Revista Rede 20

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Revista Institucional do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Ano VII - Edição 20 - Setembro de 2011

crimes com e sem castigo

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Revista Institucional do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Editada pela Assessoria de Comunicação Social – Núcleo de Imprensa Coordenação Procurador de Justiça Fernando Antônio Fagundes Reis Coordenação Assessoria de Comunicação Social Miriângelli Rovena Borges Editora executiva Neuza Martins da Cunha Jornalistas Eduardo Curi, Fernanda Magalhães, Flávio Pena, Giselle Borges e Neuza Martins da Cunha Repórter fotográfico Alex Lanza Capa Matheus Scalon Araújo Projeto gráfico, arte e diagramação Rúbia Oliveira Guimarães Revisão Oliveira Marinho Ventura Administração Superior Procurador-Geral de Justiça Alceu José Torres Marques Corregedor-Geral do Ministério Público Márcio Heli de Andrade Ouvidor do Ministério Público Mauro Flávio Ferreira Brandão Procurador-Geral de Justiça Adjunto Jurídico Geraldo Flávio Vasques Procurador-Geral de Justiça Adjunto Administrativo Carlos André Mariani Bittencourt Procurador-Geral de Justiça Adjunto Institucional Waldemar Antônio de Arimateia Chefe-de-Gabinete Paulo de Tarso Morais Filho Secretário-Geral Roberto Heleno de Castro Júnior

Nossa capa Crimes com e sem castigo Arte: Matheus Scalon Araújo

Diretor-Geral Fernando Antônio Faria de Abreu

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Tiragem: 2.000 exemplares Impresso por Del Rey - Indústria gráfica & editora


Boa leitura.

Editorial

O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), especialmente nesta gestão do procurador-geral de Justiça, Alceu José Torres Marques, está com as atenções voltadas para a atuação do promotor de Justiça criminal e para o enfrentamento da criminalidade em todo o Estado. Nesse sentido, várias ações estão sendo promovidas, como seminários regionais e nacionais para discutir meios de fortalecer o perfil combativo do Ministério Público e parcerias e acesso a banco de dados para facilitar a persecução penal, bem como criação de órgão de combate e repressão a todo tipo de violência e crime. Para contribuir nesta empreitada, a revista Rede dedica esta edição às discussões e reflexões sobre a área. Combate ao crime organizado, à lavagem de dinheiro, à pirataria; novidades na reforma do CPP; atuação do promotor de Justiça criminal; a corrupção no serviço público; a caótica situação do sistema penitenciário; o Direito Penal do Inimigo. Esses e outros temas, todos ligados à área criminal, compõem este exemplar da revista. O desembargador Fausto Martin De Sanctis nos presenteia com uma entrevista em que conta sobre o combate à lavagem de dinheiro e aos crimes do colarinho branco, cooperação jurídica internacional, entre outros temas. Corregedor do Ministério Público mineiro, por duas vezes, o procurador de Justiça Antonio de Padova Marchi Junior analisa a atuação do promotor de Justiça criminal e defende a teoria do garantismo penal. Representantes do Ministério Público, da Magistratura, da Ordem dos Advogados, da Polícia Civil e do Legislativo apontam as deficiências e os desafios do Projeto de Lei n.º 8.045/2010, que institui a reforma do Código de Processo Penal (CPP) e que está em tramitação na Câmara dos Deputados. O procurador de Justiça André Estevão Ubaldino Pereira e o juiz federal Jorge Gustavo Macedo Costa revelam os benefícios da ação integrada e as dificuldades para o combate ao crime organizado, que a cada dia fica mais sofisticado. A reportagem mostra ainda as inúmeras operações realizadas para desbaratar organizações criminosas. A pirataria é apontada como um dos maiores desafios do Século 21. A promotora de Justiça de combate ao crime organizado Cássia Virginia Gontijo e o presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP), Edson Luiz Vismona, explicam que os recursos financeiros movimentados nessa prática são vultosos, alimentando a lavagem de dinheiro e a corrupção, bem como financiando outras práticas criminosas. A corrupção anda solta também no setor público e na classe política. É o que demonstram os procuradores de Justiça da Procuradoria de Justiça de Combate aos Crimes Praticados por Agentes Políticos Municipais Elias Paulo Cordeiro e Márcio Gomes de Souza. A reportagem relembra parte da história do nosso país e reforça que a corrupção, o clientelismo e outras mazelas dessa natureza sempre permearam a Administração Pública. Numa brilhante exposição, a professora Ada Pellegrini tenta encontrar uma explicação para a situação caótica do sistema penitenciário no país, para a falta de estabelecimentos prisionais, para a situação dos presos que sofrem com todo tipo de desrespeito aos direitos humanos. Também opinaram na reportagem, sobre o tema os desafios e novidades na Lei de Execução Penal, os promotores de Justiça Joaquim José Miranda Junior e Rodrigo Iennaco. Direito Penal do Inimigo, garantismo penal, impunidade a aplicação do Direito Penal no Brasil foram assuntos que mereceram a reflexão do procurador de Justiça e professor Rogério Greco e do promotor de Justiça Marcelo Cunha de Araujo. Artigos sobre a redução da maioridade penal e homicídio sem cadáver, produzidos, respectivamente pelo promotor de Justiça Marcelo Cunha e pelo procurador de Justiça Antônio Sérgio Tonet abrilhantam a revista. Outro pensador do Ministério Público de Minas Gerais, o procurador de Justiça Carlos Augusto Canedo Gonçalves Silva, numa parceria com o professor Humberto Leandro de Melo e Sousa, colabora com artigo O “flanelinha” no espaço da metrópole de Belo Horizonte: o curioso fenômeno da gestão de vagas de estacionamento em vias públicas por particulares.


Apresentação Nessa quadra em que a estruturação do Ministério Público é tema recorrente em todos os Estados da Federação, evidencia-se a necessidade de membros e servidores assimilarem e incorporarem em suas rotinas profissionais conceitos de gestão e administração de suas forças de trabalho. Noções – mínimas que sejam – de planejamento estratégico, análise de custos, compatibilização orçamentária, aproveitamento racional de espaços, otimização e equilíbrio de atribuições dos variados Órgãos de execução, entre outras, passaram a fazer parte do cotidiano de todos nós. E é bom que seja assim. Em garantia da construção de uma Instituição cada vez mais sólida e respeitada. Não podemos, todavia, deixarmo-nos encantar pelo sedutor apelo do conforto da modernidade em detrimento da postura que sempre foi e precisa continuar sendo o principal elemento de nossa identidade institucional. Não devemos nos afastar do papel de legítimo titular da persecutio, que nos trouxe até aqui e forjou, ao longo de anos, o perfil de combatividade que ainda nos assegura ostentar a credibilidade perante a sociedade destinatária de nossos serviços. Mas em tempos atuais, quando esta mesma sociedade passou a melhor conhecer e a conviver com nossa Instituição, relativamente novel, não podemos também transigir quando o assunto é a eficiência do Ministério Público, em qualquer que seja a área de atuação, mas principalmente enquanto identificada como instrumento de promoção de paz social e de repressão criminal.

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Alex lanza

E, em sendo assim, após concluirmos a Meta criminal, lançada com o objetivo de assegurar a nomeação de analistas de Direito para todos os membros do Ministério Público de Minas Gerais com atuação na área criminal, estamos agora propondo um novo passo no sentido do fortalecimento da perfomance institucional na seara penal. Longe do romantismo de outrora, estamos aceitando o desafio de abraçar um novo modelo de enfrentamento da criminalidade, organizada ou não, agregando à atuação de promotores e procuradores de Justiça as informações específicas disponibilizadas por uma central de inteligência dotada de estrutura suficiente à produção dos elementos de prova necessários, nem sempre constantes das investigações policiais. A nova estrutura conta também com a orientação de coordenadorias especializadas, que servirão de apoio ao trabalho dos promotores de Justiça em todo o Estado, inclusive no que diz respeito à segurança individual, sempre com o propósito de buscarmos a eficiência da Instituição. Estamos, enfim, arrostando a impunidade. Não coadunamos com o papel de coadjuvantes que alguns poucos ainda insistem em nos reservar neste lamentável espetáculo em que se transformou o processo penal brasileiro e, conscientes de nossa capacidade, reivindicamos o espectro dedicado aos protagonistas desta infindável trama. Estamos juntos e mais fortes. Um abraço.

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Sumário Antonio Cruz/ABr

8 Entrevista Fausto De Sanctis

fala sobre crimes fiscais, lavagem de dinheiro, corrupção, impunidade, cooperação jurídica internacional e dos desafios para se abarcar o dinheiro ilícito proveniente de todo e qualquer crime Alex lanza

14 Entrevista Antonio de Padova Marchi analisa atuação do promotor de Justiça criminal

Alex lanza

32 Reportagem mostra a difícil missão de combater o

crime organizado, a pirataria e como o MPMG e órgãos de repressão atuam contra as organizações criminosas


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Matéria reflete sobre as falhas, conquistas e desafios do projeto de reforma do CPP

Jurista e promotores de Justiça avaliam a situação do sistema penitenciário

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brasileiro e as mudanças relativas à liberdade provisória, uso das tornozeleiras e outras inovações que estão sendo propostas

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Procuradores de Justiça dizem que a corrupção no setor público e na

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Direito Penal do Inimigo, garantismo penal e devida aplicação das leis

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política brasileira, além de não reduzir, fica mais sofisticada

são temas debatidos em reportagem por procurador e promotor de Justiça

Opinião

Sérgio Tonet

coloca em discussão sobre a possibilidade de réus serem condenados por crime de homicídio mesmo com o desaparecimento do cadáver

Carlos Canêdo Gonçalves e Humberto Leandro de Melo questionam sobre Artigo

Artigo

os aspectos mais controversos da relação cotidiana entre flanelinhas, usuários de vagas de estacionamento e agentes públicos locais

A redução da maioridade penal: vamos levar a diferenciação social aos

adolescentes? Essa questão é abordada em artigo do promotor de Justiça Marcelo Cunha de Araújo

Filippetto lança livro sobre lavagem de dinheiro


Entrevista

Fausto De Sanctis Desembargador fala sobre o combate à lavagem de dinheiro, crimes do colarinho branco, cooperação jurídica internacional, entre outros temas

Antonio Cruz/ABr

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Fausto Martin De Sanctis é desembargador do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Processo Civil pela Universidade de Brasília (UnB) e escritor. De Sanctis, quando juiz da 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, ganhou notoriedade e destaque na imprensa nacional ao combater crimes do colarinho branco e de lavagem de dinheiro, como no caso da Operação Satiagraha, que decretou duas vezes a prisão do banqueiro Daniel Dantas, do Banco Opportunity, investigado por crimes financeiros, entre outros.

O senhor, como autor e coautor de vários livros, entre eles o intitulado Combate à lavagem de dinheiro: teoria e prática, considera que as legislações brasileiras evoluíram a ponto de alcançar o dinheiro proveniente de qualquer atividade considerada ilícita? A legislação brasileira evoluiu, mas não o suficiente, já que não adentra em pontos importantes e recomendados internacionalmente. O projeto de lei que altera a Lei n.º 9.613/1998 tenta aprimorar o sistema, abolindo o rol de crimes antecedentes, o que permitirá abarcar o dinheiro ilícito proveniente de todo e qualquer crime.

Pode-se dizer que o Brasil está preparado para o efetivo combate ao crime de lavagem de dinheiro? Enquanto no país se discute tempo de duração de interceptações telefônicas, no exterior a questão está em suprir o Estado de meios que respondam à altura do poder das organizações criminosas, que frequentemente acabam tendo que praticar a lavagem de dinheiro de maneira extremamente sofisticada. Sem se descuidar dos direitos fundamentais, por exemplo, debate-se qual o grau de participação de um agente infiltrado (qual a possibilidade da prática de modalidade delitiva), ações encobertas, ou seja, a utilização das chamadas técnicas especiais de investigação, que são especiais porque a investigação do crime organizado requer sua utilização, dadas suas especificidades e complexidades. Fora isso, denúncias anônimas são estimuladas, tanto que já estão previstas em convenções internacionais.

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Quais as inovações e os desafios para esse trabalho? Os desafios são muitos. Em termos internacionais, é consenso cobrar dos paraísos fiscais o cumprimento das disposições que determinam o fornecimento de informações às autoridades processantes internacionais, ou seja, fazer valer compromissos ético-jurídicos sobre os econômicos, inclusive acerca do beneficial ownership e dos seus controladores. E mais. Exigir cadastramento completo por atividade e por tipo de todas as organizações não governamentais (ONGs) no país, com a obrigação de estas guardarem documentação relativa às transações realizadas aqui e no exterior; incriminar a não comunicação de operação financeira, o seu retardamento, ou a prestação incompleta ou falsa de comunicação obrigatória, uma vez que o sistema de comunicação obrigatória constitui o ponto central do combate da lavagem de dinheiro; incluir como autor desse crime as pessoas jurídicas, atendendo o que estipulam a Convenção de Palermo da Organização das Nações Unidas (ONU) contra o Crime Organizado Transnacional (artigo 10), a Recomendação do Financial Action Task Force/Groupe d’Action Financière (FATF/Gafi) n.º 2, “b”, e a Convenção ONU contra a Corrupção (artigo 26); especializar turmas criminais nos Tribunais Regionais Federais em face do sucesso alcançado com as Varas de Lavagem de Dinheiro.

Os tratados e acordos internacionais de que o Brasil participa para tentar combater a movimentação de recursos oriundos de atividades ilícitas feitas por meio dos sistemas financeiros são eficientes? Qual a importância desses acordos para o senhor? Hoje o regramento e o tratamento sobre as informações acerca de atividades financeiras, e isso vale para o Brasil, são bastante presentes, preocupando as autoridades quanto às atividades não financeiras, cujos controles ainda são tímidos, quando não ausentes. É muito importante que os países se unam, e aí o papel dos tratados e convenções se ressalta, para que nenhum Estado se torne uma porta aberta à criminalidade ou um paraíso penal.

O juiz, às vezes, precisa buscar em outros países provas da prática de lavagem de dinheiro ocorrida no Brasil? Como funciona essa prática? A Cooperação Jurídica Internacional é o instrumento adequado para que rapidamente provas sejam produzidas. Acontece que, quando se verificam as alterações sugeridas ao Código de Processo Penal, há um enorme retrocesso porquanto não há o tratamento adequado (ainda se disciplinam tão somente rogatórias), e adentra-se num caminho perigoso: a criação do juiz das garantias e a figura do juiz autômato, passível de orquestração. Falo isso pelo fato de a busca da verdade e, consequentemente, a própria dimensão da missão e relevância do Poder Judiciário terem sido deixadas em segundo plano.

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O Brasil ainda é considerado um terreno fértil para a lavagem de dinheiro?

Muito se tem falado sobre o Brasil, lamentavelmente, como país destinatário de “lavadores”. O fato é que as dimensões continentais, a crise moral, a corrupção, os limites de punição são elementos propiciadores da permissibilidade delitiva da qual é objeto nosso país. Além disso, aplica-se uma jurisprudência benevolente e ímpar ao delito econômico-financeiro na qual instrumentos constitucionais, como o habeas corpus, têm sido, com sucesso, manejados de forma tal que, mesmo não havendo violência ou coação à liberdade de locomoção e não se tratando de nulidade manifesta, se obtém sistematicamente a paralisação de feitos.

O senhor considera, então, que falta comprometimento? No Brasil, parece que, ao se repudiar o Direito Penal do Inimigo, se caminha para o Direito Penal do Amigo. A impunidade, como se sabe, estimula a criminalidade à medida que gera sensação de que o crime compensa, e muito. O Brasil deve rever o processo penal, e os órgãos do Estado, incluindo o Poder Judiciário, todo o seu sistema, de forma a ser simplificado desde que não seja prejudicada a defesa. Um sistema recursal enxuto, que possibilite uma revisão do julgado e naquilo que for essencial.

Alguns autores acreditam que a lavagem de dinheiro é o oxigênio da criminalidade organizada. O senhor concorda com isso? O crime organizado não se restringe à criminalidade econômica. Com a globalização, com as economias abertas e transfronteiriças, o delito se internacionalizou e, com ele, a “legitimação” do produto do delito. Uma das características criminológicas essenciais na lavagem de dinheiro constitui a ligação necessária com o crime organizado, provocando notável diversidade, no plano empírico, das condutas que aí se podem cometer.

O que já foi feito para mudar essa realidade? Ou o que precisa ser feito, visto que o crime organizado está cada vez mais sofisticado? A Lei sobre o Crime Organizado (n.º 9.034, de 3 de maio de 1995) está ultrapassada, já que apenas retrata, timidamente, os meios operacionais para a prevenção e repressão das ações praticadas por organizações ou associações criminosas ou quadrilha, levando à conclusão de que haveria conceitos distintos. Entretanto, a Convenção ONU de Palermo sobre o Crime Organizado Transnacional, devidamente internalizada no Brasil desde 2003, define organização criminosa como sendo grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo, que atua concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material. Não existe uma tipificação de “crime organizado”, cuja omissão acaba sendo suprida, invariavelmente, pelo delito de quadrilha ou bando, o que é insuficiente.

