas relevantes pelo pesquisador (e.g. todos os sepultamentos em que o corpo estava em decúbito lateral direito; todos os sepultamentos com aplicação de ocre). Não existe, no entanto, nenhuma razão para se esperar que uma determinada cultura apresente uma única maneira de enterrar seus mortos. Ou seja, diferentes conjuntos de sepultamentos que compartilham propriedades formais podem ter sido gerados por um mesmo conjunto de regras sobre como lidar com os mortos. Do ponto de vista arqueológico, muitas vezes, a diferença não é discernível. Ainda assim, é importante dela ter ciência para, na medida do possível, evidenciá-la. Nesse sentido, é fundamental levar em consideração a posição cronológica dos enterros e a sua disposição espacial, além das propriedades formais, na tentativa de se caracterizar um padrão de sepultamento (Chapman, 2005). Uma situação particularmente clara, na qual conjuntos distintos de sepultamentos que compartilham propriedades formais são gerados por um mesmo grupo de regras sobre como lidar com o corpo do falecido, é o caso dos chamados rituais de secundarização4. De um ponto de vista estritamente descritivo, todos os sepultamentos da fase primária compartilhariam propriedades entre si e

se diferenciariam dos sepultamentos da fase secundária. Entretanto, seria descabido afirmar se tratar de dois padrões de sepultamento distintos. Em uma analogia com o estudo tecnofuncional dos artefatos líticos, é preciso levar em consideração toda a chaîne opératoire de um padrão de sepultamento, para ser possível proceder a sua caracterização adequada. Portanto, a posição adotada neste trabalho é a de que sob a égide de um padrão de sepultamento devem ser incluídos não apenas os sepultamentos parecidos em relação às suas características descritivas, mas sim o conjunto de sepultamentos realizado por um mesmo grupo ou grupos, que compartilhavam, pelo menos em algum grau, um conjunto de regras comum para o tratamento de seus mortos. Não existe, entretanto, nenhuma garantia de que os sepultamentos incluídos dentro de um mesmo ‘padrão’ tenham, de fato, sido gerados sob tais condições. É virtualmente impossível que o arqueólogo tenha certeza absoluta a esse respeito, mas, dependendo do grau de especificidade das características compartilhadas por um grupo de sepultamentos, é possível avaliar, ainda que de forma subjetiva, quais as chances de se estar delimitando uma associação espúria. Quanto mais particulares, específicas e diferenciadas foram essas características compartilhadas, maiores as chances de um conjunto de sepultamentos de fato ter sido gerado por um conjunto comum de prescrições. Assim, por exemplo, caso dez sepultamentos hipotéticos, localizados um ao lado do outro e com datações muito similares, apresentem motivos idênticos gravados em seus ossos, existe uma chance muito maior de que eles façam de fato parte de um mesmo padrão mortuário do que um conjunto de dez sepultamentos hipotéticos cuja característica compartilhada é o simples fato de os membros inferiores estarem fletidos. Portanto, definir um padrão de sepultamento é uma tarefa dupla. Por um lado, deve-se determinar os procedimentos que eram adotados como parte dos ritos

Ver Strauss (2010), para uma leitura crítica da aplicação desse termo como categoria descritiva em contextos arqueológicos.

4

246


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 243-276, jan.-abr. 2016

mortuários (i.e. os gestos). Ou seja, como que o falecido era tratado durante o funeral (por exemplo, queimado, cortado, pintado etc.). Ao mesmo tempo, é preciso identificar e repartir a variabilidade de um determinado conjunto de sepultamentos em categorias discretas que, idealmente, devem remeter a um conjunto étnico-cultural específico. Isso, por sua vez, é feito pela identificação de características e atributos que aproximam um conjunto de sepultamentos e que, ao mesmo tempo, diferenciam esse mesmo grupo dos demais. Quanto mais específico e diferenciado for um padrão de sepultamento (i.e. as propriedades formais compartilhadas por um conjunto de sepultamentos) mais clara e explicitamente essa lógica pode ser aplicada. A presente proposta de divisão dos sepultamentos da Lapa do Santo em distintos padrões segue essas premissas.

O CONTEXTO ARQUEOLÓGICO DA LAPA DO SANTO A Lapa do Santo é um sítio arqueológico localizado na parte norte do carste de Lagoa Santa (Araujo et al., 2012). Lagoa Santa está localizada no centro-leste do Brasil e é conhecida entre arqueólogos e paleontólogos desde o século XIX. Os primeiros esqueletos humanos na região foram encontrados pelo naturalista dinamarquês Peter Lund, entre 1835 e 1844 (Lund, 1844; Cartelle, 1994; Piló e Auler, 2002; Araujo et al., 2005; Luna, 2007). Lund propôs uma possível coexistência entre o homem e a megafauna extinta, hipótese que faria com que Lagoa Santa se tornasse o foco de muitos estudiosos ainda no século XIX (e.g. Kollman, 1884; Hansen, 1888; Hrdlíčka, 1912; Ten Kate, 1885). Durante o século XX, diferentes equipes de pesquisa foram à região em busca de provas que pudessem confirmar a hipótese da coexistência entre homem e megafauna (Walter et al., 1937; Walter, 1958; Hurt e Blasi, 1969; Laming-Emperaire, 1979; Bányai, 1997). Após mais de 170 anos, essa questão segue sem uma resposta definitiva, contudo, como resultado dessas diversas escavações, formou-se uma grande coleção de esqueletos

humanos datados do Holoceno Inicial (Bernardo et al., 2011; Da-Gloria, 2012; Neves et al., 2013). No entanto, a documentação relativa a essas escavações é bastante limitada e, de forma geral, o acervo arqueológico oriundo de Lagoa Santa carece de contexto. Coordenado por Walter Alves Neves e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), o projeto “Origens e microevolução do homem na América: uma abordagem paleoantropológica” teve como um de seus objetivos sanar essa deficiência e identificar sítios arqueológicos em Lagoa Santa que pudessem ser escavados de acordo com técnicas modernas de documentação. Foi como parte desses esforços que, em 2001, se decidiu iniciar as escavações no sítio arqueológico da Lapa do Santo, que se estenderiam até 2009, sob a coordenação de Renato Kipnis, Astolfo Araujo e Danilo Bernardo. Em 2011, como parte do projeto de pesquisa “As práticas mortuárias dos primeiros americanos”, coordenado pelo autor e por Rodrigo Elias de Oliveira, uma nova área de escavação foi estabelecida. Os sepultamentos que compõem o cerne da presente contribuição incluem somente aqueles exumados entre 2001 e 2009. A Lapa do Santo é uma caverna com uma área abrigada associada de aproximadamente 1.300 m 2, desenvolvida sob a inclinação negativa de um maciço calcário de 30 metros de altura (Figura 1). A região ao sul da área abrigada situa-se imediatamente à frente da entrada da caverna e é relativamente plana, alta e seca. O piso do abrigo tem uma forte inclinação descendente em direção ao norte e torna-se plano novamente perto de um sumidouro natural, localizado no extremo norte. A cronologia do sítio é baseada em mais de 70 datações por radiocarbono e luminescência oticamente estimulada, indicando a presença de três períodos distintos de ocupação separados por hiatos deposicionais/erosivos e que correspondem, grosso modo, ao Holoceno Inicial, Médio e Final. O modelamento bayesiano das datas do sítio indica o início da ocupação humana há

247


Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil)

12700-11700 cal AP (Figuras 2A e 2B). Quando os três períodos são considerados, existe uma boa concordância entre a posição vertical (i.e., valor-z) e a idade radiocarbônica dos carvões datados, indicando uma integridade macroestratigráfica para os depósitos (Villagran et al., no prelo). Análises de processos de formação identificam um importante componente antropogênico (repetidas atividades de combustão) na acumulação dos sedimentos da Lapa do Santo, indicando uma ocupação intensa e de longa duração. O estudo dos remanescentes faunísticos do sítio indica a presença de peixes, lagartos, roedores, tatus,

queixadas e veados (Bissaro Júnior, 2008). A caça era trazida inteira para o abrigo e preparada para consumo in loco (Bissaro Júnior, 2008). Análises de isótopos estáveis de carbono e nitrogênio indicam uma dieta na qual a proteína ingerida era oriunda principalmente de recursos vegetais (Hermenegildo, 2009). Em conjunto com a alta frequência de cáries que foi descrita para as mulheres dos grupos da região (Neves e Cornero, 1997; Da-Gloria e Larsen, 2014), o quadro que emerge é de uma economia que estava majoritariamente estruturada em torno do consumo de vegetais, sendo complementada pela caça de pequenos e médios animais (Kipnis, 2002).

Figura 1. Croqui da área principal de escavação com a distribuição horizontal das amostras de carvão datadas e dos sepultamentos humanos. Cada círculo pequeno representa uma amostra e o número associado é a datação obtida (não calibrada). Círculos vermelhos, verdes e azuis correspondem, respectivamente, a carvões do Holoceno Inicial, Médio e Final. Os círculos maiores e pretos indicam a localização dos sepultamentos. As áreas sombreadas em vermelho claro, bege e cinza indicam, respectivamente, unidades escavadas, espeleotemas e rocha base do abrigo. As linhas tracejadas em verde correspondem às superfícies projetadas no perfil da Figura 2.

248


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 243-276, jan.-abr. 2016

Figura 2. A) Secção transversal norte-sul da área principal de escavação. Cada círculo pequeno representa uma amostra de carvão e o número associado é a datação obtida (não calibrada). Círculos vermelhos, verdes e azuis correspondem, respectivamente, a carvões do Holoceno Inicial, Médio e Final. As linhas tracejadas em laranja indicam os limites verticais entre cada um dos três períodos de ocupação do sítio. As setas indicam amostras de carvão que estão fora desses limites verticais. Os retângulos pretos indicam a posição dos sepultamentos humanos. Os números à esquerda indicam os valores de ‘z’ em metros; B) gráfico mostrando a relação entre posição vertical e datação para as amostras de carvão (linhas horizontais contínuas) e osso (linha contínua com número associado), datados pelo método do radiocarbono (calibrado) e para as amostras de sedimento datadas por luminescencia oticamente estimulada (linhas tracejadas). Essas linhas horizontais indicam intervalo de confiança de 95,4%. As áreas sombreadas em azul, verde e em vermelho indicam, com base em intervalos de confiança de 68,2% (sombreado mais claro) e 95,4% (sombreado mais escuro), os intervalos cronológicos que definem os períodos de ocupação do sítio que se referem ao Holoceno Inicial, Médio e Final, respectivamente. Nesse gráfico, todas as datações são calibradas e modeladas.

249


Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil)

A tecnologia lítica da Lapa do Santo era dominada por pequenas lascas e núcleos (Pugliese, 2008; Araujo e Pugliese, 2010; Sousa, 2014). Entre o início da ocupação do sítio, há 12700-11700 cal AP até cerca de 9900 cal AP, o quartzo hialino foi a matéria-prima predominante, mas silexito, quartzito e arenito silicificado também foram utilizados (Araujo e Pugliese, 2010). A partir de 9900 cal AP, entretanto, o quartzo hialino passa a ser praticamente a única matéria-prima utilizada. Ainda que estudos específicos, identificando a proveniência de cada matériaprima, ainda não tenham sido realizados, assume-se que o quartzo hialino estava disponível dentro da área cárstica, mas que os demais tipos de matéria-prima somente poderiam ser encontrados fora do carste (Pugliese, 2008; Araujo e Pugliese, 2009). Com exceção de uma única lâmina de hematita e de uma única ponta de projétil, artefatos formais são inexistentes durante o Holoceno Inicial na Lapa do Santo (Pugliese, 2008). A Lapa do Santo apresenta uma abundante indústria de artefatos ósseos, que inclui espátulas, buris e raros anzóis (Souza, 2011). A análise de isótopos de estrôncio (razão 87Sr/86Sr) dos indivíduos da Lapa do Santo aponta considerável homogeneidade entre eles. Uma vez que esses valores são semelhantes àqueles que caracterizam a biodisponibilidade local de estrôncio, eles são compatíveis com um padrão de mobilidade focado na região cárstica. Entretanto, é importante ressalvar que uma caracterização mais ampla da biodisponibilidade

de estrôncio em regiões vizinhas ainda se faz necessária para confirmar essa interpretação. Baixos níveis de mobilidade também são sugeridos por estudos da geometria da secção transversal da diáfise do fêmur (Da-Gloria, 2012). Na Lapa do Santo também foi identificado um registro pictórico do início do Holoceno produzido pela técnica do picoteamento e que retrata antropomorfos fálicos (Neves et al., 2012). Estudos da morfologia craniana dos indivíduos da Lapa do Santo indicam forte semelhança com os crânios oriundos dos demais sítios da região de Lagoa Santa (Neves et al., 2014; Strauss et al., 2015a).

OS SEPULTAMENTOS DA LAPA DO SANTO Entre 2001 e 2009, um total de 26 sepultamentos humanos foram exumados da Lapa do Santo. Devido a contingências documentais, não há um Sepultamento 16 e, por isso, há um Sepultamento 275. Todos esses sepultamentos estão direta ou indiretamente datados do Holoceno Inicial. Os 26 sepultamentos da Lapa do Santo são extremamente diferentes entre si, caracterizando uma grande variabilidade de práticas mortuárias. De acordo com os princípios acima referidos, apresenta-se, a seguir, uma descrição básica de cada sepultamento e uma proposta de como agrupá-los em distintos padrões de sepultamento (nas Tabelas 1, 2 e 3 há uma síntese descritiva dos sepultamentos). O sexo e a idade dos esqueletos foram estimados por Inglez (2010).

Tabela 1. Síntese das características (número de indivíduos, sexo, idade, marca de queima, marca de corte, ocre) apresentadas pelos sepultamentos da Lapa do Santo. (Continua) Sepultamento

Padrão

Número de indivíduos

Sexo

Idade

Marca de queima

Marca de corte

Ocre

1

1

1

Masculino

35 a 45 anos

Não

Não

Não

2

4

1

Feminimo

18 a 22 anos

Não

Não

Não

3

4

1

Masculino

20 a 34 anos

Não

Não

Não

4

7

1

Indeterminado

4 a 8 anos

Não

Não

Sim

Ver Strauss (2010), para uma explicação detalhada.

5

250


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 243-276, jan.-abr. 2016

Tabela 1.

(Conclusão)

Sepultamento

Padrão

Número de indivíduos

Sexo

Idade

Marca de queima

Marca de corte

Ocre

5

5

1

Feminino

40 a 50 anos

Não

Sim

Não

6

3

1

Indeterminado

2 a 5 anos

Não

Não

Não

7

3

1

Indeterminado

5 a 6 anos

Não

Não

Não

8

6

1

Feminino

Adulto

Cremado

Não

Não

9

2B

1

Indeterminado

5 anos

Não

Não

Sim

10

3

1

Feminino

Adulto

Sim

Não

Não

11

3

1

Masculino

20 a 21 anos

Não

Não

Não

12

3

1

Indeterminado

Sub-adulto

Não

Não

Não

13

3

1

Indeterminado

Neo-natal

Não

Não

Não

14

2B

3

Masculino

1ano/3anos/ adulto

Não

Sim

Sim

15

3

1

Masculino

35 a 44 anos

Não

Não

Não

17

2B

2

Masculino

Adulto e 2 anos

Sim

Sim

Não

18

2B

2

Indeterminado

5 a 6 anos e adulto

Não

Sim

Não

19

3

1

Indeterminado

5 a 6 anos

Não

Incipiente

Não

20

-

1

Indeterminado

5 a 6 anos

Não

Não

Não

21

2A

1

Masculino

25 a 35 anos

Não

Sim

Não

22

3

1

Masculino

30 a 40 anos

Não

Não

Não

23

2

5

Indeterminado

35 a 40/24 a 30/7 anos/4 anos/ indeterminado

Não

Sim

Sim

24

-

1

Indeterminado

Adulto

Não

Não

Não

25

-

1

Indeterminado

0 a 6 meses

Não

Não

Não

26

2A

1

Masculino

35 a 45 anos

Não

Sim

Não

27

1

1

Indeterminado

5 a 6 anos

Não

Não

Não

Tabela 2. Síntese das características (padrão, ausência de partes anatômicas maiores, secção dos ossos longos, feixe de ossos, conexão anatômica) apresentadas pelos sepultamentos da Lapa do Santo. (Continua) Sepultamento

Padrão

Ausência de partes anatômicas maiores

Secção dos ossos longos

Feixe de ossos

Conexão anatômica

1

1

Não

Não

Não

Total

2

4

Membros superiores

Não

Não

Total

3

4

Membros superiores e inferiores

Não

Não

Total

4

7

Não

Não

Não

Nenhuma

5

5

Não

Não

Sim

Esparsa (vértebra + sacro)

251


Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil)

Tabela 2.

(Conclusão)

Sepultamento

Padrão

Ausência de partes anatômicas maiores

Secção dos ossos longos

Feixe de ossos

Conexão anatômica

6

3

Não

Não

Não

Apenas das epífises não fusionadas

7

3

Não

Não

Não

Esparsa (vértebra)

8

6

Não

Não

Não

Nenhuma

9

2B

Só havia crânio, costela e bacia

Não

Sim

Epífises não fusionadas em conexão anatômica

10

3

Não

Não

Não

Esparsa (vértebra)

11

3

Não

Não

Não

Nenhuma

12

3

Não

Não

Não

Nenhuma

13

3

Não

Não

Não

Esparsa (vértebra)

14

2B

Sim

Sim

Sim

Nenhuma

15

3

Não

Não

Não

Esparsa (vértebra + osso da bacia + sacro)

17

2B

Sim

Sim

Sim

Nenhuma

18

2B

Sim

Sim

Sim

Nenhuma

19

3

Não

Não

Não

Esparsa (vértebra + ossos de mão e pé)

20

-

Membro superior direito e vértebras lombares. Possivelmente pós-deposicional

Não

Não

Total

21

2A

Diáfise de ambas as tíbias e fíbulas

Sim

Não

Total

22

3

Não

Não

Não

Nenhuma

23

2

Sim

Não

Não

Nenhuma

24

-

Sim

Não

Não

Nenhuma

25

-

Só havia crânio, costelas, vértebras e escápula

Não

Não

Esparsa (vértebra + costela + escápula)

26

2A

Sim

Não

Não

Total

27

1

Não

Não

Não

Total

Tabela 3. Síntese das características (padrão, cobertura, fragmentação perimortem, densidade de ossos na cova, autoria da exumação) apresentadas pelos sepultamentos da Lapa do Santo. (Continua) Sepultamento

Padrão

Cobertura

Fragmentação perimortem

Densidade de ossos na cova

Autoria da exumação

1

1

Blocos grandes esparsos

Não

Normal

Mariana, Rodrigo Elias e Tatiana Nunes

2

4

Não

Não

Normal

João Paulo Atui

252


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 243-276, jan.-abr. 2016

Tabela 3.

(Conclusão)

Sepultamento

Padrão

Cobertura

Fragmentação perimortem

Densidade de ossos na cova

Autoria da exumação

3

4

Não

Não

Normal

Emma e João Paulo Atui

4

7

Estrutura de blocos

Não

Abarrotado

Daniela e Marcus

5

5

Não

Não

Abarrotado

Thiago Hermenegildo

6

3

Estrutura de blocos

Sim

Abarrotado

Maria Mercedes e Pedro Tótora

7

3

Um único seixo

Sim

Abarrotado

Estevan e Pedro Tótora

8

6

Não

Não

Abarrotado

Danilo Bernardo e Emiliano Castro

9

2B

Não

Não

Normal

Renato

10

3

Não

Sim

Abarrotado

Mauro e Pedro Tótora

11

3

Não

Sim

Abarrotado

Emma e Danilo

12

3

Estrutura de blocos

Sim

Meio termo

Pedro Tótora e Sônia

13

3

Não

Não

Normal

Danilo Bernardo e João Paulo Atui

14

2B

Não

Não

Abarrotado

Pedro Tótora e Waldiane

15

3

Estrutura de blocos

Sim

Abarrotado

Emma

17

2B

Não

Não

Abarrotado

Pedro Tótora e Chico

18

2B

Não

Não

Abarrotado

Pedro Tótora

19

3

Estrutura de blocos

Não

Normal

Danilo Bernardo, Maria Mercedes Okumura, Pedro Tótora e Myrtle

20

-

Blocos grandes esparsos

Não

Normal

Tatiana Almeida

21

2A

Blocos grandes esparsos

Não

Normal

Tatiana Almeida e Waldiane

22

3

Não

Sim

Abarrotado

Danilo Bernando e Pedro Tótora

23

2

Não

Não

Abarrotado

André Strauss Rodrigo Elias e Vitor Salviatti

24

-

Estrutura de blocos

Não

Normal

Pedro Tótora e Tatiana Nunes

25

-

Não

Não

Normal

Marcos

26

2A

Blocos grandes esparsos

Sim

Normal

André Strauss e Pedro Tótora

27

1

Não

Não

Normal

Danilo Bernardo e Mariana

253


Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil)

Padrão de Sepultamento 1 da Lapa do Santo (Sepultamentos 1 e 27) O Padrão de Sepultamento 1 da Lapa do Santo (PSLS-1) está datado entre 9700 e 10600 cal AP (Tabela 4). Caracteriza-se pela presença de enterros plenamente articulados em posição fletida (Figuras 3A e 3B). O Sepultamento 1 e o Sepultamento 27 são os dois representantes do Padrão 1. O primeiro é composto pelos ossos de um único indivíduo adulto do sexo masculino (Inglez, 2010), no qual não foi observado nenhum sinal de manipulação perimortem ou postmortem. O esqueleto

estava fletido e a cova coberta por grandes blocos de calcário (paralelepípedos com cerca de 40 centímetros de lado) (Figura 3A). Esse sepultamento foi diretamente datado em 9699-10168 cal AP. O Sepultamento 27 é constituído pelo esqueleto de uma criança de cerca de cinco anos de idade, que foi depositado em posição sentada, com os joelhos muito próximos ao crânio. A mandíbula estava articulada em posição de ‘boca aberta’, indicando que a cova não foi completamente preenchida. Nenhum bloco foi depositado sobre a cova. O esqueleto foi diretamente datado entre 10545-10270 cal AP. É um dos mais antigos do Brasil.

Tabela 4. Idades obtidas em colágeno extraído de amostras de ossos/dentes humanos da Lapa do Santo referentes ao Padrão de Sepultamento 1. Código do laboratório

Idade convencional (anos AP)

1

Beta - 271249

8840 ± 60

9699-10168

-18,10

27

S-EVA - 24500

9245 ± 40

10545-10270

-18,81

Sepultamento

Calibração 95,4% (anos AP)

C/13C

12

Figura 3. Padrão de Sepultamento 1 da Lapa do Santo. Croqui do Sepultamento 1 (A) e foto do Sepultamento 27 (B). Fotos do acervo do Laboratório de Estudos Evolutivos e Ecológicos Humanos da Universidade de São Paulo.

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 243-276, jan.-abr. 2016

Padrão de Sepultamento 2 da Lapa do Santo (Sepultamentos 9, 14, 17, 18, 21, 23 e 26, ossos isolados PN-3083 e PN-3305) O Padrão de Sepultamento 2 da Lapa do Santo (PSLS-2) é composto por três sub-padrões. O Padrão 2A (Figuras 4A e 4B) inclui esqueletos parciais que estavam plenamente articulados, mas com partes anatômicas faltantes, devido à remoção intencional das mesmas enquanto os tecidos moles ainda estavam presentes (i.e. manipulação perimortem). O Padrão 2B (Figura 5A a 5D) é composto por covas preenchidas com ossos totalmente desarticulados de mais de um indivíduo, com intensa seleção de partes anatômicas. Em alguns casos, marcas de queima, marcas de corte, marcas de descarnamento, aplicação de pigmento vermelho e remoção intencional dos dentes, também estavam presentes. O Padrão 2C (Figura 6) é caracterizado por ossos isolados com sinais de corte e queima. Os sepultamentos desarticulados que constituem o Padrão 2B são, de longe, aqueles que compartilham as características mais específicas e diferenciadas e, por isso, constituem o núcleo a partir do qual as características definidoras do Padrão 2 foram estabelecidas. Os sepultamentos articulados com manipulação perimortem e os ossos isolados com marcas de corte e queima apresentavam características formais que permitiram vinculá-los, com bastante segurança, aos sepultamentos desarticulados. Entre os sepultamentos desarticulados que compõem o Padrão 2B (9, 14, 17, 18 e 23), todos apresentavam pelo menos uma das características que definem esse padrão de sepultamento, e que serão apresentadas a seguir. Ainda assim, mesmo entre os sepultamentos que são aqui atribuídos ao Padrão 2B, existem alguns que são mais parecidos entre si do que outros. Os Sepultamentos 9 e 23 e os Sepultamentos 14 e 17 são particularmente similares entre si. No primeiro caso, ambos consistem no crânio individualizado de um indivíduo subadulto associado a dentes isolados e diáfises cortadas de osso longo de um indivíduo subadulto. Enquanto a presença dos crânios individualizados pode não ser uma característica suficientemente específica para vincular esses

Figura 4. Padrão de Sepultamento 2A da Lapa do Santo. Fotos do Sepultamento 21 (A) e do Sepultamento 26 (B) durante exumação. Reparar que, apesar dos esqueletos estarem plenamente articulados, eles apresentam partes anatômicas que foram removidas. Fotos do acervo do Laboratório de Estudos Evolutivos e Ecológicos Humanos da Universidade de São Paulo.

dois sepultamentos de maneira inconteste, a presença dos dentes isolados e, principalmente, a dos ossos longos cortados torna a associação bastante plausível. O padrão de corte observado nessas diáfises é extremamente particular e

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Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil)

se repete de forma idêntica em ambos os sepultamentos. A repetição de um padrão tão específico não apenas permite vincular os Sepultamentos 9 e 23, como também explicita o caráter normativo e formal desses ritos funerários. Outro par que claramente compartilha propriedades formais é composto pelos Sepultamentos 14 e 17, os quais estavam localizados exatamente no mesmo lugar do sítio, estando o Sepultamento 14 imediatamente acima do Sepultamento 17. Em ambos os casos, o enterro consistia na associação de um fardo de ossos de pelo menos um indivíduo subadulto que foi colocado ao lado do crânio individualizado de um indivíduo adulto. As principais diferenças são que, no caso do Sepultamento 14, o fardo de ossos é composto pelos ossos de dois indivíduos subadultos, enquanto que, no Sepultamento 17, o fardo é composto por ossos de um único indivíduo subadulto (Tabela 5). Outra diferença é que no Sepultamento 17, além do crânio, estavam presentes outros ossos do indivíduo adulto, como

a mandíbula, a ulna, o úmero e a escápula. Apesar dessas diferenças, os dois sepultamentos são caracterizados pela repetição da dupla oposição entre ‘crânio’ e ‘pós-crânio’ e entre ‘adulto’ e ‘subadulto’, cuja especificidade julgo suficiente para postular uma relação direta entre esses dois sepultamentos. Ou seja, tanto o Sepultamento 14 como o 17 foram gerados por um corpo comum de regras muito específicas sobre como organizar os remanescentes esqueletais humanos após a sua decomposição. Outro sepultamento que seguiu as mesmas diretrizes é o de número 18. Novamente, observa-se a dupla oposição envolvendo as categorias ‘crânio’ e ‘pós-crânio’ e entre ‘adulto’ e ‘subadulto’. Entretanto, no caso desse sepultamento, são os ossos do crânio que pertencem ao indivíduo subadulto e os ossos do pós-crânio é que são do indivíduo adulto. Ou seja, em relação ao que foi observado nos Sepultamentos 14 e 17, os pares de oposição se expressam de forma simetricamente oposta no Sepultamento 18.

Figura 5. Padrão de Sepultamento 2B da Lapa do Santo. Fotos dos Sepultamento 9 (A), Sepultamento 14 (B), Sepultamento 18 (C) e Sepultamento 17 (D) durante exumação. Esses sepultamentos são caracterizados pela presença de ossos totalmente desarticulados e de uma forte seleção de partes anatômicas. Fotos do acervo do Laboratório de Estudos Evolutivos e Ecológicos Humanos da Universidade de São Paulo.

Figura 6. Padrão de Sepultamento 2C da Lapa do Santo. Ossos isolados, cortados e queimados como essa extremidade distal de um fêmur esquerdo (A) e essa extremidade proximal de um úmero direito (B) definem tal padrão de sepultamento. Da esquerda para direita, cada osso é mostrado em vista anterior, lateral, posterior e medial. Fotos do autor.

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Tabela 5. Ossos longos que faziam parte dos fardos de ossos associados aos sepultamentos atribuídos ao Padrão de Sepultamento 2 da Lapa do Santo. Legenda: * = estrutura coletada sob PN-2253; µ = diáfise; α = extremidade proximal; β = extremidade distal; π = inteiro. Sepultamento

Idade

Contexto

Osso

Lado

Tipo

9

Adulto?

Fardo*

Ulna?

Indeterminado

µ

9

Adulto?

Fardo*

Ulna?

Indeterminado

µ

9

Adulto?

Fardo*

Ulna?

Indeterminado

µ

9

Adulto?

Fardo*

Ulna?

Indeterminado

µ

9

Adulto?

Fardo*

Ulna?

Indeterminado

µ

9

Adulto?

Fardo*

Ulna?

Indeterminado

µ

9

Adulto?

Fardo*

Ulna?

Indeterminado

µ

14

Subadulto (38 semanas)

Fardo

Rádio

Esquerdo

Π

14

Subadulto (1 ano)

Fardo

Rádio

Direito

µ

14

Subadulto (1 ano)

Fardo

Úmero

Esquerdo

µ

14

Subadulto (1 ano)

Fardo

Úmero

Direito

Α

14

Subadulto (1 ano)

Fardo

Fêmur

Esquerdo

µ

14

Subadulto (1 ano)

Fardo

Tíbia

Esquerdo

µ

14

Subadulto (1 ano)

Fardo

Tíbia

Direito

µ

14

Subadulto (1 ano)

Fardo

Fíbula

Direito

π

14

Subadulto (3 anos)

Fardo

Ulna

Esquerdo

µ

14

Subadulto (3 anos)

Fardo

Rádio

Esquerdo

π

14

Subadulto (3 anos)

Fardo

Fêmur

Esquerdo

Α

17

Subadulto

Fardo

Úmero

Esquerdo

µ

17

Subadulto

Fardo

Úmero

Esquerdo

µ

17

Subadulto

Fardo

Fêmur

Esquerdo

µ

17

Subadulto

Fardo

Fêmur

Direito

µ

17

Adulto

Dentro do crânio

Úmero

Esquerdo

β

17

Adulto

Dentro do crânio

Ulna

Esquerdo

α

17

Adulto

Dentro do crânio

Osso longo

Indeterminado

µ

18

Adulto

Fardo

Úmero

Direito

µ

18

Adulto

Fardo

Úmero

Esquerdo

µ

18

Adulto

Fardo

Rádio

Direito

µ

18

Adulto

Fardo

Fêmur?

Indeterminado

µ

21

Adulto

Articulado

Tíbias e fíbulas

Ambos os lados

αβ

23

Adulto?

Indeterminado

Ulna?

Indeterminado

26

Adulto

Articulado

Rádio

Direito

β

Isolado (PN-3083)

Adulto

Isolado

Fêmur

Esquerdo

β

Isolado (PN-3305)

Adulto

Isolado

Úmero

Direito

α

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Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil)

Outra oposição que caracteriza os sepultamentos desarticulados incluídos no Padrão 2B é aquela entre ‘dentes isolados’ e ‘alvéolos vazios’. Assim, enquanto o maxilar dos Sepultamentos 9 e 17 e as mandíbulas dos Sepultamentos 17 e 18 tinham seus alvéolos plenamente preservados, mas vazios (Figuras 7A e 7B), na ‘estrutura’ associada ao Sepultamento 9 e no Sepultamento 23 foram encontrados diversos dentes individualizados (84, no caso deste último). Os dentes eram, portanto, intencionalmente removidos dos alvéolos e, posteriormente, depositados junto aos ossos de outro indivíduo. É importante salientar, no entanto, que enquanto a dupla oposição descrita acima se realizava no âmbito de um mesmo sepultamento, essa oposição entre presença e ausência de dentes só é perceptível quando ao menos dois sepultamentos são considerados em conjunto. Além de evidenciar mais um aspecto normativo desse padrão de sepultamento, mais uma vez baseado em pares de oposição, a remoção intencional dos dentes é importante pois permite vincular os Sepultamentos 9 e 23 com os Sepultamentos 14, 17 e 18. Em princípio, a única propriedade formal que permitiria estabelecer um vínculo direto entre esses quatro sepultamentos seria o fato de que em todos foi observada a presença de crânios

individualizados e diáfises de ossos longos cujas extremidades foram removidas. Entretanto, uma vez que existe uma semelhança muito forte entre os Sepultamentos 17 e 14, por um lado, e entre os Sepultamentos 9 e 23, por outro lado, é possível estabelecer que os próprios Sepultamentos 9 e 14 faziam parte de um mesmo conjunto. Inclusive, conforme determinado por Rodrigo Elias de Oliveira (comunicação pessoal), uma das dentições representadas entre esses 84 dentes pertencia ao crânio do Sepultamento 17, provando de forma definitiva que esses sepultamentos fazem parte de um mesmo padrão de sepultamento e que os dentes eram intencionalmente removidos. Assim, vincula-se todos os cinco sepultamentos desarticulados com um mesmo padrão de sepultamento (i.e. Padrão 2B). Outra característica definidora do Padrão 2 é a prática de seccionar os ossos longos de forma a separar suas extremidades de suas diáfises (Figuras 8A e 8B). Esses ossos longos cortados foram observados em pelo menos quatro contextos distintos: como parte de fardos de ossos (Sepultamentos 9, 14, 17 e 18), como ossos desarticulados não associados a sepultamentos, como ossos desarticulados associados com sepultamentos também desarticulados (Sepultamento 17) e como parte de esqueletos plenamente articulados (Sepultamentos 21 e 26).

Figura 7. Padrão de Sepultamento 2B da Lapa do Santo. Um elemento constituinte do Padrão 2B é a remoção intencional dos dentes, como exemplificado pela maxilar do Sepultamento 17 (A) e pela mandíbula do Sepultamento 18 (B). Fotos do autor.

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Figura 8. Padrão de Sepultamento 2B da Lapa do Santo. A secção dos ossos longos entre diáfises (A) e extremidades (B) faz parte das práticas definidoras do Padrão 2. As diáfises mostradas em A são oriundas do Sepultamento 18. Da esquerda para direita: úmero esquerdo, úmero direito, rádio direito e fragmento de diáfise de osso longo (possivelmente um fêmur). A extremidade distal de úmero esquerdo e a extremidade proximal da ulna esquerda mostradas em articulação em B são oriundas do Sepultamento 17. Fotos do autor.

A Tabela 5 apresenta uma relação de todos os ossos longos que tiveram suas extremidades ou diáfises seccionadas e removidas. Além desses ossos, também foram incluídos os ossos longos que faziam parte do feixe de ossos, mas que não tinham sido seccionados (i.e. estavam inteiros). Nitidamente, a maior parte dos ossos seccionados faz parte dos fardos de ossos. Entretanto, antes de continuar a exposição sobre os ossos longos seccionados, são cabíveis algumas considerações sobre os fardos de ossos. Em primeiro lugar, a definição do termo. Por ‘fardo de osso’, entendo todo conjunto de ossos cuja disposição espacial conote que eles eram mantidos juntos por algum tipo de embrulho, pacote, argamassa ou recipiente. Ou seja, que sua disposição não poderia ser obtida sem que houvesse algum tipo de constrangimento espacial, além dos limites da própria cova, e que,

possivelmente, antecediam o momento do enterro (ainda que hipoteticamente o ‘recipiente’ poderia ser escavado no próprio piso de ocupação). Mais especificamente, esses ossos devem estar muito próximos uns aos outros, indicando que estavam secos no momento do enterro (caso contrário não seria um fardo de ossos, mas sim um fardo de pernas e braços, por exemplo). Dos sepultamentos incluídos no Padrão 2, os de número 9, 14, 17 e 18 apresentam arranjos de ossos que satisfazem as características supracitadas para definir um fardo de osso. Em todos esses casos, foram observados ossos seccionados como parte constituinte desses fardos. Entretanto, existe uma importante diferença entre os fardos encontrados junto aos Sepultamentos 14, 17 e 18 e aquele encontrado junto ao Sepultamento 9. Esse último é, na verdade, a estrutura composta por sete fragmentos

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Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil)

de diáfises e diversos dentes (PN-2253), descrita em Strauss (2010, p. 297). Essa estrutura é caracterizada por um alto grau de ordenamento espacial das suas partes constituintes, dando a impressão de que cada um deles foi intencionalmente alocado em sua posição final (o eixo das diáfises está totalmente alinhado). Já os fardos de ossos pertencentes aos Sepultamentos 14, 17 e 18 têm uma estruturação espacial mais ‘relaxada’, pois, apesar de existir uma organização geral do conjunto de ossos (por exemplo, ossos longos subparalelos entre si, ossos da bacia na extremidade do fardo), os ossos individualmente não foram planejadamente colocados em uma posição específica. De qualquer maneira, estavam presentes nesses quatro fardos 26 ossos longos, ou parte deles. Desses, a grande maioria (21) era composta por diáfises, das quais as extremidades haviam sido removidas. Além dessas diáfises, também estavam presentes duas extremidades de ossos longos e três ossos longos inteiros. No caso dos Sepultamentos 9, 17 e 18, o fardo de ossos era composto exclusivamente por diáfises de ossos longos, estando as extremidades de ossos longos totalmente ausentes. Entretanto, é importante lembrar que no Sepultamento 17 também estavam presentes extremidades cujas diáfises haviam sido removidas, só que estas estavam dentro do crânio e não faziam parte do fardo de ossos. Assim, enquanto no Sepultamento 14 o fardo de ossos era composto tanto por extremidades como por diáfises de ossos longos, no Sepultamento 17, o fardo de ossos era composto exclusivamente por diáfises, sendo as extremidades encontradas exclusivamente dentro do crânio, e não junto ao fardo (também foram encontrados fragmentos seccionados de diáfise dentro do crânio). Além disso, enquanto no Sepultamento 14 as extremidades e diáfises eram oriundas de diversos indivíduos, no Sepultamento 17 as extremidades (que não faziam parte do fardo) eram de um único indivíduo adulto, e as diáfises de um único indivíduo subadulto. Não existe, entretanto, nenhum caso no qual um mesmo fardo de ossos tenha ossos de indivíduos adultos e subadultos.

Ou seja, tanto a presença de diáfises como a presença de extremidades mostram que ambas eram importantes nos rituais funerários. Portanto, não é possível afirmar que só as diáfises eram removidas das extremidades ou que só as extremidades eram removidas das diáfises. Ainda assim, há uma nítida predominância de diáfises em relação às extremidades, mesmo se as duas extremidades do Sepultamento 17, que não estavam associadas ao fardo de ossos (elas estavam dentro do crânio), sejam consideradas. Além das quatro extremidades mencionadas anteriormente (duas do Sepultamento 14 e duas do Sepultamento 17), foram encontradas mais duas extremidades individualizadas, atribuídas ao Padrão 2C. Trata-se da epífise distal do fêmur esquerdo (PN 3083, Figura 6A) e da epífise proximal do úmero direito (PN 3305, Figura 6B). Esses dois ossos foram achados isolados e, portanto, não estão associados a nenhum sepultamento ou fardo de ossos. Junto com as marcas de queima e de descarnamento observadas em alguns ossos do Sepultamento 17, essas duas extremidades isoladas constituem evidência de que o Padrão 2 poderia ter envolvido algum tipo de canibalismo, ainda que estudos mais detalhados sejam necessários para clarificar essa possibilidade. Particularmente no caso da extremidade distal do fêmur esquerdo nota-se que a marca de queima restringe-se a porção próxima da margem seccionada. Tal feição indica que os músculos ainda estavam presentes e que a peça foi exposta diretamente à fonte de calor (por exemplo fogo ou brasa) e não cozida. Não resta dúvida de que a remoção dessas extremidades isoladas de ossos longos (Padrão 2C) foi feita de acordo com o mesmo procedimento técnico, tanto no que se refere ao gestual como ao instrumental, utilizado na segregação de diáfises e extremidades dos ossos longos dos demais sepultamentos, aqui atribuídos ao Padrão 2A e ao Padrão 2B. Ainda com relação aos fardos de ossos encontrados junto aos Sepultamentos 9, 14, 17 e 18, é possível afirmar que, em conjunto, todos os ossos longos estavam representados, sem exceção. Entretanto, conforme pode ser observado na Tabela 5, ossos como o rádio, a fíbula

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e o fêmur estão sub-representados, principalmente em comparação com a tíbia e o úmero. Por fim, é importante salientar que esses fardos de ossos não eram compostos exclusivamente por ossos longos. Com exceção dos ossos do crânio, da mandíbula, das vértebras, do sacro e do esterno, todos os demais ossos do esqueleto foram encontrados em pelo menos um desses fardos. Além de ser uma importante característica definidora do Padrão 2, a separação das diáfises e das extremidades dos ossos longos é importante, pois permite vincular, com alguma segurança, um sepultamento plenamente articulado (Sepultamento 21) com os demais sepultamentos desarticulados. Assim, o fato das diáfises das tíbias e das fíbulas do Sepultamento 21 terem sido removidas é compatível com a interpretação de que esse sepultamento representava os estágios iniciais do ritual, que culminava com os sepultamentos desarticulados (Padrão 2C), principalmente nos casos que envolviam a remoção da diáfise e das extremidades dos ossos longos. Além disso, esse sepultamento plenamente articulado é especialmente importante, pois oferece sustentação à hipótese de que a remoção das extremidades e das diáfises ocorria em um período próximo ao momento da morte, envolvendo a manipulação perimortem do corpo do falecido. De forma análoga, o Sepultamento 26, apesar de estar plenamente articulado, partilha algumas propriedades com os enterros desarticulados que autorizam a inclusão de todos esses sepultamentos como parte de um mesmo padrão de sepultamento. A característica mais específica que o Sepultamento 26 compartilha com os Sepultamentos 9, 14, 17, 18 e 23 é a individualização do crânio. Além disso, a própria remoção da cabeça e das mãos seria compatível com as diretrizes mais gerais que caracterizam esse padrão de sepultamento, notadamente a ênfase na manipulação perimortem do corpo. Finalmente, as duas mãos amputadas foram colocadas em dupla oposição em relação ao crânio,

já que uma estava com os dedos voltados para baixo e a palma voltada para o crânio, e a outra com os dedos voltados para cima e a palma voltada para o lado oposto. Ou seja, assim como nos sepultamentos desarticulados incluídos nesse padrão, também no Sepultamento 26 a disposição espacial dos ossos parece engendrar a reificação de pares de oposições 6. Portanto, mesmo que o argumento não seja tão forte, como no caso do Sepultamento 21, assume-se, de forma análoga, que o Sepultamento 26 faz parte do Padrão 2. Outra característica comum aos sepultamentos incluídos no Padrão 2 é a presença de incisões nos ossos, das quais algumas são certamente marcas de corte (Figuras 9A a 9E). Ainda que incisões tenham sido observadas em outros sepultamentos da Lapa do Santo (e.g. Sepultamentos 5 e 19), não há dúvidas de que são nos sepultamentos do Padrão 2 que elas são mais abundantes. Um estudo mais detalhado dessas incisões deverá ser realizado no futuro. Entretanto, a partir das descrições preliminares apresentadas em Strauss (2010), foi possível identificar quatro tipos distintos de incisões: superfinas, finas, grossas e chanfros. A Figura 9 mostra exemplos de cada um desses tipos. Com relação aos chanfros, não parece haver qualquer dúvida de que sejam o resultado do processo pelo qual o osso era cortado. Não há nenhum caso em que chanfros tenham sido observados sem que estivessem associados a uma superfície seccionada. No caso dos ossos de indivíduos adultos, o inverso também é verdadeiro. Ou seja, todas as superfícies seccionadas de ossos longos apresentam chanfros em sua margem ou próximo a ela (exceto no caso em que a margem foi quebrada pósdeposicionalmente, como na fíbula do Sepultamento 21). Por outro lado, nos indivíduos subadultos, existem inúmeros casos nos quais os ossos que foram seccionados não apresentavam chanfros (Sepultamento 17). A ausência de chanfros em ossos nitidamente seccionados ou é decorrente do fato dos ossos de subadultos terem um

Ver Strauss et al. (2015a), para uma descrição detalhada do Sepultamento 26.

6

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Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil)

comportamento reológico distinto ou do fato de que procedimentos distintos eram adotados na secção de ossos de adultos e de subadultos. Nas incisões finas, que são as mais comuns, existem situações nas quais elas estão nitidamente associadas ao processo de desmembramento. É o caso, por exemplo, da extremidade distal do úmero do Sepultamento 17, em que as incisões estão próximas à superfície articular, ou da extremidade proximal de fêmur do Sepultamento 14, em que as incisões estão localizadas no pescoço do fêmur; ou ainda no caso da sexta vértebra cervical do Sepultamento 26, em que as incisões parecem estar associadas ao processo de decapitação. Em todas essas situações, as incisões apresentamse na forma de agrupamentos subparalelos, reforçando a interpretação supracitada de que se tratam de marcas de corte ou de que, pelo menos, são o resultado direto de agência antrópica. Por outro lado, nem todo osso seccionado apresenta esse tipo de incisão. Pelo contrário, na maioria dos casos elas estão ausentes. Além disso, existem ocorrências de ossos que não foram seccionados, nos quais é possível observar incisões desse tipo, como a fíbula direita do Sepultamento 14. Em alguns casos, essas incisões estão presentes em ossos que foram seccionados, mas sua posição torna pouco provável que estejam associadas ao processo de secção propriamente dito. Um exemplo disso é o fêmur esquerdo do Sepultamento 14, no qual existe uma profusão de incisões paralelas entre si localizadas no meio da diáfise. Portanto, nem o processo de secção do osso implicava, necessariamente, incisões; nem a presença de incisões era resultado exclusivo desse processo. As denominadas incisões largas foram observadas exclusivamente nos ossos do Sepultamento 14. Sua disposição espacial, na maioria transversal à diáfise, torna pouco provável que estivesse associada ao processo de secção dos ossos. A presença de um caso no qual esse tipo de incisão ocorre longitudinalmente, ao longo do osso, reforça essa ideia. Entretanto, no âmbito deste trabalho não foi possível identificar o processo responsável por esse tipo de incisão. Com relação às incisões ‘superfinas’, elas foram

Figura 9. Tipos de incisões identificadas nos ossos longos, associados ao Padrão 2. A e B) incisões finas; C) chanfros e incisões superfinas (oblíquas aos chanfros); D) chanfros formam a margem seccionada dos ossos longos; E) incisões largas transversais à diáfise do osso longo de um indivíduo subadulto. Fotos do autor.

observadas em um único osso (extremidade proximal da tíbia esquerda do Sepultamento 21). Apesar de se tratar de um agrupamento subparalelo associado à uma margem seccionada, é possível que essas incisões superfinas não sejam, de fato, marcas de corte ou resultado da ação de pequenos carnívoros. Estudos futuros sobre as incisões observadas nos ossos atribuídos ao Padrão 2 deverão esclarecer esses pontos. É importante enfatizar que os sepultamentos apresentados até aqui não compartilham apenas as diversas características que foram enumeradas. Além delas, eles estão interligados por sua posição no sítio, horizontal e vertical, e por suas datações. Assim, os Sepultamentos 18, 21, 23 e 26 encontram-se todos muito próximos, tanto horizontalmente como verticalmente. Já os

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Sepultamentos 14 e 17, apesar de estarem muito próximos entre si, encontram-se afastados daquele agrupamento de sepultamentos. Por outro lado, as idades disponíveis para os Sepultamentos 14, 17 e 26 são muito próximas, estabelecendo mais um vínculo entre eles. Assim, o único sepultamento para o qual não existe nenhum tipo de vínculo cronológico ou espacial, para complementar a associação estabelecida pelas propriedades formais descritas é o Sepultamento 9. Esse sepultamento encontrase completamente afastado dos demais e, apesar das tentativas, não foi possível obter uma idade direta em osso para ele. Ainda assim, devido à semelhança absoluta entre as diáfises cortadas encontradas nesse sepultamento e àquela encontrada no Sepultamento 23, parece que esse distanciamento espacial não é razão para gerar qualquer tipo de dúvida sobre a associação do Sepultamento 9 com os demais sepultamentos incluídos nesse padrão. Outras duas características que foram observadas no Padrão 2, ainda que não sejam compartilhadas por todos os enterramentos nele incluído, é a aplicação de ocre vermelho e a exposição ao fogo. A aplicação de ocre foi observado nos crânios dos Sepultamentos 9 e 14. Nesse último caso, a presença de ocre na parte superior das órbitas indica que a aplicação do corante era realizada com os ossos já secos. O crânio do Sepultamento 23 apresenta tons avermelhados que, possivelmente, são decorrentes da aplicação do ocre. Com relação à exposição ao fogo, o Sepultamento 17 é

o único que apresentava evidências nesse sentido. Não se trata, em absoluto, de uma cremação ou calcinação. Isso é particularmente importante no caso do crânio em que as marcas de fogo são localizadas e, devido à sua distribuição, parece provável que foram geradas enquanto os tecidos moles ainda estavam presentes. Eventualmente, essa exposição ao fogo pode ter sido utilizada para facilitar a remoção dos dentes, que apresentam retração volumétrica quando expostos ao calor. Por outro lado, além do crânio, os fragmentos cortados de diáfises de osso longo (fêmur ou tíbia) encontrados dentro do crânio também apresentavam sinais de queima. Com relação ao perfil demográfico dos sepultamentos que foram incluídos no Padrão 2, todos os indivíduos para os quais foi possível estimar o sexo eram masculinos (Sepultamentos 14, 17, 21 e 26) (Inglez, 2010). Com relação à idade, estavam presentes recém-nascidos, crianças e adultos. Tanto no caso dos sepultamentos desarticulados como no caso dos sepultamentos articulados sem manipulação perimortem do corpo havia indivíduos adultos e subadultos. Já os únicos dois casos de sepultamentos articulados com alteração perimortem (Sepultamentos 21 e 26) foram apenas de adultos. O Padrão 2 está consideravelmente bem datado entre cerca de 9400-9600 cal AP. Ao todo, foram obtidas seis datas radiocarbônicas em amostra de colágeno extraído de osso (Tabela 6).

Tabela 6. Idades obtidas em colágeno extraído de amostras de ossos/dentes humanos da Lapa do Santo, referentes ao Padrão de Sepultamento 2. Sepultamento

Código do laboratório

Idade convencional (anos AP)

Calibração 95,4% (anos AP)

14

Beta - 215196

8230 ± 40

9396-9031

-22,40

14

Beta - 253505

8730 ± 50

9890-9554

-19,60

17

Beta - 253507

8480 ± 50

9541-9431

-19,00

17

Beta - 265182

8580 ± 50

9663-9482

-19,00

21

S-EVA 15246

8584 ± 33

9600-9495

-18,59

26

S-EVA 26436

8331 ± 44

9438-9127

-19,80

263

C/13C

12


Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil)

Padrão de Sepultamento 3 da Lapa do Santo (Sepultamentos 6, 7, 10, 11, 12, 13, 15, 19 e 22) Os sepultamentos atribuídos ao Padrão 3 são caracterizados por covas de contorno circular muito bem delimitado, com cerca de 30 a 40 centímetros de diâmetro e 20 centímetros de profundidade, ou menos, no caso dos enterros de indivíduos subadultos (Figuras 10A a 10C). Apenas um indivíduo era colocado em cada cova. Normalmente, a maior parte dos ossos estava presente, ainda que ausências menores tenham sido notadas. Entretanto, essas ausências não parecem caracterizar um processo de seleção de partes anatômicas específicas que eram excluídas do enterramento e talvez devam ser entendidas como perdas durante um hipotético transporte das ossadas. As covas encontravamse completamente preenchidas, de maneira que os ossos encostavam em toda a circunferência de suas bordas. Os ossos estavam tão próximos uns dos outros que quase não havia espaços vazios (com sedimento) entre eles, passando a sensação de que estavam dentro de algum tipo de receptáculo funerário. No caso de indivíduos adultos, era comum os ossos longos serem quebrados ao meio, e diversos tipos de fraturas perimortem foram observadas (espiralada, oblíqua, asa de borboleta e cominuída). Esse é um

padrão consistente que se observa em praticamente todos os ossos longos de indivíduos adultos desse grupo de sepultamentos (Figura 11). De maneira geral, os ossos encontravam-se completamente fora de sua posição anatômica, passando a sensação de um verdadeiro ‘caos’, onde nenhuma ordem estava presente. Ainda assim, em diversos casos, conjuntos localizados de ossos mantiveramse em plena conexão anatômica. Em quatro desses sepultamentos (6, 12, 15 e 19) havia uma cobertura de blocos bastante característica sobre a cova (Figura 12). Essa cobertura constituía uma verdadeira estrutura circular de blocos (cada um tinha o tamanho médio de um punho), no qual esses eram empilhados uns sobre os outros. Os blocos eram todos de calcário. Entre os sepultamentos incluídos no Padrão 3 estavam presentes indivíduos de ambos os sexos (Inglez, 2010). Também estavam presentes tanto indivíduos adultos como subadultos. Dos sepultamentos incluídos nesse padrão, três foram datados diretamente (Tabela 7). Desses, dois apresentam datação entre 8561-8070 cal AP. Já o Sepultamento 11 apresenta uma datação mais recente, de 6941-6735 cal AP, e que possivelmente deve ser resultado de algum tipo de contaminação. A posição vertical o Sepultamento 11 indica que ele estava no mesmo nível dos demais sepultamentos incluídos no Padrão 3.

Figura 10. Padrão de Sepultamento 3 da Lapa do Santo. Fotos de campo do Sepultamento 6 (A), Sepultamento 15 (B) e Sepultamento 19 (C), ilustrando as covas caracteristicamente circulares e completamente preenchidas com ossos de um único indivíduo e que, em sua maioria, estão desarticulados. Fotos do acervo do Laboratório de Estudos Evolutivos e Ecológicos Humanos da Universidade de São Paulo.

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 243-276, jan.-abr. 2016

Figura 11. Padrão de Sepultamento 3 da Lapa do Santo. Os ossos longos comumente apresentam fraturas perimorten, como exemplificado nessa imagem de ossos do Sepultamento 22. Fotos do autor.

Figura 12. Padrão de Sepultamento 3 da Lapa do Santo. Alguns dos sepultamentos do Padrão 3 apresentavam estruturas circulares compostas por blocos de calcário colocadas por cima dos ossos. Fotos do acervo do Laboratório de Estudos Evolutivos e Ecológicos Humanos da Universidade de São Paulo.

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Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil)

Tabela 7. Idades obtidas em colágeno extraído de amostras de ossos/dentes humanos da Lapa do Santo referentes ao Padrão de Sepultamento 3. Sepultamento

Código do laboratório

Idade convencional (anos AP)

Calibração 95,4% (anos AP)

C/13C

12

7

Beta - 215194

7400 ± 50

8344 - 8070

-18,90

11

Beta - 215195

5990 ± 40

6941 - 6735

-20,60

19

Beta - 215200

7700 ± 50

8561 - 8410

-18,60

Além disso, o Sepultamento 11 é muito parecido com os demais sepultamentos desse padrão e, portanto, caso a idade de 6941-6735 cal AP esteja correta, ela acarreta uma continuidade de quase 1500 anos para essa prática mortuária. Portanto, desconsidera-se a datação do Sepultamento 11 e o Padrão 3 está datado entre cerca de 8000 e 8600 cal AP. Entretanto, reconhece-se que é necessário mais datas para que se considere a datação desse padrão de sepultamento como satisfatória.

Padrão de Sepultamento 4 da Lapa do Santo (Sepultamentos 2 e 3) Esse padrão de sepultamento foi caracterizado com base em apenas dois sepultamentos, que compartilham algumas propriedades as quais parecem indicar que foram gerados por um mesmo padrão de sepultamento. Notadamente, os esqueletos estavam articulados, mas os membros ausentes. No caso do Sepultamento 2, os ossos dos membros superiores estavam ausentes e, no caso do Sepultamento 3, tanto os ossos dos membros superiores como dos membros inferiores estavam ausentes. Em ambos os casos, a ausência dos membros não levou à presença de marcas de corte e estudos futuros devem investigar a possibilidade de uma origem tafonômica para essa ausência. Ambos os esqueletos pertencem a indivíduos adultos, sendo que o Sepultamento 2 foi estimado como do sexo feminino e o Sepultamento 3 foi estimado como do sexo masculino (Inglez, 2010). O Sepultamento 2 foi originalmente datado em 1379-1211 cal AP (Beta - 253497). Por ser uma data muito recente, gerou desconfiança, e uma segunda tentativa resultou em uma datação de 9029-8798 cal

AP (S-EVA - 24491). A data da Beta foi obtida a partir de pequenos fragmentos de vértebra de difícil identificação e, possivelmente, apresentava algum tipo de contaminação (poderia, inclusive, ter apresentado também material não humano). A data do Instituto Max Planck foi obtida a partir de um generoso fragmento de costela, cuja identificação anatômica não permite nenhum tipo de dúvida. Além disso, essa datação foi feita em colágeno de qualidade comprovada (%C = 4,06 e %N = 1,52). Portanto, descartamos a data do Holoceno Final e consideramos o Sepultamento 2 como pertencente ao Holoceno Inicial.

Padrão de Sepultamento 5 da Lapa do Santo (Sepultamento 5) No Sepultamento 5, os ossos de um único indivíduo adulto e do sexo feminino (Inglez, 2010) foram organizados na forma de um feixe (Figura 13). Em um certo sentido, a presença de marcas de corte nos ossos longos e o fato de eles terem sido dispostos paralelos entre si na forma de um feixe aproximam esse sepultamento daqueles que foram incluídos no Padrão 2. Entretanto, a ênfase em pares de oposição, característica deste último, está ausente. Outra diferença em relação ao Padrão 2 é a ausência da seleção de partes anatômicas e a presença de um único indivíduo na cova. Essas semelhanças e diferenças poderiam ganhar maior ou menor peso, dependendo da idade do Sepultamento 5 ser ou não compatível com os sepultamentos do Padrão 2. Nesse sentido, seria muito importante continuar tentando obter uma data direta para esse sepultamento. Até que isso seja feito, entretanto, o fato de esse sepultamento encontrar-se espacialmente acima de sepultamentos

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Figura 13. Padrão de Sepultamento 5 da Lapa do Santo. Fotos de campo do Sepultamento 5 nas quais é possível visualizar a organização dos ossos na forma de feixe. Fotos do acervo do Laboratório de Estudos Evolutivos e Ecológicos Humanos da Universidade de São Paulo.

do Padrão 2 sugere que ele é de uma fase de ocupação mais recente da Lapa do Santo e que, portanto, trata-se de um caso isolado, representando um outro padrão de sepultamento, e não uma variação do Padrão 2.

Padrão de Sepultamento 6 da Lapa do Santo (Sepultamento 8) O Sepultamento 8 é o único caso na Lapa do Santo em que foi observada uma cremação total do esqueleto (Figuras 14A e 14B). Os ossos calcinados de um único indivíduo adulto e do sexo feminino (devido ao avançado grau de calcinação essa estimativa de sexo deve ser vista com cuidado) preenchiam uma cova circular. Dentro dela não foram encontrados carvões, indicando que a queima ocorreu em outra localidade. Ainda que existam outros casos no sítio em

que foi observada a exposição ao fogo, eles nitidamente não estão relacionados com o Sepultamento 8, que, portanto, caracteriza até o presente momento um caso isolado na Lapa do Santo. Inclusive, a partir da minha experiência pessoal e da de Walter Neves (comunicação pessoal) as coleções de Lagoa Santa não incluem esqueletos calcinados.

Padrão de Sepultamento 7 (Sepultamento 4) A princípio, o Sepultamento 4 apresenta algumas características que o aproximam do Padrão 3. Trata-se de uma cova circular completamente preenchida com os ossos de um único indivíduo subadulto de idade estimada entre cinco e sete anos. A cova, por sua vez, estava coberta por uma estrutura de blocos, muito semelhante

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Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil)

Figura 14. Padrão de Sepultamento 6 da Lapa do Santo. Os ossos queimados e calcinados do Sepultamento 8 (A) foram depositados em um cova de contorno circular de aproximadamente 40 centímetros de diâmetro (B). Fotos do acervo do Laboratório de Estudos Evolutivos e Ecológicos Humanos da Universidade de São Paulo.

àquelas descritas para os sepultamentos do Padrão 3. Entretanto, dois fatores levaram à decisão de não o incluir nesse padrão. Em primeiro lugar, ele se encontra acima dos sepultamentos do Padrão 3 na estratigrafia. Inclusive, ele está imediatamente acima do Sepultamento 11, que foi incluído no Padrão 3. Além disso, a cobertura de blocos do Sepultamento 4 é composta por blocos de quartzito, enquanto que as demais coberturas são todas compostas por blocos de calcário. Finalmente, nos ossos do Sepultamento 4 foi observada a aplicação de pigmentos vermelhos, o que não ocorre em nenhum dos sepultamentos atribuídos ao Padrão 3.

Casos isolados (Sepultamentos 24 e 25) O Sepultamento 24 é composto por dentes permanentes e alguns ossos. A presença de uma estrutura de blocos (EB-4, conforme definido em Strauss, 2010) acima desses ossos poderia sugerir que esse sepultamento fazia parte do Padrão 3. Essa ideia seria apoiada pela posição do Sepultamento 24 no sítio, próximo a outros sepultamentos do Padrão 3, como os de número 19 e 22. Entretanto, todos os sepultamentos do Padrão 3 eram compostos por

um esqueleto virtualmente completo, e não por poucos ossos escassos. Uma possibilidade que não pode ser descartada é a de que o Sepultamento 24 represente, na verdade, os refugos de um esvaziamento de cova e que, portanto, não caracteriza um sepultamento propriamente dito. Existe, entretanto, uma outra possibilidade, a de que esse sepultamento faça parte, na realidade, do Padrão 2. A presença de dentes isolados seria a principal característica para apoiar essa ideia. Do ponto de vista estratigráfico, a posição vertical dos ossos do Sepultamento 24 encontrase no limite entre a base dos sepultamentos incluídos no Padrão 3 e no topo dos sepultamentos incluídos no Padrão 2. Uma maneira de decidir essa questão é obter uma datação direta para os ossos do Sepultamento 24. No presente momento, entretanto, a postura mais conservadora é considerá-lo como um caso isolado. O Sepultamento 25 estava localizado imediatamente acima do Sepultamento 1. Os poucos ossos de um recémnascido de aproximadamente seis meses que foram encontrados estavam muito fragmentados, tornando impossível determinar a real natureza do enterramento. Portanto, ele é aqui considerado como um caso isolado.

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DISCUSSÃO As práticas mortuárias na região de Lagoa Santa sempre foram caracterizadas como simples e homogêneas (Walter, 1958; Neves e Hubbe, 2005). Entretanto, desde a retomada das escavações no sítio da Lapa das Boleiras, entre 2001 e 2003, começou a ficar claro que essa proposição deveria estar equivocada (Neves et al., 2002; Araujo, 2010; Araujo et al., 2012). Nesse sentido, o primeiro aspecto notável dos sepultamentos da Lapa do Santo é que eles evidenciam uma alta variabilidade que contradiz essa visão tradicional sobre as práticas mortuárias na região de Lagoa Santa. Para além dessa retificação histórica, a diversidade que caracteriza os sepultamentos humanos na Lapa do Santo ganha relevância na medida em que antagoniza com a homogeneidade que define outros componentes do sítio, tais como os artefatos líticos, os remanescentes faunísticos, a morfologia craniana e a própria composição da matriz sedimentar. Com a notável exceção do abandono do uso de matérias-primas exógenas ao carste a partir de aproximadamente 9900 cal AP (Pugliese, 2008), o registro arqueológico da Lapa do Santo e de outros sítios na região sugere uma considerável homogeneidade ao longo do tempo e do espaço. Assumiu-se, portanto, que havia algum tipo de unidade entre os grupos que habitaram a região. Ao fugir dessa monotonia, os sepultamentos da Lapa do Santo revelam que essa perspectiva unitarista falha em capturar nuances importantes em aspectos definidores de identidade entre aqueles grupos. Ou seja, que ao longo do Holoceno Inicial grupos distintos que, possivelmente, não se reconheciam como parte de uma mesma entidade étnico-cultural habitaram a região. Inclusive, na ausência de mais datações diretas para os esqueletos, não é possível descartar a hipótese de que, em um mesmo momento, diferentes grupos tenham ocupado a região. Isso não significa que esses grupos não estavam relacionados entre si de alguma forma. Entretanto, essa conexão não era necessariamente étnico-cultural, mas de natureza puramente paisagística e tecnológica. É importante

salientar que a Lapa do Santo, assim como a maioria dos abrigos onde se encontram esqueletos humanos durante o Holoceno Inicial, não foi exclusivamente utilizada para o enterro dos mortos e, por isso, não pode ser formalmente classificada como um cemitério (Strauss, 2012). Nesse sentido, é mais adequado empregar o conceito de um “lugar persistente” (in sensu Schlanger, 1992), que foi repetidamente ocupado devido às suas feições únicas na paisagem. Além disso, há um importante componente diacrônico na estruturação da variabilidade dos padrões de sepultamento da Lapa do Santo. Isso atesta a natureza dinâmica desses grupos, que, mesmo tendo mantido uma mesma tecnologia lítica e os mesmos hábitos alimentares por milênios, estavam constantemente transformando sua identidade cultural ao longo dos séculos. Esse cenário é uma alternativa interpretativa importante em relação à visão de que os grupos caçadores-coletores que habitavam partes do Brasil durante o Holoceno Inicial seriam sociedades temporalmente estáticas, chegando ao ponto de estabelecer mecanismos de aversão à inovação cultural (Okumura e Araujo, 2014). Em um contexto mais amplo, a diversidade funerária evidenciada na Lapa do Santo explicita que estabilidade tecno-funcional ou de hábitos alimentares não implica, necessariamente, identidade cultural. Ou seja, os sepultamentos da Lapa do Santo nos ajudam a melhor compreender que, por detrás dessas amplas áreas geográficas tradicionalmente caracterizadas por complexos tecno-funcionais específicos (e.g. Itaparica, Umbu, Lagoa Santanse), ‘esconde-se’ aquilo que aos olhos de qualquer etnógrafo seria caracterizado como uma multiplicidade de identidades étnicas-culturais. Em linguajar de tabloide, poder-se-ia dizer que, durante o Holoceno Inicial, não existiu um único ‘povo de Luzia’, expressão cunhada por Walter Neves para se referir aos grupos humanos que habitaram a região de Lagoa Santa durante o Holoceno Inicial, mas sim muitos ‘povos’ e muitas ‘Luzias’, cada um único em suas idiossincrasias simbólicas, culturais e, porque não, linguísticas. Únicos, portanto, nos aspectos definidores

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Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil)

das culturas humanas e que se encontram na base de todo e qualquer processo etnogênico. Assim, o registro funerário da Lapa do Santo contribui para retratar uma pré-história plural e dinâmica, onde a diversidade é a regra e elemento interpretativo fundamental. Outro pressuposto comum que perpassa os estudos sobre a região de Lagoa Santa é o de que os grupos que habitavam a região durante o Holoceno Inicial tinham práticas mortuárias simples e pouco elaboradas (Neves e Hubbe, 2005). Novamente, os sepultamentos exumados da Lapa do Santo mostram que essa visão estava equivocada. Na ausência de uma arquitetura sofisticada ou de ricos acompanhamentos funerários, a elaboração dos rituais funerários em Lagoa Santa passava por diversas dimensões, incluindo o uso do próprio corpo do falecido como agente simbólico. Ainda que existam outros casos na região, é no Padrão 2 da Lapa do Santo, datado entre 9400 e 9600 AP, que essa lógica se apresenta da forma mais clara. No que se refere ao registro arqueológico, isso é expresso na forma de sepultamentos desarticulados, compostos por crânios individualizados, fardos de ossos (compostos por até dois indivíduos), marcas de corte, chanfros, extração de dentes, seleção de partes anatômicas, exposição ao fogo e aplicação de ocre. Ao mesmo tempo, a presença de esqueletos articulados, entre os quais o caso mais antigo de decapitação em todo o continente americano, atesta que a seleção de partes anatômicas e sua consequente remoção eram praticadas logo após a morte, enquanto os tecidos moles ainda estavam presentes. Posteriormente, os ossos eram realocados e dispostos de acordo com uma série de princípios muito bem definidos. Em conjunto, o Padrão 2 pode ser interpretado como um ritual baseado em princípios de secundarização (Hertz, 1907), no qual o Padrão 2A representa a fase inicial, o Padrão 2B fase terminal e o Padrão 2C, os resíduos do processo de desmembramento. A organização cuidadosa dos ossos e partes do corpo em arranjos é compatível com uma fase intermediária, na qual a cura e a exibição pública seriam elementos centrais de cerimônias com

um importante componente visual. A estrita observação de procedimentos tão específicos e tecnicamente elaborados poderia indicar a presença de agentes fúnebres especializados na realização dessas tarefas. Em muitas sociedades humanas, resíduos or gânicos constituíam um poderoso recurso cultural, e a manipulação e a organização de ossos humanos e partes do corpo é comumente utilizada para reificar princípios cosmológicos (Brown, 2010). Notadamente, através desses procedimentos e arranjos, realizava-se a reificação de diretrizes que, possivelmente, refletiam aspectos da própria cosmovisão daqueles grupos. Os sepultamentos desarticulados do Padrão 2 apresentam uma lógica dicotômica que orienta (prescreve) a forma como os ossos são organizados. Essa lógica é inferida pela presença da dupla dicotomia entre ‘adulto’ e ‘subadulto’ e entre ‘crânio’ e ‘pós-crânio’, entre ‘diáfise’ e ‘extremidade do osso longo’ e entre ‘dente’ e ‘alvéolo vazio’. Esse sistema onde se enfatiza pares de oposições atribui, inevitavelmente, um tom levi-straussiano (estruturalista) à lógica adotada (Levi-Strauss, 1966, 1969). Conforme colocado por Héretier (1982, p. 158-159 apud Viveiros de Castro, 1992), parte-se do pressuposto de que a “simbologia elementar do idêntico e do diferente” é ferramenta básica na fundamental tarefa com que se depara cada sociedade de gerar sua autorrepresentação. Mais especificamente, é fortuito notar que entre dois dos principais grupos macrolinguísticos do Brasil, notadamente os Gê e os Tupis, ainda que essa simbologia elementar esteja presente em ambas, existe um contraste profundo na forma pela qual essa lógica do digital impacta a morfologia social. Entre os Tupis, ainda que essa dialética se expresse de forma magistral no plano estritamente cosmológico (Viveiros de Castro, 1992), ela tem pouca impressão na organização social propriamente dita. Por outro lado, os grupos Gê constituem sociedades onde essa lógica se reifica da maneira mais intensa e explícita. Nas palavras de Viveiros de Castro (1992, p. 5), entre os grupos Gê “encontramos o máximo desenvolvimento de oposições complementares nas categorias sociais e valores cosmológicos, oposições

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que se dobram, desdobram, interceptam, e ecoam umas as outras numa vertiginosa progressão barroca”. Trata-se, portanto, do clássico contraste entre sociedades ‘metafóricas’ e sociedades ‘metonímicas’, entre sociedades ‘totêmicas’ e sociedades ‘sacrificais’, finalmente, entre sociedades ‘legíveis’ e sociedades ‘imperceptíveis’ (Viveiros de Castro, 1992, p. 11). Partindo do necessário reconhecimento dos limites a que estão submetidas interpretações de teor mais subjetivo quando se está próximo da fronteira do Pleistoceno com o Holoceno, proponho que o que vislumbramos nos sepultamentos do Padrão de Sepultamento 2 da Lapa do Santo são justamente elementos que faziam parte dessa “vertiginosa progressão barroca”, a que se refere Viveiros de Castro. Sem nunca esquecer que estamos no plano das mais puras conjecturas, e que possivelmente jamais seremos capazes de testar a validade de tais hipóteses, proponho que, assim como os grupos Gê atuais, os grupos responsáveis pelo Padrão de Sepultamento 2 também tinham uma organização social de morfologia bem cristalizada e legível, que se fundamentava em uma dialética estruturalista explícita (Maybury-Lewis, 1979). Tal situação contrasta com a possibilidade mais amorfa que é tão bem representada por muitos dos grupos Tupis (Viveiros de Castro, 1992). Outra semelhança entre os grupos que ocuparam a região de Lagoa Santa durante o Holoceno Inicial e os grupos Gê (mais especificamente os Botocudos) é a sua morfologia craniana. Desde o século XIX já se havia percebido que esses grupos compartilham, pelo menos até certo ponto e em contraste com os grupos Tupi (mais especificamente os Tenetehara), uma morfologia craniana semelhante (Strauss et al., 2015b). Uma interpretação possível dessa observação é a de que os grupos Gê (ou parte deles) teriam uma relação de descendência (dêmica) com os habitantes de Lagoa Santa. Naturalmente, essa é uma hipótese que somente poderá ser plenamente elucidada no futuro, quando se conseguir extrair DNA dos ossos humanos oriundos da região de Lagoa Santa. A partir de 8600 anos AP, observa-se uma drástica e importante mudança nas práticas mortuárias da Lapa do Santo com o início do Padrão 3 de Sepultamento. A ênfase

na manipulação perimortem do corpo é abandonada e, em seu lugar, aparecem sepultamentos desarticulados. Esses são caracterizados por covas de contorno circular muito bem delimitadas, com cerca de 40 centímetros de diâmetro e 30 centímetros de profundidade, às vezes menos. Cada cova era totalmente preenchida pelos ossos de um único esqueleto, cuja disposição apresentava pouca ou nenhuma lógica anatômica. No caso de indivíduos adultos, muitas vezes os ossos longos eram quebrados ao meio antes ou durante o processo de enterramento. Em alguns casos, as covas eram recobertas por estruturas muito características, formadas pelo empilhamento de diversos blocos de pedra, com o tamanho médio de um punho. Uma mudança tão radical nas práticas funerárias pode refletir algum tipo de alteração na própria organização social daqueles grupos. Até o presente momento, os sepultamentos são a única fonte que aponta para essa mudança no registro arqueológico da região de Lagoa Santa por volta de 8600 anos AP. Conforme outros estudos venham a ser realizados, será possível avaliar se tal mudança foi fruto de uma reorganização interna dos grupos que já habitavam a região ou se implica a chegada de uma nova população e/ou de uma nova tradição cultural em Lagoa Santa no período em questão.