Mas há características? Uma das características criminológicas da organização criminosa constitui-se justamente na conexão estrutural ou funcional com o poder público ou com o poder político, com alto poder de intimidação, além da hierarquia estrutural, planejamento empresarial, claro objetivo de lucros, divisão territorial das atividades, conexões local, regional, nacional e internacional com outras organizações etc.

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O que o senhor sugere para alterar esse quadro? Ora, sem conceder garantias, por exemplo, à Polícia Federal, com a instituição da independência funcional e orçamentária, compromete-se o seu legítimo funcionamento. Tal medida a livraria de eventuais ingerências políticas. Também se impõe o estabelecimento de critérios bem definidos que não permitam, nem indiretamente, o comprometimento da credibilidade das nomeações de ministros para os tribunais superiores e de conselheiros para os tribunais de contas, bem como de advogados e membros do Ministério Público (Federal ou Estadual) ao quinto constitucional.

O senhor considera que é preciso sufocar o poder econômico de uma organização criminosa para se ter um resultado eficiente? O surgimento da lavagem de dinheiro como crime buscou justamente o asfixiamento de empresas criminosas com o confisco de bens, permitindo romper com o seu estímulo financeiro. É necessário que esse conceito esteja bem presente para viabilizar o sequestro e a apreensão de bens, quando não há justificativa razoável para a sua manutenção em poder de eventuais criminosos.

Quais são as principais tipologias do crime de lavagem de dinheiro? Estudam-se com muita frequência as tipologias. Hoje as mais conhecidas são o uso de jogos de azar, do futebol, da internet, de offshores, entre outras.

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Quais os principais meios de investigação presentes na legislação brasileira que podem ser utilizados na persecução desses crimes? A legislação brasileira prevê interceptações (telefônicas e de dados de informática), quebra de sigilos, ação controlada, denúncia anônima. Mas o mais importante seria a jurisprudência se firmar para estabelecer os padrões necessários que permitam o combate efetivo do crime organizado. Hoje, quando assistimos ao Supremo Tribunal Federal legitimar muitas medidas dessa natureza em diversos aspectos, tribunais inferiores acabam por desqualificá-las, criando instabilidade e insegurança jurídica. Não se pode decidir sem olhar o todo.

O senhor ganhou notoriedade quando esteve à frente de alguns dos mais rumorosos casos de crimes fiscais, lavagem de dinheiro e corrupção no país. Como o senhor vê o julgamento desses crimes no Brasil? O sistema judiciário brasileiro deve espelhar o esforço individual de muitos juízes em ver bem decididas estas questões, reafirmando a igualdade da lei para todos e inibindo a criação de privilégios inadequados. Precisamos avançar, já que estamos muito longe do ideal. Se desejamos um país de primeiro mundo, temos que desejar, ter e aplicar uma legislação correspondente.

Ainda há muita impunidade? Por que, quando se pede no Brasil senhas de quebra dos sigilos telefônico e bancário, por exemplo, há tanta polêmica? O investimento em atividades legítimas, até por um motivo tão pouco nobre como a necessidade de lavar os capitais ilicitamente obtidos, é um elemento complicador, porquanto se faz necessário bem separar o que é legal e o que não é. A par disso, o legislador brasileiro contemplou um processo penal moroso, com recursos anacrônicos, e existe uma cultura no país de que o Estado, ao agir assim, o faz não como decorrência de um bem-estar geral, mas como inimigo do cidadão.


No que resultam essas atitudes? Permite-se, com isso, toda sorte de manipulação processual de molde que sistematicamente os resultados são a inépcia da denúncia, a prescrição ou o reconhecimento de nulidade. Não se pode negar a realidade, muito menos a lei. A necessidade ético-jurídica de buscar a verdade não pode ser esquecida. Qualquer interpretação exige hoje, assim, a conjugação de valores essenciais que não se limitam aos direitos individuais. Aliás, quanto a estes, não se pode deixar de considerar, na esteira da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789, o direito à segurança como uma garantia vital.

O que o senhor propõe? Devem-se reconhecer todos os direitos, com visão conciliadora, e não minimalista, de forma a não restarem tolhidos valores institucionais, sob pena de deslegitimação dos poderes públicos. Em muitas organizações com finalidades lícitas, as infrações deixam por vezes de ser incidentais, tornando-se quase rotineiras. O pacto constitucional erige a moralidade e a eficiência como um dos pilares da República.

A ação de improbidade administrativa pode ser considerada um instrumento novo no país. Como o senhor vê a atuação do Ministério Público nessa área de combate à corrupção? A sua importância é bastante reconhecida. O Ministério Público exerce um controle sobre a discricionariedade da polícia muito importante e deve se empenhar, em todas as instâncias, para ver abraçadas suas teses. Acredito que, se o mesmo membro do Ministério Público tivesse atribuição para crimes de corrupção e para as ações de improbidade administrativa, avançaríamos no combate à corrupção.

O senhor pode fazer uma análise da atuação do Judiciário, em todas as instâncias, do CNJ, do CNMP e também do Ministério Público? Importante frisar que não se pode ter o monopólio de informações de importância. Deve haver uma coordenação importante pelos órgãos incumbidos do combate. Por isso, Polícia, Ministério Público, Receita, Banco Central, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), entre outros, devem centrar suas ações, sem violação de suas missões básicas e sem afetação. Isso vale também para o Judiciário, aí incluindo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e também o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Deve-se ter sempre em mente qual o real papel de cada qual e o que todos podem fazer para uma Justiça que se qualifique como social e igualitária.

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Entrevista

Padova analisa atuação do

promotor de Justiça criminal Procurador de Justiça diz que a liberdade individual, a dignidade pessoal e a democracia participativa devem ser o estandarte da atividade ministerial Por Neuza Cunha

O procurador de Justiça e ex-corregedor-geral do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) Antônio de Padova Marchi Junior analisa a atuação do promotor de Justiça criminal e lamenta a frequência com que “o princípio da legalidade tem sido atropelado nos denominados crimes de bagatela por um ingênuo propósito de alcançar a punição em homenagem a uma segurança social que nunca se concretiza”. Ele defende que a teoria do garantismo penal deva nortear a atuação do promotor de Justiça. Para Padova, ser garantista não é uma opção, é um dever. Veja essas e outras ponderações do procurador de Justiça, que também é mestre e doutorando em Ciências Penais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor de Direito Penal do Curso de Direito do UNIBH. Antônio de Padova foi corregedor-geral do MPMG por duas vezes. 14


Como o senhor, que já foi corregedor do MP, vê a atuação do promotor de Justiça, especialmente na área criminal? A atuação do promotor de Justiça criminal não tem acompanhado as mudanças sociais e, na essência, permanece a mesma desde o final da primeira metade do século passado, quando entraram em vigor o Código Penal e o Código de Processo Penal. Trata-se, na verdade, de uma mera função de órgão acusador, como se cada um atuasse isoladamente, propondo ações penais sem nenhum outro objetivo senão a condenação do réu. Contribuem para isso o reconhecido déficit no número de promotores de Justiça e o volume exacerbado dos processos que se acumulam nos juízos criminais, o que transforma o cotidiano do órgão de execução numa interminável luta contra as estatísticas, favorecendo a reprodução de denúncias sem a menor preocupação com o elemento diferenciador que remarca a singularidade de cada processo criminal.

Alex lanza

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No que resulta essa situação? Tal prática favorece a seletividade do sistema penal ao permitir condenações em massa dos autores de delitos comuns e, de maneira oposta, grande impunidade em relação aos crimes praticados mediante atos de corrupção e/ou decorrentes da criminalidade organizada. O promotor de Justiça com atribuições na seara criminal não pode perder de vista a importância do seu papel para o fortalecimento da ordem democrática, devendo direcionar sua atuação à consecução de objetivos que vão além da procedência do pedido de condenação.

Quais objetivos seriam esses?

Quando se pensa no futuro, não se imagina uma sociedade sem o absoluto respeito a três direitos fundamentais do gênero humano: a liberdade individual, a dignidade pessoal e a democracia participativa. Sob essa ótica, o trabalho do promotor de Justiça ganha outra dimensão, já que nenhum desses direitos absolutos logrou êxito em se efetivar plenamente no Estado brasileiro, apesar de encontrarem expressa previsão constitucional. Deveriam, pois, ser o estandarte da atuação ministerial. Todavia, assiste-se impassível ao esgotamento da teoria da separação dos poderes, cujo aspecto formalista e incrível dificuldade para ser levada à prática acabam permitindo que um poder prevaleça sobre outro, colocando em risco a própria democracia.

Como funciona essa tripartição? É o que acontece hoje no Estado brasileiro, onde o Poder Executivo exerce enorme influência sobre o Poder Legislativo, na forma de indecorosa barganha política, e também sobre o Poder Judiciário, dada a forma de composição dos tribunais superiores. Além do mais, a eficiência estatal, principal objetivo da tripartição de poderes, jamais foi efetivamente alcançada. O que se observa é a manutenção de velhos privilégios a grupos específicos da sociedade e o consequente incremento da desigualdade entre a população.

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O que o senhor sugere para alterar esse quadro? No atual estágio de desenvolvimento social, a necessidade premente da ordem normativa jurídica brasileira é tornar mais eficiente o combate aos atos de corrupção praticados por ocupantes de cargos públicos, bem como enfrentar a criminalidade macroeconômica e do crime organizado, fatores esses que representam verdadeira ameaça à democracia. Ao mesmo tempo, no outro polo de combate à seletividade do sistema penal, o promotor de Justiça tem o dever de promover as garantias individuais a fim de assegurar maior racionalidade ao poder punitivo estatal. Impressiona o número de acusados presos que poderiam responder soltos ao processo por crimes patrimoniais de pequena monta, ainda mais num país acostumado a seguidos escândalos de ordem financeira. A nova ordem de atuação ministerial no processo penal não pode se contentar com a simples condenação do réu, mas com a concretização de valores e princípios. Em conclusão, o Ministério Público é, ao mesmo tempo, titular da Ação Penal Pública e órgão de fiscalização essencial à democracia, motivo pelo qual a legitimidade do Estado constitucional da democracia participativa e a concretização dos direitos fundamentais dependem de sua correta atuação.

Isso significa que a Justiça continua condenando o ladrão de galinhas e se esquecendo dos crimes cometidos por pessoas de colarinho branco? O que falta para que os grandes crimes não permaneçam impunes? Gostaria de fazer duas observações. A primeira: não se pode debitar à atuação do Ministério Público nem à de nenhuma outra carreira jurídica a responsabilidade pela impunidade verificada nos crimes próprios das classes dominantes, mas ao próprio sistema, que torna a pessoa mais ou menos vulnerável à sanção penal desde a sua classe social. A legislação criminal, por exemplo, prevê sanções muito mais gra-


ves para os crimes violentos, geralmente praticados por quem não possui instrução, do que para aqueles executados mediante fraude, próprio de quem desfruta de refinada inteligência e posição social privilegiada. Também a qualidade da defesa técnica, a histórica tolerância do brasileiro com os desvios de dinheiro público, o conformismo com os delitos cujos resultados não são divisados de maneira imediata, entre outros, podem justificar a aplicação desigual da lei penal. A segunda: os princípios penais de garantia muitas vezes encontram resistência por serem considerados privilégios de bandidos. Nada mais equivocado. Na verdade, quando o promotor de Justiça nega os valores constitucionais, acaba por conferir certa iniquidade ao Direito Penal, além de favorecer a má distribuição da pena (seletividade). Afinal, nem todo denunciado conseguirá escapar da condenação, e casos semelhantes terminarão por serem decididos de maneira diversa.

Então faltam soluções realmente justas? Exemplifique. Causa perplexidade, por exemplo, a frequência com que o princípio da legalidade, embora formalmente recepcionado tanto na Constituição da República como no primeiro artigo do Código Penal, tem sido atropelado nos denominados crimes de bagatela por um ingênuo propósito de alcançar a punição em homenagem a uma segurança social que nunca se concretiza. Indicadores fornecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional registraram, no primeiro semestre deste ano, uma população carcerária de 49.137 presos em Minas Gerais, sendo 11.133 custodiados em estabelecimentos ainda vinculados à Polícia Judiciária, e 38.004 já integrados no sistema penitenciário. Desses últimos, 20.793 – quase dois terços do total sob a responsabilidade da Secretaria de Estado de Defesa Social – são presos provisórios. Além disso, apenas 109 presos têm ensino superior completo e outros 11 cursaram pós-graduação. A grande massa carcerária – mais de 26 mil presos – não possui o ensino fundamental completo. Outro item que chama a atenção é o grande número de sentenciados por crimes patrimoniais (17.146) contra inexpressivos sentenciados por crimes contra a Administração Pública (19). É preciso, pois, que a atuação do Ministério Público seja voltada para uma solução penal mais adequada, justa e equilibrada, denotativa de que outras frentes podem e devem ser estabelecidas para o controle da criminalidade.

O senhor entende que a teoria do garantismo penal deveria nortear a atuação do promotor de Justiça? Embora essa não seja uma posição de consenso, é como considero, até porque ser garantista não é uma opção do membro do Ministério Público, mas um dever ao qual ele jurou solenemente fidelidade no ato de sua posse. Não tenho nenhuma dúvida de que, se assim fosse, o Ministério Público teria o poder de modificar todo o sistema penal, independentemente da atuação dos demais atores, como o advogado, o juiz, o defensor público e o delegado de Polícia. Afinal, num sistema acusatório puro – ideal que considero mais importante para a classe do que a investigação criminal –, a promoção de arquivamento do inquérito policial e o pedido de absolvição no curso do processo, quando adotados pelo promotor de Justiça na qualidade de titular da Ação Penal Pública, vincularia o próprio Poder Judiciário.

Para o senhor, a teoria do garantismo ainda não é bem aplicada ou entendida? Uma compreensão equivocada do real significado da teoria do garantismo levou à concepção pejorativa do emprego do vocábulo, utilizado não raras vezes para rotular negativamente os promotores de Justiça preocupados não apenas com a acusação, mas também com a correta aplicação da lei, como se a atuação de todos não se submetesse à observância dos princípios constitucionais. Conforme observado por Ferrajoli, na cultura política e no senso comum, prevalece frequentemente o obséquio ao direito vigente e aos seus modos – mesmo ilegais – de funcionamento prático, pelo que a perspectiva garantista requer a dúvida, o espírito crítico e a incerteza permanente sobre a validade das leis e de suas aplicações.

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Então ainda há dúvidas para a sua aplicação? O sistema penal brasileiro ainda não experimentou o garantismo em sua plenitude, e o titular da Ação Penal Pública tem muito a ver com esse quadro. Não é demais esperar que o promotor de Justiça requeira a prisão processual somente nos casos de real necessidade; que postule condenações condizentes com a culpabilidade do sentenciado; que prefira as penas restritivas de direitos em detrimento das privativas de liberdade, bem como o regime menos gravoso frente ao regime fechado e, agora, com o advento da lei n.º 12.403/2011, as medidas cautelares à prisão preventiva. Esse é o espírito que, no meu modo de pensar, deveria nortear a atuação do Ministério Público na seara criminal.

Nesse sentido, quais são as implicações dessa nova lei que modificou as regras da prisão e da liberdade provisória? Aqui o próprio legislador deixou registrada a opção pelo garantismo penal na exposição de motivos do anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal, transformado no Projeto de Lei n.º 156/2009 no Senado, cujo título referente à prisão, medidas cautelares e liberdade provisória foi em boa parte reproduzido no texto da nova lei. Naquela oportunidade, afirmou o legislador que as garantias individuais não são favores do Estado e sua observância é exigência indeclinável, apontando o garantismo consequente como pauta mínima do Estado Democrático de Direito. Se as mudanças anunciadas pelo novo texto processual vão acontecer ou não, dependerá da forma de atuação dos operadores do Direito, especialmente do promotor de Justiça. O Legislativo teve o mérito de criar instrumentos para que fossem respeitados os princípios penais e processuais de garantia. Resta agora torná-los efetivos.

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Na sua análise, quais são os principais destaques dessas novas regras? A primeira inovação merecedora de destaque é o tratamento destinado à prisão preventiva, que deixou de ser a medida cautelar para converter-se em uma das medidas cautelares possíveis. A nova lei foi generosa ao estabelecer a prisão domiciliar e outras nove medidas cautelares diversas da prisão preventiva, entre elas a fiança sob nova roupagem, medidas essas que poderão representar uma significativa redução da prisão no curso do processo. Nesse sentido, vale perceber que o princípio da presunção de não culpabilidade foi tomado como diretriz principal a ser perseguida doravante, tanto que a medida extrema só será tomada se as demais se mostrarem inadequadas ou insuficientes. Além do mais, a prisão em flagrante fica sem efeito caso não seja motivadamente convertida em prisão preventiva.

E quanto à prisão temporária? Outro aspecto importante é o cabimento da prisão temporária no curso do processo, pois até então só era permitida na fase do inquérito policial. Por outro lado, perdeu-se a oportunidade de conferir maior precisão às hipóteses autorizadoras da prisão preventiva, mantendo-se as expressões que tantas discussões têm produzido. Desse modo, o conceito de ordem pública, os fatos prejudiciais à instrução criminal e os que colocam em risco a aplicação da lei penal continuaram incertos e vinculados ao poder discricionário do juiz, afastando-se do princípio da estrita legalidade. Mais do que nunca, portanto, o promotor de Justiça deve ajustar sua atuação aos princípios penais de garantia para que os fins almejados pela nova lei sejam alcançados.


Reforma do CPP causa empolgação e críticas Instituído por Getúlio Vargas, código foi remendado durante décadas, e operadores do Direito dizem que é preciso exercício de interpretação para que seja aplicado de forma constitucional

Por Eduardo Curi

Os atores do sistema de Justiça criminal estão com sentimentos mistos de esperança e desconfiança. Está em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n.º 8.045/2010, que institui a reforma do Código de Processo Penal (CPP). 19


A reforma é estrutural e vem para substituir totalmente o Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941, redigido por Francisco Campos (que também redigiu o Código Penal e o Ato Institucional de 9 de abril de 1964, que “legitimou” a ditadura militar) e instituído por Getúlio Vargas durante a vigência do Estado Novo. “O simples fato da legitimidade de quem o propôs já justificaria uma reforma para ser aprovada pelo Congresso Nacional”, comenta o desembargador da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais Herbert José Almeida Carneiro. O código - com influência fascista evidente - tem cunho inquisitorial e veio gerando conflitos para a sua aplicação ao longo do tempo, principalmente, após a Constituição Federal de 1988. Vários remendos tentaram sanar esse problema, o último deles aprovado recentemente pelo Congresso Nacional com a Lei n.º 12.403, que trata sobre prisão processual, fiança, liberdade provisória e medidas cautelares. “O CPP vem sobrevivendo com uma série de dificuldades de todas as partes”, diz o procurador de Justiça e professor de direito processual penal Epaminondas Fulgêncio Neto, que também foi procurador-geral de Justiça entre 1995 e 1999, no Ministério Público de Minas Gerais. “Com o tempo, diversas leis foram alterando dispositivos e fazendo, de certo modo, uma colcha de retalhos no CPP para permitir que ele fosse mais atualizado”, diz o advogado criminal Rodrigo Otávio Pacheco. Além dessas reformas, os juristas precisam fazer um exercício de interpretação do código para que consigam aplicá-lo de forma constitucional. “O que eu creio na realidade é que trabalhar com o CPP no estágio atual do Estado Democrático de Direito exige de todos os atores do sistema de Justiça criminal a sua releitura à luz da Constituição Federal de 1988”, diz o delegado de Polícia da Superintendência de Investigações e Polícia Judiciária Daniel Barcelos Ferreira, que completa dizendo que “é preciso uma reforma estrutural no processo penal. Uma reforma que venha a modificar a coluna vertebral do processo penal brasileiro”.

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Para o delegado, esses remendos são muito prejudiciais, porém, ainda assim, são importantes para adaptar a lei à realidade atual do país. O advogado Rodrigo Otávio dá um exemplo prático sobre a necessidade de adaptação das normas à realidade, com os prazos do inquérito policial, que precisa ser concluído em dez dias se o acusado estiver preso, e em 30, se ele estiver solto. “Hoje nós sabemos que a realidade dificilmente nos proporciona a possibilidade de término de um inquérito policial com esse prazo”, diz. “O atual CPP, concebido durante a ditadura do Estado Novo, mesmo após as grandes mudanças feitas, continua tendo viés inquisitorial. As reformas pontuais tiraram do CPP a sistematicidade que se espera de todo código. Falta harmonia ao código. Além de vários dispositivos que não estão em conformidade com a Constituição. A única forma de resolver isso é com um novo CPP”, diz o senador da República Demóstenes Lázaro Xavier Torres, que é presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado e da Comissão que está reescrevendo o Código de Processo Penal.

Nova proposta para o CPP Uma das principais mudanças previstas com a reforma é a transição para o sistema acusatorial. Nele, o juiz não poderá mais requisitar a produção de provas para suprir eventuais falhas na fase de investigação. “O [novo] CPP apresenta uma coisa notável, a limitação do juiz em produzir provas. Ao juiz não era dado mesmo produzir provas que pudessem suprir uma eventual deficiência do Ministério Público, ele estaria produzindo provas com objetivos condenatórios”, comenta Epaminondas Neto. Já Herbert Carneiro explica que, atualmente, o CPP tem caráter inquisitorial e isso é incompatível com os direitos e garantias previstos na Constituição de 1988. “No processo acusatório, o juiz é mui-


to mais imparcial”, diz Herbert, ao comparar com o fato de que hoje o juiz pode resolver um processo sozinho, produzindo provas sem a participação das partes. Daniel Barcelos também comemora a mudança. Ele explica que a investigação policial irá fornecer dados tanto para a defesa quanto para a acusação, dando a “paridade de armas”, pilar do sistema acusatório e necessária para o trabalho de ambas as partes. Ele completa que essa mudança permitiria, inclusive, certa medida de contraditório já no inquérito, desde que não inviabilize a própria investigação – como em um procedimento de escuta telefônica em que não seria razoável intimar a parte investigada para que ela se manifeste sobre o ato.

Vítima ganha capítulo à parte “Eu destacaria a preocupação do projeto com a vítima”, afirma o procurador de Justiça Epaminondas Fulgêncio Neto. Ele explica que o conceito de preocupação com a vítima foi incorporado ao código a partir das discussões trazidas pela Lei Maria da Penha. “A preocupação sempre foi com o réu”, completa o procurador de Justiça. Conceito inovador no direito penal brasileiro, a vítima, agora, tem um capítulo à parte no código e passa a ter vários direitos, ganhando uma atenção do Estado muito maior do que no atual sistema. Quem sofrer um crime será comunicado das movimentações do inquérito policial, assim como da soltura de seu algoz. Também estão previstas medidas de amparo social, como assistência financeira e psicológica para as vítimas.

O senador Demóstenes afirma que essa foi uma questão bastante discutida. “O novo CPP procurou dar tratamento mais digno à vítima, o que inclui dar ciência a ela das intercorrências processuais”, diz. Ele considera salutar essa medida. “É certo que em alguns casos a vítima ficará preocupada, como quando souber que o ladrão que praticou contra ela um roubo está novamente nas ruas”, completa.

O novo CPP procurou dar tratamento mais digno à vítima, o que inclui dar ciência a ela das intercorrências processuais” Agência Senado

Demóstenes Torres

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Juiz das garantias – é melhor para o cidadão? “Eu não tenho dúvida disso”, sentencia Herbert Carneiro, ecoado por Epaminondas: “Eu acho notável. A nós, do Ministério Público, interessa e muito.” Apesar da empolgação, a medida – que prevê um juiz atuando na fase de inquérito e outro na de julgamento - vem sofrendo críticas em virtude da sua implementação, tendo o Congresso Nacional sido avisado dos problemas pelo Conselho Nacional de Justiça. Um dos empecilhos detectados é o fato de cerca de 40% das comarcas do país, em nível estadual, serem de vara única, ou seja, possuírem apenas um juiz, encarregado de toda a jurisdição, cível e criminal. Com isso, quando um juiz atuasse em uma causa na fase de inquérito, ficaria impedido de julgá-la, causando mais demora e despesas e aumentando o risco de crimes de menor potencial ofensivo prescreverem antes do julgamento. Demóstenes Torres tem uma visão mais otimista da situação: “Não há razão para esse descontentamento. O juiz que trabalha sozinho em uma comarca goza férias, tira licença médica e usufrui todos os direitos que os seus colegas que atuam em comarcas com mais de um juízo. E, nos seus afastamentos e impedimentos, quem o substitui? O substituto automático, ou seja, o mesmo que exercerá o papel de juiz das garantias.” Além disso, “vejo como positivo o fato de o juiz que teve contato com a investigação preliminar não presidir a instrução processual. Isso, certamente, preserva a imparcialidade do juiz”, ressalta.

O propósito é o mais nobre, garantista e constitucional possível, mas para a nossa realidade eu acho um tanto quanto ainda distante”

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Mas, apesar dos problemas operacionais, se efetivamente implantada, a medida irá tornar os julgamentos mais céleres, como acredita o desembargador Herbert Carneiro: “Se tivéssemos, nas nossas quase 4.000 comarcas, dois juízes em cada uma delas, eu diria ‘aplica que isso vai dar certinho, vai ser uma beleza’, mas não é a nossa realidade. O propósito é o mais nobre, garantista e constitucional possível, mas para a nossa realidade eu acho um tanto quanto ainda distante.” Já há experiências no sentido de se ter dois juízes na causa. Em algumas comarcas mais bem estruturadas, existem varas específicas para cuidar dos inquéritos. Nessas varas, o juiz não atua na instrução criminal, apenas analisa a legalidade dos atos de investigação, como pedidos de prisão preventiva ou escuta telefônica dos acusados. Para Rodrigo Otávio, a medida é uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo que o juiz sentenciante não estaria contaminado por ter acompanhado as investigações e, quiçá, ter formado uma convicção sobre o acusado – qualquer que seja, inocente ou culpado –, o advogado considera que um juiz que acompanhou todo o processo de investigação estaria mais bem informado sobre o caso. Com isso, daria uma decisão mais justa e, caso a sentença fosse viciada, haveria a possibilidade de se recorrer ao tribunal, onde a turma, composta de três desembargadores, daria uma decisão efetivamente isenta.

TJMG

Herbert Carneiro


Delegado de Polícia, primeiro juiz da causa O novo código irá alçar o delegado de Polícia à condição de primeiro juiz da causa. O jargão, usado pela Polícia Civil, é explicado por Daniel Barcelos: “O delegado de polícia é aquele operador do direito que vai realizar, ainda no momento de tormenta e tensão emocional em relação ao acontecido, a primeira adequação jurídica do fato ao Direito, e não é possível que essa adequação seja feita como era antes de 1988, partindo do pressuposto de que o investigado ou preso em flagrante era culpado. Hoje nós partimos de uma premissa absolutamente inversa”, diz. Para Daniel, ao se fazer uma releitura do atual CPP, é possível alçar o delegado a tal condição, mas com a reforma isso será trazido de forma literal. O delegado poderá analisar eventuais descriminantes (fatores circunstanciais que tornam legítima uma conduta tipificada como crime), permitindo, inclusive, que a autoridade policial decida pelo não encarceramento, mesmo se a prisão ocorrer em flagrante. “Nós sempre defendemos a posição de que o delegado, no momento da prisão, tem a obrigação de analisar se existem indícios consistentes de que uma conduta tenha sido praticada sob o manto de alguma excludente de ilicitude e, se assim for, que não se realize o encarceramento daquele sujeito. Uma das maiores vitórias do novo CPP é a previsão de que o delegado deverá analisar as eventuais excludentes no momento da prisão em flagrante”, comemora o delegado. Evitar o encarceramento desnecessário parece ser uma das grandes preocupações do novo código. Uma das razões para essa preocupação é a situação dos presos provisórios no Brasil. Segundo Herbert Carneiro, hoje há cerca de 90 mil presos nessa situação, alguns sob alegações abstratas. Herbert, inclusive, lembra-se de um caso em que o cidadão está preso preventivamente há nove anos. A matéria foi alvo da última alteração (Lei n.º 12.403/11) e será incorporada na reforma. “Prisão cautelar não é antecipação de pena”, diz Daniel, que explica que o delegado de polícia poderá arbitrar sobre a questão quando ocorrerem prisões em flagrante, que não são mais consideradas cautelares. O rol de crimes em que a liberdade pode ser condicionada à fiança aumentou, além do que o delegado não precisará manter alguém preso quando o crime tiver pena inferior a quatro anos. Nesses tipos de crimes, dificilmente o acusado receberá uma pena privativa de liberdade ao fim do processo judicial, e não faria sentido que ele ficasse preso antes da deflagração da ação penal. Outra alteração relativa à prisão cautelar é a fixação de prazos para a prisão preventiva, com tetos baseados na pena. Dessa forma, a manutenção

da privação de liberdade terá de ser bem fundamentada para que o acusado continue preso. E se o investigado conseguir a liberdade, ainda assim o juiz poderá determinar medidas cautelares para que ele não crie obstáculos à apuração, como proibição de frequentar determinados locais ou até mesmo o monitoramento eletrônico. “Há uma má compreensão da sociedade de que prisão é remédio para todos os males”, diz Rodrigo Otávio. Daniel Barcelos concorda com o advogado. Ele acredita que um dos grandes culpados por isso é a mídia que “vende sangue”. “Há um equivoco muito grande entre o que a realidade jurídica nos impõe e o que o clamor social nos pede”, diz Daniel.

Há um equívoco muito grande entre o que a realidade jurídica nos impõe e o que o clamor social nos pede” Divulgação

Daniel Barcelos

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Ação Penal Condicionada: aumenta ou diminui acesso à Justiça? Epaminondas Neto critica veemente o instituto da Ação Penal Condicionada, “o afastamento da possibilidade de o particular se dirigir diretamente ao Poder Judiciário é uma temeridade”, diz. Pelo novo código, o cidadão não poderá mais deflagrar uma ação penal em crimes contra a honra, por exemplo. Ele deverá representar ao Ministério Público para que a Instituição aja em seu nome, processando o acusado.

A medida parece ter dois vieses. Ao mesmo tempo em que o acesso à Justiça parece estar sendo cerceado, ele pode estar, na verdade, sendo ampliado. É o que acredita Herbert Carneiro. Para o desembargador, quem antes não tinha acesso à Justiça – principalmente, por falta de recursos financeiros – poderá fazer uma representação ao MP para que a Instituição o defenda.

Código não impede investigação do MP “Com todo respeito àqueles que pensam de maneira diferente, me parece que a Constituição Federal não deu ao MP poder investigativo”, afirma Daniel Barcelos. Para ele, a discussão não deveria ser apenas se o Ministério Público pode ou não investigar, mas também, a de dar aos delegados as prerrogativas necessárias para que eles possam investigar com a independência necessária. Para o delegado, se o MP pode requisitar a instauração do inquérito, acompanhar a investigação e requisitar diligências, não é viável que também possa investigar por conta própria. Epaminondas Neto tem uma opinião diametralmente oposta. “Evidente que o Ministério Público pode investigar”, afirma o procurador de Justiça. Para ele, o mecanismo do controle externo da ativida-

de policial criado pelo legislador constituinte implicou em uma maior aproximação do MP e da Polícia para que eles trabalhem juntos, já que o Ministério Público é o destinatário da investigação. “Lamentavelmente, questões que não foram técnicas nem científicas impediram que esse dispositivo fosse regulamentado”, diz. Para o procurador de Justiça, existem aspectos das teorias dos poderes implícitos e explícitos que permitiriam ao MP proceder a uma investigação criminal quando achar conveniente. “É preciso ter coragem para dizer: é eletivo mesmo. O MP escolherá, fundado em parâmetros de interesse público, o que irá investigar”, diz Epaminondas. Daniel rebate esse argumento, dizendo que, pela mesma lógica, um juiz poderia oferecer uma denúncia. Além disso, para o delegado, a falta de legislação

Alex Lanza

Epaminondas Fulgêncio Neto

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É preciso ter coragem para dizer: é eletivo mesmo. O MP escolherá, fundado em parâmetros de interesse público, o que irá investigar ”


que regulamente a investigação criminal pelo MP dá margem a várias dúvidas, pois não há determinações sobre quais seriam os prazos dessa investigação ou como ela seria materializada. Epaminondas acredita que a reforma está perdendo uma grande oportunidade para sepultar de vez todas essas questões. Demóstenes Torres, no entanto, explica que se optou por “não autorizar expressamente no CPP a investigação criminal por parte do Ministério Público. Mas também não impediu. Como a questão está sendo discutida no Supremo Tribunal Federal, o novo Código já poderia nascer defeituoso. Particularmente, entendo que o Ministério Público está legitimado pela Constituição a promover investigação. Evidentemente que o inquérito policial deve ser presidido sempre pelo delegado de polícia”.