CONCLUSÕES A revisão crítica da literatura e os novos sepultamentos encontrados na Lapa do Santo mostram que as práticas mortuárias na região de Lagoa Santa eram caracterizadas por um padrão simples de enterros primários fletidos, recobertos por blocos, sendo fruto de um histórico viés interpretativo. Pelo contrário, os sepultamentos em Lagoa Santa são extremamente complexos e diversos, tornando tanto a sua exumação como sua posterior interpretação extremamente difíceis. Notadamente, as técnicas de documentação e de escavação utilizadas pelas equipes que trabalharam na região, bem como seus paradigmas teóricos tão focados na questão da coexistência do homem com a megafauna, não foram capazes de lidar com essa alta complexidade. Assim,

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Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil)

a suposta simplicidade e a homogeneidade atribuídas aos padrões de sepultamentos eram, antes, propriedades dos próprios métodos arqueológicos empregados. Mais uma vez, a complexidade latente do registro arqueológico só é evidenciada a partir de sua investigação minuciosa.

AGRADECIMENTOS Esse artigo deve muito ao frutífero ambiente intelectual do Laboratório de Estudos Evolutivos e Ecológicos Humanos, do qual as seguintes pessoas merecem destaque: Astolfo Araujo, Alex Hubbe, Danilo Bernardo, Elver Mayer, Franciso Pugliese, João Carlos Moreno, Marcos César Bissaro Júnior, Mariana Inglez, Marina Gratao, Ivan Pantaleoni, Mark Hubbe, Max Hernani, Mercedes Okumura, Pedro Da-Gloria, Renato Kipnis, Rodrigo de Oliveira, Rui Sergio Murrieta, Tiago Hermenegildo e Walter Neves. Às seguintes pessoas, o agradecimento por um olhar exterior e crítico sobre o material de Lagoa Santa, que foi de grande valia para estabelecer as bases teóricas do presente trabalho: Camila Jacome, Gustavo Martinez, Alejandra Ortiz, André Prous, Igor Rodrigues, Adam Sylvester e Bence Viola. Agradeço também a todos que participaram do projeto “Origens”, de forma geral, e àqueles que trabalharam na Lapa do Santo, em especial. O trabalho do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) na análise rápida dos pedidos de autorização também é digno de reconhecimento. Obrigado a Letânia Menezes, pela revisão do texto. Os comentários dos revisores e dos editores foram importantes para o aperfeiçoamento do manuscrito. Agradecimento especial a Jean-Jacques Hublin, não apenas pelo suporte financeiro às novas escavações na Lapa do Santo, mas por ter acreditado na importância que o sítio tem em um cenário internacional. Nessa nova fase de pesquisas, o apoio do Instituto Estadual de Floresta do Governo de Minas Gerais, através do Parque Estadual do Sumidouro, personificado por Rogério Tavares e Luísa Cota, tem sido fundamental. Pelo apoio do Centro de Arqueologia Annette Laming-Emperaire e da Prefeitura de Lagoa Santa, o

agradecimento a Rosângela Albano e a Cleito Ribeiro. Como sempre, os trabalhos de campo não teriam sido possíveis sem a presença constante de João Bárbara e da comunidade do Mocambeiro. Finalmente, o muito obrigado a José Hein, por seu elevado espírito acadêmico e pelo incansável apoio às nossas pesquisas em sua propriedade. As pesquisas na região de Lagoa Santa foram financiadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e pelo Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva. O autor recebeu bolsa FAPESP (08/51747-0) durante o período em que realizou a presente pesquisa.

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Obscure cognates and lexical reconstruction: notes on the diachrony of the Xinguan Arawak languages Cognatos obscuros e reconstrução lexical: notas sobre a diacronia das línguas arawak xinguanas Fernando O. de Carvalho Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Abstract: The present paper discusses evidence supporting the claim that the common Xinguan Arawak noun for ‘hand’, *wɨʂɨku, is a shared lexical innovation of this subgroup and that, in addition, a formation for ‘finger’ derived from a nominal compound with the roots for ‘hand’ and ‘head’, *kapɨ-tɨwɨ, sets Waurá, Mehinaku and Kustenaú apart from other languages of the family, including Yawalapiti. The reconstructed Proto-Arawak etymon for ‘hand’, *kʰapɨ, is preserved in the Xinguan Arawak languages only in the form of obscure cognates, instantiating interesting developments in lexical semantics as well as a relatively uncommon sound change in Yawalapiti. The discussion incorporates and addresses the historical linguistic significance of the earliest documentation of the Xinguan Arawak languages, the material gathered by Karl von den Steinen in 1887-1888. The analyses and data discussed highlight serious shortcomings in some of the reconstructed forms and diachronic developments advanced by Payne (1991), such as the postulation of a shift *a > ɨ in Waurá and the reconstruction of syllable-final *h for the Proto-Arawak language, one of the most controversial aspects of his comparative study. Keywords: Xingu. Arawak. Historical linguistics. Sound change. Diachronic Semantics. Resumo: O presente artigo traz evidências em favor da hipótese de que o termo Xinguano para ‘mão’, *wɨʂɨku, constitui uma inovação lexical compartilhada pelas línguas deste ramo da família Arawak e, ainda, que formações para ‘dedo’, envolvendo a composição das raízes nominais para ‘mão’ e ‘cabeça’, *kapɨ-tɨwɨ, colocam o Waurá, o Mehinaku e o Kustenaú à parte de outras línguas da família, incluindo o Yawalapiti. O étimo *kʰapɨ ‘mão’, reconstruído para o Proto-Arawak, apresenta cognatos obscuros nas línguas Arawak do Xingu, instanciando desenvolvimentos interessantes na semântica lexical e uma mudança sonora relativamente pouco comum no reflexo atestado em Yawalapiti. O trabalho inclui uma apreciação dos dados das línguas Arawak do Xingu coletados por Karl von den Steinen na sua expedição de 1887-1888. Em nível mais geral, se propõe aqui a modificação ou a rejeição de certas afirmações feitas por Payne (1991) a respeito de desenvolvimentos diacrônicos, como a postulação de uma mudança *a > ɨ em Waurá, e a reconstrução de *h em posição final de sílaba, um dos aspectos mais controversos do seu trabalho de reconstrução comparativa. Palavras-chave: Xingu. Arawak. Linguística histórica. Mudança sonora. Semântica diacrônica.

Carvalho, Fernando O. de. Obscure cognates and lexical reconstruction: notes on the diachrony of the Xinguan Arawak languages. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 277-294, jan.-abr. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81 222016000100014. Autor para correspondência: Estrada Washington Luís 609, casa 73, Sapê, Niterói - Rio de Janeiro. CEP: 24315375 (fernaoorphao@gmail.com). Recebido em 07/12/2015 Aprovado em 30/03/2016

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Obscure cognates and lexical reconstruction: notes on the diachrony of the xinguan arawak languages

INTRODUCTION The goal of this contribution is to discuss some phonological and lexico-semantic developments in the Xingu subgroup of the Arawak language family. The arguments and data featured here bear directly on the historical development of the three extant languages forming this group – Waurá, Mehinaku and Yawalapiti – though I will, on occasion, address issues of significance to the historical linguistics of the Arawak family at large1. After a brief and selective outline of the classification of the Xingu Arawak languages in the next section, I will start off discussing the fact that these languages agree in that they lack a semantically-matched reflex of a Proto-Arawak (henceforth, PA) reconstructed etymon, *kʰapɨ ‘hand’ (see Payne, 1991, p. 407). Next, I show that a form *wɨʂɨku ‘hand’ can be reconstructed for the Proto-Xingu (PX) language, and this is argued to be a lexical innovation of the Xingu branch, replacing *kʰapɨ in its original function (defined grossly by a particular semantic slot in vocabulary lists). However, in order to backup the claim that this constitutes a Xingu-specific lexical innovation I will first examine and ultimately reject Payne’s (1991) proposed derivation of this innovative form from a different PA etymon and, in doing so, I will suggest improvements to some of the PA reconstructions presented by Payne (1991). PA *kʰapɨ is, however, preserved in the form of (slightly) obscure cognates in the languages of the Xinguan branch. This claim is backed up, in the formal side, by a consideration of general sound changes characteristic of these languages (some of which are discussed in detail in Carvalho, in press) and, in their semantics, by a consideration of parallel shifts attested cross-linguistically. A more encompassing picture of the Xingu Arawak languages will also be provided, as I discuss their earliest attestations in the form of vocabulary data collected by Karl von den Steinen between 1887 and1888 (published in 1894), of particular relevance for the material on the already extinct Kustenaú language. In a final section I provide a synthesis and discuss some conclusions and implications of the claims presented in the paper. THE XINGU SUBGROUP OF THE ARAWAK LANGUAGE FAMILY Though neither an extensive lexical reconstruction nor a phonological proto-system has been proposed for the ProtoXingu (PX) language, it is commonly accepted that the extant languages of this branch, Mehinaku, Waurá and Yawalapiti, form a (cladistic) subgroup. Mehinaku and Waurá are basically co-dialects of the same language and it seems that the extinct Kustenaú (Kustenau, Custenau) language fits in this Mehinaku-Waurá cluster as well (see Seki, 1999, p. 419; Corbera Mori, 2012, 2015). At a slightly higher level of phylogenetic inclusiveness, Paresi seems to join the Xingu branch in a Paresi-Xingu subgroup. This proposed internal grouping has been based so far almost exclusively on geographic factors, cultural similarities between these groups and impressionistically-assessed degrees of linguistic proximity, though somewhat more objective (though not necessarily helpful) estimates based on shared lexical retentions have been advanced as well (see Payne, 1991; Urban, 1992; Aikhenvald, 1999, p. 67; Franchetto, 2001). I am currently engaged in a historical-comparative investigation of the (Paresi-)Xingu branch and some evidence stemming from this work, and from the investigations of other researchers as well, suggest lexical and phonological innovations – some of which will A note is necessary on the sources of data for this study. For Mehinaku I counted on the recent papers by Corbera Mori (2007, 2008, 2009, 2011, 2012). For Waurá, the data comes from Postigo (2011, 2014) and, to a lesser extent, from Richards (1973, 1988). Finally, for Yawalapiti, the consulted sources are Mujica (1992) and Bondim (1976 [see note 11]). The latter consists of two unpublished notebooks with copious fieldwork material. The notebooks are archived at the Centro de Documentação de Línguas Indígenas (CELIN), of the Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ), under the auspices of Lourdes Cristina, to whom I am thankful.

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be discussed here for the first time – that might support the recognition of this internal classification. These are given below in a simplified cladogram and a related character state distribution. The characters (a) to (d) in Figure 1 are binary characters, each defining a property that is either present ‘1’ or absent ‘0’. In this very simplified tree constructed for expositional purposes, each stroke in the tree indicates an innovation ‘0 ⇒ 1’ (that is, all characters are assumed to be in state ‘0’ at the root of the tree). Character (a) describes a language having different vowels in second and third person prefixes - *i and *ɨ respectively. In Carvalho (in press) I propose tentatively that this may be a shared innovation of the Paresi-Xingu subgroup2. Characters (b) and (c) are discussed in the present paper. Character (b) consists in the presence of a form *wɨʂɨku for ‘hand’, which seems to constitute a lexical innovation of the Xingu subgroup, while character (c) refers to the existence of a nominal compound of the roots for ‘hand’ and ‘head’ to convey the meaning for ‘finger’. Finally, character (d) consists of the development PA *-ʧi > -i for the Absolute suffix reconstructed by Payne (1991), plus some consequent morphophonemic developments, as discussed in Carvalho (2015). Figure 1 does not indicate diachronic developments that are restricted to particular terminal taxa. These, though relevant to a complete understanding of the history of these languages, are uninformative as far as internal classification is concerned. In Carvalho (in press) I discuss some of these developments, such as *p > h and *ɨ > e in Paresi, the merger of *ɨ and *i in Yawalapiti and the lexical innovation of kuʂu for ‘head’ in Yawalapiti. In the remainder of the paper my attention will be focused on characters (b) and (c), as well as in the Xinguan reflexes of a particular etymon reconstructed for the PA ancestral language by Payne (1991). Data on the extinct Kustenaú language will be addressed sparingly, as only limited data is available (see von den Steinen, 1894, p. 529-530, for the original data and Corbera Mori, 2008, 2015 for some considerations about von den Steinen’s material).

Figure 1. Tree diagram and character-state distribution for the Paresi-Xingu languages.

A more refined classification would include the extinct Saraveka language and Enawenê-Nawê as speech varieties that are especially close to Paresi (Aikhenvald, 1999, p. 67), perhaps with all three having the status of co-dialects of one and the same language.

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OBSCURE COGNATES, LEXICAL SUBSTITUTION AND SEMANTIC SHIFTS In comparative lists of ‘basic vocabulary’ for Arawak languages, the forms recorded for the Xinguan languages (i.e. Waurá, Mehinaku, Kustenaú and Yawalapiti) which appear in the meaning slot for ‘hand’ look utterly unrelated to the form attested in most languages of the family (see for instance Ramirez, 2001a, p. 619, for 100-item Swadesh lists). The widespread, non-Xinguan, forms are analyzed by Payne (1991, p. 407) as the reflexes of a PA etymon *kʰapɨ. An impression of the overall distribution of the attested forms and the distinct character of those attested for the Xinguan languages is offered by a simple perusal of Table 1 below. I have included languages from almost every currently accepted or tentatively proposed subgroup of the Arawak family, including extinct languages of the central Amazon and Solimões area whose forms for ‘hand’ can be straightforwardly interpreted as compatible with the proto-form reconstructed by Payne (1991)3. The list in table 1 is also the first one to include data from Yawalapiti, the most divergent of the Xinguan Arawak languages. In the languages showing forms relatable to PA *kʰapɨ (i.e. all languages other than Mehinaku, Waurá, Kustenaú and Yawalapiti), deviations from the postulated proto-form are relatively well-understood, at least in the sense that regular developments explain the important deviations4. Thus, debuccalization of *kʰ and *p to h are regular developments in Wayuunaiki and in Paresi, respectively. Likewise, *p > h regularly applies in Achagua preceding a high vowel (see Payne, 1991, p. 434, 442; Ramirez, 2001a, p. 449 for the evidence). For Baniva, there is independent evidence for the regular loss of PA *k/*kʰ seen in -apî ‘hand’. See, for instance, PA *kʰiba > íipa ‘stone’; *ka- ‘attributive’ > a- (see Mosonyi, 2000, p. 503, 512 for the Baniva forms, Payne, 1991, p. 377, 419 for the PA reconstructions). Other Arawak languages show forms not plausibly relatable to *kʰapɨ and for this reason have not been included in table 1 (e.g. Yucuna -játeʔela (Schauer et al., 2005, p. 217); Iñapari -mujú (Parker, 1995, p. 52); Proto-Amuesha-Chamicuro *-tɨ (Parker, 1991, p. 182). Since this paper is focused on the Xingu branch of the Arawak family, I will have nothing else to add on these languages. I will come back, however, to forms for ‘hand’, ‘arm’ or ‘shoulder’ related to Campa -ßako/-ako (Heitzman, 1973), as these feature in one proposal to incorporate the Xingu Arawak items in a family-wide cognate set. Assembling a number of cognate sets such as the one presented in Table 1 constitutes the natural starting point for a vocabulary-based method of lexical and phonological reconstruction like the comparative method. A crucial property of such cognates sets is their constitution around a common meaning or semantic label (see e.g. Wilkins, 1996), producing what Koch and Hercus (2013, p. 34) call ‘s-cognates’, stressing their ‘semantically-matched’ nature. Though reliance on such semantically-matched cognate sets is a natural feature of the beginnings of comparative work on a given linguistic

In the case of the extinct languages, the (plausible) morphological analysis of the forms in terms of a 1sg prefix and a root is found in Martius (1867). In the case of Kustenaú, I follow Corbera Mori (2015) in recognizing the same morpheme, even though this is not explicitly indicated in the von den Steinen (1894) vocabulary. All the body part terms occur in the Kustenaú vocabulary with this prefix, making its identification unequivocal. 4 There are two categories of exceptions to this claim. The first and most obvious concerns the ‘fragmentary’, poorly attested and extinct languages. Cognacy assessment here cannot plausibly progress beyond an impressionistic judgment. The second issue concerns vowel length, a poorly understood phenomenon in Arawak. This is the case not only synchronically, vocalic duration being of uncertain phonological status in many languages (see e.g. the remarks on Achagua in Meléndez Lozano, 2000, p. 626) but also, and perhaps more acutely so, historically (see the discussion in Payne, 1991). For Wapixana *p > ʔ the situation is not totally clear. Ramirez (2001a, p. 526) postulates this as ‘an innovation’ of Wapixana vis-à-vis Proto-Arawak, though Payne (1991, p. 434) reports *p > pʰ as a more frequent outcome in the language. Since the authors disagree on basic descriptive matters concerning Wapixana (see e.g. Ramirez, 2001a, p. 450), this issue remains open. Finally, note that Wayuunaiki is called ‘Guajiro’ in Payne (1991), a label nowadays rejected by its speakers, the Wayuu people. 3

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Table 1. Forms for ‘hand’ in diverse Arawak languages. Language

Form

Source

Mehinaku

wɨʂɨku

Corbera Mori (2011, p. 208)

Waurá

wɨʂɨku

Postigo (2014, p. 235)5

Yawalapiti

wiɾiku

Mujica (1992, p. 21, 38)

Kustenaú

<nuiriko>

von den Steinen (1894, p. 529)

Baniwa

-káapi

Ramirez (2001a, p. 698)

Achagua

-káhi

Meléndez Lozano (2011, p. 101)

Piapoco

-káapi

Klumpp (1995, p. 137)

Wayuunaiki

-hapɨ

Captain and Captain (2005, p. 76)

Maipure

<càpi>

Zamponi (2003, p. 76)

Wapixana

-kaʔɨ

Santos (2006, p. 97)

Lokono

-kʰabo

Pet (1987, p. 17)

Paresi

-kahe

Brandão (2014)

Baniva

-apî

Mosonyi (2000, p. 511)

Mariaté

<ghapy>

Martius (1867, p. 267)

Wainuma

<no-gaápi>

Martius (1867, p. 247)

Cauixana

<na-gábi>

Martius (1867, p. 258)

family, the natural progression in our understanding of the historical development of a group of languages calls for the identification of so-called ‘obscure cognates’ (semantically deviant cognates), for which cognacy can be established or at least plausibly claimed on the basis of formal (phonological, morphological) factors while prompting us at the same time to judge the effects of lexical semantic change. As Koch and Hercus (2013, p. 34) note: Such reliance on strict synonymous cognates is useful as the first step in language comparison (...) But for the further goals of comparative linguistics – describing the totality of historical changes affecting the languages, working out the genealogical relationship between the languages, and presenting the complete etymological evidence that justifies these historical relations – it is necessary to go beyond the s-cognates.

That lexical semantic change offers potential obstacles to cognate identification has been known for a long time, especially by those who insisted on the advantages of fixed meaning lists (basic vocabulary lists) for carrying out comparative work (cf. Wilkins, 1996, p. 264-265; Koch, 2003, p. 273). A situation such as the one described in table 2 – where one or more daughter languages lack a clear (that is, semantically matched) reflex of a reconstructed etymon – suggests the possibility of finding an obscure cognate elsewhere in these languages (see also Szemerényi, 1977, p. 315; Koch, 2003). In this particular case, a semantically-matched reflex of PA *kʰapɨ seems to be absent from the Xingu Arawak languages. Moreover, the fact that these languages, otherwise taken to be part of one and the same subgroup, have (apparently) replaced this patrimonial etymon with the ‘same form’ (i.e. one plausibly derived from a Proto-Xingu form) Postigo (2014, p. 235) presents a phonetic form [wɨʐɨˈkuwi]. The final [i] is the Absolute suffix, preceded by a phonetic, transitional glide homorganic to the root-final vowel. [ʐ] and [ʂ] alternate word-medially in Waurá (Postigo, 2014, p. 80).

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attaches further interest and relevance to this issue. I will propose here that there are indeed interestingly obscure reflexes of PA *kʰapɨ in the Xinguan languages and that the innovation of *wɨʂɨku for ‘hand’ may be advanced as a plausible shared lexical development of this branch. Before proceeding, however, I will comment on a flawed attempt to derive the form for ‘hand’ attested in the Xinguan languages from another PA etymon.

A MISGUIDED ACCOUNT OF WAURÁ wɨʂɨku Payne (1991, p. 393) includes the Waurá form wɨʂɨku ‘hand’ in a cognate set for which the gloss ‘Arm (Hand, Shoulder)’ is provided. In spite of the shortcomings of this proposal, which, as I show below call for the removal of the Waurá form from this cognate set, it is still an important finding that items with a widespread distribution throughout the family, appearing in particular languages with different meanings, likely go back to a single PA etymon. Some of the relevant forms are presented in Table 2. I list only four forms, as these belong to widely separated Arawak languages, far apart from each other in extant classifications of the family as well as in geographic terms, and in this sense suffices to strongly suggest that a form such as *-wako can be reconstructed for PA6. The shift *a > o and the weakening of *k to a glottal or zero are general, context-dependent developments in Terena (and to a certain extent also in Baure and the Mojeño dialects, its closest relatives), though the precise specification of the conditioning factors remains elusive. As for the two back vowels appearing in reflexes of the last syllable, Payne (1991) reconstructs for PA an opposition between *o and *u noting, however, that this opposition was lost in most daughter languages (see Payne, 1991, p. 440-441, 472, 476-478 on these points). Payne (1991) includes Waurá wɨʂɨku in this cognate set, and reconstructs a PA form *-wahku, where the aspirate’s *h only function is that of accounting for the -ʂɨ- syllable of the Waurá reflex (as well as for a syllable final h in Chamicuro, though Parker (1991, p. 178) does not reconstruct this glottal aspirate for Proto-Amuesha-Chamicuro). This move, however, creates insurmountable problems. First and foremost, the mapping *h > ʂɨ is phonetically implausible and can be dismissed unless compelling independent evidence for this hardening process in the history of Waurá could be provided – but this is not the case. Second, the correspondence involving the vowels in the first syllable is equally suspect. Payne (1991, p. 473) lists this form as providing evidence for PA *a > ɨ in Waurá, though the environment for this change is presented by the author as *w__hk, which, in spite of the phonological formulation, is so parochial Table 2. Proposed cognate set for wɨʂɨku (after Payne, 1991). Language Form

Meaning

Source

Apurinã

-wako

‘hand’

Facundes (2000, p. 649)

Terena

-woʔu

‘hand’

Silva (2013, p. 257)

Palikur

-waku

‘hand’

Launey (2003, p. 78)

Nomatsiguenga

-bako

‘hand’

Shaver (1996, p. 281)

I have chosen Nomatsiguenga as a representative of the Campa group in this case for it retains a more conservative form of this item, contrasting with other Campa languages/dialects where the root-initial consonant was lost (see Heitzman, 1973, p. 73). Note that there is in this language a seemingly morphologized alternation b ~ p in nouns like ‘hand’, which therefore appears as -pako in other contexts (see Shaver, 1996, p. 27). As to the degree of separation between these languages, Nomatsiguenga and Apurinã could be seen as relatively closer, to the extent that one believes in a version of the ‘Pre-Andine’ hypothesis that would join Campa and Piro-Apurinã-Iñapari in a single higher-level branch. Though I find this proposal worth looking at, there is no published evidence or argumentation on its behalf. See Payne (1991, p. 366) and Michael (2008, p. 212, fn. 1), for comments.

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(and lacking in phonetic motivation) that we end up having an item-specific, sporadic development. The other form presented as supporting the postulation of a development *a > ɨ in Waurá is the form for ‘brother in law (of male)’ for which Payne (1991, p. 397) offers the following cognate set: (1) Cognate set for ‘Brother in Law (of Male)’ in Payne (1991) a n i [lɨ] Proto-Arawak ɨ n e Waurá [pɨh] a n a Baure h a n ɨ (rɨ) Piro a n i Machiguenga a n i (ri) Ashéninka I have retained Payne’s (1991) presentation of etymologies with vertically aligned segments, designed to ‘make explicit what the correspondences are’ (Payne, 1991, p. 390) in order to be clear on what I take to be the shortcomings of his proposal. First of all, an alternative account to the postulation of PA *a > ɨ in Waurá would ascribe the diachronic correspondence *a > ɨ in *ani > pɨhɨne to the effect of contextual harmony (*pɨhane > pɨhɨne), a process seen in many ‘free variants’ attested in both Mehinaku and Waurá such as [ɨnɨʂa] ~ [enɨʂa] ‘man’ and [tɨnɨʂu] ~ [tenɨʂu] ‘woman’. If this is the case, it is hard to see how this form and *wahku > wɨʂɨku could be described as supporting or instantiating one and the same development, unless additional, independent hypotheses are invoked, something that would make the burden of proof even heavier for Payne’s proposed etymology. Most important, though, is the fact that it is far from clear that Waurá pɨhɨne fits in (1) as a bona fide cognate to forms such as Machiguenga ani ‘brother in law’ and Ashéninka aniri ‘brother in law’, all presumably reflexes of PA *ani. Payne’s (1991, p. 473) factoring out of the sequence [pɨh] in the Waurá form (and in other cases as well) reflects a presumed independent morphemic status for the sequence in question, “even if no information on the primary sources supports this assumption” (see Payne, 1991, p. 390-391). As it happens, this is completely unmotivated in the Waurá case and no justification for this is offered at any point in Payne’s text7. Wrapping up the discussion, there is no independent support for the *a > ɨ shift required to derive wɨʂɨku from putative PA *wahku. I conclude, therefore, that Payne’s (1991) postulation of a development *a > ɨ in Waurá and, more generally, his claim that Waurá wɨʂɨku goes back to PA *wahku, are untenable, as the latter claim, in particular, demands the acceptance of phonetically implausible and ad hoc developments. Two implications of broader interest to the historical linguistics of the Arawak family follow from this. The first is that the PA etymon Payne (1991, p. 393) gives as ‘Arm2 (Hand, Shoulder)’ is better reconstructed as *waku, thus eliminating one instance of the controversial syllable-final *h he attributes to PA (see Payne, 1991, p. 455). An additional consequence is that, once we recognize that wɨʂɨku is not a reflex of a patrimonial, PA etymon, it may be considered an innovation characteristic of the Xingu subgroup. This is the topic of the next section. I would suggest -tãi ‘son’ as a much more plausible reflex of PA *ani in the Xinguan languages. The loss of nasal stops with subsequent vowel nasalization is a general development in Waurá (Payne, 1991, p. 449, 457; Carvalho, 2015). Elsewhere in the family a form likely derivable from *ani also occurs meaning ‘son/daughter’ (e.g. Maipure -àni; Zamponi, 2003, p. 78; Baniva -tâni; Álvarez and Socorro, 2002, p. 120). The initial t in the Waurá and Baniva calls for an explanation, though.

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Obscure cognates and lexical reconstruction: notes on the diachrony of the xinguan arawak languages

ON PROTO-XINGUAN *wɨʂɨku Of the three extant members of the Xingu branch of the Arawak family, only Waurá was sampled in Payne’s (1991) comparative study. Though data on Mehinaku has appeared elsewhere (see Ramirez, 2001a, p. 619) no data on Yawalapiti has so far been considered, therefore precluding any systematic comparative study. Nevertheless, given the forms Waurá/Mehinaku wɨʂɨku and Yawalapiti wiriku, it is possible to reconstruct a Proto-Xingu (PX) form that is virtually identical to the form used by Payne (1991). As noted in Carvalho (in press), Yawalapiti innovated by merging *ɨ and *i as i, and the association of rhotic consonants with some degree of frication is a synchronic implementation rule in Yawalapiti, aside from being a recurrent feature of Arawak languages (see e.g. Santos, 2006 on Wapixana; Meléndez Lozano, 2011, p. 3 on Achagua and Captain and Captain, 2005, p. 8 for Wayuunaiki). Comparative data also support the equation of the Yawalapiti rhotic with a fricative in the other languages, as in M (ehinaku) keʂɨ : Y (awalapiti) kɨri ‘moon’; M matukɨʂɨ: Y matukiri ‘father-in-law’8. The evidence for this merger in Yawalapiti and, therefore, for the derived character of the high front vowels in wiɾiku is made clear by the existence of two regular segmental correspondences (Tables 3 and 4)9. Based on the correspondences in tables 3 and 4, reconstructing a merger in Yawalapiti is the reasonable implication, as no pattern of complementary distribution in Mehinaku/Waurá calls for the postulation of a split in these languages. Therefore, a form such as *wɨʂɨku, with high central vowels as in Mehinaku/Waurá, is the probable reconstruction for the PX ancestral language. The Kustenaú form <nuiriko> (cf. von den Steinen, 1894, p. 529) was plausibly analyzed in Corbera Mori (2015) as <n-uiriko>, <n-> standing for the 1sg prefix indicating possession. One might quibble that the consonantal Table 3. Correspondence i : ɨ. Yawalapiti

Mehinaku/Waurá

‘fish’

kupati

kupatɨ

‘sun’

kami

kamɨ

‘stone’

tipa

tɨpa

‘blood’

iʂa

ɨʂɨ

Table 4. Correspondence i : i. Yawalapiti

Mehinaku/Waurá

‘cloud’

ijɨpɨ

ijepe

‘snake’

ui

uwi

‘feather’

mapi

mapi

‘nose’

ʧiʐi

kiri

In the data on the Xinguan Arawak languages collected by Karl von den Steinen in 1887-1888 one finds evidence of this fluctuation between fricative and rhotic pronunciations, as in <keži, keri> ‘ moon’ for Waurá, <enira, eniza> ‘man’ for Kustenaú, <repi, zepi> ‘bench’ and <unekira, unekiza> ‘port’ for Mehinaku, <nukuru, nukuržu> ‘head’ (actually, ‘my head) and <tezo, tero> ‘you (sg.)’ for Yawalapiti (von den Steinen, 1894, p. 527-534). 9 A thorough discussion of other patterns in the cognate sets in Tables 3 and 4 is to be found in Carvalho (in press). For instance, evidence shows that the word-final ɨ in the Mehinaku/Waurá form for ‘blood’ is the result of a recent innovation. Likewise, the forms for ‘cloud’ can be accounted for under the general change *e > ɨ that took place in Yawalapiti after the merger*ɨ, *i > i. 8

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variant of person-number prefixes in Arawak languages, which normally have a CV- form, is usually selected in the context of vowel-initial roots only, so that a better approximation of the Kustenaú form would be something like <nu-uiriko>, the sequence of a back round vowel and a homorganic glide being suppressed in von den Steinen’s transcription. Moving on to a more substantive issue, the vowels in <nuiriko> could suggest a change *ɨ > i in this language as well, similar to the merger that operated in Yawalapiti. Though Corbera Mori (2008, p. 33-34, 2015) assigns the value [ɨ] to the symbol <ö> and [i] to <i> of the von den Steinen transcription system, on the basis of a comparison of the Kustenaú forms to modern Mehinaku/Waurá cognates, it is clear that the same kind of evidence shows that von den Steinen’s transcription was not so systematic. Pairs like K (ustenaú) <n-utitai> : M (ehinaku) n-utɨtai ‘my eye’, K <nu-kapitíu> : M nu-kapɨtɨwɨ ‘my finger’, K <kami>: M kamɨ ‘sun’ and K <enira, eniza> : M enɨʂa ‘man’, all show that <i> correspond at times to [ɨ], not [i], in Mehinaku forms. More to the point, a comparison of Mehinaku forms assembled by von den Steinen (1894, p. 527-528) in the same expedition and modern Mehinaku forms demonstrates in a cogent manner the ambiguous phonetic value of his grapheme <i>: side by side with von den Steinen’s Mehinaku <itsá> ‘canoe’ and <nukiri> ‘nose’ (cf. modern Mehinaku iʦa and nu-kiri, respectively), one finds <kupati> ‘fish’ and <kerži> ‘moon’ (cf. modern Mehinaku kupatɨ and keʂɨ ‘moon’). I assume, therefore, that it is very hard to advance any definite statements concerning phonetic/phonological detail on the Kustenaú form for ‘hand’, except that it is obviously closer to *wɨʂɨku than to the forms derivable from PA *kʰapɨ. The discussion so far has established that a form like *wɨʂɨku can be reconstructed for the PX ancestral language and, given the comparative evidence presented in preceding sections, one may suggest that it has replaced the PA form *kʰapɨ as the lexemic realization of the meaning ‘hand’. This would constitute evidence for a lexical innovation characteristic of this branch, though a more systematic investigation is necessary to eliminate the possibility that cognates of PX *wɨʂɨku are not found in other languages of the family, with a shifted or changed meaning/function. This would require careful bottom-up reconstruction within other branches of the Arawak family, something that is, for most branches, at best a near future prospect. Equally fruitful for this undertaking is an examination of the limited data available on already extinct languages, though the inherently limited and restricted nature of these materials places a rather strong constraint on evaluations of this hypothesis. In the meantime, I note Apolista <-pisi> (actually attested as <nipisi> ‘my hand’; Payne, 2005, p. 243) as a possible cognate of the PX form10. Note that further research may justify analyzing the PX form as coming ultimately from *wɨʂɨ-ku, as many body part terms, both in the reconstructed PA language and in daughter languages, occur with a suffix having a form -ku/-ko, including, perhaps, the form *waku discussed in this section (see Payne, 1991, p. 393, 398, 401, 404 for examples such as ‘arm2 (hand, shoulder)’, ‘chest (abdomen)’, ‘ear’, ‘flesh, meat’). Until more is known on the morphology of PA and other intermediate proto-languages within the family, I submit the plausible hypothesis that *wɨʂɨku constitutes a shared lexical innovation of the Xingu Arawak languages. 10

Payne (2005, p. 243) proposes that Apolista <-pisi> is a reflex of PA *kʰapɨ. As in the case of his proposed derivation of Waurá wɨʂɨku from a putative PA *wahku, I remain unconvinced and for similar reasons. His hypothesis concerning Apolista depends on assigning complex morphological structure to the form in question, which becomes then <pi-si>, where only the first morph would be a reflex of the PA etymon. This is an analysis brought up only by parochial convenience, as no independent evidence exists for this. The putative morpheme -si cannot be analyzed, for instance, as the Apolista reflex of the Absolute suffix *-ʧi which, as shown by Payne (2005, p. 244), is -shi. Regardless of this, the presence of this suffix would be unexpected here, as the form for ‘hand’ is attested in a possessive construction as <nipisi> ‘my hand’.