Divulgação

Justiça mais célere é objetivo do novo CPP Um dos principais motivos para se reformar o Código de Processo Penal é a necessidade de dar mais celeridade ao processo. Essa motivação é vista como justa, mas gera certa desconfiança, dependendo do lado em que se está. O advogado Rodrigo Otávio não concorda com o discurso de que é preciso reformar o código para se dar mais celeridade ao processo. Ele explica que qualquer reforma que vise torná-lo mais simplificado deve esbarrar em uma limitação do direito de defesa. “Para se dar mais celeridade ao processo, é preciso que o Estado estruture a Polícia, o Poder Judiciário e o MP, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF)”, diz. Rodrigo concorda que o código precisa ser melhorado, mas afirma que o problema da morosidade da Justiça não é o diploma legal. “Não se pode creditar à lei uma deficiência estrutural do sistema”, afirma. Ele também critica a diminuição da possibilidade de recursos e teme que a medida gere injustiças. Herbert Carneiro diverge. “Não é o fato de reduzir um ou outro instrumento processual que reduz o direito do cidadão ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório. Esses princípios estão muito mais arraigados nesse projeto agora do que no código atual”.

Rodrigo Otávio Soares Pacheco

Se em mil processos, cem culpados forem absolvidos, tolera-se. O que não se tolera é que um inocente seja condenado”

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Presídios superlotados e presos em condições subumanas Para especialistas, falta interesse político em resolver o problema, e a solução não vem em curto prazo, mesmo após as reformas do Código de Processo Penal Por Flávio Pena

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O Brasil possui 3.705 estabelecimentos prisionais espalhados nos 26 Estados e no Distrito Federal. Mas esse número não é suficiente para abrigar os quase 479 mil presos. Faltam, segundo um levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cerca de 147 mil vagas. Em Minas, a situação é parecida. São 348 estabelecimentos prisionais que não dão conta dos mais de 48 mil presos. Pela pesquisa do CNJ, existe um déficit no Estado de aproximadamente 14 mil vagas. Essa pesquisa confirma que alguns presídios estão superlotados e que faltam locais para abrigar presos. Mas a situação carcerária brasileira não se resume a falta de estabelecimentos prisionais. Muitas outras questões devem ser observadas nessa área. Para a jurista e professora da Universidade de São Paulo (USP) Ada Pellegrini, em vários presídios brasileiros “os presos vivem em condições subumanas, e a Lei de Execução Penal não é respeitada”. A professora tenta achar uma explicação para a falta de estabelecimentos prisionais no país. Sobre o assunto, ela é categórica ao afirmar que “não há interesse político em resolver o problema, porque construir novos presídios nessa tendência atual de serem menores, mais bem geridos e mais bem organizados, não dá ibope político”. Enquanto isso, os presos, segundo Pellegrini, sofrem com todo tipo de desrespeito aos direitos humanos. Para a professora, também faltam organização e manutenção no sistema carcerário brasileiro. Ela cita um caso em que a Justiça tentou encontrar solução para pessoas que estavam presas em contêineres por falta de vagas em presídios. A professora afirma que essa situação degradante levou juízes a determinar que o Estado do Espírito Santo construísse estabelecimentos apropriados para receberem essas pessoas. Entretanto, não havia verba. “Essa ideia de construir presídios não cai no gosto da população que vota e, portanto, não cai no gosto dos políticos. Com isso, ficamos efetivamente num impasse”, disse a professora, complementando com a afirmação de que uma alternativa seria privatizar alguns estabelecimentos prisionais. Ada Pellegrini também menciona, como sendo medida paliativa para o problema, as mudanças trazidas pela Lei n.º 12.403, que reformou este ano artigos do Código de Processo Penal (CPP). Segundo a professora, a introdução no CPP da liberdade provisória com vínculos pode, até certo ponto, ajudar a aliviar o problema carcerário brasileiro. Entretanto, ela reforça que “o problema existe, é imenso e, pelo visto, a solução não vem em curto prazo”. Já o promotor de Justiça Rodrigo Iennaco, também ouvido sobre as mudanças no CPP, afirma que ainda é prematuro dizer se haverá diminuição na quantidade global de presos. “Se o impacto efetivamente será a redução do número de pessoas encarceradas, isso é muito cedo para se dizer, porque a rotatividade de presos hoje em dia é muito grande, pois vivemos numa realidade em que a criminalidade está massificada.” Para ele, o que poderá ocorrer é um rodízio maior, e não necessariamente uma redução significativa do número de pessoas encarceradas.

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Alex Lanza

Prisões sob a ótica do CPP reformado A Constituição Federal, segundo especialistas, norteou as mudanças feitas este ano no CPP. A reforma teria seguido princípios constitucionais, segundo os quais ninguém será privado da liberdade sem o devido processo legal; ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória e ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança. Em relação às prisões, o CPP reformado amplia algumas prerrogativas do Ministério Público. O artigo 306 afirma que a Instituição será comunicada imediatamente quando houver a prisão de qualquer pessoa. Essa medida não estava anteriormente prevista no dispositivo legal, conforme afirmaram especialistas.

Ada Pellegrini Alex Lanza

Rodrigo Iennaco

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Mais fiscalização pelo MP Para o promotor de Justiça Rodrigo Iennaco, o Ministério Público, diante do CPP reformado, terá de ampliar a fiscalização dos presídios e terá uma maior demanda de análise preliminar de casos de prisão em flagrante. Esse tipo de prisão, segundo Iennaco, não garante mais que a pessoa ficará presa. Outros requisitos também deverão ser obedecidos. A concessão de liberdade nesses casos pode gerar, de acordo com o promotor de Justiça, dificuldade de entendimento da população. “As pessoas podem questionar por que um indivíduo que praticou um crime e foi preso em flagrante está solto.” A resposta está na Constituição Federal, que garante ao acusado, em regra, o direito de responder ao processo em liberdade. “Apenas em casos excepcionais, o indivíduo deve ter sua liberdade restrita”, afirmou. Entretanto, Iennaco se diz preocupado com a concessão de liberdade provisória a pessoas que possam vir a atrapalhar o andamento do processo. “Há o risco de uma interpretação desviada daquilo que efetivamente está na lei, pois foi reduzido o espectro de crimes que são passíveis da prisão preventiva”, afirmou.


No CPP original, a regra, segundo Iennaco, era a prisão, e a exceção consistia na concessão da liberdade provisória. Alterações posteriores, algumas decorrentes da Constituição de 88, inverteram essa perspectiva. Segundo o promotor de Justiça, a tendência agora é a concessão de medidas cautelares alternativas, reservando a prisão apenas para casos graves e hipóteses de justificada necessidade e conveniência. O CPP reformado também estabelece que as pessoas presas provisoriamente ficarão separadas daquelas que já tiverem sido condenadas definitivamente. Em outra parte, o código diz que o juiz não pode mais decretar de ofício prisão preventiva na fase de investigação policial. A medida passa a ser possível apenas na fase judicial. “Na fase investigatória, o juiz apenas pode decretar a prisão preventiva caso seja requerida pelo Ministério Público ou por representação da autoridade policial”, afirmou Rodrigo Iennaco. O promotor de Justiça também afirma que “o juiz não poderá converter a prisão em flagrante em prisão preventiva sem manifestação policial ou ministerial. No entanto, poderá decretá-la de ofício ao pronunciar o acusado ou, nos demais casos, posteriormente ao recebimento da denúncia”. Especialistas afirmaram também que, no CPP reformado, o delegado ganha mais poderes a partir da possibilidade de estipular fiança em certos crimes. “Antes, a autoridade policial somente poderia arbitrar fiança nas hipóteses de infrações apenadas com detenção ou prisão simples. Nos demais casos, apenas a autoridade judicial poderia fazer isso. Com a nova redação do artigo 322 do CPP, a autoridade policial pode conceder fiança nos casos de infração cuja pena máxima não seja superior a quatro anos”, afirmou Iennaco.

Estabelecimentos prisionais no Brasil Fonte: CNJ – data da pesquisa: 12/08/2011

560 penitenciárias; 46 colônias agrícolas, industriais ou similares; 80 casas do albergado; 2.521 cadeias públicas, casas de detenção ou similares; 31 hospitais de custodia e tratamento psiquiátrico; 453 delegacias; 14 não classificados. Total de estabelecimentos prisionais no Brasil: 3.705 Número de vagas nacionais: 332.281 Número de presos: 478.133 Déficit de vagas: 146.095

Números de Minas Gerais Número de vagas em presídios: 34.342 Número de presos: 48.062 Déficit de vagas: 13.720 Estabelecimentos prisionais: 348 Presos: 45.130 Presas: 2.932

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Há carência de uma política de ressocialização mais eficaz Para o coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) do Ministério Público de Minas Gerais, promotor de Justiça Joaquim Miranda, “o sistema penitenciário brasileiro tem passado por amplas reformas nos últimos anos, com a construção de inúmeras prisões. Mas o certo é que os cerca de 500 mil presos significa um contingente considerável, com as mais variadas carências, entre as quais a de uma política de ressocialização mais eficaz”.

O coordenador do Caocrim disse que algumas mudanças estão sendo feitas, mas alguns pontos sensíveis ainda persistem. “Eu apontaria em especial o número de vagas no regime compatível com a demanda; a criação urgente de condições ideais para cumprimento de pena nos regimes semiaberto e aberto, bem como a correta fiscalização e acompanhamento daqueles que desfrutam de benefícios ou de penas alternativas, como as restritivas de direitos.”

Brasil na frente Joaquim Miranda também falou sobre a Lei de Execuções Penais brasileira, que, segundo ele, é uma das mais avançadas do mundo. Para o coordenador do Caocrim, o que “falta mesmo é a implementação plena dos institutos ali previstos, como conselhos da comunidade atuantes”. Segundo ele, o Estado tem de promover a punição dos culpados, mas sem esquecer que o preso também “precisa de ajuda para se reerguer e para aprender a trilhar o caminho correto”. Sobre as reformas realizadas no CPP,

Joaquim Miranda disse que elas são bemvindas, mas que alguns pontos devem ser observados na hora de soltar os infratores. “O Estado democrático não pode prender indiscriminadamente, mas as medidas alternativas à prisão também não podem ser aplicadas sem qualquer critério, simplesmente porque serão menos gravosas do que o cárcere.” Para ele, o Ministério Público deve “estar atento para os casos de real necessidade de aprisionamento cautelar de quem quer que seja”.

Tornozeleira: experiência de sucesso Entre as medidas cautelares diversas à prisão, o coordenador do Caocrim falou sobre a tornozeleira eletrônica, que, para ele, deve ser colocada apenas em pessoas não perigosas e que não demonstrem interesse em fugir. Ele deu o exemplo de um trabalhador, com residência fixa e que eventualmente praticou um delito sem

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violência ou grave ameaça. “Em casos assim, o monitoramento eletrônico, via tornozeleira, pode se mostrar mais recomendável do que a mera prisão. O Ministério Público também pode requerer do juiz que sejam fixadas regras claras e rígidas sobre aonde a pessoa pode ou não ir e em quais horários”, afirmou.


Para Joaquim Miranda, o uso de tornozeleira eletrônica é uma tendência mundial. “Na Argentina, o dispositivo tem sido comum até em casos de desentendimentos familiares.” Ele também deu o exemplo de Minas, onde, segundo ele, foi realizada uma experiência de sucesso. “O sistema funcionou muito bem, e estamos em fase de implementação de pelo menos 3.000 unidades ainda para este ano de 2011”, afirmou. As mudanças do CPP também trarão reflexos ao Ministério Público. “A nova lei exigirá do membro do Ministério Público um cuidado mais intenso no exame preliminar da necessidade ou não da prisão do indiciado”, disse Miranda, complementando com a afirmação de que é possível diminuir a população carcerária. Ele ainda falou do trabalho dos promotores de Justiça na análise da situação dos quase 20 mil presos provisórios em Minas. “Muitos deles não cometeram delitos de intensidade tal que justifique manter a prisão. Uma análise mais criteriosa implicará,

sem dúvida, a possibilidade de liberação de alguns milhares de detentos”, disse. O coordenador do Caocrim também falou sobre a atuação do Ministério Público na fiscalização dos presídios. “Em um primeiro momento poderia ser visto como o mero cumprimento de uma obrigação legal. Mas, para o preso pode significar um alento, pois o promotor de Justiça pode ser o instrumento eficaz para coibir abusos, excessos ou desvios na execução da pena.” Ele disse ainda que, para a administração penitenciária, a visita do promotor de Justiça deve ser vista como uma garantia de lisura e apoio. Já para a família do preso, significa, de acordo com Miranda, a certeza de que a execução penal obedecerá rigorosamente as previsões legais. E, finalizando, o coordenador do Caocrim disse que, para o promotor de Justiça comprometido, a visita aos presídios traz uma sensação de realização, pois é possível fazer alguma coisa concreta para ajudar o próximo.

Alex Lanza

O promotor de Justiça pode ser o instrumento eficaz para coibir abusos, excessos ou desvios na execução da pena”

Joaquim Miranda

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As ações da criminalidade são cada vez mais articuladas e organizadas. O combate a esse tipo de crime também exige muita organização e integração. E é o que tem acontecido entre os Ministérios Públicos de todo o Brasil, que, juntos com os órgãos de defesa social - Polícia Técnica e Polícias Civil e Militar -, Secretarias de Governo e Poder Judiciário, travam uma batalha para que os grupos criminosos sejam efetivamente responsabilizados por seus atos. Se as quadrilhas se organizam de uma forma praticamente perfeita e o crime se sofistica, o trabalho desses órgãos deve também se ampliar e aperfeiçoar, visando sempre a segurança da sociedade.

A difícil missão de combater o

crime organizado Por Neuza Cunha

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Mas nem tudo é uma maravilha. Nem sempre se obtém um resultado satisfatório. São vários os desafios, como ausência de leis específicas de combate ao crime organizado e de estrutura dos órgãos responsáveis pelo enfrentamento dessas organizações criminosas, além de medidas para reduzir as desigualdades sociais, entre tantos outros. O procurador de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate ao Crime Organizado (Caocrimo) do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), André Estevão Ubaldino Pereira, e o juiz federal Jorge Gustavo Macedo Costa, revelam nesta reportagem os benefícios da ação integrada e as dificuldades para o combate a esses crimes. O procurador de Justiça André Estevão Ubaldino Pereira cita a relevância da ação conjunta para o enfrentamento do crime organizado. Ele explica que as atividades das organizações criminosas comumente se desenvolvem em territórios bastante amplos, indefinidos, que normalmente não são cercados por fronteiras de qualquer espécie. “Então a única forma

de as instituições terem o mínimo de chance de êxito é exatamente articulando, convergindo seus esforços, através de um processo de progressiva integração. Por isso é que nós temos apostado nesse modelo há vários anos”, diz. O juiz federal Jorge Gustavo Macedo Costa concorda que o êxito no combate à criminalidade organizada pressupõe a integração entre os diversos órgãos responsáveis pela sua repressão. “O próprio nome já sugere que o crime é ‘organizado’, o que impõe, de outro lado, ação organizada e coordenada de quem tem a responsabilidade de combatê-lo”. Com o mundo globalizado, explica o juiz federal, temos diversos segmentos e setores da sociedade que, infelizmente, ainda são permeáveis às ações criminosas organizadas. “Temos um país com grandes dimensões e enormes fronteiras, e com uma desigualdade social muito grande. Esses fatores, a meu ver, facilitam a ação das grandes organizações, a despeito do belo trabalho que vem sendo feito pelas autoridades”, complementa.

Estrutura Se há estrutura suficiente para conduzir as ações de combate ao crime organizado, tanto nos Ministérios Públicos quanto nas Polícias, André Ubaldino disse que não. “Nós temos tentado nos organizar, convergir nossos esforços para atingir esse resultado. Não chegamos ainda ao ponto que desejamos”, enfatiza. Jorge Gustavo, entretanto, observa que a estrutura melhorou muito nos últimos anos. Para o juiz Jorge Gustavo, o Ministério Público ganhou força e estrutura e consegue desenvolver ações bem coordenadas com os órgãos policiais nas ações de combate ao crime organizado. Mas, segundo ele, o êxito não se encerra com a deflagração de uma operação. “Impõe-se maior estrutura de acompanhamento, sobretudo quando, na fase judicial, esses processos são encaminhados aos tribunais. No plano policial, entendo ser necessário maior investimento no treinamento dos agentes.” Na atuação do Ministério Público, o procurador de Justiça André Ubaldino lembra que o órgão ministerial constituiu um organismo de inteligência, que serve aos fins gerais do MP, e outro organismo destinado especificamente a produção de conhecimento acerca do funcionamento das organizações criminosas com a finalidade de reprimir a sua atuação. Ele acredita que o Ministério Público vem, progressivamente, procurando ser mais profissional no modo de conduzir o enfrentamento a esse problema. Jorge Gustavo também considera que os eixos integração, inteligência, combate à corrupção e alo-

cação de recursos são essenciais. O crime organizado – a própria denominação já o diz –, segundo ele, é estruturado, tem muitos recursos e age de forma coordenada, infiltrando-se, via de regra, na estrutura do Estado. “Para combatê-lo, também precisamos de ações coordenadas, com troca de informações, práticas e modelos de inteligência. Sem isso, o esforço cairá no vazio”, alerta. O magistrado ainda afirma que o combate ao crime organizado impõe a adoção de métodos especiais de investigação. “Claro, devendo ser observados os critérios de razoabilidade e proporcionalidade. Entre esses métodos, destacam-se as ações controladas, a infiltração de agentes policiais e de inteligência, os monitoramentos de ligações telefônicas e comunicações digitais. Mas tudo isso sob o rigoroso controle de legalidade feito pelo juiz responsável”, esclarece. O juiz ainda complementa que o papel do Ministério Público é fundamental no combate à criminalidade organizada. É ele o titular da ação penal, ou seja, é quem conduzirá o processo criminal. Para Jorge Gustavo, a atuação do Ministério Público não pode se limitar à condenação dos responsáveis. “Há outros aspectos a serem observados, tais como a destinação dos bens apreendidos como frutos da ação criminosa, o acompanhamento da execução das penas, entre outros.” Ele acredita que o MP tem se organizado para criar, no âmbito de sua estrutura, órgãos devidamente capacitados para bem desenvolver essa tarefa.

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Alex Lanza

André Estêvão Ubaldino Pereira

Conceito do crime Indagado sobre se é preciso ter sensibilidade para definir o que é crime comum e o que é crime organizado, André Ubaldino afirmou que na verdade existe uma dificuldade em conceituar o que seria organização criminosa. “Esse é um problema já antigo, mas ainda atual, porque a questão não está resolvida, e não se chegou nem sequer a um consenso acerca disso. Mas o que tem prevalecido é a Convenção das Nações Unidas, que se deu em Palermo, e que elenca alguns dos traços tidos como característicos das organizações criminosas”, esclarece o procurador de Justiça. Os traços, segundo ele, são tentativa de domínio de áreas, corrupção de agentes públicos, recursos da violência, da intimidação, entre outros caracteres apontados pela convenção. “A organização criminosa é um grupo, mas não basta ser um grupo para ser organização criminosa, é claro”, completa. O magistrado Jorge Gustavo segue a mesma linha. Segundo ele, não há no cenário jurídico do Brasil uma lei que defina o conceito de crime organizado ou organização criminosa. Ele reforça a opinião de André Ubaldino sobre a definição dada por uma convenção internacional ratificada

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pelo Brasil, qual seja, a Convenção de Palermo, que trata da criminalidade transnacional, que diz o seguinte: “(...) grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material”. A lavagem de dinheiro, tráfico de entorpecentes, tráfico de pessoas, contrabando de armas e corrupção são as principais modalidades criminosas, vinculadas ao crime organizado, diz o juiz federal. Para saber diferenciar a criminalidade comum dos atos praticados pelo chamado crime organizado, Jorge Gustavo justifica que “primeiro, quanto ao aspecto da investigação, pois, para o combate à criminalidade organizada, impõe-se a adoção de métodos ou técnicas especiais de investigação, sem os quais não se consegue apurar a prática do ilícito. Segundo, quanto à aplicação das penas e demais medidas secundárias, já que os efeitos decorrentes das atividades praticadas pela criminalidade organizada são bem mais nefastos à sociedade”.


Alex Lanza

Jorge Gustavo Macedo Costa

Leis brasileiras Na opinião do coordenador do Caocrimo, André Ubaldino, as leis que existem no Brasil, Lei n.º 9.034/95 – instituída para combater o crime organizado no Brasil – e a Lei n.10.217/01 não são suficientes, “e isso é algo que o Ministério Público brasileiro já reconheceu, tanto assim que, quando convidado, participou da produção de projetos de lei. Eu fui um dos que participaram da gestação de um projeto de lei, que lamentavelmente não caminhou como gostaríamos no

Congresso. Acreditamos que, se a proposição se convertesse em lei, haveria de nos dotar de meios para enfrentamento eficaz às organizações criminosas, ou menos ineficazes, diríamos”. O magistrado Jorge Gustavo tem uma opinião diferente. Para ele, as referidas leis representam grande avanço. “Não precisamos de novas leis. Precisamos de efetividade da jurisdição criminal. Esse é, a meu ver, o grande passo para o sucesso no combate ao crime organizado.”

Mudanças necessárias Para aperfeiçoar a legislação de combate ao crime organizado, Ubaldino diz que há muitos pontos, ficando difícil mencioná-los em uma rápida abordagem. “Mas é inegável que nós não temos instrumentos de investigação suficientes para o enfrentamento às organizações criminosas, na forma como hoje o tema é tratado pela legislação brasileira.” Por isso, o procurador de Justiça afirma que o projeto de lei que não andou no Congresso se prestava a produzir exatamente um conjunto de

medidas que, já empregadas com êxito em outros países, poderiam ser aplicadas com êxito no Brasil para enfrentamento das organizações criminosas. “Como medidas tendentes à descapitalização das organizações criminosas, medidas destinadas a fomentar divergências nos seios das organizações criminosas, inclusive através da atribuição de vantagens a quem delatasse seus membros. Vantagens mais efetivas, mais convincentes do que as que hoje são oferecidas na atual legislação”, aponta.

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Descapitalização das organizações criminosas A questão econômica, para Ubaldino, é muito importante. “Organizações criminosas buscam proveito econômico, e nós precisamos retirar delas esse proveito econômico para que tenhamos o mínimo de chance de êxito em seu enfrentamento.” Ele conta que já existem ações nesse sentido, mas que “evidentemente elas vêm sendo realizadas em conformidade com os mecanismos legais hoje existentes à disposição dos órgãos do Ministério Público, e esses mecanismos não são ainda suficientemente eficazes para que haja uma resposta aos anseios da sociedade com a eficiência desejada”, esclarece. Indagado se o projeto de reforma do novo Código de Processo Penal traz alguma novidade nesse sentido, André Ubaldino diz que na verdade não há um novo código de processo penal; há um velho, que vem sendo reformado. E há um projeto de código de processo penal, que está em curso no Congresso. O procurador de Justiça revela que desse projeto fez parte uma ampla comissão composta

também de membros do MP. “O problema está em que aparentemente o Executivo, que é quem estatisticamente mais legisla no Brasil, não está desejoso de converter esse projeto em código. Está, ao contrário, promovendo modificações do vigente Código de Processo Penal, e ele a rigor visa à criminalidade de forma geral, não prevê esses nichos específicos de criminalidade, que são aqueles em que há atuação mais marcante das organizações criminosas”, observa. Ubaldino entende que deveria haver uma lei específica para tratar essa questão. Ele afirma que, “como é um tipo de criminalidade cujo desenvolvimento pode, ao fim e ao cabo colocar em risco o próprio Estado Democrático de Direito, é preciso que existam mecanismos específicos para o enfrentamento de organizações criminosas. Mecanismos um tanto mais enérgicos, mais eficazes, mais capazes de promover a mais rápida descapitalização dessas organizações”.

Apreensão de bens “O crime organizado tem como principal objetivo o lucro (fácil) advindo da atividade delituosa. Se você consegue sufocar o poder econômico de uma organização criminosa, retira-se seu maior poderio. Nesse sentido, a apreensão dos bens adquiridos a partir da prática do ilícito torna-se medida imperiosa com combate ao crime organizado”, afirma do juiz federal. Essa medida vem sendo tomada no Brasil. O

magistrado lembra que há alguns avanços legislativos, como a Lei de Lavagem e a que tipifica o tráfico de substância entorpecente, em que há previsão de medidas que podem resultar no “sufoco” financeiro da organização. “Mas temos que evoluir e passar a nos preocupar também com a visão econômica do crime, como fazem, por exemplo, os EUA. O foco da ação dirige-se não só à pessoa do criminoso, mas também ao produto do crime”, analisa.

Lavagem de dinheiro Temos visto que muitos criminosos perigosos possuem imagem respeitada perante a sociedade, utilizam-se de negócios legais, denominados “empresas de fachada”, para a efetiva lavagem do dinheiro proveniente do crime. Perguntei ao juiz se essa situação faz com que fique mais difícil definir e combater o crime organizado. “De fato, a lavagem de dinheiro é um crime muito complexo, o que dificulta sua punição”, respondeu. Ele complementa que “não raro, se tem que as ações criminosas são desenvolvidas paralelamente às atividades econô-

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micas aparentemente lícitas e que, a princípio, não geram suspeitas. Este é o grande desafio de uma boa investigação: saber identificar o funcionamento de um esquema criminoso dentro de uma estrutura aparentemente legal e lícita”, revela. O magistrado também concorda que a lavagem de dinheiro é o oxigênio da criminalidade organizada. O crime organizado, segundo ele, não sobrevive sem dinheiro e recursos. Precisa disso para se autofinanciar. E a lavagem é o grande instrumento de que se utilizam para isso.


Quebra de sigilo O procurador de Justiça André Ubaldino fala também da relevância da quebra de sigilo para as investigações. Segundo ele, “sem dúvida nenhuma, o levantamento de algumas garantias constitucionais, como sigilo telefônico, bancário e fiscal, é absolutamente indispensável para o êxito de ações repressi-

vas a uma criminalidade que obviamente movimenta capitais, em que as ordens são dadas muitas vezes por meios tecnologicamente avançados, alguns dos quais não são ainda susceptíveis de serem interceptados pelas tecnologias que estão à disposição das autoridades públicas brasileiras”.

Cadastro geral de informação Sobre a necessidade de um cadastro geral de informações no Brasil e no exterior das ações das organizações criminosas, o coordenador do Caocrimo não tem dúvidas. Para ele, “o ideal é a integração planetária no enfrentamento as organizações criminosas, especialmente depois da ocorrência de dois eventos históricos que facilitaram consideravelmente a movimentação de capital em todo o mundo: a queda do Muro de Berlim e, pouco depois, o fim do regime soviético”. O procurador de Justiça completa ainda: “É obvio que tivemos, em virtude desses eventos históricos, uma maior facilidade à migração de recursos, que podem ser aplicados no Brasil

e que, eventualmente, podem ser provenientes de ilícitos praticados em outros locais do planeta. Portanto, essa necessidade de integração entre todos os países já existe e é muito importante”. No Brasil, segundo Ubaldino, existe o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), que é voltado para produção de conhecimento não só relativo a organizações criminosas, mas a tudo aquilo de que depende o sucesso da sociedade brasileira. “Agora esse sistema vem sendo implementado progressivamente, de tal modo que ele, claro, não é eficaz o suficiente para que possamos atingir os nossos resultados.”

Desigualdade social fortalece as organizações criminosas Na verdade, opina o procurador de Justiça, “a desorganização do Estado contribui para a eficiência das organizações criminosas, para que elas tenham seus recursos e obtenham proveito econômico”. Ele ressalta ainda que, independentemente de que isso ocorra, é um dever do Estado promover medidas para reduzir essas desigualdades. “Porém, já deveria tê-lo feito há muito tempo. E, como não faz, eventualmente ele acaba por descumprir o seu papel, por permitir que organizações criminosas se apresentem inclusive como supostas soluções para problemas. É o que se vê, por exemplo, em algumas favelas de Estados próximos a Minas Gerais onde as organizações criminosas eventualmente atuavam como organizações de beneficiamento, de criação de vantagens, enfim de solução para alguns problemas não enfrentados pelo poder público”, acentua. Ao juiz federal, indaguei se há necessidade de

ações e políticas preventivas, sociais, como também melhor gestão de segurança pública. Para ele, uma coisa complementa a outra. A segurança pública hoje, segundo o juiz, tem status de sistema e é uma preocupação que deixou de ser regional para se transformar em nacional. “O fortalecimento dos organismos que compõem o sistema de segurança pública mostra-se de fundamental importância nesse caminho de combate ao crime organizado”, destaca. Sem investimento nas áreas sociais não se constrói uma sociedade sólida e democrática, diz o Jorge Gustavo. Para ele, é essencial “investir em educação, saúde, emprego, e ocupar um espaço que, infelizmente, pode vir a ser preenchido ou ‘invadido’ pelo crime organizado, sobretudo se se imaginar que grande parte da população brasileira está localizada nos grande centros, onde o combate ao crime é sempre mais complicado”, conclui.

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MPMG e órgãos de repressão na luta contra o crime Desde 2002, após a criação da Promotoria de Justiça de Combate ao Crime Organizado e do Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) vem atuando continuadamente, por meio de fiscalização e operações conjuntas, para acabar, por exemplo, com a Máfia do Combustível, com os caça-níqueis, com os bingos, que são utilizados na lavagem de dinheiro. Em outra frente, essas ações vêm combatendo crimes contra o meio ambiente e patrimônio cultural, de sonegação fiscal, grandes roubos e assaltos violentos. Além disso, a atuação do Ministério Público nessa área combate também as organizações criminosas no sistema prisional, o tráfico de entorpecentes, a pirataria, a venda de produtos contrabandeados e sem nota fiscal, o tráfico de mulheres e a exploração sexual infantil. Em Minas Gerais o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate ao Crime Organizado e de Investigação Criminal (Caocrimo), órgão do MPMG, vem atuando para atender às demandas de Promotorias de Justiça e outros Centros de Apoio Operacional que buscam apoio para a instrução de suas investigações — sejam elas de natureza cível ou criminal —, assim como fornece apoio a outras instituições. No primeiro semestre deste ano o Caocrimo destaca duas operações que, concluídas após meses de investigações e diligências, resultaram na prisão de acusados de homicídios e tráfico de entorpecentes. Trata-se de um trabalho de cooperação que vem sendo realizado continuadamente com os órgãos que atuam no combate ao crime organizado em outros Estados. Nessas duas operações, os agentes do Setor Policial Militar do Caocrimo prenderam, após meses de investigação e diligências, Francisco Martins, também conhecido como Martins Veras, acusado de ter praticado homicídios em Campo Grande (RN). A equipe conseguiu prender também Erlânio Souza dos Santos, condenado por tráfico de drogas e atualmente respondendo por crime de homicídio. Ele estava foragido da cadeia pública no Espírito Santo desde 1º de abril deste ano. O Caocrimo, segundo o seu coordenador, procurador de Justiça André Ubaldino, realiza de forma quase rotineira operações que visam prender foragidos da Justiça a pedido de outros Estados. No caso relacionado à prisão de Francisco Martins, a principal dificuldades enfrentadas pela equipe de investigação foram as poucas informações disponíveis.

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Histórico Há alguns meses foi solicitada pelo Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado do Ministério Público do Estado Rio Grande do Norte a cooperação na identificação e localização de Francisco Martins, pois havia indícios de que ele estivesse vivendo em Minas Gerais há alguns anos. Segundo o Caocrimo, Francisco Martins foi preso dia 11 de maio após investigações realizadas com base em informações fornecidas pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte. Estão em andamento as medidas para que ele seja transferido para o Estado do Rio Grande do Norte, onde responde pela prática de vários homicídios. Também atendendo solicitação de unidade responsável pela repressão ao crime organizado do Estado do Espírito Santo, no dia 22 de maio, o Caocrimo prendeu Erlânio Souza dos Santos, foragido desde 1º de abril de uma cadeia pública capixaba, para onde foi reconduzido no mesmo dia em que foi preso.

Varginha Ainda no primeiro semestre o MPMG, por meio das Promotorias de Justiça Criminais e da Infância e Juventude no Combate ao Crime Organizado de Varginha, realizou em março, em conjunto com as Polícias Civil Militar naquela cidade do Sul de Minas, uma operação de combate ao tráfico de drogas. Dois adultos foram presos e seis jovens foram apreendidos. Foram apreendidos também 113 pedras e 58 gramas de craque, duas buchas de maconha, uma TV 14 polegadas, dois capacetes, duas câmeras digitais, cinco celulares, cinco relógios de pulso, duas bicicletas, um Ipod, quatro botijões de gás, um extintor de incêndio, um molinete com carretilha, um macaco para carro, R$ 75 em dinheiro, dois dólares, um notebook e quatro aves silvestres.

Participaram da operação quatro representantes do Ministério Público, 28 homens da Polícia Civil e 60 da Polícia Militar. Foram utilizadas duas viaturas do MPMG, oito da Polícia Civil e 25 da Polícia Militar, totalizando 35 veículos.