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Obscure cognates and lexical reconstruction: notes on the diachrony of the xinguan arawak languages

REFLEXES OF PA *kʰapɨ IN XINGUAN ARAWAK As already pointed out, general theoretical expectations on lexical change force us to consider the possibility of finding reflexes of PA *kʰapɨ elsewhere in the Xingu languages, most likely in derivative forms (see e.g. Szemerényi, 1977, p. 315). As a matter of fact, Payne (1991, p. 407) did include a form -kapɨ- for Waurá, indicating with dashes that it occurs in morphologically complex or derived forms, but without offering any additional comments. The qualifications necessary to identify this bound form in Waurá and other Xingu languages – as well as some unforeseen implications of these findings – are the subject of the present section. ‘HAND’, ‘FINGER’ The particular reflex of the PA etymon is found preserved in the form for ‘finger’, which is, in both Mehinaku and Waurá, a derived noun that alternates between kapɨtɨwɨ and kapitiwi (see Corbera Mori, 2011, p. 209). This is a morphologically conditioned alternation, kapitiwi being the Absolute (non-possessed) form and -kapɨtɨwɨ occurring where an overt possessor is present. As shown by Carvalho (2015), the etymological form, the one reconstructible to Pre-Waurá/Mehinaku is *kapɨtɨwɨ, the fronting of ɨ to i being a result of the diachronic absorption of the Absolute marker -*ʧi reconstructed for PA (plus regressive vowel harmony, see Carvalho, 2015, p. 128-130 for details). Finally, the form can be morphologically parsed as a compound of *-kapɨ and *-tɨwɨ ‘head’. The preservation of *kʰapɨ as a (relatively) obscure cognate is also attested in Yawalapiti, though here we have evidence for the application of an interesting sound change. The Yawalapiti form for ‘finger’ is kariʦɨpu (<nukaritsobu> in von den Steinen, 1894, p. 533). The form can be plausibly analyzed as kari-ʦɨpu, with kari standing for the Yawalapiti reflex of *kʰapɨ and -ʦɨpu being a compounded nominal root or a classifier, following the general pattern attested in Arawak languages for the derivation of terms for ‘finger’ (see the following section for additional discussion). I have been unable so far to ascertain the meaning/function of -ʦɨpu, the analyses and data in Mujica (1992) and Bondim (1976)11 being of little help in this regard12. The equation of PA *kʰapɨ and Yawalapiti -kari- might seem far-fetched due to its implication of a diachronic correspondence *p > r, one involving a major articulatory discontinuity, a change in labial to coronal place of articulation. Though von den Steinen (1894, p. 532) made no particular comments on the form for ‘finger’, he noticed that in many cases a labial stop p in Mehinaku, Waurá and Kustenaú corresponded to a coronal consonant, either t or r, in Yawalapiti: “Es sei auf die interessante Fälle von Lautwandel in Verhältnis zu Mehinakú etc. aufmerksam gemacht. Meh. p erscheint mehrfach als t und r” [‘One may note the interesting cases of sound change with regard to Mehinaku revealed by a comparison of the Yawalapiti data. Mehinaku p appears frequently as t and r’; my translation]. A comparison of the data used by von den Steinen (1894) to back up this claim is given in the Table 5 (the corresponding segments appear in underlined). The most notable aspect of the correspondence noted by von den Steinen (1894) is that it occurs in the context of a following front vowel, which may be present only in the Mehinaku and Kustenaú cognates (cf. ‘Blue’). As I argue in Carvalho

BONDIM, Renata G. Língua Yawalapití (Aruák): dados coletados na aldeia Yawalapiti (Xingu). Rio de Janeiro: CNPq/CEPG/UFRJ, 1976. 2 v. [Manuscript report on fieldwork activities archived at the CELIN, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro - MN/UFRJ]. 12 A comparative perspective suggests interesting directions for further investigation and potential elucidation. In Paresi, a classifier with the form -ʦe has a diminutive function and seems to occur crystallized in other classifiers (-naʦe, -kaʦe) which denote stick-like, cylindrical and rigid objects (note that Yawalapiti has been subject to a change *e > ɨ). Some of these classifiers also seem to have been reanalyzed as part of the root for many body-part terms (see Brandão, 2014, p. 184-189). A classifier -po is found in Baure (Danielsen, 2007, p. 145) meaning ‘tiny’. 11

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Table 5. Items in von den Steinen (1894). Yawalapiti

Mehinaku

Kustenaú

Cotton thread

<kuyari>

<kuyapi>

-

Strainer

<tuari>

<tuapi>

-

Fish sp.

<vari>

<uvapi>

-

White clay

<irhitziki>

<epitsiri>

-

Manioc bread

<ularzi, ulari>

<uläpe>

<uläpe>

Drinking bowl

<tidza>

<pitsa>

<pitsa>

You

<tezo, tero>

<petsü>

<pitsü>

Blue

<tsirulá, dzirulá>

<ipiulá>

<ipiulá, pülatirzo>

(in press), von den Steinen was correct in his suggestion of a sound change (Lautwandel) whose effect was to change p into a coronal stop in Yawalapiti, a change that I describe as the telescoped result of a palatalization of Pre-Yawalapiti *p to *pʲ, the palatalized allophone eventually merging with the reflexes of the rhotic *r. Though somewhat unusual, this change – or, better said, a diachronic correspondence mapping a labial stop to a coronal segment in a palatalizing context – is cross-linguistically attested in diverse language families, notable cases including Southern Bantu and the isogloss separating petak/tetak Czech dialects (cf. e.g. Ohala, 1978; Thomason, 1986). More tellingly, we find synchronic evidence for its action preserved in modern Yawalapiti morphophonemic alternations, copiously attested in Bondim (1976), such as puti ~ ruti ‘thigh’, piɲa ~ riɲa ‘house’, paka ~ raka ‘to sing’ and pɨhi ~ rɨhi ‘penis’, in all cases triggered by the prefixation of a person/number prefix with a front high (or palatal) vowel i. The preservation of these morphophonemic alternations in the modern language allows one to internally reconstruct the course of these changes and then validate and improve the proposed developments with the aid of comparative evidence (see Carvalho, in press for details). Overall then, the existence of a change of diachronic coronalization of *p in Yawalapiti, revealed both by comparative data, such as that amassed by von den Steinen (1894), and by the existence of a synchronic alternation p ~ r, supports the claim that a reflex of PA *kʰapɨ is to be found in the root kari-, part of the form kariʦɨpu ‘finger’. Note that the change in question was fed by the already discussed merger of *ɨ and *i as i. Only after this change was a form *kapi (< *kʰapɨ) produced and this was in turn changed to kari by the ‘palatalization’ of *p to r in the context of a following palatal vowel. Both the data and the explicit recognition of a segmental correspondence involving forms from the Xinguan Arawak languages constitute an important contribution of von den Steinen (1894), showing that the German explorer went beyond the ‘mere’ collection of vocabulary data and actually provided some insight on important issues.

‘FINGER’ = ‘HAND’ + ‘HEAD’: A WAURÁ-MEHINAKU INNOVATION? I will briefly consider here the hypothesis that the particular formation of a form for ‘finger’ attested in Waurá, Mehinaku and possibly in Kustenaú as well constitutes a shared innovation. The formation of the word for ‘finger’ derived from ‘hand’ is likely grounded on a lexical semantic metonymic relation between the two concepts, and is cross-linguistically recurrent (cf. Wilkins, 1996, p. 278). Though this is also the case within Arawak, the use of a nominal compound with the roots for ‘hand’ and ‘head’, as seen in Waurá and Mehinaku is, as far as I know, unattested elsewhere in the family. The form for ‘finger’ in Kustenaú, given in von den Steinen (1894, p. 529) is suggestive of a similar formation, and is included for this reason in the comparisons below.

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Obscure cognates and lexical reconstruction: notes on the diachrony of the xinguan arawak languages

Most Arawak languages seem to employ the root for ‘hand’ plus a classifier, usually a reflex of the PA *-pi/*-api denoting elongated, thin or thread-like objects objects, or some other compound (Table 6). The Wapixana form contains a classifier that Santos (2006) describes as denoting ‘hard objects’ and also ‘flower’. The form for ‘finger’ in Baure is anomalous both synchronically (Danielsen, 2007, p. 153 calls it an ‘inverse compound’) as well as comparatively, for inverting the head-modifier relation typically seen in Arawak languages. The form wohis(o), with morphophonemic final vowel loss, is described as meaning both ‘hand’ and ‘finger’ (Danielsen, 2007, p. 154, fn. 129), though a (supposedly) unambiguous form for ‘finger’ may be derived as in Table 6, using a classifier denoting the ‘pointed end’ of objects. For other languages, such as Palikur, we find a similar mechanism for deriving ‘finger’ from a root for ‘hand’ plus the modifying action of some form-based classifier for ‘slender’ or ‘pointed’ objects, though this is realized not by suffixation or composition with the root for ‘hand’, but in the classifier agreement system. Thus, a root -wak(u) is polysemic, meaning either ‘hand’ or ‘finger’. Where it expresses the former meaning it triggers the appearance of a classifier -k/-ka/-bu (for flat, two-dimensional objects), for instance, in an agreeing numeral expression. If the same modifying numeral is marked instead with a suffixed classifier for ‘three-dimensional, slender objects’, whose marking is -t/-ta, then -wak(u) is understood as denoting ‘finger’ instead (Launey, 2003, p. 118-119)13. Likewise, in Baniwa (Ramirez, 2001b, p. 298), the suffixation of a form-based classifier for ‘pointed objects’, -hiwi, to a numeral that modifies a form such as pa-káapi ‘somebody’s hand’, derives the notion of ‘finger’. The data in Table 6, which includes languages from all major branches of the Arawak family, suggests that there is something exceptional in the way Waurá and Mehinaku derive the form for ‘finger’. Since it is currently accepted that a classifier of the form *-pi/*-api whose reflexes are attested in the Paresi, Iñapari and plausibly in the Lokono and Baniwa forms in Table 6 as well – can be reconstructed for the PA language (cf. Payne, 1991, p. 384), I propose that the use of the root for ‘head’ instead of this classifier in Waurá and Mehinaku for the purpose of deriving the form for ‘finger’ constitutes a plausible shared innovation. As Waurá and Mehinaku are independently known to be Table 6. Derivation of nouns for ‘finger’ in diverse Arawak languages. Language Form

Gloss

Source

Mehinaku

kapɨ-tɨwɨ

‘hand’ - ‘head’

Corbera Mori (2011, p. 209)

Waurá

kapɨ-tɨwɨ

‘hand’ - ‘head’

Postigo (2011, p. 41)

Kustenaú

<nu-kapi-tiu>

‘1sg-hand-head’ (?)

von den Steinen (1894, p. 529)

Paresi

kahe-hi

‘hand’ - ‘long, slender’

Brandão (2014, p. 63)

Iñapari

mujú-pi

‘hand’ - ‘thin, snake-like’

Parker (1995, p. 189)

Lokono

kʰabo-ibira

‘hand’ - ‘thin, small’

Patte (2011, p. 100)

Maipure

<capi-virrupenà>

‘hand’ - ‘crack’

Zamponi (2003, p. 76)

Wapixana

kaɁɨ-ʃiu

‘hand’ - ‘hard’

Santos (2006, p. 97)

Baure

-ʃinie-wohis(o)

‘pointed.end’ - ‘hand’

Danielsen (2007, p. 154)

Nomatsiguenga

-baʦa-pako

‘meat, body’ - ‘hand’

Shaver (1996, p. 248)

Baniwa

-hiwi ... -káapi

‘pointed’ ... ‘hand’

Ramirez (2001b, p. 298)

Palikur

-t/-ta ... -wak(u)

‘slender’ ... ‘hand’

Launey (2003, p. 119)

See Aikhenvald and Green (1998, p. 444) who note the existence of a numeral classifier -wok derived from the root for ‘hand’.

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very closely related, being perhaps co-dialects of the same language, this proposal is not impressive as far as internal classification is concerned, though it does advance our understanding of the diachrony of these languages.

‘HAND’, ‘FIGHT’ If the Yawalapiti form for ‘finger’, and the bound root kari, illustrate a rather uncommon sound change that makes the reflex of PA *kʰapɨ slightly harder to identify, an arguably more drastic semantic shift involving this inherited form is attested in all Xingu languages. The noun denoting the huka-huka, a wrestling-like fight of ritual importance in the Upper Xingu area (see Basso, 1973, p. 143; Agostinho, 1974; Carneiro, 1993, p. 422) is kapi in Waurá/Mehinaku (Corbera Mori, 2012, p. 149) and kari in Yawalapiti (Mujica, 1992, p. 15). I propose that this is a semantically-shifted reflex of PA *kʰapɨ, and I account for the formal and semantic deviations in what follows. Starting with the Waurá/Mehinaku form, kapi, it is necessary to account for the change *ɨ > i, as in these languages no merger of the high central and high front vowels of the sort attested in Yawalapiti occurred. The explanation for this change lies in the account proposed in Carvalho (2015) for a separate set of patterns and comparative data. As the noun changed its category from a dependent, inalienable noun denoting a body part (‘hand’) to an independent, absolute noun (‘huka-huka fight’), the occurrence of the noun in question with an Absolute marker is a plausible consequence. One would have, then, at a Pre-Waurá/Mehinaku stage either a form *kapɨ-ʧi or *kapi (< *kapɨ-i), the latter if the semantic shift occurred after the changes that consisted in the loss of the affricate in the PA suffix *-ʧi (or some other, weakened reflex of this affricate) and the ‘absorption’ of the suffixal high front vowel, as discussed in Carvalho (2015). The change of -*kapɨ to kapi in Waurá/Mehinaku is, therefore, plausibly explained by its functional/semantic shift, its morphosyntactic consequences and the morphophonological developments involving the PA Absolute suffix *-ʧi (see Carvalho, 2015 for details). For Yawalapiti, Mujica (1992) does not discuss the existence of Absolute morphology. In the data presented in Bondim (1976)14 one does find what seem like remnants of an Absolute marking system that has been eroded, even more so than it was the case in Waurá and Mehinaku. Though a comprehensive account of the diachrony of the Yawalapiti Absolute-marking system will await for better (and badly needed) data on this language, one can note at this point that in all the paradigms involving dependent nouns attested in Bondim (1976), a general pattern consists in having the ‘free form’ showing word-final main stress, while possessed forms have penultimate main stress (a). A few other forms show either morphophonemic alternations (b) or some extra segmental material in the absolute forms (c). Examples include the following (for conciseness I present only 1sg possessive forms): (2) Remnants of an Absolute-marking system in Yawalapiti: (a) Stress shift: kuˈʂu ‘head’ nu-ˈkuʂu ‘my head’ (b) Morphophonemic alternation: kaɲaˈʦi ‘mouth’ nu-kaˈnati ‘my mouth’ BONDIM, Renata G. Língua Yawalapití (Aruák): dados coletados na aldeia Yawalapiti (Xingu). Rio de Janeiro: CNPq/CEPG/UFRJ, 1976. 2 v. [Manuscript report on fieldwork activities archived at the CELIN, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro - MN/UFRJ].

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Obscure cognates and lexical reconstruction: notes on the diachrony of the xinguan arawak languages

(c)

Extra segmental (morphemic?) material: ʧiʂaˈli ‘foot’ nu-ʧiˈʂa ‘my foot’

The pattern in (a) is identical to the one found in Waurá/Mehinaku nouns. As the languages in question have a regular pattern of main stress assignment to the penultimate syllable in the word, this can be accounted for by invoking the past presence of an additional syllable, the Absolute suffix, as discussed in Carvalho (2015)15. Just like Absolute nouns (that is, dependent nouns employed without overt possessors), the Yawalapiti noun kaˈri ‘huka-huka fight’ has word-final stress, something that is consistent with the hypothesis that it derives from a pre-Yawalapiti form with an added Absolute suffix, as proposed above for pre-Waurá/Mehinaku: preceding the loss of the Absolute marker, a form resembling *kaˈri-ʧi, with default penultimate stress, occurred. The stress-bearing syllable remained the same after the loss of the Absolute marker, yielding the typical, yet (synchronically) marked pattern of word-final stress that characterizes Absolute nouns. On the semantic association between ‘hand’ and ‘fight’, there is plenty of evidence for its plausibility. A fairly traditional move consists in first placing the proposed change into one of the classical categories of diachronic semantics (cf. e.g. Geeraerts, 2010, p. 25-35). In our case, the association can be mediated through a metonymic relation: from ‘hand-fight’ or ‘fight with/using the hand’, the lexical item for ‘hand’ may end up being used to denote ‘fight’ (a semasiological change, sensu Geeraerts, 2010, p. 26), especially so, one supposes, once the inherited form for ‘hand’ has been replaced in its original function by a different word, as I claim was the case with PA *kʰapɨ and PX *wɨʂɨku. Interesting parallels to the proposed change are attested in other language groups. In the well-trodden path of Indo-European historical linguistics, for instance, one finds in Latin the case of forms such as pūgnus ‘fist’ and pūgna ‘fight’ (also pugil ‘fist-fighter’), with cognates elsewhere such as Greek púgme: (πυγμη’) ‘fist, fist-fight’ (see de Vaan, 2008, p. 499; Beekes and van Beek, 2010, p. 1254). According to Beekes and van Beek (2010, p. 1254), pug- ‘fist’ could be a noun originally, with Latin pūgna ‘fight’/pugnāre ‘to fight’ being secondary derivations from the n- formation pūgnus. If this is the case, it provides a striking parallel to the proposed ‘hand’ > ‘fight’ shift proposed here for Xinguan Arawak16. Similar changes involving what Wilkins (1996, p. 278) calls ‘interfield metonymic changes’, such as ‘to slap’ > ‘palm of hand’, can be shown, on the basis of comparative databases of semantic lexical change from diverse genetic groups, to be natural developments. I assume that lexical semantic change involves an intermediate stage of polysemy (cf. Wilkins, 1996, p. 268-271), so that a Pre-Proto-Xingu stage in which *kapɨ-ʧi (where *-ʧi stands for the Absolute marker) would mean both ‘hand (unpossessed)’ and ‘huka-huka fight’, the latter perhaps in particular syntactic constructions, is a plausible inference. With this much in mind, Wilkins (1996, p. 272) notes a similar pattern of polysemy involving a body-part noun and an action involving this noun, as in ‘skin (noun)’ and ‘to flay’, found in Dravidian, Indo-European, Bantu and Tibeto-Burman.

Early observations by von den Steinen (1894, p. 527, 529, 531, 532) underscore the fact that all Xinguan Arawak languages had an identical distribution of main stress. In his Mehinaku, Waurá, Yawalapiti and Kustenaú vocabularies he remarks that “Wo der Accent nicht angegeben ist, wird die vorletzte Silbe betont” [“Where accent is not indicated, the penultimate syllable bears stress”; my translation]. This is in agreement with the general finding of a default stress placement in the penultimate syllable of the word in Xinguan Arawak. 16 A reviewer has brought to my attention the interesting case of Japanese karate, from kara ‘empty’ and te ‘hand’. One might also add the Brazilian Portuguese expression sair na mão meaning ‘to fight, brawl’. 15

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I conclude that it is possible to plausibly account for the semantic and formal deviations implied by the hypothesis that Waurá/Mehinaku kapi and Yawalapiti kari, both nouns denoting the ‘huka-huka fight’, constitute semanticallyshifted reflexes of the PA etymon *kʰapɨ ‘hand’.

SYNTHESIS AND CONCLUSIONS This paper has advanced contributions to our understanding of the historical development of one particular group of languages – those usually grouped in the Xinguan branch of the large Arawak family – by focusing on phonological, morphological and lexico-semantic changes in items denoting ‘hand’, ‘finger’ and related concepts. The argumentation supports the hypothesis that Proto-Arawak *kʰapɨ ‘hand’ has been replaced in the ancestral Proto-Xingu language by *wɨʂɨku in the expression of this particular lexical concept, but is preserved in these languages as a component of morphologically-complex forms denoting ‘finger’ and in a metonymically-related noun for a wrestling-like fight of central ritual importance for the peoples of the Upper Xingu cultural area. I have attempted to build on past and ongoing research on these languages, stressing how the hypotheses proposed here build progressively on independent work on Arawak historical linguistics. More importantly, I have stressed the more or less tentative character of many of these claims, suggesting further directions for research that may eventually lead to the strengthening of their evidential basis or to their rejection. ACKNOWLEDGMENTS The research reported here was made possible by a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) Post-Doctoral grant (E-26/101.323/2014). I am grateful to two anonymous reviewers for their observations. REFERENCES AGOSTINHO, Pedro. Kwarup: mito e ritual no Alto Xingu. São Paulo: EDUSP, 1974. AIKHENVALD, Alexandra. The Arawak language family. In: DIXON, Robert M. W.; AIKHENVALD, Alexandra (Eds.). The Amazonian languages. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 65-106. AIKHENVALD, Alexandra; GREEN, Diana. Palikur and the typology of classifiers. Anthropological Linguistics, v. 40, n. 3, p. 429-480, 1998. ÁLVAREZ, José; SOCORRO, Marlene. Restricciones semánticas y fonológicas en los sufijos de posesión Baniva. Opción, n. 37, p. 112138, 2002. BASSO, Ellen B. The Kalapalo indians of central Brazil. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1973. BEEKES, Robert; VAN BEEK, Lucian. Etymological dictionary of Greek. Leiden: Brill, 2010. BRANDÃO, Ana Paula. A reference grammar of Paresi-Haliti (Arawak). 2014. Thesis (PhD in Linguistics) – University of Texas at Austin, Austin, 2014. CAPTAIN, David; CAPTAIN, Linda. Diccionario básico ilustrado Wayuunaiki-Español, Español-Wayuunaiki. Bogotá: Editorial Buena Semilla, 2005. CARNEIRO, Robert. Quarup: a festa dos mortos no alto Xingu. In: COELHO, Vera Penteado (Ed.). Karl von den Steinen: um século de antropologia no Xingu. São Paulo: EDUSP, 1993. p. 405-429. CARVALHO, Fernando O. de. Internal and comparative reconstruction in Yawalapiti: palatalization and rule telescoping. International Journal of American Linguistics. (In Press).

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Eidorfe Moreira e os sermões de Vieira na Belém Seiscentista Eidorfe Moreira and Vieira’s sermons in 17th century Belém Geraldo Mártires CoelhoI I

Universidade Federal do Pará. Belém, Pará, Brasil.

Resumo: O universo intelectual de Eidorfe Moreira (1912-1989) abrigou as mais diferentes manifestações do pensamento. Tendo a Amazônia marcado profundamente a sua obra, Eidorfe Moreira, um discípulo da Geografia Cultural, construiu campos de leitura bem ilustrativos de sua formação, em que o binômio Geografia/História Cultural norteou o principal de seus trabalhos. A passagem do Padre Antônio Vieira (1608-1697) por Belém despertou-lhe o interesse, sobretudo os sermões que pregou na matriz da cidade. Eidorfe Moreira valeu-se de autores como João Lúcio de Azevedo, Raymond Cantel e João Francisco Lisboa para arguir a parenética – e a política – nos sermões de Vieira. Palavras-chave: Eidorfe Moreira. Padre Antônio Vieira. Geografia cultural. História cultural. Abstract: The intellectual universe of Eidorfe Moreira (1912-1989) covered different manifestations of thought. As Amazonia profoundly marked his work, Eidorfe Moreira, a disciple of cultural geography, developed fields of study that were quite illustrative of his formation and in which cultural geography and history gave direction to his major works. The presence of Father Antonio Vieira (1608-1697) in Belém captured his attention, especially the sermons that he preached in the city’s parish church. Eidorfe Moreira had read authors, such as João Lúcio de Azevedo, Raymond Cantel and João Francisco Lisboa, in order to argue for the importance of eloquence – and politics – in Vieira’s sermons. Keywords: Eidorfe Moreira. Father Antônio Vieira. Cultural geography. Cultural history.

COELHO, Geraldo Mártires. Eidorfe Moreira e os sermões de Vieira na Belém seiscentista. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 295-311, jan./abr. 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000100015. Autor para correspondência: Geraldo Mártires Coelho. Universidade Federal do Pará. Centro de Filosofia e e Ciências Humanas. Departamento de História. Rua Augusto Corrêa, 01, Bairro Guamá. Belém, Pará, Brasil. CEP 66075-110. E-mail: gmartirescoelho@gmail.com. Recebido em 15/07/2013 Aprovado em 06/04/2015

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Eidorfe Moreira e os sermões de Vieira na Belém Seiscentista

Mesmo para um leitor que peregrine, com passos seguros, pelo mundo do conhecimento, notadamente nos variados domínios do pensamento social, esse leitor não deixará de se surpreender com o que produziu Eidorfe Moreira (1912-1989). Natural de João Pessoa, na Paraíba, esse grande intelectual passou praticamente toda sua vida em Belém do Pará, onde exerceu as mais variadas funções – e onde se revelou como estudioso e notável escritor em vários domínios do conhecimento. Já nos títulos que deu à estampa no final dos anos de 1950 e no correr da década seguinte, para ficar apenas nessa provocação, mostrava-se um intelectual avant la lettre. Essa imagem não se refletia, à clara definição, no espelho da vida intelectual da Belém de então – e, em certo sentido, na vida intelectual de grande parte do Brasil. Eidorfe Moreira foi um escritor que esgrimiu pelo saber em diferentes cenários do pensamento social. Em “Eidorfe Moreira – Nota Crítica”, escrita por Benedito Nunes no primeiro volume da edição que reuniu praticamente a totalidade dos trabalhos do autor de “Ideias para uma concepção geográfica da vida” (1960a), o grande filósofo paraense, assinalando que a sua preocupação não era sistematizadora ou classificatória, agrupou, grosso modo, os trabalhos de Eidorfe Moreira segundo três grandes identidades epistemológicas: os voltados para a Amazônia, a exemplo de “Amazônia, o conceito e a paisagem” (1960b) e “Belém e sua expressão geográfica” (1966); os “geográficosliterários”, como “Presença do mar na literatura brasileira” (1962); e, por último, os relacionados à “história cultural do Pará”, caso de “Visão Geo-Social do Círio” (1971) e “Presença hebraica no Pará” (1972), aos quais incluiríamos “Os sermões que Vieira pregou no Pará” (1970). É possível distender o entendimento de “história cultural do Pará” pensado por Benedito Nunes, e aí incluir outros títulos de Eidorfe Moreira: “Obras escolares paraenses de história” (1977) e “O livro didático paraense” (1979), estudos voltados ao ensino médio no Pará, como também o fez com o ensino superior ao escrever “As letras jurídicas no Pará” (1973) e “Para a história da Universidade Federal do Pará” (1977). Como bem reconheceu Benedito

Nunes, para além de uma preocupação meramente classificatória, essa divisão realça a diversidade dos estudos produzidos por Eidorfe Moreira “dentro do domínio das ciências humanas, e destaca a escala científico-humanista de seus temas” (Nunes, 1989, v. 1, p. 25). Nesse sentido, a obra de Eidorfe Moreira – buscando-se com essa imagem à astrofísica – remete para a representação de um universo em expansão, transgressor de formalismos, transgressor de limites. Só assim é possível ao autor escrever, reunir e publicar “Estado e Ideologia” e “Política e Aretologia (a virtude como princípio político em Platão e Aristóteles)” (1959a) e, depois, “D. Quixote e o problema do conhecimento” (1968), neste caso propondose a uma análise epistemológica do herói de Miguel de Cervantes. Esse Eidorfe Moreira, peregrino pelos domínios da filosofia e da epistemologia, é o mesmo que, em 1969, publicaria um “Roteiro Bibliográfico de Marajó”. As obras, formalmente observadas, são discursos distintos, mas a sua unidade estava construída na mente do autor, na forma como ele entendia ser a identidade do conhecimento, revelada no campo da relação entre sociedade e cultura, entre o homem, o ambiente e o conhecimento. Assim, mesmo que de forma incompleta, impõe-se, do ponto de vista da arqueologia do saber, recuperar o principal da história e da historicidade do universo intelectual esculpido por Eidorfe Moreira. Na passagem da primeira para a segunda metade do século XX, os quadros intelectuais dominantes em Belém apresentavam genética diferenciada. Alguns dos seus integrantes provinham da tradição afrancesada e autodidata da belle époque da borracha e da sua cultura mundializada; outros, já procediam dos bancos acadêmicos formais, principalmente da Faculdade de Direito, centro historicamente dominante na formação de quadros brasileiros especializados, inclusive para o exercício do ensino superior. A exemplo do que antes se verificava em outros centros brasileiros, no final dos anos de 1950, aquando da constituição da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Pará, muitos dos responsáveis pelas Cadeiras

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dos cursos de História e de Geografia haviam saído da Faculdade de Direito. Se um ponto de encontro houve entre essas duas admitidas correntes de homens de letras da Belém de então, foi a contingência de praticamente todos eles servirem à administração pública, à gestão do Estado. Eidorfe Moreira foi um intelectual refinado. Representava, nesse sentido, o perfil letrado dos homens de letras dotados de um saber construído em múltiplas frentes do conhecimento. Em outras palavras, trabalhando-se a bibliografia deixada por Eidorfe Moreira, sobressai, de forma clara, a pluralidade de leituras que realizou e de estudos que buscou. O escritor, é possível sustentar, criou uma identidade própria, tratando-se da vida intelectual da Belém do seu tempo. É preciso visitar alguns dos suportes que sustentaram o intelectual à frente do seu tempo que foi Eidorfe Moreira. Quando, em 1970, publicou “Os sermões que Vieira pregou no Pará”, Eidorfe Moreira já havia escrito e publicado títulos que permitem recuperar o percurso de sua formação intelectual, de sólida erudição históricofilosófica – para além, é claro, da sua matriz geográfica – o que certamente ilumina a sua recepção a um Vieira que, àquela altura, ainda permanecia como domínio do grande estudioso João Lúcio de Azevedo. Em 1960b, o aparecimento de “Amazônia, o conceito e a paisagem” anunciava o ensaísta que construiria sua obra de forma interdisciplinar, ou seja, sujeito intelectual para quem a geografia, a paisagem e o homem constituíam um universo a ser pensado e arguido em unívoca e interagente dimensão: espacial, social e cultural. Um ano depois, em 1959b, surgia, seguindo a mesma linha de identidade ensaística, o estudo “Sertão, a palavra e a imagem”, uma identidade que ele projetaria bem mais para frente, como fica visível em “Influências amazônicas no Nordeste (reflexos da fase áurea da borracha)”, lançado em 1982. A identidade epistemológica estabelecida por Eidorfe Moreira aos seus primeiros trabalhos transcendia, por assim dizer, ao trato marcantemente geográfico conferido ao objeto de seus estudos. O ensaísta distendia, assim,

o arco de suas leituras, de suas reflexões, interagindo e dialogando com a história, a filosofia, a literatura, as artes. Em outras palavras, desde os seus estudos iniciais, Eidorfe Moreira revelava uma formação humanística elástica, em permanente processo de solidificação, que o acompanharia em todo o exemplar processo de sua história intelectual. A construção dessa identidade epistemológica, repita-se, Eidorfe Moreira a fez do ponto de vista de um geógrafo, sim, mas no interior de um pensamento em que a geografia era considerada na relação entre espaço, tempo e cultura, e que, se tomada fora dessa relação, não existiria como possibilidade epistemológica. Uma peregrinação pela bibliografia trabalhada em “Amazônia, o conceito e a paisagem” e também em “Sertão, a palavra e a imagem” indica que Eidorfe Moreira já dominava, no final dos anos de 1950, um universo bibliográfico expressivo. E esse domínio já se revelava o bastante para lhe permitir um tratamento e uma leitura interdisciplinares dos cenários buscados por sua arguição, construindo uma abordagem em que os quadros geográficos são culturalmente pensados e problematizados. Esse suporte epistemológico fez com que em ambos os títulos encontrem-se referências à literatura de Euclides da Cunha, Guimarães Rosa e Vianna Moog; à história de Capistrano de Abreu, Visconde de Taunay, Henri Berr, Rômulo de Araújo Lima e Arthur Cézar Ferreira Reis; à geografia de Emmanuel De Martonne, Pierre Deffontaines e Pierre Gourou; à literatura, de interesse antropológico, histórico e geográfico, dos viajantes Johann Baptist von Spix, Carl Friedrich von Martius, Henry Bates, Alfred Wallace e Louis Agassiz. Notem-se, ainda, as referências do ensaísta a nomes como Paul Vidal de la Blache, geógrafo francês que, no início do século XX, esteve próximo de historiadores e sociólogos, e que em 1891 fundou os “Annales de Geographie”. Foi o que se deu em relação a Lucien Febvre, um dos deflagradores do movimento dos Annales no começo do século XX, em que a relação interdisciplinar passou a sustentar a nova história feita então na França. Não sem razão, a revista “Annales d’histoire économique

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et sociale”, surgida em 1929 sob a liderança de Marc Bloch e Lucien Febvre, teve como modelo os “Annales de Géographie” de La Blache, contando em seu conselho editorial com a presença do geógrafo Albert Demangeon. Fica evidente, em outras palavras, que Eidorfe Moreira, ao final dos anos de 1950, estava a par do que já se havia manifestado, na França, como uma nova relação entre história e geografia no quadro epistemológico das ciências humanas, processo remissivo à vida acadêmica francesa do início do século XX, relação essa que o sábio Elisée Réclus logrou sintetizar na célebre fórmula “a História é a Geografia no tempo; a Geografia é a História no espaço”. Essa aproximação de Eidorfe Moreira com as matrizes das chamadas ciências humanas francesas, na forma como aqui se procura mostrar, influenciaria sua obra como um todo, uma obra essencialmente inter e transdisciplinar. Registre-se, nesse sentido, que, em “Ideias para uma concepção geográfica da vida”, de 1960a, Eidorfe Moreira faz referência a Henri Berr e sua “Revue de Synthése Historique”, um dos títulos identitários do movimento intelectual francês dos Annales, em estudo em que Henri Berr reporta-se aos geógrafos alemães Carl Ritter e Friedrich Ratzel. Enfatize-se, nesse sentido, que Henri Berr, interessado na geografia histórica, influenciou fortemente Lucien Febvre a desenvolver um grande projeto, “La terre et l’évolution humaine”, cujos resultados, em forma de livro, foram publicados em 1922 e 1925, neste caso, em edição inglesa (Burke, 1991). Repita-se, assim, que a presença da história e da cultura em “Ideias para uma concepção geográfica da vida” reflete a aproximação de Eidorfe Moreira com as matrizes epistemológicas que fundaram, na França, a relação entre história e geografia na origem do movimento dos Annales, no que manifestou a superação acadêmica e heurística da Escola Metódica Alemã, de Leopold von Ranke e Berthold Niebuhr, e sua projeção nos meios acadêmicos franceses. Observe-se, no entanto, que, entre os títulos consultados e referidos por Eidorfe Moreira em “Ideias para uma concepção geográfica da vida”, não figura

explicitamente qualquer das obras em que Lucien Febvre manifestou seus reconhecidos itinerários pela geografia histórica, sobretudo “La terre et l’évolution humaine”. Para ficar na questão dos Annales, é de se notar, também neste caso, que não figura nas fontes buscadas por Eidorfe Moreira um outro grande lugar da geografia histórica, a saber, “La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II”, de Fernand Braudel, cuja primeira edição data de 1949. Mesmo que essas obras não compareçam às referências de “Ideias para uma concepção geográfica da vida”, parece evidente que o estudo de Eidorfe Moreira, a considerar-se a sua estrutura narrativa, indica que ao escritor não foi desconhecida a geografia histórica produzida na França ao abrigo dos Annales. Um segundo grande trabalho foi dado à estampa por Eidorfe Moreira nesse mesmo período, mais exatamente em 1962: “A presença do mar na literatura brasileira”. Este estudo está fundado nos suportes teóricos e metodológicos da Geografia Cultural, manifestando o entendimento do autor acerca da natureza multifacetada do saber geográfico, suas leituras e representações. Escolheu-se esse estudo – como poderia ter sido escolhido “Ideias para uma concepção geográfica da vida” – para que melhor ficasse revelada a natureza do conhecimento inter e transdisciplinar construído por Eidorfe Moreira. O arco distendeu-se o bastante para abrigar domínios diversificados do saber, como, no caso, o estudo dos sermões que Vieira pregou no Pará. Em “A presença do mar na literatura brasileira”, Eidorfe Moreira vai trabalhar a literatura brasileira como também reflexiva da forte presença da paisagem na narrativa literária historicamente construída desde o período colonial, seja nos domínios da poesia, seja nos espaços da prosa. Como a paisagem em si resulta da relação entre natureza e cultura, seu corpus é também discursivo, tanto no tocante à imagética quanto à narrativa escrita. Afinal, os próprios personagens da peripécia literária revelam-se como agentes ativos atuando na construção dos quadros da paisagem.