Condenação de 30 criminosos Outro destaque se deu na Promotoria de Justiça de São Gotardo, que entregou, no dia 23 de maio deste ano, as alegações finais do processo sobre grande organização criminosa atuante naquela cidade e na região. Durante as investigações realizadas no bojo da denominada Operação Ouro Preto, a Polícia Civil apurou que a organização possuía 32 membros e praticava furtos em fazendas da região quase diariamente, recompensando com drogas e dinheiro funcionários de tais propriedades que facilitavam os furtos. Apurou ainda que a organização contava com diversos receptores dos produtos furtados e com um funcionário público que lavava o dinheiro ilícito do bando, além de uma verdadeira suborganização voltada ao tráfico de entorpecentes. Dos 32 réus, 26 aguardam a sentença presos. Após a fase de instrução, que durou aproximadamente dois meses, o MPMG apresentou alegações finais, pleiteando, com base nas provas produzidas, a condenação de 30 acusados. Os dois outros réus respondem procedimentos separados, ainda em fase de instrução. O MPMG ressaltou ainda que o grupo agia com elevado nível de premeditação e de forma fria e calculista. O promotor de Justiça Cleber Couto ressalta que “os inúmeros delitos configuram tão somente a ponta do iceberg dos crimes praticados por essa organização criminosa. Pela estrutura, organização, hierarquia e participação de inúmeros membros com funções específicas e detalhadas, pode-se afirmar que tal organização praticou muito mais crimes do que os apurados nesses autos”.

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Mais de vinte operações em apenas dois anos Fotos: Alex Lanza

Veja algumas das outras operações realizadas pelo Ministério Público de Minas Gerais na área do combate ao crime organizado. Nesses dois últimos anos, o Caocrimo realizou bem mais que 20 operações de combate às organizações criminosas. Como exemplos, a Operação SOS Cerrado, realizada após intenso trabalho de inteligência executado pelo Caocrimo, sendo possível desbaratar grande organização criminosa. Ao fim dos trabalhos da ação, foram cumpridos mandados de prisão e de busca e apreensão em escritórios de usinas siderúrgicas e residências dos alvos ligados a esquema ilegal de venda de carvão em várias regiões do Estado. A operação teve a participação de agentes da Secretaria de Estado de Fazenda (SEF), Polícia Militar de Meio Ambiente e Polícia Civil (PC), sob coordenação da Promotoria da Bacia do São Francisco e articulação do Caocrimo.

Operação Octopus

Fiscais durante a operação Octopus

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Coordenada pelo Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa da Ordem Econômica e Tributária (Caoet), a ação de inteligência elaborou organograma de rede de postos de combustíveis. Essas empresas pertenciam a integrantes de organização criminosa dedicada a fraude fiscal e adulteração de bombas de abastecimento de combustível, a qual estendia sua atuação também nos Estados de São Paulo e Bahia. Por isso, houve atuação conjunta dos Ministérios Públicos Estaduais, SEFs e PMs de Minas e de São Paulo. Um mês depois, o Estado de Minas Gerais elevou a arrecadação de tributos estaduais relativos aos combustíveis em aproximadamente R$ 25 milhões. Foram presas 25 pessoas e executados 24 mandados de busca e apreensão, arrestados bens, com busca em empresa de transporte de valores, interdição e aplicação de multas em desfavor dos estabelecimentos de revenda de combustíveis adulterados, integrantes da rede criminosa.


Operação Serial Killer Em apoio ao Departamento de Homicídios da PC de Minas Gerais em Belo Horizonte, a ação resultou na localização e prisão do maníaco que estava praticando, em série, estupros e roubos seguidos de morte contra mulheres na Capital e região metropolitana.

Grandes roubos e assaltos violentos Foram realizadas seis grandes operações, por meio de um grande esforço do Caocrimo, para combater, desarticular e prender quadrilhas de assaltantes de bancos e carros-fortes, que agiam em ações extremamente violentas. Tais quadrilhas, de posse de armamento pesado, como fuzis de uso restrito às Forças Armadas e até metralhadoras antiaéreas, foram responsáveis por diversos assaltos a agências bancárias e carros-fortes tanto em Minas Gerais quanto em outros Estados da Federação. As seis operações receberam os nomes de Barret, Amazonas, Farroupilha, Coringa, Águia e Parente, e culminaram na prisão da maioria dos quadrilheiros. Foram apurados seis graves roubos consumados contra carros-fortes e agências bancárias em Minas Gerais, e apreendidos uma metralhadora antiaérea calibre 50, grande quantidade de munições, veículos e R$ 308 mil em moeda corrente. As investigações possibilitaram ainda apurar crimes ocorridos em outros Estados, como latrocínio ocorrido na cidade de Vila Velha (ES) e homicídio ocorrido em 1990 contra o senador da República Olavo Pires, em Rondônia. Por meio de informações repassadas pelo Caocrimo a órgãos de segurança pública de outros Estados, foi possível ainda prender criminosos em Goiás, Pará, Rio Grande do Sul, São Paulo e Bahia.

Assaltos e latrocínios Houve ainda outras três operações. A primeira: Operação Medusa, que, a partir de informações repassadas pelo Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), e com apoio da Delegacia Especializada de Repressão às Organizações Criminosas (Deroc) da PCMG, resultou na localização e prisão de quadrilha de assaltantes que planejavam ação contra joalheria no BH Shopping. Durante os trabalhos, foram ainda apreendidos três veículos e três pistolas semiautomáticas. A segunda: Operação FB, que resultou na apreensão de um veículo Honda Civic e duas pistolas semiautomáticas, e na localização e prisão de assaltante foragido da Justiça e autor de vários roubos, entre eles um duplo latrocínio ocorrido em 2005 na cidade de Itaguara (MG), em que foram vitimados dois policiais militares. A última: Operação Nova Era, em que o MPMG atuou em apoio ao Departamento de Operações Especiais (Deoesp) da PC-MG e que culminou no esclarecimento de roubo de pedras preciosas ocorrido na cidade de Nova Era, com a prisão dos autores e recuperação de parte das pedras roubadas.

Fotos: Alex Lanza

Prisão e apreensão de armas pesadas

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Estelionatários e fraudadores Nessa área de atuação também houve várias operações. Citamos como exemplo a Operação Papirus. A partir de comunicação feita ao Caocrimo pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos da América (EUA), por meio do seu Consulado em São Paulo, a ação promoveu investigações em apoio à Delegacia de Falsificações e Defraudações. O trabalho resultou na identificação e prisão, em Minas Gerais, de grupo de pessoas que atuava na falsificação de documentos públicos e privados com o intuito de obter, de forma fraudulenta, vistos para entrada naquele país. Foi ainda apreendido vasto material utilizado

Fotos: Alex Lanza

Itens confiscados na operação Papirus

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para a consumação dos delitos, como computadores, documentos, carimbos de várias espécies e recibos de pagamento. Ainda nessa área de atuação, houve outras operações objetivando identificar e prender quadrilha especializada em aplicar golpes de falsa venda de automóveis pelos cadernos de classificados dos jornais, e identificar fraudadores que conseguiam cartões de terceiros junto às operadoras de crédito. Foi possível ainda identificar e prender quadrilha especializada em manufaturar documentação falsa, inclusive criando perfis que serviam para diferentes fins.


Tráfico de drogas Quanto ao combate ao tráfico de drogas, foram feitas inúmeras operações, tanto por iniciativa do Caocrimo quanto em apoio a Promotorias de Justiça do Estado e a outros órgãos de segurança pública. Entre elas, vale destacar a Operação Sentinela, que resultou na prisão de 14 traficantes que atuavam na região metropolitana de Belo Horizonte, sendo apreendidos cerca de 22 kg de cocaína, e, ainda, esclarecidos quatro homicídios. Nos desdobramentos, por meio de informação repassada ao Gaeco em Ribeirão Preto (SP), foi possível àquele grupo apreender um quilo de crack e uma pistola 9 mm. Destaque-se ainda a Operação PCC, que objetivou barrar o avanço e expansão da organização criminosa Primeiro

Comando da Capital (PCC) nas unidades prisionais do Estado. O Caocrimo coordenou os trabalhos investigativos dos órgãos de inteligência da Secretaria de Assuntos Penitenciários e das Polícias Civil e Militar objetivando identificar os líderes daquela facção criminosa, possibilitando o remanejamento deles para o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Foi possível o enquadramento legal de todos os envolvidos, como forma de coibir e desestimular a adesão de outros detentos à organização ilegal. Possibilitou-se, ainda, a prisão de diversos infratores que, estando em liberdade, se dedicavam à prática de crimes para financiar os projetos de expansão dessa organização criminosa dentro do sistema carcerário.

Grupo de Intervenção Estratégica: repressão qualificada Ainda sobre repressão ao tráfico de drogas e sobre os crimes a ele conexos, merece especial atenção a atuação do Grupo de Intervenção Estratégica (GIE) dentro do Programa Fica Vivo! O GIE tem como finalidade a articulação dos órgãos de defesa social a fim de desenvolver uma repressão qualificada, identificando quadrilhas, suas lideranças criminosas e seus agentes, alvos de intervenção, cuja atuação aumenta sensivelmente a sensação de insegurança nas comunidades onde atuam. O grupo, coordenado pela Promotoria de Combate às Organizações Criminosas, conta com a participação efetiva da PM; PC; Juizado da Infância e Juventude; MPMG, por meio das Promotorias de Combate às Organizações Criminosas, do I Tribunal do Júri, de Tóxicos, Criminal e do Juizado Especial Criminal; Secretaria de Defesa Social (Seds); Subsecretaria de Administração Prisional (Suapi); Subsecretaria de Atendimento Medidas So-

cioeducativas (Suase); Superintendência de Prevenção à Criminalidade e Diretoria de Promoção Social da Juventude. São objetivos do GIE reduzir a formalidade na comunicação entre instituições, ampliar a rede de informações e acompanhar atentamente os casos e seu andamento processual. Como resultado desse trabalho, registraram-se a redução do índice de homicídios nos aglomerados acompanhados pelo grupo; a agilização do trâmite dos processos, inclusive com antecipação de audiências; o aprimoramento do Sistema de Informações do Grupo de Intervenção Estratégica (Sigie), que agrega as informações recebidas das instituições participantes; a disponibilização de relatórios aos promotores de Justiça plantonistas para acompanhamento de procedimentos; maior proximidade entre instituições de repressão qualificada de proteção social e o aprimoramento da participação da Suapi e Suase.

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Pirataria: um dos maiores desafios do Século 21 Por Neuza Cunha/Flávio Pena

“A cena é conhecida e facilmente encontrada em qualquer cidade brasileira, especialmente nas médias e grandes: uma tosca barraca com um cidadão oferecendo os mais variados produtos – óculos; brinquedos; softwares; CDs e DVDs; relógios; perfumes; roupas; eletrônicos – tudo a preços convidativos. As pessoas já incorporaram essa cena no cotidiano e até acham normal esse comércio. O problema é que, por trás desse comércio aparentemente inocente, encontra-se a atuação de verdadeiras organizações criminosas, que atuam desde a produção, importação, distribuição, locação de pontos comerciais (verdadeiros shoppings irregulares) até a comercialização final.” As afirmações são do presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP) e do Instituto Brasil Legal e ex-secretário da Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, Edson Luiz Vismona. 44


Ele afirma que, na movimentação dessa sofisticada logística, uma ampla sequência de ilícitos é desencadeada: “A produção é feita por mão de obra informal e até escrava; na importação, o contrabando, descaminho, falsa declaração fiscal e de conteúdo, subfaturamento são práticas absolutamente corriqueiras; os shoppings são montados com uma série de sublocações, a preços bem elevados, sem atender as posturas municipais de segurança, licença de funcionamento e inscrição estadual e federal”, salienta. Ele afirma também que lojas são na verdade boxes apertados, lotados de mercadorias. “Os mais singelos direitos de propriedade intelectual e industrial são totalmente desrespeitados, sem esquecer o direito de defesa e proteção do consumidor e as fundamentais garantias com relação à saúde e segurança - todos solenemente ignorados”, lamenta o presidente do FNCP. Para completar, explica Edson Vismona, “os recursos financeiros movimentados são vultosos, alimentando a lavagem de dinheiro e a corrupção, bem como financiando outras práticas criminosas, pois, em contêineres apreendidos pela Receita Federal e Policia Federal, invariavelmente, são encontradas, junto aos mais variados produtos de consumo, drogas, armas e vasta munição”, observa.

MPMG intensifica ações A pirataria não é um problema novo no Brasil, tampouco no mundo. Estudos indicam, na verdade, que combatê-la é o maior desafio do século 21 , ultrapassando até mesmo o tráfico de drogas. Em Minas Gerais não é diferente. E, com o objetivo de contribuir para a redução dessa estatística, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG), desde 2008, vem intensificando as ações de enfrentamento do problema e de punição dos infratores. As ações se concentram, geralmente, em shoppings populares, camelódromos e mercados municipais, onde pessoas comercializam produtos falsificados, sem nota fiscal ou contrabandeados. Nesses locais, já foram recolhidas toneladas de CDs, DVDs, cigarros, jogos eletrônicos, tênis, bolsas e óculos, entre outras mercadorias irregulares. Tudo fruto de algum tipo de crime. Também nas operações são recolhidos até remédios sem efeito terapêutico e medicamentos abortivos, de venda proibida no Brasil.

Parcerias essenciais Para combater esse comércio ilegal, várias instituições se uniram para criar um grupo de combate à pirataria em Belo Horizonte. A equipe é coordenada pela promotora de Justiça do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate ao Crime Organizado (Caocrimo) Cássia Virgínia Gontijo. De acordo com ela, representantes das Polícias Federal, Rodoviária Federal, Civil e Militar, do Corpo de Bombeiros, do Ministério Público Federal, da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) e das Receitas Federal e Estadual se reúnem mensalmente para traçar metas e estratégias de combate à pirataria. O envolvimento das dez instituições tem um sentido. “No combate a esse tipo de crime, podemos encontrar tanto questões relacionadas à sonegação fiscal quanto a descaminho, contrabando e contrafação. Há também estabelecimentos que desrespeitam normas de controle e prevenção de incêndio e tumulto”, afirma Cássia Virgínia. Cada uma das instituições, segundo a promotora de Justiça, cuida de uma área. A Receita Federal verifica a presença de mercadoria irregular. A Receita Estadual analisa a documentação dessas mercadorias. A Polícia Federal observa se há mercadoria contrabandeada. A Polícia Civil foca nos crimes de contrafação. A Polícia Militar auxilia na segurança e no cumprimento dos mandados de busca e apreensão. A Polícia Rodoviária Federal atua nas estradas e rodovias federais. O Corpo de Bombeiros fiscaliza as questões de combate a incêndio. E a PBH ajuda na logística e no transporte. “O grupo tem como principal objetivo a localização de depósitos e distribuidores de produtos contrafeitos visando combater a pirataria de forma metodológica e constante há mais de dois anos. A estratégia do grupo é intensificar a fiscalização nos estabelecimentos que distribuem os produtos e nos que os revendem”, afirma Cássia Virgínia. O presidente do FNCP, Edson Vismona, também acredita que, se coordenadas as ações, além da atuação dos órgãos citados pela promotora de Justiça, os municipais vão atuar na preservação das posturas municipais relacionadas aos critérios de ocupação de espaços comerciais, à existência de alvarás e licenças, às condições de saúde e segurança. Ele cita também a participação do Procon para as inúmeras infrações contra o Código de Defesa do Consumidor e a vigilância sanitária para avaliar as condições de limpeza e higiene das áreas de alimentação e, “por fim, o Ministério Público para coordenar as eventuais ações públicas (cíveis e criminais) de modo a melhor estruturar os inquéritos que serão levados ao Poder Judiciário”, diz.

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Cássia Virgínia Gontijo Divulgação

Edson Luiz Vismona

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Ação coordenada O presidente do FNCP conta que, também em São Paulo, essa ação coordenada do poder público tem se mostrado o mais eficiente meio de se combater o complexo comércio ilegal. Como exemplo de eficiência desse modelo, ele cita a ação do Gabinete de Gestão Integrada (GGI). Formado no âmbito da Prefeitura de São Paulo, o GGI é resultado do convênio Cidade Livre de Pirataria, firmado pela municipalidade com o Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP) do Ministério da Justiça. “Nos últimos cinco meses, foram fechados oito dos mais importantes centros de comércio ilegal da cidade de São Paulo, os quais evidentemente procuram voltar a operar. Porém, diante da articulação das autoridades, percebe-se que o panorama é outro, e já se apresentam propostas de alteração de conduta, inclusive com a proposição de Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) junto ao Ministério Público voltados para a legalização da atividade de alguns desses centros”, cita Vismona. Edson Vismona afirma que “evidentes são as dificuldades. Contudo, na defesa da lei, protegem-se a sociedade, o erário e o mercado formal. Em risco estão a saúde e segurança das pessoas, os investimentos e empregos e a arrecadação. Porém o mais relevante está sendo defendido: o necessário sentimento de que a ilegalidade não pode prosperar”, revela. Cássia Virgínia complementa que, além disso, indústrias e comércios estão fechando as portas por causa da pirataria. “A pirataria é muito maléfica para a sociedade e afeta o comércio formal e a indústria. Além disso, produtos sem controle de qualidade colocam em risco a saúde e a integridade do cidadão”, alerta a promotora de Justiça. E por isso, segundo Vismona, “não há como flexibilizar condutas erradas. Elas não devem ser aceitas, sob pena de se deixar de entender os princípios e valores que devem reger a sociedade brasileira. A impunidade não pode ser admitida em um verdadeiro Estado Democrático de Direito, e nele não pode faltar a clara definição do que é certo e errado”.


Fotos: Alex Lanza

Resultado de Operações Para se ter uma ideia desse trabalho integrado que vem sendo realizado em Minas Gerais, Cássia Virginia conta que, apenas nos dois últimos anos, foram realizadas mais de 20 operações em aproximadamente 420 pontos; cumpridos cerca de 300 mandados de busca e apreensão e apreendidas perto de 90 toneladas de materiais. Entre os produtos apreendidos estão eletroeletrônicos, mídias gravadas, cigarros, óculos, bolsas, relógios, medicamentos abortivos, computadores completos, monitores, CPUs, escâneres, impressoras, diversos drives, máquina copiadora, gravadoras de CD/ DVD, data show, manetes de vídeo game, pássaros das espécies curió e bicudo, munições intactas de fuzil e de rifle 44 WCF e um carregamento de fuzil, entre outros itens. Além disso, houve 61 conduções, uma apreensão de adolescente e condução de alguns estrangeiros pela Polícia Federal por ausência de documentação que autoriza a permanência no país.

Trabalho contínuo

DVDs, CDs, eletroeletrônicos, óculos, cigarros e outros intens enchem caminhões

Para este ano de 2011, Cássia Virgínia disse que o grupo vem atuando normalmente, como atua desde 2008, ou seja, de forma permanente, focando, principalmente, na localização de depósitos de produtos pirateados e na punição dos grandes comerciantes desses materiais. “Não afastamos, entretanto, a fiscalização do comércio pulverizado, pois não podemos simplesmente imaginar que, por ser um pequeno comerciante, ele não estaria praticando um crime. Está sim.”

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Alex Lanza

A promotora de Justiça mencionou ainda novas perspectivas de ação do grupo. “Estamos vislumbrando a possibilidade de focar também na área do consumidor. Em 2009 e 2010, só para se ter uma ideia, foram apreendidos até óculos impróprios para consumo.” Para ela, a atuação de várias instituições é fundamental para reprimir esse comércio. “Nós entendemos que o trabalho em conjunto é mais vantajoso e proveitoso do que as ações isoladas. Além disso, esperamos contar com o apoio da população, pois, se existem produtos piratas, é porque existem pessoas que os adquirem, na ilusão de que estão fazendo um bom negócio. Mas não é bem assim.”

Colhendo resultados

Operação realizada em shopping popular

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Segundo a promotora de Justiça Cássia Virgínia Serra Teixeira Gontijo, o grupo interinstitucional de combate à pirataria tem colhido resultados satisfatórios. Em razão dessas operações, muitos comerciantes estão procurando as Receitas Federal e Estadual para regularizar a situação de seus respectivos estabelecimentos. “Nosso objetivo não é ficar simplesmente fazendo apreensões. O intuito desse trabalho é fazer com que o comércio possa ter suas atividades dentro da legalidade. Quem ganha com isso é a sociedade, já que o comerciante estará recolhendo seus tributos, os trabalhadores estarão devidamente registrados e recebendo seus salários de maneira correta.” Já para os comerciantes que insistem em manter suas atividades de maneira irregular, a promotora de Justiça destaca que outras operações serão realizadas. “Não podemos achar que o comércio de produtos piratas e contrabandeados é uma coisa legal. A criminalidade precisa ser combatida, e por isso iremos intensificar nosso trabalho. A sociedade precisa estar ciente disso e entender que a ilegalidade causa prejuízo a todos.”


Leis dificultam punição aos crimes de falsificação e pirataria O presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP) e do Instituto Brasil Legal, Edson Luiz Vismona, reconhece que acabar com a pirataria não é uma missão fácil. “A infraestrutura dos nossos portos, aeroportos e pontos de fronteira está fragilizada. A entrada de produtos ilegais se dá sem maiores riscos. A comercialização é pulverizada, e a Administração Pública atua muitas vezes de forma desarticulada. Para completar, as nossas leis dificultam o combate aos crimes de pirataria, falsificação e importação irregular, existindo na sociedade uma visão complacente de que essas práticas são de menor potencial ofensivo e, portanto,

não merecem uma ação mais determinada (decisões judiciais têm aceitado essa postura)”, afirma Vismona Para ele, o resultado é a impunidade, que, “como bem sabe o meio jurídico, é um dos fatores de estímulo ao crime”. Vismona lembra que a questão de viabilizar investimentos para o aprimoramento dos recursos humanos e materiais da Receita Federal e Polícia Federal nas fronteiras é necessidade sempre apontada. “O mesmo ocorre para as Polícias Civis e Militares nos Estados. Porém, para definirmos um foco, vamos nos ater a algumas mudanças legislativas e de postura da Administração Pública”.

Dificuldades O presidente do FNCP conta que muitas das dificuldades apontadas pelo Poder Judiciário, Ministério Público e Polícias (Federal e Estadual) se referem à estrutura dos inquéritos e à própria formação das provas. “Pro-

blemas com a identificação individual de cada produto apreendido, o depósito e a destinação dos milhões de mercadorias apreendidas e a prescrição são os que despontam como mais relevantes”, relata.

Falta apoio legislativo Edson Vismona explica que, na tentativa de facilitar a punição dos crimes de falsificação e pirataria, há dois projetos de lei em andamento no Congresso Nacional. Um, já com 12 anos, é o PL n.º 333/99. O outro, bem recente, o PL n.º 8.052/11, enviado para a Câmara dos Deputados pelo Poder Executivo. “Em ambos, são formatadas propostas que visam facilitar a identificação das mercadorias ilegais (falsificadas) apreendidas, tornar mais célere sua destruição, bem como o perdimento dos bens e equipamentos destinados à produção destes. E, especialmente no PL n.º 333/99, há proposta de equiparação do crime de violação de marcas e desenho industrial re-

gidos pela Lei n.º 9.279/96 com os cometidos contra os direitos de autor, aumentando-se as penas e, assim, diminuindo-se os prazos de prescrição”, diz. Ele complementa que essas mudanças da legislação representam questões até singelas, mas que não têm encontrado, no âmbito do nosso Legislativo Federal, uma maior atenção. “De outro lado, a ação da Administração Pública deve ser articulada. O poder de polícia deve ser exercido congregando competências. Nas operações realizadas, diante da concorrência de diversas práticas ilegais, a cooperação é necessária, diminuindo o espaço de quem atua na ilegalidade”, afirma.

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Brasil tem nota baixa em

honestidade Políticos usam máscara de legalidade para continuar desviando dinheiro dos cofres públicos Por Fernanda Magalhães

Desde 1995 a organização não governamental Transparency International divulga anualmente um ranking sobre a percepção da corrupção no mundo. No último relatório, divulgado em outubro de 2010, o Brasil aparece na 69ª posição entre os 178 países avaliados. A classificação foi feita com base no Índice de Percepção da Corrupção (IPC), que varia de zero a dez e é composto de uma combinação de sondagens junto a especialistas e empresários de instituições independentes do país avaliado e do exterior. Na pesquisa, levou-se em conta a maneira como é percebido o grau de corrupção do setor público e da classe política. 50


O Brasil atingiu uma pontuação final de 3,7. A mesma de Cuba, Montenegro e Romênia. No topo da lista, considerados como os mais “limpos”, com 9,3 pontos, estão empatados Dinamarca, Nova Zelândia e Cingapura. O último colocado do ranking é a Somália, com um índice de 1,1. O país sul-americano melhor classificado, ou seja, considerado menos corrupto, é o Chile (21º colocado), com 7,1 pontos, seguido do Uruguai (24º lugar), com 6,9 pontos. De modo geral, os chamados países desenvolvidos tendem a apresentar melhor classificação no ranking, mas existem exceções. A Itália, por exemplo, ficou com 3,9, pontuação bem próxima à do Brasil. Em comparação ao IPC do ano anterior, o Brasil manteve a mesma pontuação, mas subiu cinco posições, saindo do 74º para o 69º lugar. Há oito anos atuando na Procuradoria de Justiça de Combate aos Crimes Praticados por Agentes Políticos Municipais, órgão do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), o procurador de Justiça Elias Paulo Cordeiro diz acreditar que a corrupção no Brasil não está aumentando nem diminuindo, “é a mesma coisa, mas tem aparecido mais”. O maior acesso à informação e o aperfeiçoamento dos mecanismos de controle fazem com que muitas vezes tenhamos a percepção de que os casos de corrupção cresceram nas últimas décadas.

a corrupção, a imposição do Estado sobre a sociedade, tanto na Colônia como nos dias de hoje. A última tendência está geralmente associada ao pensamento conservador. Por meio dela, é fácil introduzir a ideia da inutilidade dos esforços de mudança, pois o Brasil é e será sempre o mesmo; conviria assim adaptar-se à realidade, tecida pelos males citados e onde se inclui, não por acaso, a imensa desigualdade social.” E continua: “A cada passo, na passagem do Brasil Colônia para o Brasil independente, na passagem da Monarquia para a República etc., procurei mostrar que, em meio a continuidades e acomodações, o país muda, conforme o caso no plano socioeconômico ou no plano político e, às vezes, em ambos.” É nisso que o procurador de Justiça Elias Cordeiro também acredita. Segundo ele, “ainda que lentamente, as mudanças vão se processando, inclusive pelo trabalho intenso do Ministério Público”. Defesa do Patrimônio Público, Defesa da Ordem Econômica e Tributária, Combate ao Crime Organizado e Combate aos Crimes Praticados por Agentes Políticos Municipais são algumas das principais áreas de atuação do Ministério Público fundamentais para o combate à corrupção, seja no setor público ou privado.

Crimes de prefeitos Corrupção é prática antiga “Embora recebessem altos salários, muitos burocratas engordavam seus rendimentos com propinas e desvio de verbas públicas. Inúmeras evidências permitem afirmar que a máquina administrativa não era apenas ineficiente, mas corrupta.” Nesse trecho do livro A coroa, a cruz e a espada: lei, ordem e corrupção no Brasil Colônia, o jornalista Eduardo Bueno refere-se a todo o aparato político-administrativo do período em que foi implantado, no Brasil Colônia, o sistema dos Governos Gerais. Se vasculharmos a história do nosso país, vamos ver que a corrupção, o clientelismo e outras mazelas dessa natureza sempre permearam a administração pública. Mas então esse é um problema crônico que devemos aceitar e com o qual devemos conviver? Na introdução de sua obra História do Brasil, o historiador Boris Fausto fala de duas tendências opostas na exposição do processo histórico brasileiro, as quais ele rejeita. “De um lado, aquela que vê a História do Brasil como uma evolução, caracterizada pelo progresso permanente - perspectiva simplista que os anos mais recentes se encarregaram de desmentir. De outro lado, aquela que acentua na História do Brasil os traços de imobilismo, como o clientelismo,

A Procuradoria de Justiça de Combate aos Crimes Praticados por Agentes Políticos Municipais é um órgão do MPMG criado em 2001 para atuar em processos relativos a crimes cometidos por prefeitos. Por determinação constitucional, os chefes dos Executivos municipais são julgados perante os Tribunais de Justiça. Por isso, quando um prefeito comete um crime, a atribuição para atuar no caso é do procurador-geral de Justiça, chefe do Ministério Público Estadual. No entanto, o coordenador da Procuradoria de Justiça de Combate aos Crimes Cometidos por Agentes Políticos Municipais, procurador de Justiça Márcio Gomes de Souza, explica que, em Minas Gerais, num universo de 853 municípios, o procurador-geral de Justiça não teria como fazer esse acompanhamento, que foi então delegado ao grupo de sete procuradores de Justiça que compõem o órgão. Apesar de a Procuradoria de Justiça tratar de qualquer crime cometido por prefeito, como lesão corporal, homicídio etc., o maior foco são os crimes contra a Administração Pública. Segundo Elias Cordeiro, os mais comuns são fraude em licitação, desvio de verba, crime ambiental e contratação irregular de servidores – basicamente os chamados crimes de responsabilidade, previstos no Decreto-Lei n.º 201/67 e na Lei n.º 8.666/93 (Lei das Licitações).

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Improbidade administrativa Mas é importante ressaltar que não existe foro especial no aspecto cível. Então em caso de improbidade administrativa, por exemplo, é o promotor de Justiça local quem vai propor a Ação Civil Pública. “Algumas pessoas confundem isso. Não temos atribuição para atuar na improbidade. Nesse caso, quem vai atuar é o promotor de Justiça na comarca, com atribuição na área de Defesa do Patrimônio Público”, explica o coordenador da Procuradoria de Justiça. Nesses casos, a Lei n.º 8.429/92 prevê as seguintes penalidades, que serão aplicadas de acordo com o dano causado e com a extensão do proveito patrimonial obtido: perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa civil e proibição de contratar com o Poder Público.

A cada quatro anos, novos Elias Paulo Cordeiro

processos

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Márcio Gomes

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Outra característica própria da Procuradoria de Justiça é a sazonalidade dos processos. Os prefeitos respondem perante o Tribunal de Justiça apenas enquanto durar o mandato. Quando deixam o cargo, ainda que o processo esteja tramitando, ele é remetido para a comarca. Já no caso de uma pessoa denunciada vir a assumir o cargo de prefeito, o processo faz o caminho inverso, ou seja, é remetido da comarca para o Tribunal de Justiça. Com isso, a cada quatro anos a Procuradoria recebe uma nova remessa de processos e deixa de atuar em outros. “Os processos aqui são sazonais. Depois da eleição, saem os dos prefeitos que encerram o mandato e entram os daqueles que assumem o cargo”, diz Elias Cordeiro. Essa peculiaridade, somada à lentidão dos trâmites processuais, faz com que poucas vezes um processo tramite do início ao fim na Procuradoria de Justiça. De acordo com Cordeiro, “mesmo com a reeleição, dificilmente um processo iniciado aqui é acompanhado até o final. Mas quando isso acontece, o mesmo procurador de Justiça acompanha o processo da representação ao julgamento”. Mesmo assim, o número de feitos da Procuradoria de Justiça não é pequeno. Atualmente, são 692 procedimentos ainda em fase de investigação, 239 ações penais com denúncia oferecida e 79 inquéritos policiais e termos circunstanciados de ocorrência. Es-


ses últimos consistem, quase todos, em crimes comuns, como acidentes de trânsito, homicídio etc. Dos 853 municípios do Estado, 443 têm pelo menos algum feito tramitando na Procuradoria.

Quando os adversários são os aliados Os crimes comuns normalmente chegam à Procuradoria de Justiça por meio de inquéritos policiais. Já os crimes de responsabilidade aportam no órgão principalmente por meio de representações, na maioria das vezes feitas por adversários políticos. Feita a representação, o procurador de Justiça requisita documentação referente ao assunto para ser analisada. “Vamos juntando provas e já temos um know-how para saber como funciona. Por isso é tão importante ter uma atuação especializada”, diz Elias Cordeiro. Segundo Márcio Gomes, a Procuradoria de Justiça conta com um setor composto de especialistas que fazem essa análise, confrontado números para tentar encontrar a fraude dentro da aparente legalidade. Para Cordeiro, a parte complicada é descobrir para onde foi o dinheiro. “Evidentemente a pessoa não vai depositar na própria conta bancária”. Gomes acrescenta que nem sempre é fácil investigar, pois se esbarra muitas vezes em dificuldades, como conseguir algum tipo de quebra de sigilo. O procurador de Justiça Elias Cordeiro conta que a representação feita por inimigos políticos é um capítulo à parte no trabalho da Procuradoria de Justiça. Segundo ele, é muito comum alguém chegar lá com vários documentos desconectados querendo encontrar um jeito de processar o prefeito. Nesses casos, quase sempre esse alguém é o líder político da oposição ou outra pessoa enviada por ele. “Isso aumenta muito a nossa demanda. Temos que fazer um trabalho de triagem muito grande. Por isso, ao mesmo tempo que propomos muitas ações, arquivamos muito”, explica. De acordo com o coordenador da Procuradoria de Justiça, Márcio Gomes, essa é uma característica dessa área de atuação. “É normal que contemos com representações dos adversários políticos, mas às vezes o opositor quer fazer uso da Instituição para seus fins políticos e traz representações fantasiosas, sem fundamento. Mesmo assim, apuramos. Mas, se não encontramos qualquer fundamentação fática, o procedimento é arquivado.”