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Para tanto, Eidorfe Moreira faz dele as palavras de Antônio Candido em “Formação da literatura brasileira”, ao dizer que “o nosso romance tem fome de espaço e uma ânsia topográfica de apalpar todo o país” (Candido, 1959 apud Moreira, 1989a, v. 3, p. 9). A paisagem, contudo, lembra Eidorfe Moreira, comparece à estrutura da narrativa literária como agente de seu enredo, e não como cenário, a exemplo do verificado em Guimarães Rosa. De qualquer modo, na construção da paisagem como enredo, em jogo está, assegure-se, o que Eidorfe Moreira identifica como a “unidade orgânica da Natureza, da Cultura e da História” (Moreira, 1989a, v. 3, p. 10). Ao escrever as considerações gerais de “A presença do mar na literatura brasileira”, Eidorfe Moreira fundou a sua leitura teórica em nomes que, à época, figuravam na vanguarda da história e da crítica literárias no Brasil. Além de Antônio Cândido, Eidorfe Moreira recorreu a Graça Aranha, Alceu Amoroso Lima, Viana Moog, Adonias Filho e Afrânio Coutinho. Valeu-se ele, também, do linguista e filósofo francês Albert Dauzat, na obra “Le sentiment de la nature et son expression artistique”, de 1914. No corpus de “A presença do mar na literatura brasileira”, como um todo, Eidorfe Moreira trabalha inicialmente o mar na poesia brasileira produzida no período colonial, para, depois, passar pelo romantismo, parnasianismo, simbolismo e modernismo. No tocante à prosa – objeto desta leitura – o estudo de Eidorfe Moreira privilegia a de ficção e, também, memórias e ensaios – nestes casos, nos quadros da vida intelectual brasileira do século XIX e primeira metade do XX. Para distender um arco de tão amplo alcance investigativo, Eidorfe Moreira considera “a polivalência de sentido e de expressão que o mar tem na vida nacional, a soma de atividades, motivos e influências que lhe inspira, suscita ou promove em toda a extensão de nossa costa”. Tudo isso nos mostra a riqueza de motivações literárias que podemos encontrar nele (Moreira, 1989a, v. 3, p. 17). Focando-se, no que diz respeito à prosa, o campo dos ensaios, Eidorfe Moreira faz referências a Victor Hugo, Pierre Loti e Jules Michelet, antes de começar a trabalhar

com os ensaístas brasileiros. E o faz com Rui Barbosa em “Cartas da Inglaterra”, em sua “Lição do Extremo-Oriente”, ao tratar da relação entre o mar e a defesa do Estado brasileiro, assim como da também relação com o poder naval e com a marcha de um país em direção ao progresso. A leitura do mar feita por Rui Barbosa reverbera de forma entusiástica em Eidorfe Moreira, para quem o autor de “Cartas da Inglaterra”, mesmo não sendo um profissional do mar, construiu “uma visão global e estrutural do nosso problema náutico, de acordo com as perspectivas e o espírito da época” (Moreira, 1989a, v. 3, p. 153). Também Euclides da Cunha foi visitado por Eidorfe Moreira em busca de registros sobre o mar feitos pelo autor de “Os sertões”, o que ele não encontraria certamente na epopéia euclidiana sobre Canudos, salvo de forma tangencial, já que, nesse caso, a narrativa ambientase no cenário plantado em meio ao semiárido nordestino. No geral, tratando-se do Brasil, a busca de Eidorfe Moreira sobre o mar em Euclides da Cunha encontra referências em “Contrastes e confrontos”, quando seu autor discute sobre os desafios brasileiros diante de um litoral de tão grande extensão. E também em “Os sertões”, como acima lembrado, Euclides da Cunha faz algumas considerações sobre a Serra do Mar. Também em “À margem da história” e em “Contrastes e confrontos”, registros euclidianos sobre o mar aparecem no tocante à Rússia e sua relação ao Pacífico, e aos Estados Unidos, aqui relativamente à costa oeste norte-americana. Visitação também a Gilberto Freyre marca a preocupação ensaística de Eidorfe Moreira em se tratando da representação do mar. Segundo o articulista, “a contribuição de Gilberto Freire no que tange aos assuntos do mar é notável, sobretudo por ter realçado a significação e o papel do negro em relação ao mar”. Em “Sobrados e Mucambos” e, ainda, em “Nordeste”, este dado à estampa em 1927, Gilberto Freyre foca o negro “nas suas relações diretas com o mar [...] projetando, por assim dizer, o negro na paisagem marinha” (Moreira, 1989a, v. 3, p. 163). Assim, em “Sobrados e Mucambos”, Eidorfe Moreira capta, por

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exemplo, uma dada leitura social do mar quando Gilberto Freyre registra que “as praias, nas proximidades dos muros dos sobrados do Rio de Janeiro, de Salvador, do Recife até os primeiros anos do século XIX eram lugares por onde não se podia passear, muito menos tomar banho salgado” (Freyre, 1951 apud Moreira, 1989a, v. 3, p. 159). A fim de definir claramente a relação do negro com o mar, Gilberto Freyre assinala, como aponta Eidorfe Moreira, que além do caboclo, o negro também foi canoeiro, jangadeiro e remeiro, atividades para as quais projetou comportamentos da sua cultura matricial. O espaço da pesca no nordeste litorâneo, assim, foi marcado, nas práticas que conheceu, também pela presença cultural do negro, e não apenas pela do caboclo. Fica claro, dessa forma, que a preocupação de Eidorfe Moreira é mostrar que a presença do mar como geradora de práticas sociais já estava construída na sociedade e na cultura brasileiras do período colonial. Em outro domínio da ensaística brasileira, o dos estudos literários, Eidorfe Moreira trabalha com Gonzaga Duque, um esteta do mar. Em “Graves e frívolos”, por exemplo, o escritor trabalha a representação da praia como paisagem natural e como paisagem social, na forma como a imagem se instalou nas mentalidades do Brasil que abria o século XX. No quadro dos grandes ensaístas brasileiros que incorporaram o mar como recurso literário, Eidorfe Moreira aponta ainda Gilberto Amado. A inflexão estética, literária, do ensaísta sobre o mar não o impede, contudo, de também centrar sua narrativa na relação entre as águas e a história. Nesse sentido, em “A dança sobre o abismo”, de 1952, que abriga uma incursão de Gilberto Amado sobre o Mediterrâneo, um mar que figura, segundo Eidorfe Moreira, “não só como fonte e berço, mas também como imagem e síntese da Civilização [no] quadro histórico do progresso humano” (Moreira, 1989a, v. 3, p. 162). Ainda na ensaística brasileira da primeira metade do século XX, mas agora seguindo o eixo da geografia histórica – um dos pólos dominantes de seus estudos –, Eidorfe Moreira chega ao geógrafo Alberto Lamego em “O homem e a restinga” e “O homem e a Guanabara”,

entre outros trabalhos. São estudos que se sustentam numa leitura da formação histórica das áreas litorâneas do Rio de Janeiro, daí o fato de o seu autor trabalhar “a colonização da costa fluminense [...] numa sequência que vai mostrado o seu lento desprendimento da gravitação e das influências oceânicas” (Moreira, 1989a, v. 3, p. 166-167). Fica evidente que Alberto Lamego empresta à geografia, em seus trabalhos, um tratamento histórico-cultural, focando a relação entre meio e modo social das populações, daí os títulos desses trabalhos anunciarem o homem como ponto primordial da leitura. Das leituras finais realizadas por Eidorfe Moreira em “A presença do mar na literatura brasileira”, uma foi sobre o geógrafo Josué de Castro e seus “Documentários do Nordeste”, de 1957a. Segundo Eidorfe Moreira, o texto de Josué de Castro, feito narrativa literária, enfatiza um processo que relaciona homem e meio, na forma, por exemplo, da “paisagem geo-social dos mangues pernambucanos, com sua vida anfíbia e miserável [...]todo esse mundo ambivalente entre terra e água se reflete com seu colorido típico e natural” (Moreira, 1989a, v. 3, p. 169170). Essa abordagem de uma geografia histórico-cultural, Josué de Castro igualmente manifesta em “Um ensaio de geografia humana: a cidade de Recife”, de 1957b. Aqui, a cidade, em dupla face, volta-se tanto para o mar das pescas e das jangadas, quanto para o mar das canas, quer para o litoral pesqueiro, quer para a terra canavieira. Trata-se, no caso, da forma como Recife se relacionou com os domínios históricos da sua construção social. Aliás, quanto às jangadas como representação sócio-cultural, e de forma a salientar o tratamento cultural da geografia, domínio por excelência da sua preocupação epistemológica, Eidorfe Moreira busca a antropologia de Câmara Cascudo em seu estudo “A jangada”, publicado em 1957. Nesse sentido, sustenta o articulista que “quem diz jangada diz naturalmente uma tipologia humana e geográfica, um tipo de embarcação e um processo haliêutico” (Moreira, 1989a, v. 3, p. 173). Conclui Eidorfe Moreira sustentando que “a parte final do trabalho de Câmara Cascudo é uma antologia

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da jangada, o reflexo das suas influências em nossas letras” (Moreira, 1989a, v. 3, p. 177). Em “A presença do mar na literatura brasileira”, Eidorfe Moreira redefiniu e melhor alargou preocupações já manifestadas em “Ideias para uma concepção geográfica da vida”, de 1960a. O investimento do articulista numa geografia histórica e culturalmente trabalhada produziu, assim, os seus frutos, na medida em que o fio condutor de sua análise levou-o ao encontro das dimensões sócio-históricas da geografia. Dispensa enfatizar que, em outros trabalhos que publicaria posteriormente, no correr da década de 1970, redefiniria ele os paradigmas dessa geografia, tomada também como linguagem e representação cultural. Ainda em 1966, seguindo essa mesma linha de construção epistemológica, surgiu o estudo “Belém e sua expressão geográfica”. Por isso mesmo, neste ensaio seu autor funda a sua leitura no solo fértil da narrativa histórica, recorrendo, para tanto, a historiadores lusobrasileiros, como João Lúcio de Azevedo, Oliveira Martins e Sérgio Buarque de Holanda; a historiadores franceses, a exemplo de Fustel de Coulanges e Lucien Romier, além de Domingos Antônio Raiol, Manuel Barata e Bernardo Pereira de Berredo. Nos domínios da geografia, o estudo recorre aos geógrafos franceses Pierre George, Auguste Plane e Pierre Monbeig, uma geografia também pensada em termos de sua utilização na narrativa literária de José Lins do Rego e Leandro Tocantins. Como o olhar de Eidorfe Moreira para a expressão geográfica de Belém está fundado, repita-se, sobre uma perspectiva histórica, o quadro que pinta é o dos cenários físicos e culturais em que a cidade surgiu e foi se afirmando, historicamente falando. Vale-se o escritor, para tanto, também de registros feitos por viajantes que passaram pela Amazônia nos séculos XVIII e XIX, um procedimento que é essencial à sua narrativa. Assim, o ensaísta recepcionou, em seu estudo, Charles-Marie de La Condamine, Spix, Martius, Hercule Florence e Paul Le Cointe, sabidamente responsáveis por uma leitura dita naturalista, cientificamente

falando, da Amazônia. A relação cultural construída por Eidorfe Moreira entre Geografia e História, para pensar a Amazônia, revelou-se, ainda uma vez mais, em “Visão geo-social do Círio” (1971). E para reforçar ainda mais a transdisciplinaridade do trabalho de Eidorfe Moreira – agora Geografia e Filosofia – veja-se que, um ano depois, ele apareceria com “Kant como geógrafo” (1972a), este último depois integrado em “Geografias mágicas” (1985), obra esta com que o estudioso e grande construtor do pensamento social fechou sua fecunda bibliografia. Outros trabalhos de Eidorfe Moreira poderiam ainda ser aqui relacionados e arguidos, a exemplo de “O nefelismo de El Greco” (1972b), “O livro didático paraense; breve notícia histórica” (1979) ou – no limite – “Jesus visto pelo geógrafo” (1984), saído pela imprensa local. Tal não se fez porque esse procedimento acabaria por implicar uma exegese da sua obra, o que não seria o caso, já que a preocupação maior deste trabalho é recuperar a leitura que Eidorfe Moreira fez dos sermões que o Padre Antônio Vieira pregou no Pará na passagem da primeira para a segunda metade do século XVII. Note-se, entretanto, que a argumentação e a arguição antes desenvolvidas acerca de obras que antecederam o estudo dos sermões pregados por Vieira no Pará são fundamentais, haja vista que indicam algumas das leituras que o autor desenvolveu e que utilizou como suporte teórico para a sua narrativa vieiriana.

 “Os sermões que Vieira pregou no Pará” é um opúsculo de 23 páginas dado à estampa em 1970 pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Em seu estudo, Eidorfe Moreira chama a si os quatro sermões que Vieira recitou na igreja matriz da Belém entre 1656 e 1658. O Grão-Pará, na época, abrigava importantes missões jesuíticas fincadas no interior. Em seu breve relato sobre o quê em Belém produziu o sermonário vieiriano, Eidorfe Moreira trabalhou com uma bibliografia polimórfica. De um lado, reuniu os títulos clássicos de João Lúcio de Azevedo,

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a saber: “História de Antônio Vieira”, com seus dois tomos publicados em Lisboa entre 1918 e 1921, e “Os jesuítas no Grão-Pará”, dado à estampa em Coimbra em 1930. No tocante ao sermonário de Vieira como um todo, Eidorfe Moreira valeu-se de outro clássico, “Les sermons de Vieira; étude du style”, de Raymond Cantel, publicado em Paris em 1959. E do próprio Vieira o estudioso paraense consultou os “Sermões”, em 15 volumes, publicados em Lisboa entre 1907 e 1909. Outros monumentos bibliográficos sustentam a leitura de Eidorfe Moreira sobre o quadro histórico em cujo interior estava presente a Companhia de Jesus no Grão-Pará de então. É o caso, por exemplo, da “História da Companhia de Jesus na extinta província do Maranhão e Pará”, estampada por Cândido Mendes de Almeida nos dois tomos de suas “Memórias para a história do extinto Estado do Maranhão”, saídos no Rio de Janeiro em 1860 e 1874. Veja-se, ainda, que não escapou e nem poderia escapar a Eidorfe Moreira a “História da Companhia de Jesus no Brasil”, de Serafim Leite, cujos dez tomos foram dados à estampa entre 1938 e 1950, em Lisboa e no Rio de Janeiro. A bibliografia consultada por Eidorfe Moreira, à época, respondia, em parte, pelo então estado das questões acerca do Vieira histórico. E certamente demarcava os limites do campo de leitura privilegiado por Eidorfe Moreira acerca das representações da praxis vieiriana no que era a Belém de uma iniciada segunda metade do século XVII. Isso explica a ausência de títulos que alargassem a linha de leitura da obra de Vieira, a exemplo de outros do já citado Raimond Cantel, assim como de diferentes autores que se debruçaram sobre Vieira, a exemplo de Hernâni Cidade. É verdade que, na Belém do final dos anos de 1960, quando Eidorfe Moreira certamente pensou em trabalhar os sermões que Vieira proferiu na cidade, era difícil ter em mãos, por exemplo, títulos saídos quer no Brasil quer na Europa sobre o sujeito histórico Antônio Vieira. Tal contingência, de qualquer modo, deve ser relativizada porque a biblioteca particular de Eidorfe

Moreira, como ele mesmo revelou, era de uma riqueza invulgar. Assim, os títulos que elegeu para contingenciar, histórica e estilisticamente, “Os sermões que Vieira pregou no Pará”, iam ao encontro, segundo o seu entendimento, da narrativa que elaborou acerca da presença de Vieira na seiscentista Belém do Grão-Pará. É importante lembrarmos que somente a partir dos anos de 1990 passaram a surgir, por exemplo, em Portugal e no Brasil, novos estudos a alargar o horizonte de leitura tanto do Vieira histórico da Companhia de Jesus quanto o do discurso teológico inaciano. Assim, a bibliografia consultada por Eidorfe Moreira respondia, à altura em que ele escreveu o seu opúsculo, aos imperativos epistemológicos do seu estudo. Eidorfe Moreira foi, a seu tempo, um intelectual à frente do seu próprio tempo.

 Para além de qualquer concessão que se possa fazer à ideia de um Antônio Vieira apenas reflexivo da retórica católica lusitana seiscentista, o grande pregador e missionário jesuíta e também homem de Estado do seiscentos português foi um intelectual refinado e douto. Transgressor dos limites estabelecidos pela Ratio Studiorum, próximos e, mesmo, redesenhados pelos mecanismos censórios da Inquisição, Antônio Vieira, a seu tempo, e em sentido amplamente considerado, foi um arqueólogo da cultura humanística, assim como da História e das Escrituras, um escritor que esgrimiu a língua portuguesa para além das regras sintáticas e dos engenhos tropológicos do teatro retórico do barroco (Coelho, 2009). Ao chamá-lo de “Imperador da Língua Portuguesa”, Fernando Pessoa, ele mesmo um mago da língua, certamente tinha em mente, além da capacidade inventiva de Vieira, viva em seu vórtice linguístico, a totalidade por ele emprestada ao português como língua universal. Sem considerar outras feições assumidas pelo seu pensamento e pela conformação fundadora da sua narrativa, bastariam os “Sermões” para descortinar o rigor, a lucidez e a

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universalidade do pensamento e das formas retóricas próprias do élan vieiriano. A parenética de Vieira, o grande engenho de sua retórica em torno e em função do Verbo, ainda comportaria, tratando-se da questão da liberdade quer dos cristãos-novos portugueses, quer dos índios brasileiros, um universal e ético composto humanístico (Vieira, 2000, v. 1, 2001, v. 2). Os anos de 1653 a 1661, os que Antônio Vieira esteve à frente do sistema missionário jesuítico no Maranhão e Grão-Pará, foram tempos de múltiplos significados e de distintas dimensões para o religioso e homem de Estado que ele fora. À medida que foi se desenvolvendo o corpus doutrinário de Vieira, em cujo interior sobressairia uma representação empírica e histórica do cristianismo, na forma última assumida pela figuração e fulguração do Quinto Império, uma nova leitura acerca do poder foi esculpida pela demiurgia vieiriana. O Estado, para Vieira, por isso mesmo, seria um Estado cristão universal e, como tal, não um domínio em si mesmo da política, antes objeto da teologia política e cujo fim seria trazer hereges e gentios para o império de Cristo (Pécora, 1994, p. 130). Seria, a partir dessa teologização da política, leia-se, da monarquia portuguesa, que Vieira empreenderia seus esforços em prol do Verbo, daí o difícil lugar que assumiu diante da escravidão negra no Brasil. Por conta das exigências de uma prática que encarnava, a um só tempo, teologia e política, Palavra e Lei, o grande pregador precisou transitar por cenários que eram o púlpito e a arena política, os domínios da Fé e os espaços da polis, lançando mão de um discurso em que, por vezes, o Verbo cedia lugar ao argumento dirigido à res publica. Que dinâmicas, que demandas produziram o pluralismo do discurso de Vieira, misto de sermão e de juízo crítico, nos domínios religiosos e civis do Maranhão e do Grão-Pará, a ponto de levar à expulsão dos jesuítas do norte do Brasil, incluindo Antônio Vieira? A questão central desse enredo foi a escravização do indígena, feita pelos colonos no Maranhão e no Grão-Pará. Sucede que, com Vieira, o índio era uma criatura vista não pelo

empirismo dos negócios mercantis, mas pelas lentes de seu profetismo político, de suas leituras testamentárias da História, um engenho teológico que já se projetava em direção ao Quinto Império. Além da escravização indígena como significante de uma dada forma de combate cultural, os cenários sociais e culturais da Amazônia seiscentista, agregados politicamente falando ao corpo do Estado do Maranhão e Grão-Pará, foram palcos de conflitos envolvendo religiosos, leigos e índios. Contrariamente ao que projeta a tradicional historiografia do Brasil colonial, esses conflitos não refletiam tão-somente o choque entre religiosos e moradores da região, geralmente em torno do domínio da mão de obra indígena. Antes, os choques em causa refletiam dinâmicas outras, inclusive de espectro político, envolvendo religiosos entre si e religiosos e leigos, conflitos sempre relacionados às redes de sociabilidade construídas nos espaços coloniais (Chambouleyron, 2006). Não resta dúvida de que as investiduras de Vieira e seu trânsito junto à Corte de D. João IV (1604-1656) levavam o pregador a definir espaços de autoridade e de poder diante dos governos do Maranhão e do Grão-Pará. Admite-se que semelhante e distinta postura ocorria mesmo quando se tratava de tópicos que, em tese, eram interessantes ao Estado português, como a procura de metais preciosos de valor estratégico para o mercantilismo. Assim, uma outra dimensão da palavra política de Vieira no Pará manifestou ele em seu “Sermão da Primeira Oitava da Páscoa”, pregado na Matriz de Belém em 1656, depois do fracasso da expedição em busca de ouro no rio Pacajá, aventura estimulada pelo governo da Capitania e na qual morreu o jesuíta João de Souto Maior, amigo e antecessor de Vieira nas missões amazônicas (Moreira, 1989b, v. 4, p. 9). A busca do eldorado sempre alimentou a imaginação dos colonos, mas depois do fracasso de sua busca Vieira insistia que a grande riqueza do Grão-Pará eram seus habitantes naturais, as milhares de almas espalhadas pela floresta, numa posição politicamente confrontante com a lógica mercantil do Estado português. E vergasta

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o governo lembrando que a existência do ouro seria ônus elevado, pois traria para a Capitania “poderosos” que lucrariam com a servidão dos colonos nas prisões em que se transformariam as minas de prata e ouro que porventura existissem. E tudo passaria para as mãos dos representantes da Coroa, ávidos de riquezas, ávidos de poder (Vieira, 2000, v. 1, p. 563). A ação de Vieira diante da busca do eldorado por colonos estabelecidos no Grão-Pará, ainda que reflexiva do que pensava ser a catequese e seu significado, essa ação estava centrada sobre um eixo de claro matiz político. Como as questões da catequese eram também questões de Estado, na medida em que submetiam os índios à autoridade colonial, Vieira investia contra um desvio da função catequética que lhe parecia determinante para o sucesso da presença portuguesa na Amazônia. E essa presença também se representava pelo complexo das missões jesuíticas estabelecidas nas profundezas da Amazônia. Diz, nesse sentido, João Lúcio de Azevedo, que os jesuítas estavam presentes em imenso território e agiam sobre uma expressiva população tribal. Em outras palavras, “onze aldeias de índios mansos no Maranhão e Gurupi; seis nas vizinhanças do Pará, sete no Tocantins, vinte e oito no Amazonas, constituíam por então o domínio efetivo dos jesuítas [que] sonhavam imperar em todo o imenso rio, ainda incógnito, que, no seu longo curso e nas inúmeras ramificações, era povoado de tantas e tão diversas gentes, matéria-prima escolhida da catequese” (Azevedo, 1999, p. 64-65). Fica evidente, assim, que as já referidas investiduras que Vieira conduzia ao chegar ao Maranhão e ao Grão-Pará, observados os significados simbólicos da sua representação, projetar-se-iam, qualquer que fosse o contexto, sobre a organização e o exercício do poder na colônia, conhecidas as fidelidades que aproximavam os corpos constitutivos da anatomia mercantilista. No caso em questão, essa projeção seria inevitavelmente mais profunda e abrangente, considerando-se os instrumentos políticos com que Antônio Vieira, dando forma à vontade de D. João IV, chegou ao

Maranhão e Grão-Pará: regente da evangelização, do governo espiritual das almas. É nesse sentido que Vieira encarnava a condição de homem de Estado, na medida em que a questão e o lugar do índio no interior da ordem colonial eram essencialmente – para além da problemática da evangelização – uma questão política. As peças desse jogo de forças entre os agentes da colonização e os jesuítas, peças essas movidas que foram em clima de crescente tensionamento, permitiram que Vieira, sem o recurso retórico dos sermões, viesse a usar a palavra no sentido político propriamente dito. Em sucessivas oportunidades, o grande pregador teria que lidar diretamente com os quadros da Câmara de Vereadores de Belém, fazendo-se ouvir pelos edis, portavozes do descontentamento dos colonos com a presença da Companhia de Jesus no Grão-Pará. Fica claro, como revela a documentação conhecida, que a administração do Maranhão e do Grão-Pará não assimilava a presença e a interferência dos jesuítas na região, o que não ocorria de forma manifesta relativamente a outras ordens religiosas atuantes nos mesmos espaços sociais do norte do Brasil. O painel histórico aqui construído tem por fim enquadrar, entre os sermões que Viera pregou na matriz de Belém, aquele com maior ressonância, tratando-se da já referida relação entre Palavra e Política: o “Sermão da Primeira Oitava da Páscoa”, pregado em 1656. A peça é referente à explosão, em 1649, da febre do ouro, contagiando colonos estabelecidos no Grão-Pará, apoiados pelo governo, sem dúvida interessado nos resultados da aventura. Diz, nesse sentido, o cronista Antônio Baena: “expede o Capitão-Mor [Ayres de Souza Chichorro] no dia 24 de agosto de 1649 uma grande Bandeira, da qual nomeou cabeça a Bartolomeu Barreiros de Ataíde com a patente de Capitão-Mor para a descoberta das minas do rio Agurico ou do Ouro [...] em cujo ânimo a viagem de Pedro Teixeira a Quito havia implantado a cobiça das minas...” (Baena, 1969, p. 63). É ainda Antônio Baena quem diz que, no sermão, Vieira “discursou largamente [...] mostrando quanto eram

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prejudiciais as minas de ouro e prata; e descrevendo e amplificando os perigos internos e externos, que de tal descoberta podem resultar; e demonstrando com exemplos tirados da Espanha e do reinado de Salomão os inconvenientes das minas, e quais poderiam ser úteis, e em conclusão dizendo que foi grande favor e providência do Céu que se não descobrissem, e que era errada e desencaminhada a esperança dos que empreendem tais explorações” (Baena, 1969, p. 70). É possível que essa fracassada bandeira rumo às distantes terras do rio Pacajá, saída de Belém ainda na primeira metade do século XVII rumo a uma Amazônia ainda pouco conhecida dos portugueses, desbravando domínios físicos de grande complexidade, tenha despertado interesse em Eidorfe Moreira e sua já construída geografia histórica. Se lembrarmos que, tratando-se da revelação da Amazônia, Pedro Teixeira já havia realizado sua grande viagem ao Peru, mesmo com a fracassada bandeira rumo ao rio Pacajá ampliava-se, rumo a novos quadrantes, o conhecimento sobre a região. Afinal, foi em torno dessa busca do eldorado que Vieira pregou, como já antes referido, o seu “Sermão da Primeira Oitava da Páscoa”. Além desse, Vieira ainda recitaria três outros sermões na matriz de Belém, a saber: “Sermão da Madrugada da Ressurreição”, “Sermão de Nossa Senhora da Graça” – estes sem indicação do ano – e “Sermão da Ressurreição de Cristo”, este em 1658. De todos, foi o “Sermão da Primeira Oitava da Páscoa” aquele que, para os estudiosos de Vieira, maior ressonância apresentou, até porque seu conteúdo também refletiria situações relativas à presença da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão e Grão-Pará. São essas peças, integrantes do vasto sermonário de Vieira, que Eidorfe Moreira reuniu em “Os sermões que Vieira pregou no Pará”, dado à estampa em 1970. No pano de fundo da prática sermonária de Vieira em Belém, Eidorfe Moreira identifica o pregador como a figura-chave do quadro histórico, social e culturalmente observado do Pará aquando da sua passagem pela

Capitania, entre 1653 e 1661, na condição de superior das missões jesuíticas no norte do Brasil. Enfatiza o articulista que a luta de Vieira pela liberdade do índio manifestou, tratando-se do patrimônio intelectual vieiriano, a combinação de filosofia e ministério, cultura humanística e apostolado. É de se ressaltar que Vieira, àquela altura, figurava como importante homem de Estado, não apenas pela relação entre a Espada e a Cruz na obra da colonização, mas ainda pela sua marcante proximidade com o rei D. João IV de Portugal. Voltando ao caso do “Sermão da Primeira Oitava da Páscoa”, também para Eidorfe Moreira foi “a mais importante pregação de Vieira no Pará”, haja vista as implicações e as projeções que essa peça da retórica sermonária vieiriana comportou e refletiu, respectivamente. Aliás, o ensaísta chama atenção para uma circunstância problemática envolvendo esse sermão e o fato que o motivou, levantada que foi por João Lúcio de Azevedo em seu já citado “Os jesuítas no Grão-Pará” (Moreira, 1989b, v. 4, p. 9). E tal circunstância seria o fato de o próprio Vieira, segundo aquele historiador, haver sugerido ou mesmo assentido “a viagem ao Pacajá, de onde havia muito chegava a fama de tesouros” (Azevedo, 1999, p. 70). Eidorfe Moreira, ainda que sem revelar os fundamentos da sua leitura sobre o caso, contesta a observação de João Lúcio de Azevedo, sem dúvida um lugar problemático envolvendo a passagem de Vieira pelo Pará de então. De todo modo, registre-se que Eidorfe Moreira lembra, aliás de forma acertada e procedente, que, no “Sermão da Primeira Oitava da Páscoa”, Vieira assume uma posição abertamente crítica contra a busca de ouro no rio Pacajá. Faz ver nesse sentido que Vieira, inclusive, valeu-se de casos na história em que, como ocorreu na antiga Israel e na moderna Espanha, as práticas metalistas foram sempre danosas. Segundo Eidorfe Moreira, o ponto central do “Sermão da Primeira Oitava da Páscoa” revela-se quando Vieira, opondo-se à lógica do mercantilismo português, denuncia que a existência de ouro em terras do GrãoPará traria para a sua realidade o peso, então aqui ainda

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não conhecido, da máquina fiscal metropolitana. E esta, além de rigorosa e despótica, abrigava ainda os poderosos e seus abusos. Para tanto, Eidorfe Moreira retira do sermão as passagens em que Vieira aponta as condições dramáticas em que passaria a viver o Grão-Pará sob o peso da legislação e das práticas políticas metalistas. É preciso lembrar que Vieira assim procedia porque ainda vivo estava D. João IV, seu grande protetor, morto, aliás, em novembro daquele mesmo ano de 1656. Como bem observou Eidorfe Moreira, recorrendo mais uma vez ao corpo do “Sermão da Primeira Oitava da Páscoa”, Vieira bem demarcou a sua posição contra a febre do ouro e seus malefícios. Para tanto, exaltava ele o que considerava as “minas do céu”, ou seja, as populações tribais espalhadas pela floresta à espera da Revelação, da Palavra, razão de ser do missionarismo e do ministério da Companhia de Jesus. Afinal, proclamava Vieira em seu sermão, a “salvação de uma só alma vale mais que todo o ouro, toda a prata ou todos os haveres do mundo” (Moreira, 1989b, v. 4, p. 11), imagem que bem define a natureza do corpo evangélico, cristológico, da missão jesuítica no mundo. A plenitude desse corpo doutrinário, observadas as realidades concretas do mundo, Vieira exalta ao findar o seu sermão, passagem chamada por Eidorfe Moreira para definir a posição do pregador contra a busca do eldorado: “concedo-vos que se descobrissem as minas que desejáveis, e que essa nossa cidade estivesse lajeada de barras de prata e cobertas de telhas de ouro; que importa tudo isso à alma? Havia-lhe de levar alguma coisa dessas consigo? Havia-lhe de importar alguma coisa para a conta? Pois se tudo cá há de ficar, por que não tomamos o conselho de Cristo, que tantas vezes nos disse que fizéssemos o nosso tesouro no céu: Thesaurizate vobis thesauros in coelo?” (Moreira, 1989b, v. 4, p. 11). Além do ora comentado “Sermão da Primeira Oitava da Páscoa”, Vieira recitou, possivelmente em 1658, o “Sermão da Madrugada da Ressurreição”, o menor entre todos os que apresentou na matriz de Belém. O fim último

do sermão, registra Eidorfe Moreira, é a manifestação da unidade mística do Filho com a Mãe, de Jesus com Maria, de tal forma que chegar a Cristo é passar por Maria. O analista destaca o fato de o sermão, mesmo sem identificar o ano e o local de sua pregação, acabou, mesmo, sendo identificado por Vieira ao proclamar que “nesta Casa da Senhora da Graça, que é a Casa da sua Mãe” (Moreira, 1989b, v. 4, p. 13). Ainda subordinado à mesma linha discursiva do sermão acima, Vieira pregou ainda, em 1658, o “Sermão da Ressurreição de Cristo”, considerado por Eidorfe Moreira como “o menos interessante dos que o insigne jesuíta pregou no Pará”. Ressalta o articulista que a ressurreição de Cristo é “uma das predileções temáticas da parenética vieirense”. Nesse sentido, acentua Eidorfe Moreira que o “fundo edificativo do sermão”, como acima já se mencionou, é o mesmo do anterior, daí em Vieira ficar consagrado que “procurar e seguir Cristo” é o caminho único para a ressurreição (Moreira, 1989b, v. 4, p. 14). Finalmente, Eidorfe Moreira debruça-se sobre o “Sermão de Nossa Senhora da Graça”, “a maior e mais complexa das peças oratórias” que Vieira recitou em Belém, “tão extensa e complexa como a que pregou em Lisboa” no ano de 1651. Assinala Eidorfe Moreira que “o sermão é todo ele teológico, versando sobre a preeminência da graça sobre a glória...”. Neste sermão, como bem assinala o articulista, Vieira se reporta diretamente à matriz de Belém, “a primeira e maior de uma tão dilatada província, e cabeça de todas”. (Moreira, 1989b, v. 4, p. 15). Numa primeira ordem de consideração, após recuperar os quadros retóricos dos sermões estudados, Eidorfe Moreira volta-se para o estilo de Vieira, para a arquitetura retórica dominante em seu sermonário. Registra, nesse sentido, os estudos clássicos que consultou, como os de Jamil Almansur Haddad e Raymond Cantel, para enfatizar alguns dos pontos de formatação e de sustentação do discurso, do sermonário de Vieira, elementos-chave à identificação da modelagem em que se sustenta a parenética do grande pregador do barroco

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luso-brasileiro. Seguidamente, Eidorfe Moreira pensa os sermões pregados por Vieira no Grão-Pará em relação direta com a Belém histórica de então, cenário social e cultural de recepção da palavra do grande orador sacro. Compreende-se a preocupação de Eidorfe Moreira ao seguir essa linha de problematização, considerando a relação entre a palavra e o sujeito histórico-cultural que era Antônio Vieira no seiscentos, tanto na Europa como no Brasil. Nesse sentido, e estreitando as bases da relação acima referida, lembra Eidorfe Moreira que a Belém que recepcionou os sermões de Vieira era um núcleo colonial sem grande expressão, quer social, quer culturalmente falando. É preciso notar, entretanto, que do ponto de vista de Vieira e da Companhia de Jesus, e assim demonstra o número de missões organizadas na Amazônia, a importância de Belém residia na sua condição de centro de onde os jesuítas demandavam as suas ações, tanto as de catequese como as de defesa da liberdade indígena. Conforme Vieira registrou na chamada “Resposta aos Capítulos que deu contra os Religiosos da Companhia de Jesus o Procurador do Maranhão Jorge de Sampaio”, de 1652, Belém tinha em torno de 80 moradores. E sobre esse número o próprio pregador não tece qualquer consideração, haja vista, repita-se, que interessava mais diretamente a Vieira e aos jesuítas as sociedades tribais habitando a Amazônia. Admitindo-se que esse fosse, de fato, o número de residentes em Belém, tal número era interessante se visto pela ótica dos jesuítas, já que indicava a existência de um mercado de limitadas necessidades para a escravização da mão de obra indígena em atividades urbanas. Relativamente aos 80 habitantes de Belém registrados por Vieira, trata-se de um número discutível! Para arguir o registro de Vieira, Eidorfe Moreira recorre a dados disponíveis em diversos autores, a saber: Maurício de Heriarte, cronista francês que passou pela cidade no século XVII e que escreveu uma “Descrição do Estado do Maranhão, Pará, Corupá e Rio das Amazonas”; João Francisco Lisboa em suas “Obras”; e, ainda, João Lúcio

de Azevedo em seu já citado “Os jesuítas no Grão-Pará”. Neste caso, este último autor levanta a possibilidade de o número de 80 moradores dizer respeito apenas aos titulares de famílias então aqui radicadas, sem contar, por exemplo, o número de soldados. Mesmo considerando que Belém era, à altura em que Vieira ali pregou, um núcleo colonial sem maior expressão social e cultural, Eidorfe Moreira assinala que, mesmo assim, os sermões do grande pregador ali solenizados mantiveram a mesma estrutura narrativa, a mesma arquitetura retórica daqueles que Vieira apresentou em diferentes cenários culturais da Europa. Como em jogo estavam a Palavra e o imperativo teológico da sua propagação, Vieira fez do mundo, qualquer mundo, o humano cenário de recepção da Palavra. Se em Belém, em Roma ou em Lisboa, Vieira fazia da pregação a razão de ser de seu imperativo como missionário e mensageiro do Verbo. Para Eidorfe Moreira, “a dignidade e a elevação em que tinha esta função não lhe permitiam fazer concessões ao público seja a que título fosse” (Moreira, 1989b, v. 4, p. 17), daí o porquê de os seus sermões manterem uma mesma identidade, tratando-se do rigor com que o pregador erguia e movimentava o engenho de sua fala. Um outro domínio da abordagem construída por Eidorfe Moreira para trabalhar os sermões que Vieira pregou no Pará diz respeito à relação entre o conteúdo das peças e o quadro das realidades então dominantes, fossem de ordem física, fossem de ordem social e cultural. Segundo Eidorfe Moreira, à exceção do “Sermão da Primeira Oitava da Páscoa”, “nenhum outro que [Viera] aqui pregou oferece interesse sob o ponto de vista mesológico”, já que os demais já referidos foram “pregações puramente doutrinárias, sem ligações diretas e imediatas com o meio”. Adianta, ainda, o articulista que surpreende que, durante a sua estada no Pará, “não tenha Vieira aproveitado como objeto ou pelo menos como pretexto de pregação nenhum dos fatos ou acontecimentos de que foi pars magna” (Moreira, 1989b, v. 4, p. 17).

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Feito esse balanço, Eidorfe Moreira assinala que “também como expressão geográfica a Amazônia não figura no sermonário de Vieira”, mesmo tendo ele passado vários anos em meio ao complexo físico da grande floresta tropical, navegando pelos seus rios, avançando pelo seu universo botânico. Diz Eidorfe Moreira, apropriadamente, que foi nas cartas, aproximadamente em número de 12, saídas de Belém, que Vieira contingenciou o meio físico amazônico “em termos de paisagem”. Lembra, nesse sentido, que Vieira, como pregador, “sempre foi pouco sensível aos quadros naturais, ou pelo menos pouco interessado em evocá-los como recurso oratório”, já que a natureza, quando figurada no sermonário de Vieira, o é como recurso estilístico, na forma de representações a ornar a retórica com imagens buscadas tanto no Velho como no Novo Testamento (Moreira, 1989b, v. 4, p. 18). De qualquer modo, é preciso ressaltar, tratando-se da relação entre Vieira e os cenários amazônicos, é que foi precisamente em Cametá, às margens do rio Tocantins, que Vieira produziu um dos principais documentos de sua história como pregador, missionário e homem de Estado: a chamada carta “Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo, Primeira e Segunda Vida del-Rei D. João o Quarto Escritas por Gonçalo Eanes Bandarra”. Para Eidorfe Moreira, “Esperanças de Portugal...” é um documento marcado “pela extensão e beleza literária” (Moreira, 1989b, v. 4, p. 18). Escrita em 1659 e formalmente dirigida ao bispo do Japão, o jesuíta André Fernandes, a carta pretendia confortar a rainha D. Luísa de Gusmão pela morte de D. João IV, ocorrida em 1656. O documento depois se transformaria em forte argumento para os opositores de Vieira levarem-no ao Tribunal da Inquisição, em um processo que correria entre 1663 e 1667. Vieira, que em 1652 já era suspeito de heresia por defender judeus e cristãos-novos, seria também acusado de profetismo por proclamar a volta de D. João IV, ressuscitado, a um Quinto Império cristão, lusitano e universal. E lícito é sustentar que nesse Quinto Império, pensado necessariamente como

possibilidade histórica, estavam a Amazônia e as milhares de almas de suas sociedades tribais, o genus angelicum à espera da Palavra, do Verbo (Coelho, 2009). Considerando as linhas de análise traçadas por Eidorfe Moreira para situar os sermões que Vieira pregou no Pará, é natural que o articulista assim conclua a sua leitura: “com uma única exceção (“Sermão da Primeira Oitava da Páscoa”), esses sermões não refletem fatos ou motivações locais, oferecendo, portanto, pouco interesse sob o ponto de vista mesológico, ao contrário do que acontece com as cartas do pregador” (Moreira, 1989b, v. 4, p. 19). Em sua arguição à ausência da natureza amazônica nos sermões que Vieira pregou no Pará, Eidorfe Moreira lembra que o sermão em que mais diretamente comparecem os cenários sociais e culturais paraenses, amazônicos, é o “Sermão da Epifania”, pregado por Vieira na Capela Real de Lisboa em 1662. Por isso mesmo, Eidorfe Moreira o considera “o mais ‘amazônico’, sem dúvida dos [...] sermões” pregados por Vieira (Moreira, 1989b, v. 4, p. 18), daí a necessidade de ser recuperado neste artigo, ainda que tangencialmente. Em 1661, expulsos os jesuítas do Estado do Maranhão e Grão-Pará, Vieira saiu preso de Belém para São Luiz e, de lá, para Lisboa. Em 1662, na Capela Real de Lisboa, diante de D. Luísa de Gusmão e do futuro rei, D. Afonso VI, Vieira pregou o fulgurante “Sermão da Epifania”. Reportava-se ao grande mal que fora a expulsão dos jesuítas do Maranhão e do Pará, antes terras do Verbo, depois pátria do Anticristo. Defendia ele a volta dos jesuítas ao norte do Brasil, para garantir a liberdade dos índios e para os serviços espirituais necessários à colônia, sem os quais não mais triunfaria o Verbo naqueles domínios. Era o começo de uma prolongada crise envolvendo Vieira, o Trono e a Igreja Católica em Portugal (Coelho, 2010). Tratando-se do universo da visitação de Eidorfe Moreira à palavra de Antônio Vieira, geografia e história cruzam-se nessa leitura. Esse cruzamento fica ainda mais evidente quando o ensaísta realça a importância do grande pregador nos quadros de uma Belém

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apenas despertada para a história, mas de um despertar expressivo para a lógica do Estado colonial ibérico. Afinal, fundar e fundamentar a presença portuguesa na Amazônia impunha-se à geopolítica metropolitana para o norte do Brasil, uma região até então pouco conhecida, mas já alvo de manifesto interesse de várias potências européias. E como esses primeiros tempos da história do espaço amazônico ocorrem sob a União Ibérica (1580-1640), também em jogo estavam os interesses do Estado espanhol na Amazônia. Outra seria a Amazônia da Restauração portuguesa, quando D. João IV assume o trono português, precisamente a Amazônia na qual atuaria o gênio político, teológico e ontológico de Antônio Vieira.

 Escrito iniciados os anos de 1970, o ensaio “Os sermões que Vieira pregou no Pará”, de Eidorfe Moreira, inscreve-se no conjunto de estudos com que o autor trabalhou, fundado na Geografia Cultural, visitou a sociedade e a cultura do Pará e da Amazônia. Incluem-se nesse conjunto trabalhos como “Roteiro Bibliográfico do Marajó” (1969), “Visão Geo-Social do Círio” (1971), “Presença hebraica no Pará” (1972c) e “Funções extramilitares do Forte do Castelo” (1980). Se, entretanto, a questão cultural for tratada do ponto de vista acadêmico, docente, Eidorfe Moreira privilegiou o organismo pedagógico paraense. Assim, escreveu trabalhos como “Obras escolares paraenses de história” (1977a) e “O livro didático paraense” (1979), estudos voltados ao ensino médio no Pará, como também o fez com o ensino superior ao publicar “As letras jurídicas no Pará” (1973) e “Para a história da Universidade Federal do Pará” (1977b). Pelo conjunto da sua obra, como ficou manifestado em sucessivas passagens deste artigo, Eidorfe Moreira construiu sua bagagem intelectual fora dos muros da academia, da Universidade, como, aliás, outros intelectuais paraenses e brasileiros do tempo. Ele ingressou na Faculdade de Direito do Pará em 1934,

quando a formação acadêmica de então, nos cursos jurídicos, mostrava-se formal e positivista. De qualquer forma, as suas atividades no magistério, concluído o curso de Direito, já indicavam o intelectual em visível processo de amadurecimento. As relações de Eidorfe Moreira com o ensino da Geografia começam em 1943, bem antes do começo do ensino superior de Geografia no Pará, o que se deu em 1955, aquando da criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, inexistente ainda o organismo da Universidade Federal do Pará. Aliás, convém lembrar que fora ainda na década de 1930 que o ensino superior de Geografia começou no Brasil, mais exatamente em São Paulo (1934) e no Rio de Janeiro (1936). A obra de Eidorfe Moreira, abrangendo diversas áreas do conhecimento, revelou-se como sólida expressão de um intelectual que esteve à frente do seu tempo e das condições acadêmicas institucionais na Belém de então. Ser, hoje, revisitada, manifesta o reconhecimento da contemporaneidade pelo trabalho exemplarmente construído por esse modelar homem de letras.

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Memรณria



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Uma tradução do clássico de DeBoer e Lathrap: “O fazer e o quebrar da cerâmica Shipibo-Conibo” A translation of DeBoer and Lathrap’s classic “The making and breaking of Shipibo-Conibo ceramics” Fernando Ozorio de AlmeidaI, Bruna RochaII I II

Universidade Federal de Sergipe. Laranjeiras, Sergipe, Brasil

Universidade Federal do Oeste do Pará. Santarém, Pará, Brasil

Resumo: DeBoer e Lathrap discutem a indústria cerâmica dos Shipibo-Conibo do leste peruano, documentando a passagem de objetos gerados pelo seu sistema comportamental atual até sua incorporação ao registro arqueológico. Descrevem a procura por matéria-prima, a manufatura das vasilhas e sua distribuição dentro das habitações, assim como as funções primárias e secundárias das vasilhas e os padrões de descarte da cerâmica. Embora a classificação cerâmica não seja o principal objetivo dos autores, o texto fornece informações úteis sobre a taxonomia dos Shipibo-Conibo (em especial quanto à sua função) e sobre as variações produzidas pelas diferentes oleiras. Ao focar nas variações de uso e na longevidade dos vasilhames, como nos processos que transformam objetos cerâmicos em artefatos arqueológicos, o artigo contribui para uma crescente literatura voltada a iluminar os processos de formação do registro arqueológico, que tem implicações sobre a formulação do planejamento de estratégias de amostragem na Arqueologia (texto introdutório de Carol Kramer para a versão publicada em 1979). Palavras-chave: Cerâmica Shipibo-Conibo. Processos de formação do registro arqueológico. Arqueologia comportamental. Abstract: DeBoer and Lathrap discuss the ceramic industry of the Shipibo-Conibo of eastern Peru, documenting the passage of objects from their context in a contemporary behavioral system to their incorporation into the archaeological record. They describe the procurement of raw materials, vessel manufacture, and distribution within households, the primary functions and the secondary uses of vessels, and the pattern of ceramic discard. While not primarily concerned with classification, the authors provide useful information about native taxonomy (particularly as it relates to vessel function), and about variations among potters. In focusing on variations in vessel use and longevity, and on the processes which transform ceramic objects into archaeological artifacts, the article contributes to a growing literature illuminating formation processes of the archaeological record, and has implications for the formulations of archaeological sampling design (introduction by Carol Kramer of the 1979 version). Keywords: Shipibo-Conibo ceramics. Formation processes of the archaeological record. Behavioral archaeology.

ALMEIDA, Fernando Ozorio de; ROCHA, Bruna. Uma tradução do clássico de DeBoer e Lathrap: “O fazer e o quebrar da cerâmica Shipibo-Conibo”. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 315-339, jan.-abr. 2016. DOI: http:// dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000100016. Autor para correspondência: Fernando Ozorio de Almeida. Universidade Federal de Sergipe. Departamento de Arqueologia. Campus de Laranjeiras. Praça Samuel de Oliveira, s/n. Laranjeiras, SE, Brasil, CEP 49100-000 (fernandozorio@hotmail.com). Recebido em 21/09/2015 Aprovado em 29/04/2016

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Uma tradução do clássico de DeBoer e Lathrap: “O fazer e o quebrar da cerâmica Shipibo-Conibo”

NOTA DOS TRADUTORES A necessidade de traduzir “The making and breaking of Shipibo-Conibo ceramics” ocorreu no momento em que os dois tradutores, professores novatos de disciplinas de análise cerâmica em cursos de Arqueologia, depararam-se com a falta de literatura especializada sobre o tema em língua portuguesa. A Arqueologia brasileira já produziu uma grande quantidade de estudos cerâmicos. A imensa maioria, entretanto, se resume a descrever e comparar elementos encontrados nos fragmentos arqueológicos. Pouco esforço foi feito no sentido de atravessar o imenso abismo entre o registro arqueológico e os processos de busca de matériaprima, produção, uso e descarte dos vasilhames – o contexto sistêmico da Arqueologia Comportamental. São esses os processos que DeBoer e Lathrap discutem neste artigo. “The making and breaking” é um clássico e, por isso, foi escolhido para ser traduzido, com o intuito de dar início ao esforço de preenchimento dessa lacuna literária. É um clássico porque possui utilidade múltipla e porque continua atual. O múltiplo advém da capacidade do artigo de subsidiar discussões sobre análise cerâmica, Etnoarqueologia, Arqueologia regional do alto Amazonas e desenvolvimento da Arqueologia Comportamental como uma escola teórica (Schiffer, 1987). É justamente em uma compilação de estudos buscando padrões de correlatos entre os comportamentos humanos e o registro arqueológico – “Ethnoarchaeology: implications of ethnology for archaeology”, editado por Carol Kramer (1979) – que se encontra a versão original deste artigo. E é de Kramer o parágrafo introdutório do capítulo de DeBoer e Lathrap.

Ainda durante os anos 1950, muito anterior ao surgimento da Arqueologia Comportamental e à difusão dos estudos etnoarqueológicos, Lathrap (1962, 1970a) integrava de maneira pioneira a visão das oleiras Shipibo e Conibo na interpretação das cerâmicas arqueológicas do alto Amazonas e demonstrava a complexa teia de possibilidades tecnológicas que os arqueólogos não levavam em conta nas suas análises. O texto “The making and breaking” é uma síntese dos estudos de Lathrap, em conjunto com um dos seus discípulos mais antigos e brilhantes: Warren DeBoer. Os trabalhos de Lathrap e DeBoer inauguram a Etnoarqueologia na floresta tropical, uma trilha seguida por muitos dos pesquisadores proeminentes na Arqueologia amazônica atual, como Eduardo Neves, no alto rio Negro; Michael Heckenberger, no alto Xingu; e, em especial, Fabíola Silva, que aplicou conceitos da Arqueologia Comportamental na compreensão da produção de artefatos cerâmicos dos grupos Asurini do Xingu. A atualidade do artigo se deve, portanto, à sua capacidade de continuar influenciando os arqueólogos através do tempo. O esforço dos tradutores objetiva dar continuidade a essa influência nas novas gerações: um lembrete para que não esqueçam das oleiras por trás dos vasilhames e que a Arqueologia é muito mais complexa do que parece. Agradecemos a Lavínia Fávero, pela revisão do português; a Eduardo Tamanaha e Erêndira Oliveira, pelo auxílio com as figuras; e aos Editores do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, pelo interesse na publicação.

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O fazer e o quebrar da cerâmica Shipibo-Conibo1 Warren R. DeBoer, Donald W. Lathrap

Texto traduzido para o português por Fernando Ozorio de Almeida e Bruna Rocha. Este artigo foi originalmente publicado em: KRAMER, C. (Ed.). Ethnoarchaeology: implications of ethnography for archaeology. New York: Columbia University Press, 1979. p. 102-138.

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O arqueólogo vive repelido pelo tempo. Nunca verá o comportamento cultural pretérito que busca compreender. Na ausência de uma máquina do tempo, a possibilidade de compreensão depende dos subprodutos gerados pelo comportamento cultural e da premissa de que existe uma padronização desses subprodutos, de maneira a permitir inferências sobre os comportamentos que os produziram. Entretanto, essa premissa pode ser reformulada como uma pergunta: qual é a natureza da relação entre o comportamento cultural e sua manifestação arqueológica? Uma questão que, talvez, não tenha recebido a devida atenção sistemática, merecida, dado seu status fundamental na Epistemologia Arqueológica (Ascher, 1961, 1962, 1968; Chang, 1967; David e Hennig, 1972; Schiffer, 1972, 1975). Na prática, muitas de nossas tentativas de compreender o passado são sabotadas pelos nossos ensaios de estabelecer comparações entre fenômenos dissimilares. Comparamos observações etnográficas do comportamento atual com observações arqueológicas dos vestígios remanescentes de comportamentos culturais pretéritos. Se nosso objetivo é a compreensão do comportamento cultural no passado, tal comparação supõe a existência de uma correspondência relativamente explícita entre um comportamento e sua resultante manifestação arqueológica. Se demonstrado que tal correspondência não se aplica à maioria dos casos, o arqueólogo se encontra em uma de duas situações peculiares. Ou se torna praticante de um uniformitarismo exagerado, no qual o comportamento do passado é “lido” a partir do nosso conhecimento sobre comportamentos do presente, ou deve renunciar à tentativa de compreender o comportamento como um todo e, em vez disso, engajar-se em uma espécie de “física artefatual”, na qual a forma e distribuição dos subprodutos comportamentais são medidas dentro de um vácuo comportamental. Esse é o tradicional dilema de escolher entre uma busca significativa baseada sobre um método falho e outra metodologicamente sólida, mas cujo objetivo é trivial. A importância de estudar o registro arqueológico de comunidades do presente é evidente quando consideramos esse dilema. Como tanto o comportamento quanto o seu registro arqueológico são observáveis, é possível especificar a relação entre ambos em vez de assumir que o nexo é de correspondência ou “fossilização”. Tal especificidade fornece a base para a comparação de unidades de origem similar: os registros arqueológicos do passado e do presente podem ser vistos como transformações dos respectivos sistemas comportamentais que os produziram. No presente artigo, apresentamos um esboço sintético e seletivo da indústria cerâmica dos índios Shipibo-Conibo da Amazônia peruana. Nosso objetivo é especificar algumas relações entre comportamentos e padrões formais e de distribuição manifestados em uma classe particular de subprodutos comportamentais. Para tanto, consideramos útil organizar nossas observações de acordo com o modelo geral que Schiffer (1972) desenvolveu para o fluxo de artefatos através de sistemas culturais. O modelo de Schiffer, encontrado em uma versão modificada na Figura 1, delineia a

Figura 1. Fluxograma que representa a passagem de artefatos por um sistema cultural. Nódulos numerados indicam pontos nos quais a armazenagem (deslocamento temporário) ou transporte (deslocamento espacial) podem ocorrer. Modificado a partir de Schiffer (1972).

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Uma tradução do clássico de DeBoer e Lathrap: “O fazer e o quebrar da cerâmica Shipibo-Conibo”

passagem dos artefatos do seu contexto em um sistema comportamental para seu contexto no registro arqueológico em termos de uma sequência de estágios: a busca por matéria-prima; a manufatura que transforma a matéria-prima em uma forma cultural; uso e reutilização do artefato; e, finalmente, o descarte que forma o refugo do registro arqueológico. No entanto, primeiro devemos apresentar de forma resumida os Shipibo-Conibo e sua cerâmica.

OS SHIPIBO-CONIBO E SUA CERÂMICA Os Shipibo-Conibo habitam a floresta tropical que flanqueia o rio Ucayali, um grande afluente do rio Amazonas, que corre para o norte ao longo do sopé dos Andes peruanos (Figura 2). Os Shipibo ocupam o Ucayali central, ao norte do rio Pachitea, e os Conibo, seus vizinhos cultural e linguisticamente próximos, são encontrados, em especial, no alto Ucayali, ao sul do Pachitea. Os assentamentos, em geral, podem ser encontrados nos terraços que margeiam a calha do Ucayali ou em barrancos de terra firme, na beira das várzeas, áreas que garantem o acesso a terras férteis para a agricultura e a fauna aquática ribeirinha, que é abundante nas planícies de inundação. Grandes afluentes do Ucayali, como os rios Pisqui e Tamaya, também são ocupados por eles. Os produtos básicos de sua subsistência incluem variedades de banana, mandioca, milho e peixe. O tamanho dos assentamentos varia muito. Cerca de mil Shipibo residem em San Francisco de Yarinacocha, uma vila localizada a apenas duas horas da cidade peruana de Pucallpa. Comunidades medianas, como a de Panaillo, com cerca de cem habitantes (Bergman, 1974, p. 26), ou Shahuaya, com uma população de 55 pessoas (Bodley, 1967, p. 12), são mais comuns. Comunidades pequenas, exemplificadas por Iparia e Sonochenea, no alto Ucayali, são compostas por duas ou três residências matrilocais, cada uma ocupada por uma irmã, seu marido e filhos. Unidades semelhantes, com poucas moradias habitadas por um núcleo de mulheres relacionadas e suas famílias, também ocorrem nos assentamentos maiores. A população total dos Shipibo-Conibo é estimada em quinze mil pessoas (Faust, 1973). Os Shipibo-Conibo produzem uma cerâmica estilisticamente distinta, que remete aos antecedentes arqueológicos. Características numerosas e específicas relacionam esse estilo à cerâmica da tradição Cumancaua, bem estabelecia no Ucayali ao fim do primeiro milênio da era cristã (Lathrap, 1970a; Raymond et al., 1975). Apesar da crescente disponibilidade de recipientes de metal e de plástico, além de um mercado turístico em expansão que busca o artesanato indígena, a tradição cerâmica permanece significativamente intacta. A maioria das mulheres Shipibo-Conibo é oleira, e a maior parte da cerâmica é produzida para ser utilizada na habitação da artesã. A oleira Shipibo-Conibo distingue duas classes básicas de artefatos cerâmicos: vasilhames para cocção, ou melhor, para serem levados ao fogo, e aqueles que não entrarão em contato com o fogo (Figura 3). Os vasilhames para cocção incluem duas formas distintas: as panelas2, ou recipientes para cozinhar (kënti)3, e os sem fundo (mapú ëite), que são utilizados como um forno para a queima de cerâmica pintada. As panelas aparecem em três tamanhos, cada uma designada a um propósito distinto. Panelas grandes (kënti ani) são utilizadas com mais frequência para a fermentação4

DeBoer e Lathrap fazem um uso mesclado dos nomes dos vasilhames, utilizando termos em Pano (mapu ëite, shrania; vide nota de rodapé 17), em inglês (beer mugs e food bowls) e em espanhol (ollas). Na tradução, optou-se por manter os nomes nativos e traduzir os termos em inglês e espanhol para genéricos similares em português (vide as formas na Figura 3) (nota dos tradutores, doravante NT). 3 Aqui e na discussão que se segue, os termos utilizados pelos Shipibo-Conibo serão apresentados entre parênteses. Optou-se por utilizar o termo traduzido ao longo do texto e nas figuras por uma questão didática, ainda que, nem sempre, a tradução seja o equivalente preciso do significado Shipibo-Conibo. 4 Os autores usam o termo “beer”, cuja tradução literal seria “cerveja”. Na tradução, optou-se por utilizar o termo mais neutro, “fermentados”. Nas línguas Pano, o termo para as bebidas fermentadas é masato (ou mashato). Na Amazônia ocidental, utiliza-se muito o termo “chicha”. No restante da Amazônia, o termo mais comum é “caxiri” (NT). 2

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de bebidas alcoólicas, que são consumidas em grandes quantidades. As de tamanho mediano (kënti anitama) são o vasilhame padrão para a cocção das refeições diárias, que, em geral, consistem em peixe cozido e banana ou mandioca. As pequenas (këmti vacu) são destinadas a esquentar medicamentos contra artrite e outras doenças.

Figura 2. A bacia do alto e médio Ucayali com a localização dos sítios arqueológicos da Tradição Cumancaya, dos assentamentos modernos dos Shipibo-Conibo discutidos no texto, e das fontes de determinadas matérias-primas para a produção cerâmica (adaptado do original por Eduardo Tamanaha).

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Uma tradução do clássico de DeBoer e Lathrap: “O fazer e o quebrar da cerâmica Shipibo-Conibo”

X XX

X

X

XX

X

Tamanho

Grande

Médio

Pequeno

Interior

Resina Texturização Engobo Branco Engobo Vermelho Resina Resina Copal Pintura/Natural Esfumarado

Exterior

X

X

X

Jarro

X

X

O O

Shrania

X

X X XX

X

X

X

X X XX

X

O O O

X

P, M

M, G

X

O

O

X

O

X

X

X X

P

X

X

X

X X X XX

Tratamentos de Superfície

Borda

Colarinho no pescoço

Pescoço

Caraipé Plano Côncavo Chocalho Nenhum

Preta Branca Vermalha Caco Moído

Corpo

X

X X XX

Tigela de comida

Não serve para cocção

X XX

Base

Caneco para Fermentados

Mapu ëite

Cocção Panela Inferior Superior

Forma do Vaso

Argila Tempero Extremo da Base

X X

X

X

X

X

X

O

X X

X B

X X

X B X

X

X

X B

O O W

O O

O O

X

W

O O

O O

X

W

O O

O O

Figura 3. Classificação paradigmática do estilo cerâmico Shipibo-Conibo, modificada a partir de Lathrap (1970b). Legenda: X = elementos mais presentes; O = opções frequentemente utilizadas; P = vasilhames pequenos; M = vasilhames médios; G = vasilhames grandes; W = sobre engobo branco; B = opção na base.

Os vasilhames que não são destinados à cocção podem ter quatro formas: jarros (chomo), canecos de fermentado (këmpo), tigelas de comida (këncha) ou uma forma denominada shrania. Os jarros são trimodais em tamanho. Os grandes são o recipiente no qual se costuma servir fermentados durante as frequentes fiestas. São utilizados da mesma maneira que nossa concha para ponche. Os de tamanho médio são, primeiramente, receptores para carregar e armazenar água. Os pequenos servem de cantil para carregar bebidas em viagens fluviais. Assim como as panelas e jarros, os canecos de fermentado podem ter três tamanhos: o caneco grande “comunal”, utilizado durante as fiestas, quando é passado entre as pessoas; a cuia mediana, utilizada no consumo diário dos fermentados; e a cuia pequena, levada em viagens, invertida, com frequência, sobre um jarro pequeno. A terceira categoria de vasilhames que não servem para a cocção são as tigelas de comida. Durante as refeições, o alimento é servido nessas tigelas, e as pessoas, com as mãos, se servem desse recipiente comum. Em geral, homens adultos comem em uma tigela. Mulheres e crianças sentam em separado e comem em outra.

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A última categoria de vasilhame é a shrania, que, embora hoje rara, possui uma variedade de usos tradicionais, incluindo seu emprego como recipiente de serviço, ao transferir os fermentados de jarros grandes para canecos5.

BUSCA POR MATÉRIA-PRIMA Ao produzir sua cerâmica distinta, a oleira Shipibo-Conibo explora uma variedade de matérias-primas distribuídas ao longo de centenas de quilômetros do Ucayali (Lathrap, 1973; DeBoer, 1975; Myers, 1976). A Tabela 1 lista as fontes das matérias-primas reunidas por uma série de oleiras em sete assentamentos. A localização de muitas dessas fontes se encontra plotada na Figura 2. As argilas aluviais utilizadas para a manufatura cerâmica são, em geral, obtidas localmente – em um raio de alguns quilômetros do vilarejo da oleira. Na fonte, grandes partículas vegetais e inclusões de pedras são retiradas da argila com as mãos. O material é, então, embalado em amontoados do tamanho de bolas de vôlei. O barro é transportado de volta para a vila e armazenado dessa forma. A maioria das oleiras faz a distinção entre três tipos de argila, e cada uma delas possui um uso específico para a manufatura cerâmica: a argila preta (huiso mapú), rica em matéria orgânica; a branca, de caulim (oso mapú); e a vermelha (oshin mapú). Tabela 1. Fontes de matéria-prima utilizadas por diversas oleiras Shipibo-Conibo. Legenda: * = Informação fornecida por Roberta Campo. (Continua) Argila

Pigmento

Resina

Localidade

5

Yomosho

Branco

Vermelho

Preto

Branco

Vermelho

Preto

San Francisco Oleira 1

Cashibo-caño (1)

Cashibocaño (1)

Yarinacocha (1)

Henepanshea (280)

Utoquinea (10)

Alto Pisqui (280)

Imaríaco- Imaríacocha (125) cha (125)

Aguaitía (65)

888

San Francisco Oleiras 2-3

Cashibo-caño (1)

Cashibocaño (1)

Yarinacocha (1)

Cashahuaya (240)

Utoquinea (10)

Tamaya (100)

Imaríaco- Imaríacocha (125) cha (125)

Aguaitía (65)

668

San Francisco Oleiras 4-5

Cashibo-caño (1)

Cashibocaño (1)

Yarinacocha (1)

Cashahuaya (240)

Utoquinea (10)

Tamaya (100)

Imaríaco- Imaríacocha (125) cha (125)

Aguaitía (65)

668

San Francisco Oleira 6

Cashibo-caño (1)

Cashibocaño (1)

Yarinacocha (1)

Cashahuaya (240)

Contamana (180)

Tamaya (100)

Imaríaco- Imaríacocha (125) cha (125)

?

773+

San Francisco Oleira 8

Cashibo-caño (1)

Cashibocaño (1)

Yarinacocha (1)

Henepanshea (280)

?

Alto Pisqui (280)

Imaríaco- Imaríacocha (125) cha (125)

Aguaitía (65)

878+

San Francisco Oleira 10

Cashibo-caño (1)

Cashibocaño (1)

Tamaya (100)

Henepanshea (280)

Henepanshea (280)

Alto Pisqui (280)

Tahuanía (360)

1302+

?

Sëmpa

Seixo de Polir

Distância cumulativa para todos os materiais (Km)

?

Outras formas cerâmicas, não representadas no nosso censo cerâmico de 1971, foram importantes outrora. Podem-se incluir nessa categoria as tigelas (canecos de fermentado) fálicas e zoomórficas, criadas para serem suspensas por um aparato semelhante a uma vara de pescar, com a finalidade de retirar fermentados de vasilhames grandes (Tessmann, 1928, tabela 58). Essas tigelas individuais eram utilizadas em situações de fiestas por crianças com menos de 12 anos e pelos idosos. A lógica dos Shipibo-Conibo para juntar essas gerações alternadas é de que os mais novos e os mais velhos poderiam babar nas tigelas comunais utilizadas pelo resto da comunidade.

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Uma tradução do clássico de DeBoer e Lathrap: “O fazer e o quebrar da cerâmica Shipibo-Conibo”

Tabela 1.

(Conclusão) Argila

Pigmento

Resina

Localidade

Seixo de Polir

Distância cumulativa para todos os materiais (Km)

Branco

Vermelho

Preto

Branco

Vermelho

Preto

Yomosho

Sëmpa

San Francisco Oleira 11

?

?

?

Cashahuaya (240)

Alto Pisqui (280)

Alto Pisqui (280)

?

?

?

/

San Francisco Oleira 12

?

Cashibocaño (1)

Yarinacocha (1)

Cashahuaya (240)

Utoquinea (10)

?

?

?

?

/

San Francisco Oleira 13

?

?

Pacacha (180)

Cashahuaya (240)

?

?

?

?

?

/

San Francisco Oleira 14

?

?

Pacacha (180)

Cashahuaya (240)

Contamana (180)

Alto Pisqui (280)

Imaríacocha (125)

?

?

/

San Francisco Oleira 15

Cashibo-caño (1)

Cashibocaño (1)

Yarinacocha (1)

?

?

?

Imaríacocha (125)

?

?

/

San Francisco Oleira 16

Sharara (10)

Não utilizada

Pacacha (30)

Henepanshea (70)

Henepanshea (70)

Urubamba (260+)

Alto Iparia (10)

Alto Iparia (10)

Tahuanía (150)

610+

Sonochenea Oleira 17

Haticha (5)

Haticha (5)

Não utilizada

Henepanshea (85)

Henepanshea (85)

Tahua-nía (5)

Haticha (5)

Haticha (5)

Tahuanía (5)

200

Shahuaya Oleira 18

Cumaria (25)

Arruya (5)

Arruya (5)

Henepanshea (15)

Henepanshea (15)

Tahuanía (175+)

Aruya (5)

Aruya (5)

Tahuanía (65)

315+

Panailo Oleira 19

Callaria (5)

Callaria (5)

Callaria (5)

Cashahuaya (200)

Contamana (140)

Tamaya (140)

Imaríaco- Imaríacocha (165) cha (165)

Tahuanía (400)

1225+

Panailo Oleira 20

Callaria (5)

Callaria (5)

Callaria (5)

Cashahuaya (200)

Contamana (140)

Alto Pisqui (240)

Imaríaco- Imaríacocha (165) cha (165)

Aguaitía (25)

950

Panailo Oleira 21

Cashibo-caño (40)

Cashibocaño (40)

Callaria (5)

Cashahuaya (200)

Alto Pisqui (240)

Alto Pisqui (240)

Imaríaco- Imaríaco- Cushabacha (165) cha (165) tay (170)

1265+

Panailo Oleira 22

Não utilizado

Não utilizado

Callaria (5)

Cashahuaya (200)

Alto Pisqui (240)

Alto Pisqui (240)

Cushabatay (170)

?

Cushabatay (170)

1025+

Panailo Oleira 23

Cashibo-caño (40)

Cashibocaño (40)

Callaria (5)

Cashahuaya (200)

Alto Pisqui (240)

Alto Pisqui (240)

?

?

Aguaitía (25)

790+

Charashmaná *

apenas uma argila utilizada, obtida localmente (1)

Cashahuaya ? (180)

Alto Pisqui (100)

Alto Pisqui (100)

?

Alto Pisqui (100)

?

/

Paucocha (Spahni 1966)

?

?

?

Cashahuaya (145)

Contamana (85)

Alto Pisqui (165)

?

?

?

/

Distância média até o material (Km)

10

8

31

201

129

195+

111

103

125

826+

Nota: os números dentro dos parênteses representam a distância em quilômetros, geralmente pelos rios, entre a fonte de matéria prima e a aldeia da oleira.

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Além dessas três argilas básicas, as oleiras Shipibo-Conibo empregam dois principais materiais como tempero (não listados na Tabela 1). Um deles é a casca silicosa de certas árvores, torrada e moída (Licania spp.), denominada mui pelos Shipibo-Conibo e, com frequência, conhecida como caraipé (Carneiro, 1974). As árvores de caraipé, apesar de distribuídas esporadicamente, em geral encontram-se a meio dia de viagem do assentamento da oleira. Tendem a ocorrer em terra firme, longe dos rios. Tiras da casca são trazidas de volta à vila em uma cesta. A casca pode ser armazenada sem ser modificada ou ser processada imediatamente para o uso. O processo envolve torrá-la e pulverizá-la torrada com um pilão, para então peneirá-la com um tecido de trama solta. O tempero resultante costuma ser armazenado em um vasilhame antigo até que haja necessidade dele. O segundo tempero principal é feito de cacos moídos (këng-këshr). O tempero de caco moído consiste na reciclagem de cerâmica moderna quebrada ou, quando disponível, de cerâmica arqueológica. Há uma preferência pela última – a cerâmica antiga é tida como mais macia e mais fácil de ser pulverizada –, e a presença de uma lixeira arqueológica é um dos fatores que influenciam a localização de um assentamento. Os assentamentos modernos de San Francisco de Yarinacocha, Iparia e Shahuaya encontram-se todos sobre depósitos arqueológicos com fragmentos. O tempero de caco moído é produzido em três etapas: os fragmentos cerâmicos são quebrados em pequenos pedaços com um percutor (que é um item importado); os fragmentos pulverizados são moídos em um almofariz feito a partir de um tronco com uma depressão, em geral a partir da madeira da capiruna (Calycophyllum spruceanum) e um pilão de pedra; o tempero granular resultante pode ser peneirado através de um tecido com trama solta. Assim como o caraipé, o caco moído costuma ser armazenado em um pote antigo. Uma terceira variedade de tempero, de menor importância e uso mais recente, consiste nas cinzas de madeira da árvore shana. O Shana poto, como é chamado, é considerado um substituto inferior do caraipé e utilizado primariamente na confecção de vasilhames para turistas. Em contraste com as argilas e temperos, que são utilizados em grandes quantidades e costumam ser obtidos localmente, outros componentes cerâmicos são, em geral, obtidos a partir de grandes distâncias. Três principais pigmentos minerais fornecem os engobos e as pinturas utilizadas na decoração cerâmica: um pigmento branco de caulim (maosh); um ocre, cuja queima o deixa vermelho (mashinti); e um pigmento negro de manganês (itanhuana). Desses, o pigmento branco é o mais limitado em sua distribuição, encontrado apenas nas proximidades de Canshauaya, no baixo Ucayali, e em Henespanshea, um tributário oriental do alto Ucayali (Figura 2)6. O depósito de Canshahuaya pode ser descrito como uma lente de argila branca intercalada entre camadas de argila bruno-avermelhada (Guizado e Girard, 1966, p. 268). Em anos recentes, de acordo com Spahni (1966, p. 101), os depósitos de maosh estão situados em fazendas, e um homem Shipibo ou Conibo pode trocar dois dias de trabalho por três bolas de pigmento. O pigmento vermelho é menos restrito em sua distribuição e possui duas variedades: uma variante amarelada limonítica (kana mashinti ), encontrada em Contamana, Utoquinea e Henepanshea; e uma variante de cor avermelhada (shahuán mashinti), cuja maior fonte está localizada em Urubamba. Diferente dos pigmentos branco e vermelho encontrados em depósitos de argila, o itanhuana ocorre em pequenos conglomerados expostos em sedimento submerso ou úmido nas margens de rios tributários. É necessário armazená-lo em água ou embrulhá-lo em um pano umedecido para que não perca rapidamente suas propriedades pigmentares. Um pigmento branco de classe inferior, não representado na amostra cerâmica discutida neste trabalho, ocorre, supostamente, em Imariacocha (Lathrap, 1973, p. 172).

6

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Uma tradução do clássico de DeBoer e Lathrap: “O fazer e o quebrar da cerâmica Shipibo-Conibo”

Outras matérias-primas também são necessárias para a manufatura de cerâmica. Duas variedades de resina costumam ser importadas: yomosho (Protium spp.), que confere um aspecto esmaltado a superfícies com engobo branco, e sënpa (Hymenaea courbaril), que impermeabiliza o interior de vasilhames feitos para conter líquidos. Rochas são raras no Ucayali, e seixos de rio (rëncati), geralmente de cor escura, utilizados para polir a cerâmica, são bens de valor. Tais seixos têm ocorrência limitada: as praias do Aguaitía e Tahuanía são as principais fontes, segundo nossos informantes Shipibo-Conibo. A aquisição de matérias-primas mais exóticas, utilizadas na produção cerâmica, é possibilitada pela ocupação Shipibo-Conibo na calha do Ucayali, uma “estrada” que facilita o transporte de longa distância. Tanto os Shipibo quanto os Conibo são grandes viajantes, e é comum observá-los no Ucayali navegando em suas tradicionais canoas ou em barcos a motor modernos. Durante nossa estada em agosto de 1971, por exemplo, nossos anfitriões Shipibo, em San Francisco de Yarinacocha, eram visitados com frequência por amigos e parentes de localidades próximas, como do rio Utoquinea, ou de distâncias consideravelmente maiores, como dos rios Pisqui, Tamaya e Shahuaya. As oleiras de San Francisco não raro visitavam parentes em Imaríacocha, no rio Tamaya, em parte para obter resinas. Uma rede de trocas informal como essa é suficiente, por si só, para a circulação de grande parte das matérias-primas utilizada na manufatura cerâmica. Além disso, é comum os homens viajarem grandes distâncias para operações de corte de madeira durante o período chuvoso, de novembro a abril. Materiais para a produção cerâmica são, muitas vezes, obtidos durante esse emprego sazonal. Portanto, apesar de a cerâmica elaborada que incorpora ingredientes amplamente dispersos nem sempre resultar da ocupação da calha principal do Ucayali pelos Shipibo-Conibo, o processo torna-se possível graças a essa ocupação, e enfatiza o fato de que as várzeas, além de ideais para a pesca e agricultura, conferem acessibilidade a uma extensa zona de recursos, flanqueando o Ucayali e seus principais afluentes.

MANUFATURA Um estudo detalhado da manufatura cerâmica dos Shipibo-Conibo requer um tratamento detalhado em monografia. Aqui, podem-se apresentar apenas algumas observações. A cerâmica pode ser feita na casa da oleira ou em uma oficina construída para atender a essa função. Os meses secos, de maio a outubro, são os preferidos para a manufatura cerâmica, embora o processo possa ocorrer ao longo do ano. São dois os principais fatores que contribuem para essa sazonalidade: a submersão dos depósitos de argila e a menor quantidade de dias ensolarados adequados para a secagem da cerâmica durante o período das cheias. A relação entre os volumes de argila e o tempero varia, de forma consistente, entre dois e três. Entretanto, as maneiras que diferentes argilas e temperos são misturados dependem do tipo de vasilhame a ser feito. Recipientes não destinados à cocção – incluindo jarros, canecos de fermentado ou tigelas de comida e shrania – são preferencialmente feitos a partir da mistura de partes iguais de argilas branca e vermelha, temperadas com duas porções de caco moído para uma de caraipé. Vasilhames para cocção são produzidos segundo uma receita mais complicada. Nas panelas, a argila escura temperada com duas porções de caraipé para uma de caco moído costuma ser utilizada para a base e o bojo do vasilhame, e o pescoço do vasilhame é, em geral, feito com argila vermelha temperada com proporções inversas de caraipé e caco moído. Essas regras ou receitas ideais para combinar argilas e temperos, no entanto, nem sempre são cumpridas e, em alguns casos, não são guias confiáveis do comportamento efetivo das oleiras.

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As oleiras de Charashmaná do rio Pisqui, por exemplo, usam somente uma argila, e apenas duas argilas são utilizadas em Sonoshenea e Iparia (Tabela 1 e Figura 4). Em San Francisco, misturas entre argila e tempero variam de oleira para oleira e de ocasião para ocasião. A composição da argila para vasilhames não destinados à cocção é especialmente variável. Conforme demonstrado na Figura 4, apenas seis de 24 instâncias observadas se conformam ao ideal expresso de partes iguais de argilas vermelhas e brancas; oito casos representam simplificações dessa fórmula e consistem apenas de argila vermelha ou branca; em sete casos, a argila negra é substituída por argila vermelha ou branca, e em três casos observamos a argila negra ser adicionada a ambas as argilas vermelha e branca. Mesmo que simplificações e substituições possam refletir a indisponibilidade dos materiais prescritos no momento da manufatura, não viciando, assim, a “regra”, é difícil fazer tal inferência com base só na cerâmica. Para fins arqueológicos, a composição da argila seria mais bem considerada como um conjunto variado, contendo diferentes misturas de argila vermelha, branca e preta. Por outro lado, regras para a composição da argila e tempero em recipientes destinados à cocção são traduzidas de forma mais consistente em comportamentos realizados.

Figura 4. Composição da argila e do tempero nos vasilhames cerâmicos feitos por uma série de oleiras Shipibo-Conibo.

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Uma tradução do clássico de DeBoer e Lathrap: “O fazer e o quebrar da cerâmica Shipibo-Conibo”

A construção ocorre por meio da sobreposição de roletes. A junção dos roletes, o ato de dar forma ao vasilhame em construção e o alisamento da superfície são efetuados com a utilização de raspadores com formato oval (shapa), obtidos a partir de cascas de cabaça, cortadas com facão, cujas bordas são polidas com um osso do peixe paiche (Arapaima gigas), que executa uma ação raspadora7. O processo de construção é, evidentemente, um comportamento direcionado a um objetivo que culmina na construção de um vasilhame em particular. A visão da oleira desse processo é a de uma sequência de escolhas, resumida no diagrama na Figura 3: a escolha das formas do fundo (poinke), da base (chipón), do bojo (poro), do pescoço (tëshro) e da borda (a kësha, borda não modificada, versus a këshpa, borda extrovertida). O tratamento de superfície e a decoração variam de acordo com a forma do vasilhame. A decoração de recipientes para cozinhar é restrita a técnicas de manipulação da superfície, tais como a incisão (shëpamán aça), o ponteado (chacha) e os digitados (mëquëmán mëia); superfícies internas podem ser esfumaradas8 após a queima9. Vasilhames não destinados à cocção são pintados. O pescoço exterior e os segmentos do bojo dos jarros e dos shrania são, em geral, pintados com vermelho e preto sobre um engobo branco; as faces internas costumam ser revestidas com resina sënpa após a queima. Canecos de fermentado são tratados de maneira similar. A face exterior das tigelas de comida é, em geral, pintada de branco sobre um engobo vermelho; seus interiores podem ser esfumarados ou pintados sobre uma superfície de cor ocre natural. Tigelas de comida com o interior esfumarado são utilizadas para ensopados, sopas e outras comidas “molhadas”, e as com a face interna simples ou pintadas são utilizadas para peixe assado, banana-da-terra e outros alimentos “secos”. Por vezes, uma tigela de comida pode receber engobo branco e ter a mesma forma que o caneco de fermentado (uma variante denominada, com propriedade, kënpo këncha, caneco de fermentado para comida). Nesse caso, a face interna – pintada ou esfumarada, sem resina, nunca encontrada nesses canecos – permanece como característica definidora10. A cerâmica é queimada de diversas maneiras. As tigelas de comida, os canecos de fermentado, as shrania e os jarros pequenos são queimados individualmente em uma mapu ëite. O vasilhame não queimado é colocado emborcado dentro da mapú ëite e coberto com cinzas de madeira (chimapú). Hoje, a mapu ëite, em geral sustentada por uma grelha de metal, é colocada sobre o fogo. Panelas pequenas e médias são comumente queimadas em uma estrutura especial, que consiste em dois galhos grosso paralelos, entre os quais a panela ou as panelas são colocadas e cobertas por uma pirâmide de combustível de casca de árvore (otukuru) ou cana (tohua), disposta sobre cada um dos vasilhames. Grandes panelas ou jarros são sempre queimados individualmente. O vasilhame, emborcado e sustentado por um trípode de potes velhos, latas de metal ou tijolos, costuma ser aquecido por um fogo baixo feito em uma cova rasa

Conchas e fragmentos que sofreram abrasão nas quebras, usados como raspadores de cerâmica, também são relatados (Farabee, 1915, p. 94; Greg Roberts, comunicação pessoal). 8 Tratamento também conhecido como enegrecimento ou brunidura (NT). 9 Em tempos antigos, quando as cerimônias de puberdade feminina ainda eram muito comuns, a grande panela utilizada para cozinhar o porco servido na cerimônia era pintada. Em geral, as panelas nunca são pintadas, e essa prática pode ser razoavelmente entendida como uma inversão sagrada da tradicional gramática decorativa. 10 Superfícies com resina foram notadas na cerâmica arqueológica da tradição Cumancaya (DeBoer, 1972, p. 36; Roe, 1973, p. 99), mas, em geral, não se preservam. Os pigmentos possuem maior visibilidade arqueológica. Vasilhames com engobo, pintura vermelha e bolotas de argila com retiradas [para barbotina, NT] costumam ocorrer em montículos de sítios arqueológicos no Ucayali (Roe, 1973, p. 96). Um pigmento preto com aparência de itanhuana também foi recuperado (DeBoer, 1972, p. 18-19). O pigmento branco maösh, utilizado pelos Shipibo-Conibo, desaparece com mais facilidade, e sua representação arqueológica é, indubitavelmente, muito deflacionada em relação à sua frequência de uso (Myers, 1970, p. 80-81). 7

326


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 315-339, jan.-abr. 2016

e pequena. Após esta queima preparatória, a queima final envolve cobrir o vasilhame com uma pirâmide de pedaços de casca de árvore ou de tiras de cana, sendo esses os combustíveis preferidos. Resinas são aplicadas imediatamente após a queima. Enquanto o vasilhame ainda está quente o suficiente para derreter resinas, é realizado o revestimento da superfície apropriada, com a aplicação de uma bola de yomosho ou sëmpa, afixada à extremidade de um cabo de costela de peixe-boi, porco-do-mato ou vaca. A cerâmica é, em geral, queimada em uma fogueira especial perto da casa da oleira ou da oficina, mas às vezes o mapú ëite pode ser utilizado sobre uma fogueira comum de cozinha. Diversas concentrações de cinzas podem ser avistadas no entorno de uma habitação Shipibo-Conibo, cada uma delas representando um episódio ou um conjunto de episódios de queima. O tempo investido na manufatura varia de acordo com a oleira e com a forma do vasilhame. A Tabela 2 apresenta o tempo investido por uma oleira na produção de cinco vasilhames. O processo foi observado do começo ao fim. O tempo de secagem não foi incluído. Conforme esperado, quanto maior a superfície do vasilhame, maior o tempo despendido na construção dos roletes, na raspagem, no polimento e na pintura. A Tabela 2 também aponta para o fato de que vários vasilhames costumam ser feitos em um só momento. Apesar de a manufatura cerâmica ser primeiramente uma empreitada individual, às vezes ocorre de duas ou três mulheres de uma mesma habitação cooperarem em determinadas fases do processo. Elas podem se alternar no polimento ou até na decoração e trabalhar juntas na queima de um jarro grande ou panela. Tabela 2. Tempo investido da produção de uma série de vasilhames cerâmicos. Legenda: * Não inclui o tempo de amassamento. Início

Fim

Tempo total transcorrido

Forma do Vasilhame

Data

Hora

Data

Hora

Dias

Horas

Minutos

A. Shrania

3/9

9:02

10/9

16:16

7

7

14

B. Tigela de comida

8/9

15:50

13/9

16:50

5

1

0

C. Panela média

9/9

14:06

13/9

12:24

3

22

18

D. Panela pequena

6/9

14:45

13/9

15:20

7

0

35

A

B

C

D

E

Amassamento

(14)

/

/

/

/

Enrolando os roletes

18

4

9

5

50

Sobreposição de roletes

10

3

14

7

25

E. Jarro Grande

Raspagem

159

45

82

56

230

Aplique de engobo

8

5

0

0

16

Polimento

24

20

14

12

50

Decoração

110

45

16

7

260

Primeira Queima

189

120

73

73

224

Queima

69

35

35

35

30

Aplique de resina

5

0

0

0

10

Total (minutos)

592*

277

243

195

895

327


Uma tradução do clássico de DeBoer e Lathrap: “O fazer e o quebrar da cerâmica Shipibo-Conibo”

USO A maioria dos vasilhames é utilizada nas moradias onde foram fabricados. Exceções notáveis são as cerâmicas feitas para serem vendidas11. Em um censo sobre a cerâmica realizado com 18 moradias em 1971, essa categoria abrangeu 34 de um total de 320 vasilhames (Tabela 3). O maior mercado da cerâmica Shipibo-Conibo provém dos turistas12. Também há demanda por jarros pequenos e médios em casas não indígenas locais, onde são utilizados para armazenar água. Dos 286 recipientes listados na Tabela 3, utilizados pelos próprios Shipibo-Conibo, apenas três foram importados, e nove foram feitos em diferentes moradias dentro da comunidade. Entre esse último conjunto, três eram jarros grandes emprestados para uma residência anfitriã de uma fiesta, que precisava de mais recipientes para armazenar fermentados. Quatro eram denominados pasqua këncha, uma variedade especial de tigela para comida utilizada em uma fiesta durante o feriado de Páscoa. Feitas pelas mulheres da casa anfitriã, essas tigelas são presenteadas às mulheres de outras casas que ajudaram na preparação dos alimentos e dos fermentados consumidos durante a fiesta. Quando não estão em uso, os vasilhames são, em geral, guardados em prateleiras suspensas por caibros de madeira ou em estruturas especiais fora de casa. Vasilhas pesadas, como os recipientes grandes e panelas, costumam ficar no piso de chão batido da cozinha – uma estrutura externa à casa – ou sob o chão elevado das casas. O censo tabulado na Tabela 3 não sugere nenhuma correlação entre o tamanho ou a composição de uma residência e o número de vasilhames cerâmicos. Um fator que, provavelmente, ofusca qualquer tipo de correlação é a substituição diferenciada de vasilhames cerâmicos por panelas de alumínio e tigelas esmaltadas. Recipientes de metal são hoje encontrados em quase todas as casas. No entanto, não temos informações sobre sua presença numérica. Um segundo fator é que a frequência dos vasilhames cerâmicos não é diretamente influenciada pelas necessidades imediatas da casa. No vilarejo Conibo de Iparia, por exemplo, pelo menos metade dos recipientes inteiros estava guardada nas prateleiras para substituições futuras ou como vasilhas destinadas às “ocasiões especiais”, com disponibilidade imediata para servir visitas. A etiqueta tradicional exige que cada casa possua um ou mais canecos de fermentados novos. Quando um visitante chega pela primeira vez em uma casa, lhe é servida a bebida fermentada em um desses objetos. Seria uma ofensa para a visita, e um reflexo da competência da anfitriã, se o caneco não tiver aspecto de recém-fabricado. Outros fatores também se aplicam a casos individuais. Oleiras hábeis produzem mais cerâmicas do que as menos talentosas. A produção de mulheres em fase de amamentação tende a ser menor do que a de oleiras sem prole ou com filhos mais velhos, que demandam menos atenção. A quantidade de vasilhas encontrada em diferentes residências reflete, portanto, uma série de variáveis, além do número de ocupantes13.

Em muitas comunidades, esse panorama sofreu uma dramática transformação nas últimas décadas do século XX, quando começou a haver uma demanda internacional pela cerâmica Shipibo-Conibo. Em muitos casos, objetivando o aumento da produtividade, foram estabelecidas linhas de produção dos vasilhames, alterando drasticamente uma tradição milenar de modos de fazer cerâmica (NT). 12 Foi apontado por Lathrap (1970c) que a cerâmica produzida pelos Shipibo para o turismo é facilmente distinguível da produzida para uso próprio. 13 Na cultura tradicional dos Shipibo-Conibo, a maior instituição que afetava as frequências cerâmicas era a cerimônia de puberdade das meninas. Ainda por volta de 1955, até cerca de metade da produção e quebra de cerâmica era diretamente associada a essa cerimônia e ao entretenimento necessário de parentes e amigos distantes. Toda a cerâmica utilizada nesses eventos precisava ser nova. O número de vasilhas em habitações de famílias anfitriãs logo antes das cerimônias poderia ser dez ou vinte vezes maior do que o montante presente em geral. A maior parte dos canecos de fermentado e das tigelas de comida costumava ser quebrada nos três dias de fiesta, em especial nas brigas etílicas culminantes em uma fiesta bem sucedida. Essa cerâmica era quebrada no mesmo espírito que taças de champanhe eram destruídas pelos ingleses em ocasiões especiais. Em 1971, no período em que as observações nas quais este trabalho se baseia foram realizadas, a cerimônia de puberdade representava, em grande parte, uma cultura memorial. 11

328


Total

Adultos

329 2 -

3 -

6

3

-

1

1

1

2

3

Junio

Iparia

2

1

3

2

3

6

-

Puerto

-

-

1

1

-

Tamaya

4

1

-

2

5

1

1

1

6

4

-

-

1

1

Boca

9

-

-

-

-

-

Casa 15

San Francisco

Casa 14

-

-

2

5

2

3

8

Casa 13

San Francisco

2

4

2

1

4

6

-

San Francisco

-

-

Casa 12

1

1

-

2 1

2

1

3

Casa 10-11

San Francisco

2

3

2

4

3

7

San Francisco

4

-

1

Casa 9

4 1

-

-

-

-

-

-

-

1

-

1

-

2

-

2

1

-

2

2

-

1

-

2

-

-

-

-

1

2

6

-

1

Casa 8

1

2

-

2

San Francisco

2

-

Médias

1

2

1

2

Peq.

2

4

San Francisco

Casa 7

-

-

1

1 3

3

3

6

Casa 3

San Francisco

1

1

2

1

5

1

7

4

Crianças

San Francisco

2

Oleiras 1

6

Grandes

Casa 1

San Francisco

-

-

-

-

-

-

-

-

-

2

-

2

-

1

1

-

-

3

1

5

-

2

2

2

-

2

-

4

-

1

-

1

1

1

-

-

-

3

-

-

2

-

-

-

-

-

-

2

-

1

-

2

-

1

-

1

-

1

-

1

Jarros

-

-

-

-

-

-

-

1

-

1 -

-

1

-

1

-

1

-

-

-

1

3

-

2

-

2

-

2

1

2

1

1

1

2

-

1

-

1

1

-

-

1

-

-

-

-

-

Regul. e Peq.

Grandes

3

-

2

-

6

-

4

-

4

1

3

-

4

2

6

-

4

-

2

1

2

-

12

-

-

7

-

2

-

-

-

1

1

-

-

2

-

1

Tigelas de Comida Regula

Canecos Fermentados Brinquedo

Panelas

-

-

-

-

-

1

-

1

-

3

-

2

-

-

-

-

-

1

Outros Mapú ëite

Número de habitantes Scrania -

-

-

2

1

2

1

10

-

3

4

1

3

18

8

8

9

17

23

12

23

10

15

16

9

5

-

-

1

15

-

1

9

-

2

-

-

-

(Continua)

Totais

Tabela 3. Censo cerâmico de diversas casas Shipibo-Conibo.

Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 315-339, jan.-abr. 2016

Brinquedo

Peq.

Médios

Grandes


330

4

1

96 50 46 22

2

Grandes 7

21

-

-

-

-

-

-

Médias 9

31

2

2

1

4

2

-

-

1

-

-

-

-

-

-

-

Peq. 1

15

-

2

-

2

-

1

-

-

-

-

-

-

Grandes 7

15

-

1

1

-

-

1

3

-

-

-

-

-

Médios 11

36

1

1

-

4

1

5

4

5

-

-

-

-

Peq. 1

14

-

1

1

2

-

2

6

-

-

6

-

2

-

-

-

-

3 -

4

22

-

3

-

1

-

2

2

-

-

-

Regul. e Peq.

Grandes

Canecos Fermentados

7

62

1

7

1

3

-

7

1

5

-

21

-

-

-

-

-

1

6

-

1

-

1

-

Tigelas de Comida Regula

Brinquedo

-

-

-

-

1

9

-

1

-

1

1

-

-

-

-

-

1

Outros

-

19

16

11

18

-

49 34

-

-

-

6

237

4

2

5

2

9

Nota: Cada célula mostra o número de vasos completos (acima) e quebrados (baixo à esquerda) utilizados dentro de cada residência, assim como o número de vasos feitos para a venda (baixo à direita).

Totais

6

1

Casa 2

Sonochenea

1 -

0

-

Casa 1

2

1 1

2

3

-

Sonochenea

3

2

1

6

0

Casa 3

Iparia

Casa 2

5

1

Total 5

Adultos

Iparia

Crianças

1

Oleiras

Casa 1

Jarros Brinquedo

Panelas Mapú ëite

Número de habitantes Scrania

(Conclusão)

Totais

Tabela 3. Censo cerâmico de diversas casas Shipibo-Conibo.

Uma tradução do clássico de DeBoer e Lathrap: “O fazer e o quebrar da cerâmica Shipibo-Conibo”


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 315-339, jan.-abr. 2016

Conforme apontado, cada forma de vasilhame Shipibo-Conibo é associada a uma determinada função, fato que fica evidente nas nossas denominações “tigela de comida”, “caneco de fermentado” etc. Na maioria dos casos, essa série de usos ideais é um indicador razoável dos usos de fato. Entretanto, não abrange os inúmeros usos subsidiários e secundários aos quais os vasilhames podem atender. A Figura 1 mostra as principais maneiras que um recipiente pode ser modificado para prolongar ou alterar seu uso. A manutenção se refere aos reparos ou outras modificações que permitem o uso contínuo no mesmo conjunto de atividades. A ciclagem lateral remete ao reuso das vasilhas em uma nova série de atividades. A reciclagem constitui caso especial de ciclagem lateral, em que os fragmentos de potes se tornam ingredientes para a fabricação de novos vasilhames cerâmicos. Existem duas técnicas principais para o reparo de vasilhas danificadas e ambas são empregadas no conserto de rachaduras na borda do vasilhame. Na primeira, a parede do recipiente cerâmico em qualquer um dos lados da rachadura é perfurada, e um fio – ou, quando disponível, um pedaço de arame – é perpassado pelos furos e amarrado para segurar a quebra. Na segunda, utiliza-se uma cola de resina para vedar a rachadura. A limpeza dos vasilhames se dá pela lavagem com água. As panelas podem ser limpadas com areia. A Tabela 4 resume os vários usos aos quais 315 vasilhames foram submetidos durante o período de observação14. Cada um desses objetos pode servir como recipiente de uso genérico. Conforme esperado, jarros médios contêm água proveniente de um rio ou lago próximo ou, em casos mais raros, água coletada da chuva recentemente. Jarros grandes, em geral, contêm fermentados. Várias outras funções dos recipientes, no entanto, não são relacionadas de maneira óbvia às funções primárias citadas. Demais exemplos de ciclagem lateral incluem o uso de panelas ou jarros como suportes para vasilhas e de fragmentos grandes de panelas como assadores 15, a conversão de panelas grandes ou médias em poleiros de galinhas e a readequação de panelas médias com quebras na base para mapú ëite. Conforme observado, tanto fragmentos de potes antigos quanto recentes são frequentemente reciclados como caco moído. Jarros e panelas são as duas formas modernas selecionadas para esse tipo de reciclagem (Tabela 4).

DESCARTE E REFUGO As atividades de busca por matéria-prima e fabricação das vasilhas incorporadas na cerâmica representam um considerável investimento de tempo e energia, e os recipientes cerâmicos costumam ser mantidos em uso ou são “restaurados” até que o grau do dano esteja além do reparo16. A Figura 5 ilustra a longevidade das principais formas de vasilhas Shipibo-Conibo durante o uso. Na Tabela 5, esses dados se encontram reformulados em termos de idade mediana, frequência de uso e frequência projetada no registro arqueológico para cada forma de vasilhame. Os dados de longevidade mostram padrões interessantes. Tigelas de comida e canecos de fermentado têm grande rotatividade – fato que reflete seu uso frequente, sua portabilidade, sua fina espessura e consequente fragilidade. Jarros grandes e panelas são utilizados com menos frequência, são menos movimentados, possuem paredes mais espessas. A Tabela 4 inclui informação sobre todos os vasilhames cujo uso foi observado. Essa amostra não coincide inteiramente com a cerâmica tabulada no censo apresentado na Tabela 3. 15 Esse uso foi descrito por Tessmann (1928, p. 146) há meio século. 16 Uma exceção ocorre no caso dos enterramentos, nos quais a cerâmica tradicionalmente utilizada pelo finado costuma ser quebrada. O enterramento primário ou secundário tradicional dentro de uma grande panela ou jarro abaixo do piso da casa foi abandonado. Atualmente, o cadáver é colocado em um caixão de madeira ou em uma canoa selada e enterrado em uma área especial de cemitério (DeBoer, 1972, p. 65-68). 14

331


Uma tradução do clássico de DeBoer e Lathrap: “O fazer e o quebrar da cerâmica Shipibo-Conibo”

Por isso duram mais. Vasilhas pouco utilizadas, como as panelas pequenas e os mapú ëite, possuem vida útil comparativamente longa. Uma avaliação da importância relativa desses vários fatores levando à quebra e ao descarte das vasilhas exigiria informações detalhadas sobre a história de vida de muitos recipientes17. Tabela 4. Uso observado dos vasilhames cerâmicos Shipibo-Conibo. Recipientes

Total

1

salvas para tempero

assadores

2

Mapú ëite

chiquei-ro

suporte de vasos

feitos para venda

uso domés-tico

conchas

água para patos

Vazios

tartaru-gas vivas

roupas

tinturas

algodão

medica-mentos

Outros

acessórios

resinas

tem-pero

argila

água

cerveja

pigme-ntos

Suprimentos cerâmicos

Comida

comida sólida

Ciclagem Lateral

Panelas Grandes Médias Pequenas

completas

1

2

quebradas completas

1 4

1

1

1

1

1

14

20

1

3

2

2

1

18

2

quebradas completas

1 1

3

1

5

1

1

4

10 33

2

5

5

8 16

quebradas

1

2

Jarros Grandes Médios Pequenos

completos

2

quebrados

1

completos

1

6

10

19

1 9

quebrados completos

1 2

3

1 3

1

4 1

18

3

1

1

7

1

10

6

quebrados

6 39 9 20

1

1

2

Canecos de Fermentados Todos os tamanhos

completas

1

quebradas

2 1

1

1

4

1

22

2

28

2

4

56 21

88

Tigelas de comida Todos os tamanhos

17

completas

3

2

quebradas

1

10

1

11

Os Shipibo-Conibo produzem, além das vasilhas, uma série de artefatos cerâmicos. A shërvenante, por exemplo, é um objeto sólido, com formato retangular ou oval, que é inserido na vulva da menina após ela sofrer a clitoridectomia, que faz parte da tradicional cerimônia de puberdade. A shërvenante é feita para a cerimônia e descartada em um montículo da aldeia (vide Figura 6, J6) após um curto período de uso pela garota. Esse artefato oferece uma exceção à generalização sugerida de que itens associados a rituais possuem vidas úteis mais longas do que itens não rituais (Schiffer, 1972, p. 163).

332


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 11, n. 1, p. 315-339, jan.-abr. 2016

Tabela 5. Idade média, frequência de uso (N0) e frequência projetada em um montículo arqueológico. Fonte: Essa tabela incorpora e expande a amostra de vasos relatada por DeBoer (1974). Nota: N100 representa 100 anos de deposição das principais formas de vaso Shipibo-Conibo. Forma do Vaso

Porcentagem

Idade média em anos

N100

Porcentagem

k= porcent. N0/ porcent. N100

Panela grande

33

12,5

1,38

1.196

4,6

2,72

Panela média

30

11,4

0,88

1.704

6,6

1,73

Panela pequena

11

4,1

1,13

487

1,9

2,16

Jarro grande

19

7,2

1,13

841

3,2

2,25

Jarro médio

39

14,8

0,78

2.500

9,8

1,51

Jarro pequeno

27

10,3

0,71

1.901

7,4

1,39

Caneco de Fermentados

23

8,7

0,24

4.792

18,7

0,47

Tigela de comida

73

27,8

0,31

11.774

46,1

0,6

Mapú ëite

6

2,2

1

300

1,1

2

Shrania

1

0,3

-

-

-

-

Totais

262

99,3

25.495

99,4

Figura 5. Curvas de “sobrevivência” das vasilhas Shipibo-Conibo. Em geral, as curvas são consonantes com o resultado obtido com o censo feito por um de nós com quase dois mil vasilhames Shipibo-Conibo nos anos 1960. Uma diferença com relação ao primeiro censo é a presença de jarros e de panelas grandes com bem mais de uma década de idade.

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Uma tradução do clássico de DeBoer e Lathrap: “O fazer e o quebrar da cerâmica Shipibo-Conibo”

A maior parte da cerâmica é produzida, utilizada, quebrada e descartada dentro da área doméstica, local delimitado por uma clareira meticulosamente limpa de vegetação, que inclui pelo menos duas estruturas: uma casa e uma cozinha. A plaza18, limpa todos os dias, é varrida com uma vassoura de folhas de palmeira e rastelada com um implemento de madeira no formato tradicional da enxada. O refugo da cozinha, a cerâmica quebrada e outros restos provenientes de atividades cotidianas são varridos de maneira centrífuga, para longe da habitação, acumulando-se no perímetro imediato no entorno da clareira. Em moradias isoladas, o efeito temporal dessa prática é o surgimento de um montículo em forma de rosca. Quando várias moradias dividem uma plaza, o efeito imediato é um montículo de forma arqueada no entorno da clareira. Variações topográficas podem alterar esse padrão. San Francisco de Yarinacocha, por exemplo, está situada sobre uma ribanceira por cima da qual o refugo pode ser varrido. Ravinas que adentram esse barranco também servem como área de descarte19. Se um vasilhame cerâmico cai ou quebra na área doméstica, os fragmentos resultantes provavelmente serão varridos ou limpos em direção a uma área de refugo secundário dentro de alguns dias. Em alguns casos, entretanto, o clima pode alterar esse destino. Durante ou após chuvas torrenciais, fragmentos pequenos podem ser pisoteados e ficar encravados na superfície da clareira. Com o tempo, a varredura diária rebaixa a superfície da plaza. Esses fragmentos – assim como os fragmentos arqueológicos que podem estar presentes – geralmente se sobressaem do chão. Os Shipibo-Conibo fornecem um exemplo específico de um padrão geral esperado: em uma comunidade sedentária, onde os locais de utilização e de descarte coincidem, o refugo primário é provavelmente efêmero, e os montículos se acumulam nos locais exatos onde ações comportamentais são mínimas (Schiffer, 1972, p. 162). Em Iparia, por exemplo, onde existe uma vibrante indústria cerâmica, sondagens realizadas imediatamente ao lado de uma casa renderam apenas três fragmentos cerâmicos modernos (DeBoer, 1972-1974, p. 97). Por outro lado, em uma área de descarte secundário em San Francisco de Yarinacocha encontrou-se repleta de fragmentos: ao longo de um período de cerca de cinquenta anos, acumulou-se refugo cuja profundidade varia entre 7,5 e 15 centímetros (Lathrap, 1962, p. 144-145). Exceções à impermanência e à invisibilidade de refugo primário ocorrem em regiões de atividade localizadas fora da área doméstica. Fragmentos ocasionados por quebras acidentais de jarros de transporte de água, por exemplo, são avistados ao longo do caminho que conecta cada residência ao rio ou ao lago. Para examinar melhor os padrões de descarte, é interessante considerar um exemplo específico com maior detalhe. A Figura 6 mapeia a distribuição de superfície de categorias selecionadas de refugo, incluindo fragmentos cerâmicos, no entorno das casas 9 e 10, em San Francisco de Yaranicocha. Na Figura 7, uma representação esquemática da mesma área é apresentada com uma plotagem da densidade de fragmentos cerâmicos. Embora essa plotagem não seja necessariamente representativa, revela certos processos de acúmulo de refugo que operam em todos os assentamentos dos Shipibo-Conibo. Note-se que as áreas de habitação e a plaza são virtualmente estéreis em termos de refugo. Os que de fato ocorrem (e.g. os ossos de peixe centralizados em O17) resultam de atividades que imediatamente precederam a elaboração do mapa, em locais que ainda não haviam sido limpados. Conforme esperado, o refugo secundário se acumula entre as árvores que marcam a fronteira ocidental da plaza e ao longo da cerca que marca sua fronteira oriental. Devido à presença de mato e de pilhas de cascas de mandioca e banana, que também se acumulam Optamos por manter o original “plaza”, que possui o sentido de “área comunitária” (NT). O preenchimento das ravinas não ocorre por acaso. O aumento desses bueiros com 1,2 a 1,5 metros de profundidade é extremamente rápido, dado o escoamento de uma plaza limpa. A não ser que essa erosão seja freada, a área da plaza restaria dissecada em um ou dois anos. As toras, grandes fragmentos cerâmicos e outros restos jogados dentro desses bueiros servem para estabilizar os sedimentos e retardar o processo de erosão.

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nessas áreas e tendem a esconder itens pequenos como fragmentos cerâmicos, a quantidade de fragmentos nessas regiões limítrofes representam frequências mínimas. Outros fenômenos relacionados à distribuição também se tornam evidentes nas Figuras 6 e 7. Um acidente comum é a queda de vasilhames de estantes de armazenagem externas, o que torna esses locais “focos” periódicos de produção de fragmentos (U17, G24, G27). A queda da chuva nos beirais gera uma trincheira rasa, onde pode haver acúmulo de fragmentos (H17, J19, N18). Fragmentos que ocorrem ao longo de trilhas, ligando às choupanas (oficinas cerâmicas), tendem a possuir tamanho menor do que os encontrados em áreas de refugo secundário resultantes de varreduras centrífugas (Figura 8). Esse fato pode ser facilmente explicado pelo pisoteio das peças por pessoas andando pelos caminhos20. O grande agrupamento de fragmentos na coordenada J9 é resultado de uma quebra acidental recente de um grande vasilhame e está inserido na categoria de “evento especial” da Figura 7.

Figura 6. Distribuição de superfície e categorias selecionadas de refugo no entorno das casas 9 e 10, San Francisco de Yaranicocha.

Outras tentativas de correlacionar o grau de fragmentação da cerâmica com a intensidade da ação humana podem ser encontradas em Meggers e Evans (1957, p. 247-248) e Grebinger (1971, p. 48).

20

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Figura 7. Densidade de fragmentos cerâmicos, casas 9 e 10, San Francisco de Yaranicocha (X indica a presença de uma densidade indeterminada).

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Figura 8. Dimensões máximas em centímetros dos fragmentos cerâmicos em dois contextos deposicionais.

Outro elemento da Figura 6 merece ser comentado. A moradia mais ao norte foi abandonada após vários suportes do telhado terem rachado durante um grande temporal. Os ocupantes construíram a casa 10 imediatamente ao sul. Nesse caso, é evidente que não houve problema algum em mover todos os móveis e utensílios para a casa nova. Mesmo dilapidada, a antiga estrutura continuou sendo utilizada como oficina por membros da casa 10. Em outros casos, quando distâncias maiores separam as habitações nova e velha, poderíamos esperar que uma quantidade maior de material fosse deixada para trás.

SÍNTESE Conforme Taylor (1948, p. 145) sublinhou há trinta anos, todas as inferências arqueológicas acabam dependendo de três tipos de dados: (1) a frequência, (2) as propriedades formais e (3) a distribuição espacial de subprodutos comportamentais. Tentamos fornecer esses dados para a indústria cerâmica dos Shipibo-Conibo. Nossa discussão focou-se na procura por matérias-primas amplamente dispersas, na manufatura cerâmica que junta essas matérias-primas em uma forma acabada, no uso de cerâmica tanto em contextos primários quanto secundários e no comportamento que leva à formação de refugo e age como editor supremo do registro arqueológico. O último estágio de formação de refugo tem sido negligenciado por estudos sobre a produção cerâmica tradicional presentes na literatura antropológica geral que, aparte isso, são esplêndidos e muito úteis em termos arqueológicos (Guthe, 1925; Bunzel, 1929; Fontana et al., 1962). Tal negligência pode ter contribuído para gerar a afirmação otimista de que o registro arqueológico representa uma “estrutura fossilizada do sistema cultural total” que o produziu (Binford, 1964, p. 425). Uma apreciação mais razoável seria a de que o registro arqueológico reflete primariamente o comportamento que gerou o refugo. Um fato curioso sobre o refugo é que, enquanto que os arqueólogos o buscam de forma obsessiva, a maioria das pessoas, incluindo os Shipibo-Conibo, tenta se livrar dele.

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AGRADECIMENTOS Este artigo faz parte de um programa de pesquisa a longo prazo sobre a história cultural do alto Amazonas, lançado por Donald Lathrap em 1956. Nossas investigações acerca da Etnografia Shipibo-Conibo foram generosamente apoiadas por diversas agências, incluindo a Comissão Fullbright-Hays, a Fundação Nacional de Ciência dos Estados Unidos e a Fundação de Pesquisa da Cidade de Nova York. Devemos especial gratidão aos nossos anfitriões Shipibo-Conibo, cuja hospitalidade, cooperação e paciência tornaram o trabalho de campo uma experiência não apenas informativa, mas agradável. REFERÊNCIAS ASCHER, Robert. Time’s arrow and the archaeology of a contemporary community. In: CHANG, C. K. (Ed.). Settlement archaeology. Palo Alto: National Press Books, 1968. p. 43-52. ASCHER, Robert. Ethnography for archaeology: a case study from the Seri Indians. Ethnology, Pittsburgh, v. 1, n. 3, p. 360-369, jul. 1962. ASCHER, Robert. Analogy in archaeological interpretation. Southwestern Journal of Anthropology, Chiago, v. 17, n. 4, p. 317-325, 1961. BERGMAN, Roland. Shipibo subsistence in the upper Amazon rainforest. 1974. Tese (Doutorado em Antropologia) – University of Wisconsin, Madson, 1974. BINFORD, Lewis R. A consideration of Archaeological research design. American Antiquity, Washigton, v. 29, n. 4, p. 425-441, abr. 1964. BODLEY, John H. Development of an intertribal mission station in the Peruvian Amazon. 1967. 137 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – University of Oregon, Eugene, 1967. BUNZEL, Ruth L. The pueblo potter: a study of creative imagination in primitive art. New York: Columbia University Press, 1929. CARNEIRO, Robert L. “Caraipé”: an instance of the standardization of error in Archaeology. Journal of the Steward Anthropological Society, Urbana, v. 6, n. 1, p. 71-75, 1974. CHANG, K. C. Major aspects of the interrelationship of archaeology and ethnology. Current Anthropology, Chicago, v. 8, n. 3, p. 227234, jun. 1967. DAVID, Nicholas; HENNIG, Hike. The ethnography of pottery: a Fulani case seen in archaeological perspective. Boston: Addison-Wesley Pub. Co, 1972. p. 1-29. (McCaleb Module in Anthropology, v. 21). DEBOER, Warren R. Aspects of trade and transport on the Ucayali River, Eastern Peru. In: CONFERENCE ON ANTHROPOLOGICAL RESEARCH IN AMAZONIA, 1., 1975, Pennsylvania. Anais… Pennsylvania: City University of New York, 1975. DEBOER, Warren R. Binó stile ceramics from Iparia. Nawpa Pacha, v. 10-12, p. 91-108, 1972-1974. DEBOER, Warren R. Archaeological explorations on the Upper Ucayali River, Peru. 1972. 217 f. Tese (Doutorado em Antropologia) – University of California, Berkeley, 1972. FARABEE, William C. Conebo pottery. Museum Journal, v. 6, p. 94-99, 1915. FAUST, Laura. Lecciones para el aprendizaje del idioma Shipibo-Conibo. Pucallpa: Instituto Lingüístico de Verano, 1973. (Documento de Trabajo I). FONTANA, Bernard L.; ROBINSON, William J.; CORMACK, Charles W.; LEAVITT JR., Ernest E. Papago indian pottery. Seattle: University of Washington Press, 1962. GREBINGER, Paul. The potrero creek site: activity structure. Kiva, Tucson, v. 37, n. 1, p. 30-52, 1971. GUIZADO, Jorge; GIRARD, D. Reconocimiento por Calizas en la Region de Orellana-Cushabatay. Lima: Comisión Carta Geológica Nacional/Serviço de Geologia y Mineria, 1966. (Compilación de estudios geológicos, Boletim, v. 13). 278 p.

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BOLETIM DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. CIÊNCIAS HUMANAS INSTRUÇÕES AOS AUTORES

Objetivos e política editorial O Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas tem como missão publicar trabalhos originais em arqueologia, história, antropologia, linguística indígena e disciplinas correlatas. A revista aceita colaborações em português, espanhol, inglês e francês para as seguintes seções: Artigos Científicos – textos analíticos originais, resultantes de pesquisas com contribuição efetiva para o avanço do conhecimento. De 15 até 30 laudas. Artigos de Revisão – textos analíticos ou ensaísticos originais, com revisão bibliográfica ou teórica de determinado assunto ou tema. De 15 até 30 laudas. Notas de Pesquisa – relato preliminar mais curto que um artigo, sobre observações de campo, dificuldades e progressos de pesquisa em andamento, enfatizando hipóteses, comentando fontes, resultados parciais, métodos e técnicas utilizados. Até 15 laudas. Memória – seção que se destina à divulgação de acervos ou seus componentes que tenham relevância para a pesquisa científica; de documentos transcritos parcial ou integralmente, acompanhados de texto introdutório; e de ensaios biográficos, incluindo obituário ou memórias pessoais. Até 20 laudas. Debate – ensaios críticos sobre temas da atualidade. Até 15 laudas. Resenhas Bibliográficas – texto descritivo e/ou crítico de obras publicadas na forma impressa ou eletrônica. Até cinco laudas. Teses e Dissertações – descrição sucinta, sem bibliografia, de dissertações de mestrado, teses de doutorado e livre-docência. Uma lauda.

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2.

(imitando ɨ, ʉ, etc.).

Da primeira página, devem constar: a. título (no idioma do texto e em inglês); b. resumo; c. abstract; d. palavras-chave e key words.

3.

Os originais não podem incluir o(s) nome(s) do(s) autor(es) e não podem incluir agradecimentos.

4.

Deve-se destacar termos ou expressões por meio de aspas simples.

5.

Apenas termos científicos latinizados e palavras em língua estrangeira devem constar em itálico.

6.

Os artigos deverão seguir as recomendações da ABNT para uso e apresentação dos elementos bibliográficos: resumos NBR 6028; citações em documentos NBR 10520; referências NBR 6023.

7.

Tabelas devem ser digitadas em Word, sequencialmente numeradas, com claro enunciado.

8.

Ilustrações e gráficos devem ser apresentados em páginas separadas e numeradas, com as respectivas legendas, e submetidos na plataforma online em arquivos à parte. Imagens devem ter resolução mínima de 300 dpi, e tamanho mínimo de 1.500 pixels, no formato JPEG, ou TIFF. Devem ter, no máximo, 16,5 cm de largura e 20 cm de altura (para uso em duas colunas), ou 8 cm de largura e 20 cm de altura (para uso em uma coluna). As informações de texto presentes nas figuras devem estar em fonte Arial com tamanho entre 7 e 10 pts.

9.

Figuras feitas em programas vetoriais podem ser enviadas, preferencialmente, em formato aberto, na extensão .cdr (X5 ou inferior), .eps ou .ai (CS5 ou inferior).

10. O texto do artigo deve, obrigatoriamente, fazer referência a todas as tabelas, gráficos e ilustrações. Quando for necessário o uso de mapas, dê preferência na identificação com símbolos (devido a limitações com cores, em versões impressas). 11. Somente numeração de páginas e notas de rodapé deve ser automática. Textos contendo numeração automatizada de seções, parágrafos, figuras, exemplos, ou outros processos automatizados, como referenciação e compilação de lista de referências, não serão aceitos. 12. Observar cuidadosamente as regras de nomenclatura científica, assim como abreviaturas e convenções adotadas em disciplinas especializadas. 13. Notas de rodapé devem ser numeradas em algarismos arábicos e utilizadas apenas quando imprescindíveis, nunca como referências. 14. Referências a manuscritos, documentos de arquivo ou textos não publicados (relatórios, cartas etc.) devem ser feitas em notas de rodapé. Citações e referências a autores no decorrer do texto devem subordinar-se à seguinte forma: sobrenome do autor (não em caixa alta), ano, página(s) (exemplo: Goeldi, 1897, p. 10). 15. Todas as obras citadas ao longo do texto devem estar corretamente referenciadas ao final do artigo, e todas as referências no final do artigo devem ser citadas no texto.


16. Citações de obras como “apud” também devem estar corretamente referenciadas ao final do artigo. Os nomes de múltiplos autores ou organizadores citados como “et al.” devem todos aparecer nas referências no final do artigo.

Estrutura básica dos trabalhos 1.

Título – No idioma do texto e em inglês (quando este não for o idioma do texto). Deve ser escrito em caixa baixa, em negrito, centralizado na página.

2. Resumo e Abstract – Texto em um único parágrafo, verbo na voz ativa e terceira pessoa do singular, ressaltando os objetivos, método, resultados e conclusões do trabalho, com no mínimo 100 palavras e, no máximo, 200, no idioma do texto (Resumo) e em inglês (Abstract). A versão para o inglês deverá ser feita ou corrigida por um falante nativo (preferivelmente um colega da área), o que é de responsabilidade do(s) autor(es). 3. Palavras-chave e Keywords – Três a seis palavras que identifiquem os temas do trabalho, para fins de indexação em bases de dados. 4. Texto – Deve ser composto de seções NÃO numeradas, e sempre que possível com introdução; marco teórico; desenvolvimento; conclusão e referências . Evitar parágrafos e frases muito longos. Optar pela voz passiva, evitando o uso da primeira pessoa do singular e do plural ao longo do texto. Siglas devem inicialmente ser escritas por extenso. Exemplo: “A Universidade Federal do Pará (UFPA) prepara novo vestibular”. Citações de até três linhas devem estar dentro do parágrafo e entre aspas duplas (“); citações com mais de três linhas devem ser destacadas do texto, com recuo de 4 cm da margem esquerda, com fonte menor e sem aspas. Com efeito, a habitação em cidades é essencialmente antinatural, associa-se a manifestações do espírito e da vontade, na medida em que se opõem à natureza. Para muitas nações conquistadoras, a construção de cidades foi o mais decisivo instrumento de dominação que conheceram. Max Weber mostra admiravelmente como a fundação de cidades representou para o Oriente Próximo e particularmente para o mundo helenístico e para a Roma imperial, o meio específico de criação de órgãos locais de poder, acrescentando que o mesmo fenômeno se encontra na China, onde ainda durante o século passado, a subjugação das tribos Miaotse pode ser identificada à urbanização das suas terras (Buarque de Holanda, 1978, p.61). 5. Agradecimentos – Devem ser sucintos: créditos de financiamento; vinculação a programas de pós-graduação e/ou projetos de pesquisa; agradecimentos pessoais e institucionais. Nomes de pessoas e instituições devem ser escritos por extenso, explicando o motivo do agradecimento. Note que a primeira versão submetida é para avaliação anônima e deve estar sem agradecimentos. 6. Referências – Devem ser listadas ao final do trabalho, em ordem alfabética, de acordo com o sobrenome do primeiro autor. No caso de mais de uma referência de um mesmo autor, usar ordem cronológica, do trabalho mais recente ao mais antigo. Todas as referências devem seguir as recomendações da NBR 6023 da ABNT. Evita-se o uso indevido de letras maiúsculos nos títulos de artigos ou livros. Somente nomes próprios, substantivos alemães e as palavras de conteúdo de títulos de revistas e de séries devem começar por uma letra maiúscula. Obs: A utilização correta das normas da ABNT referentes à elaboração de referências (NBR 6023/2002) e o uso adequado das novas regras de ortografia da Língua Portuguesa nos artigos e demais documentos encaminhados ao “Boletim” são de responsabilidade dos autores. A seguinte lista mostra vários exemplos de referências nas suas categorias diferentes: Livro: VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1906.


Livro: WIECZOREK, Alfred; ROSENDAHL, Wilfried; SCHLOTHAUER, Andreas (Org.). Der Kult um Kopf und Schädel. Heidelberg: Verlag Regionalkultur, 2012. Série/Coleção: GOELDI, Emílio. Escavações arqueológicas em 1895: executadas pelo Museu Paraense no Litoral da Guiana Brasileira entre Oiapoque e Amazonas. Belém: Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, 1900. (Memórias do Museu Goeldi, n. 1). Capítulo de livro: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Política indigenista no século XIX. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 133-154. Capítulo de livro e Série/Coleção: VUILLERMET, Marine. Two types of incorporation in Esse Eja (Takanan). In: DANIELSEN, Swintha; HANNSS, Katja; ZÚÑIGA, Fernando (Org.). Word formation in South American languages. Amsterdam: John Benjamins, 2014. p. 113-142. (Studies in Language Companion Series, n. 163). Artigo de periódico: GURGEL, C. Reforma do Estado e segurança pública. Política e Administração, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 15-21, set. 1997. Artigo de periódico: TERSIS, Nicole; CARTER-THOMAS, Shirley. Investigating syntax and pragmatics: word order and transitivity in Tunumiisut. International Journal of American Linguistics, Chicago, v. 71, n. 4, p. 473-500, out. 2005. Artigo de periódico em meio eletrônico: VELTHEM, L. H. V. O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 7, n. 1, p. 51-66, jan./abr. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-81222012000100005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 06 mar. 2015. Artigo e/ou matéria de jornal: NAVES, P. Lagos andinos dão banho de beleza. Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 jun. 1999. Folha Turismo, Caderno 8, p. 13. Artigo e/ou matéria de jornal em meio eletrônico: SILVA, Ives Gandra da. Pena de morte para o nascituro. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 19 set. 1998. Disponível em: <http://www.providafamilia.org/pena_morte_nascituro.htm>. Acesso em: 19 set. 1998. Trabalho apresentado em evento: BRAYNER, A. R. A.; MEDEIROS, C. B. Incorporação do tempo em SGBD orientado a objetos. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE BANCO DE DADOS, 9., 1994, São Paulo. Anais... São Paulo: USP, 1994. p. 16-29. Trabalho apresentado em evento em meio eletrônico: SILVA, R. N.; OLIVEIRA, O. Os limites pedagógicos do paradigma da qualidade total na educação. In: CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UFPe, 4., 1996, Recife. Anais eletrônicos... Recife: UFPe, 1996. Disponível em: <http://www.propesq.ufpe.br/anais/anais.htm>. Acesso em: 21 jan. 1997. Documento eletrônico: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010. 2011. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm>. Acesso em: 23 jan. 2012.


Documento jurídico: SÃO PAULO (Estado). Decreto no 42.822, de 20 de janeiro de 1998. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São Paulo, v. 62, n. 3, p. 217-220, 1998. Documento jurídico: BRASIL. Congresso. Senado. Resolução no 17, de 1991. Coleção de Leis da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, v. 183, p. 1156-1157, maio/jun. 1991. Documento jurídico: BRASIL. Medida Provisória nº 1.569-9, de 11 de dezembro de 1997. Estabelece multa em operações de importação, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 14 dez. 1997. Seção 1, p. 29514. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): MORGADO, M. L. C. Reimplante dentário. 1990. 51 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização)–Faculdade de Odontologia, Universidade Camilo Castelo Branco, São Paulo, 1990. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): ARAUJO, U. A. M. Máscaras inteiriças Tukúna: possibilidades de estudo de artefatos de museu para o conhecimento do universo indígena. 1985. 102 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)–Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, 1986. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): BENCHIMOL, Alegria. Resgate e ressignificação da pesquisa no Museu Paraense Emílio Goeldi: presença e permanência de cientistas estrangeiros (1894-1914) na produção científica de autores atuais (1991-2010). Tese (Doutorado em Ciência da Informação)–Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. Trabalhos acadêmicos (teses, dissertações e monografias): MOORE, Denny. Syntax of the language of the Gavião Indians of Rondônia (Brazil). 1984. 200 f. Tese (Doutorado em Antropologia)–University of New York, Nova York, 1984.

Avaliação inicial Será feita uma avaliação inicial da submissão pela administração editorial, seguindo um checklist de critérios básicos. No caso que a submissão está incompleta ou as imagens não estão conforme as especificações dadas acima, o artigo será devolvido via a plataforma online como “UNSUBMITTED”. Isso significa que o artigo volta para a fase de ainda não estar submetido, com uma explicação das pendências. Após de resolver as pendências o autor pode ressubmeter o artigo, escolhendo a opção “RESUBMIT”.

Revisão de artigos Após receber os pareceres anônimos, o Editor decide se o artigo será aceito para publicação. Se aceito, o autor é convidado a revisar o artigo com base nos pareceres e nas observações do Editor. O autor deve explicar como a revisão foi realizada, dar justificativa se um conselho do parecerista não foi seguido e, obrigatoriamente, usar a ferramenta “Controle de alterações” do Word para realizar as mudanças. O artigo revisado deve ser enviado através da plataforma online, usando o link de revisão em “AUTHOR RESOURCES”, clicando em “CREATE REVISION”.


Provas Os trabalhos, depois de formatados, são encaminhados através do sistema de e-mail do ScholarOne, em PDF, para a revisão final dos autores, que devem devolvê-los com a maior brevidade possível. Os pedidos de alterações ou ajustes no texto devem ser feitos por comentários no PDF. Nessa etapa, não serão aceitas modificações no conteúdo do trabalho ou que impliquem alteração na paginação. Caso o autor não responda ao prazo, a versão formatada será considerada aprovada. Os artigos são divulgados integralmente no formato PDF no sítio da revista, no DOAJ e na SciELO.

Endereço para correspondência: Museu Paraense Emílio Goeldi Editor do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas Av. Perimetral, 1901 - Terra Firme CEP 66077-830 Belém - PA - Brasil Telefone: 55-91-3075-6186 E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br

Lembre-se: 1- Antes de enviar seu trabalho, verifique se foram cumpridas as normas acima. Disso depende o início do processo editorial. 2- Após a aprovação, os trabalhos são publicados por ordem de chegada. O Editor Científico também pode determinar o momento mais oportuno. 3- A revista não aceita resumos expandidos, textos na forma de relatório e nem trabalhos previamente publicados em anais, CDs ou outros suportes.


BOLETIM DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. CIÊNCIAS HUMANAS INSTRUCTIONS FOR AUTHORS Mission and Editorial Policy The mission of the Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas is to publish original works on Archaeology, History, Anthropology, Indian Languages, and related fields. The journal accepts contributions in Portuguese, Spanish, English and French for the following sections: Articles – scientific and original analytical papers stemming from studies and research, which effectively contribute to building knowledge in the field. Maximum length: 30 pages. Review Articles – analytical texts or essays, with theoretical and/or literature review on a certain subject or topic. Maximum length: 30 pages. Short Communications – short preliminary reports (shorter than an article) on field observations, challenges faced and progress made in on-going research emphasizing hypotheses, mentioning sources, partial results, materials and methods. Maximum length: 15 pages. Memory – this section includes texts on collections or items of collections considered relevant for scientific research; documents transcribed in whole or in part submitted with an introduction; and biographical essays, including obituaries or individual memories. Maximum length: 15 pages. Debate – critical essays on current issues. Maximum length: 15 pages. Book Reviews – descriptive and/or critical reviews of printed or electronic publications. Maximum length: 5 pages. Thesis and Dissertations – thesis and dissertations abstracts, with no references section. Maximum length: 1 page.

Submitting a manuscript Manuscripts should be sent to the Scientific Editor by email (boletim.humanas@museu-goeldi.br), with a letter containing: title, full name (no abbreviations) of the main author and other authors, mailing address (complete address, zip code, phone number, fax, e-mail), and a declaration stating the main author is responsible for the inclusion of the remaining co-authors. The journal has a Scientific Board. The manuscripts are first examined by the Editor or by one of the Associate Editors. The Editor has the right of recommending alterations be made to the papers submitted or to return them when they fail to comply with the journal’s editorial policy. Upon acceptance, the manuscripts are submitted to peer-review and are reviewed by two specialists who are not members of the Editorial Commission. In the event of disagreement, the manuscript is submitted to other(s) referee(s). In the event changes or corrections need to be made, the manuscript is returned to the author(s) who have thirty days to submit a new version. Files related to not accepted manuscripts will be deleted. Publication means fully assigning and transferring all copyrights of the manuscript to the journal. The Liability Statement and Assignment of Copyrights will be enclosed with the notice of acceptance. All the authors must sign the document and return it to the journal.

Preparing manuscripts The manuscripts must be sent in Word for Windows format, in Times New Roman, font 12, 1.5 spacing between lines, and pages must be numbered. Papers on Linguistics must use a font that is compatible with the Unicode standard, such as Arial, Calibri, Cambria, Déjà Vu,


Tahoma and others that include the IPA extended set of phonetic symbols. Times New Roman is preferred, but it includes IPA in Unicode only in the latest editions of Windows. The cover page must contain the following information: title (in the original language and in English); full name of the author(s); affiliation (no abbreviations); complete address(es); and e-mail(s) for all authors. Page two must include: title, abstract, and keywords (in the original language and in English). Do not mention the name(s) of the author(s). Tables should be in Word format, numbered in sequence, and with clear captions. Images and graphs should be on separate and numbered pages, with their respective captions. They should also be sent in separate files. Digitalized images should have minimum resolution of 300 dpi., minimum size of 1500 pixels, and be in TIFF (preferably) or JPEG format. All tables, graphs and images must be necessarily mentioned in the body of the text. To highlight terms or phrases, please use single quotation marks. Only foreign language words and phrases, and Latinized scientific names should be in italics. Texts must fully comply with naming rules, abbreviations and conventions adopted in specific fields. Footnotes are to be used when strictly necessary, never for references, and are to be indicated in Arabic numbers. To quote or mention authors throughout the text, please use the following format: author’s last name, year, page(s) (example: Goeldi, 1897, p. 10). All quotations in the body of the text must be accurate and listed at the end of the paper. Use footnotes to quote or mention previously unpublished archive documents and texts (reports, letters etc.).

Basic text structure Title – The title must appear both in the original language of the text and in English (when English is not the original language). Title must be centralized and in bold. Do not use block capitals. Abstract – This section should be one paragraph long and highlight the goals, methods and results of the research. Minimum length: 100 words. Maximum length: 200 words. The abstract should be presented both in the original language of the text and in English. The English version must either be composed or corrected by a native speaker, which is the responsiblity of the authors. Keywords – Three to six words that identify the topics addressed, for the purpose of indexing the paper in databases. Body of the text – Papers should preferably be divided in the following sections: introduction, theoretical background, development, conclusion, and references. Lengthy paragraphs and/or sentences should be avoided. Acronyms should be preceded by the word or phrase to which it refers to when appearing for the first time. Example: “The Universidade Federal do Pará (UFPA) is preparing a new admission exam”. Quotations under three lines should be included in the body of the text between quotation marks (“). Quotations over three lines are separated from the text and indented in block, with no quotation marks, and the font must be smaller than the font used in the text. Acknowledgements – Should be brief and can mention: support and funding; connections to graduate programs and/or research projects; acknowledgement to individuals and institutions. The names of the individuals and institutions should be written in full together with what motivated the acknowledgement. References – Should appear at the end of the text in alphabetical order according to the last name of the first author. In the event of two or more references to a same author, please use chronological order starting with the most recent work. References should comply with ABNT recommendation NBR 6023, following the examples below: Books: VERÍSSIMO, José. A Educação Nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1906. Chapters: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Política indigenista no século XIX. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (Ed.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, FAPESP, 1992. p. 133-154.


Papers in journals: GOELDI, Emílio. O estado atual dos conhecimentos sobre os índios do Brasil, especialmente sobre os índios da foz do Amazonas, no passado e no presente. Boletim do Museu Paraense de Historia Natural e Ethnographia, Belém, v. 2, n. 4, p. 397-417, 1898. Series/Collections: GOELDI, Emílio. Escavações arqueológicas em 1895: executadas pelo Museu Paraense no Litoral da Guiana Brasileira entre Oiapoque e Amazonas. Belém: Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, 1900. (Memórias do Museu Goeldi, n. 1). Thesis and Dissertations: MOORE, Denny. Syntax of the language of the Gavião Indians of Rondônia (Brazil). 1984. 200 f. Thesis (PhD Anthropology thesis) – University of New York, New York, 1984. Electronic document: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Demográfico 2010. 2011. Available at: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm>. Accessed on: Jan. 23, 2012.

Proofs Authors will receive their paper in PDF format for final approval, and must return the file as soon as possible. Authors must inform the Editors in writing of any changes in the text and/or approval issues. At this stage, changes concerning content or changes resulting in an increase or decrease in the number of pages will not be accepted. In the event the author does not meet the deadline, the formatted paper will be considered approved by the author. Each author will receive two printed copies of the journal. The papers will be disclosed in full, in PDF format in the journal website, DOAJ, and SciELO.

Mailing address: Museu Paraense Emílio Goeldi Editor do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas Av. Perimetral, 1901 - Terra Firme CEP 66077-530 Belém - PA - Brazil Phone: 55-91-3075-6186 E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br Twitter: @Boletim_Humanas Facebook: BoletimMPEG.CienciasHumanas

Please note: 1- Before submitting your manuscript to the journal, please check whether you have complied with the norms above. For the editorial process to begin, submitters must comply with the policy. 2- After acceptance, the papers will be published according to order of arrival. The Scientific Editor may also decide on the most convenient time for publication. 3- The journal does not accept expanded abstracts, reports, and works previously published in Proceedings, CDs, and/or other media.




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