Lei de Responsabilidade Fiscal Em maio de 2000, foi sancionada a Lei Complementar n.º 101, mais conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, que estabelece normas de finanças públicas com o objetivo de garantir uma política de gestão fiscal mais responsável. No entanto, segundo o procurador de Justiça Elias Cordeiro, a Lei fez com que as fraudes se tornassem mais sofisticadas, mas não inibiu abusos. “Estou na Procuradoria de Justiça desde 2003, e o que víamos era uma coisa muito amadora. Hoje percebemos um maior cuidado na forma de burlar as leis.” Na opinião dele, o problema está na questão do voto. “Ainda são muito comuns o ‘voto de cabresto’, a compra do voto, a troca de favor. Geralmente nos municípios são sempre os mesmos políticos, que, mesmo cometendo delitos e respondendo a processos, conseguem se eleger e se reeleger.” Márcio Gomes concorda que hoje as Prefeituras se preocupam mais em apresentar documentação formalmente correta, mas que os crimes continuam sendo cometidos. “Antigamente, as Prefeituras simplesmente ignoravam a Lei de Licitação e faziam compras a seu bel-prazer. Hoje muitas dessas compras continuam sendo feitas, mas formalmente existe uma máscara de legalidade.” Ele dá como exemplo a Operação 40, deflagrada pelo MPMG em abril de 2008, que tem vários processos em andamento. O esquema consistia, basicamente, em um grupo de empresas da área de medicamento que se associou a algumas Prefeituras para lesar o erário. “Nessas situações existe uma formalização dessas compras, toda a documentação é montada de forma que dê uma aparência de legalidade. Para conseguir provas das irregularidades, é preciso aprofundar a investigação. Nesse caso, por exemplo, foi por meio de escutas telefônicas autorizadas pela Justiça.”

Lei da Ficha Limpa A Lei Complementar n.º 135, ou Lei da Ficha Limpa, foi sancionada em junho de 2010 e passará a valer a partir das eleições de 2012. Originada de um projeto de lei de iniciativa popular, sua aprovação se deu graças à mobilização de milhões de cidadãos, e se tornou um marco da luta contra a corrupção e contra a impunidade no Brasil. Ambos os procuradores de Justiça concordam que a Lei da Ficha Limpa representa um avanço. Como os processos nos quais atua a Procuradoria são julgados por órgão colegiado, o prefeito condenado não poderá se candidatar por um período de oito anos depois da condenação.

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O inimigo existe Por Giselle Borges

Ao propor a existência de duas classes de cidadãos, o professor alemão Günther Jakobs iniciou uma grande discussão. Afinal existem mesmo pessoas que devem ser punidas pelo que são e não pelo que fazem? Não resta dúvida de que a teoria do Direito Penal do Inimigo é polêmica, mas, a despeito de se posicionar favorável ou contrariamente a esse pensamento, talvez seja possível usá-la para fazer uma análise sobre o Direito Penal brasileiro. Nessa tentativa, dois estudiosos do Ministério Público de Minas Gerais lançam suas ideias e reflexões sobre o tema. São eles o procurador de Justiça Rogério Greco e o promotor de Justiça Marcelo Cunha. Com os ataques às torres gêmeas dos Estados Unidos, em setembro de 2001, uma corrente de pensamento que começou na década de 80 ganhou força. Jakobs fundamenta a teoria do Direito Penal do Inimigo em três pontos: a antecipação da punição do inimigo; a desproporcionalidade das penas e relativização ou supressão de certas garantias processuais; a criação de leis severas direcionadas a terroristas, delinquentes organizados, traficantes, criminosos econômicos, entre outros. 54


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Rogério Greco

Dois pesos, duas medidas O procurador de Justiça de Minas Gerais, mestre em Ciências Penais e doutor em Direito, Rogério Greco afirma que, embora tenha ganhado força nas décadas de 80 e 90, o tema não é novo. Ele lembra que no Império Romano já se fazia uma distinção entre o cidadão e o inimigo. Na Bíblia, segundo ele, há uma passagem em que Paulo é preso junto com Silas. E quando o pretor manda liberar Paulo, o preso argumenta que não aceitava aquela situação, pois não era possível castigar um cidadão romano sem o devido processo legal. O pretor não sabia que Paulo era judeu, mas tinha a cidadania romana. O Império Romano fazia essa distinção. Para o cidadão ser punido tinha o devido processo legal, direito de defesa e outras garantias, ao contrário do não cidadão, que não tinha proteção alguma. O procurador de Justiça acrescenta que Günther Jakobs também se inspirou em alguns professores alemães da Segunda Guerra Mundial. Greco conta que, quando Hitler fez aquela proposta de campos de concentração, inicialmente não era para judeus, era para o povo alemão, que estava em uma situação de sofrimento, após perder a

Primeira Guerra, com todo tipo de carência. Para reerguer a Alemanha, Hitler fez uma série de promessas de campanha eleitoral. E uma delas era acabar com os mendigos, com as prostitutas, com as pessoas que tivessem deficiência física e com os homossexuais. Essas pessoas eram presas e mortas nos campos de concentração. Com a eclosão da Segunda Guerra é que os campos de concentração foram destinados aos judeus, e não mais a parcelas da população alemã consideradas estranhas à comunidade e que não pudessem ser úteis de alguma forma para a sociedade. Com os atentados terroristas, Jakobs teria resgatado essas ideias e criado uma distinção voltada para países que enfrentam o terrorismo. Segundo Rogério Greco, que é especialista em Teoria do Crime, o professor estabelece que ao cidadão estão assegurados todos os direitos e garantias fundamentais. Esse cidadão, eventualmente, pratica crimes como estupro, furto, corrupção e muitos outros, mas permanece dentro do ordenamento jurídico. Já o chamado inimigo, não. Este não aceita o ordenamento jurídico e, por isso, também não deve ser beneficiado por ele.

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Ideia retrógrada Para Rogério Greco, o pensamento de Günther Jakobs é um retrocesso. Ele afirma que o Direito Penal hoje é o do fato. Ou seja, a pessoa será punida pelo seu comportamento, por ter praticado determinado fato que está previsto na lei penal. Segundo ele, o raciocínio, no Direito Penal do Inimigo, é diferente: pune-se o inimigo pelo simples fato de ser assim taxado, independentemente de ele fazer ou não alguma coisa. Greco exemplifica a teoria de Jakobs assim: se a pessoa é terrorista, não há necessidade de esperar que ela aperte o detonador e exploda 500 pessoas em um shopping. A partir de uma série de raciocínios, o professor alemão conclui que o inimigo o é hoje, amanhã e depois de amanhã. E, nesse caso, não é preciso ter uma pena determinada,

e sim de natureza indeterminada, normalmente de caráter perpétuo. Segundo explica Greco, esse raciocínio, cuja tese se espalhou pelo mundo, afetando realidades diferentes das que lhe deram origem, começa a subverter todo o sistema, pois se aplica uma legislação de movimento de lei e ordem, muito dura, fazendo com que se perca o sentido da legislação penal e processual penal. O procurador de Justiça considera muito perigoso fazer essa distinção entre cidadão e inimigo, principalmente diante da dificuldade em identificar, no ordenamento jurídico brasileiro, quem é este último. Basta, por exemplo, lembrar que um cidadão pode estar bem politicamente hoje e escolher seu inimigo. Quando estiver mal, sua posição poderá inverter-se.

Pena compatível com o ato Embora não aplique a teoria do Direito Penal do Inimigo, o promotor de Justiça de Minas Gerais e professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) Marcelo Cunha acredita que o pensamento conduz a uma boa reflexão sobre o Direito Penal brasileiro. Ele ressalta que, para as nações que vivenciam atentados ou ameaças terroristas, é mais simples aceitar a existência de um inimigo. Segundo Marcelo Cunha, Jakobs diz que só é possível estar dentro do conjunto de pessoas que abdicam de parte da liberdade para fazer jus aos benefícios de todos se forem dadas garantias de que todos vão se portar racionalmente de acordo com as normas. Marcelo Cunha, que é mestre em Direito Processual e doutor em Direito Constitucional, exemplifica: “Se uma pessoa trabalha todo dia, mas em um determinado momento chega em casa, vê que está sendo traído e mata a esposa, isso não quer dizer que essa pessoa não está dando garantia para a sociedade de que normalmente atua de acordo com a norma. Apenas em um momento não atuou, mas isso não retirou a norma de vigor. Agora, se uma pessoa não entende como legítima a norma e tem como objetivo criar situações em que deixa todas as pessoas em perigo, como um terrorista, essa pessoa não dá as garantias mínimas

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de que se coloca como membro da sociedade.” O professor explica que o Direito é a tentativa de racionalizar a necessidade de convivência social. Como exemplo, diz que, se alguém pratica um ato muito grave com relação à sociedade, ele não pode simplesmente ser esquartejado na rua. É preciso arrumar uma solução racional, explicitar essa racionalidade e aplicar uma penalidade compatível com o que foi feito. Marcelo relata que, a partir de 2001, o mundo se viu diante de um dilema: “Há certas condutas que saem da razoabilidade, que colocam em xeque a nossa capacidade de resolver racionalmente os problemas. Nos Estados Unidos e em quase todos os países da Europa, houve a necessidade de se criar uma legislação mais severa com os possíveis terroristas. É muito fácil dizer que as pessoas têm o direito constitucional de ficar em silêncio. Mas, se há fortes indícios de que alguém tem acesso a uma bomba nuclear e pode detonar uma cidade com 400 mil habitantes, como é que, racionalmente, se trabalha nesses casos? Nos EUA há leis que permitem que a pessoa fique incomunicável mesmo em relação ao advogado, sem nenhuma acusação formal, por 72 horas. É algo muito radical, mas surgiu por algumas necessidades. Para trabalhar teoricamente essas necessidades é que veio o Direito Penal do Inimigo”, acentua.


Duas categorias Para Marcelo Cunha, a ideia é simples: “O cidadão é aquele que tem que ter acesso a todas as garantias, e o inimigo é aquele que se autocoloca fora da sociedade, não tendo, portanto, direito de usar dos benefícios sociais quando é pego.” Marcelo Cunha entende que o professor Günther Jakobs quer, na verdade, teorizar racionalmente a respeito de algo que já existe. “Ele quer entender, por exemplo, como é que se veda a algumas pessoas o acesso a seu advogado por 72 horas dentro de um Estado Democrático de Direito. E ele tenta teorizar e diz: ‘A gente faz isso porque essa pessoa se colocou de fora.’” O promotor de Justiça acredita que Jakobs

não quer propor nada. “Ele quer entender o que acontece. Como ele não quer propor nada, ele não quer criar o direito penal do cidadão e o direito penal do inimigo. Ele quer é falar que existem momentos em que o traço do direito penal do inimigo é mais marcante do que o direito penal do cidadão. E existem momentos em que acontece o contrário. É basicamente isso que Jakobs quer fazer. Qual é a crítica que todo mundo faz a ele, e eu acompanho? Ele usa termos muito fortes, que não se compatibilizam com a realidade brasileira. Quando ele fala que existem duas categorias, o cidadão e o inimigo, é difícil aceitar, porque vai criar o cidadão e o cidadão de segundo escalão.”

Direito Penal brasileiro Ainda assim, Marcelo Cunha acredita que alguns pontos dessa teoria podem ser aproveitados. “O inimigo sempre existe. Não o inimigo no sentido de um cidadão de segunda categoria, mas sim no sentido de que o Direito Penal, necessariamente, tem que fazer escolhas de punir certas condutas de maneira mais rigorosa que outras.” Para o promotor de Justiça, é clara a existência de traços similares para os presos no Brasil. “Da mesma forma que existe uma superpopulação carcerária, posso dizer que essa superpopulação é homogênea. Os presos são iguais. Existe uma parcela da população que é escolhida pelo sistema criminal para ser os nossos presos. O inimigo é uma escolha de um determinado Estado, por política criminal, para punir mais severamente determinadas condutas e não determinados grupos. Ações que se consideram mais nocivas e cuja punição possa ter um maior benefício social. Ainda na linha mais conceitual, Rogério

Greco diz que, no ordenamento jurídico brasileiro, não é possível apontar o inimigo. Para ele, será sempre uma seleção arbitrária. Ao falar sobre o Direito Penal do Inimigo, o procurador de Justiça afirma: trata-se de uma tese perigosa e que já está um pouco fora de moda na Europa. No Brasil, segundo Greco, há legislações duras, como a lei de crimes organizados, escuta telefônica, nas quais se tenta encaixar, de alguma forma, esse raciocínio defendido por Jakobs. Há ainda, segundo ele, projetos no Congresso Nacional prevendo o aumento do tempo máximo de cumprimento de pena para 40 anos. Ele lamenta a forma como o Direito Penal está sendo utilizado nos dias de hoje. Nos tempos da ditadura, ressalta Greco, que em tese privava arbitrariamente a liberdade, havia infinitamente menos direitos penais, representando um contrassenso, agora que o país vive a democracia, o excessivo número de leis que o Brasil possui.

Hipergarantismo ganha força Marcelo Cunha afirma que atualmente há no direito criminal o domínio de uma corrente que ele denomina hipergarantismo. Ela partiria dos pressupostos que são aceitos basicamente por todos os operadores do Direito de que o Direito Penal deve servir para a punição do criminoso,

mas também para que este tenha garantias em relação ao Estado que quer puni-lo. Essa postura se refere às garantias constitucionais, como o direito de permanecer em silêncio, o direito a uma prisão de acordo com a Constituição, o direito à presunção da inocência.

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Como resquícios da transição de um período ditatorial para o período democrático, houve, segundo Cunha, um excesso na interpretação do que seriam as garantias adequadas. “Desde a Constituição, esse movimento hipergarantista vem ganhando força e vem gerando distorções que a sociedade não aceita mais. A sociedade fica revoltada com isso, e o promotor de Justiça acaba sendo o para-raios”, diz. Marcelo Cunha acredita que todo mundo que tenha um mínimo de bom senso acha que as garantias dos réus têm que ser respeitadas. Para ele, poucas são as pessoas que pensam que, se alguém praticou um crime, deve ser assassinado por uma horda de pessoas revoltadas. Não, as pessoas querem que se pague pelos erros. Nem

mais, nem menos. “Como vínhamos de uma ditadura, foi muito importante a consolidação dessas garantias, mas diversos grupos, por interesses específicos, fizeram com que essa interpretação passasse a ser uma coisa absurda. Atualmente há afirmativas estatisticamente corretas que são alarmantes, do tipo: hoje em dia pode-se matar qualquer pessoa no trânsito e nunca ser preso. Posso falar que, hoje em dia, uma pessoa pode se apropriar de dinheiro público e nunca ser presa por causa disso. É óbvio que essa afirmativa é estatística. O que eu estou falando é que é estatisticamente insignificante o número de pessoas punidas em relação ao número de pessoas que praticam os crimes. Isso é resultado do hipergarantismo.”

Alex Lanza

É estatisticamente insignificante o número de pessoas punidas em relação ao número de pessoas que praticam os crimes. Isso é resultado do hipergarantismo”

Marcelo Cunha

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Grupos favorecidos O promotor de Justiça diz que o hipergarantismo é uma retórica para beneficiar alguns grupos. “Como instrumento de retórica vem como discurso para todos, pois não se pode falar que só os ricos não vão ser presos. O que se pode dizer é: todos têm direito de aguardar em liberdade, mas não são todos que podem ir ao Superior Tribunal de Justiça ou ao Supremo Tribunal Federal e não deixar o processo acabar nunca. Mas esse resultado na verdade é construído a partir de milhares de microdecisões. Todo mundo critica o Direito Penal do Inimigo no Brasil justamente por causa do hipergarantismo. Quando um determinado titular de cargo público se apropria de R$ 5 milhões, não se sente tanto quanto a explosão de um prédio, mas o efeito pode ser praticamente o mesmo. No Brasil

não sentimos a necessidade do Direito Penal do Inimigo, por isso ele é tão facilmente rechaçado.” Rogério Greco, por sua vez, diz que a lei é injusta e que foi feita para o pobre, que é quem vai ser revistado nas ruas. Os criminosos do colarinho branco, segundo ele, não vão presos porque têm bons advogados, vão usar todos os recursos e protelar ao máximo a conclusão do processo. Já o pobre não tem ninguém por ele, e a Defensoria Pública não dá conta de resolver. Rogério Greco considera que o Brasil está mudando. Antes da Constituição de 88, não se cogitava de alguém ser preso. Hoje, por mais que não fique preso efetivamente, já se ouve falar que alguém foi preso preventivamente, que está sendo processado criminalmente.

Os inimigos no Brasil O inimigo deve ser entendido, para Marcelo Cunha, como uma opção de política criminal de se punir mais severamente certas condutas. Para ele, o primeiro grande ponto de Günther Jakobs é a constatação de que a sociedade sempre vai ter inimigos. Cunha acredita que as opções de política criminal devem ser compatíveis com as necessidades de determinada sociedade em determinada época. Qual é o inimigo brasileiro atual? “É o homem de 18 a 30 anos que comete tráfico de drogas ou crime violento e cuja renda mensal deve girar em torno de, no máximo, quatro salários mínimos. Se falarmos que, a partir de hoje, não prenderemos mais esse público, os cerca de 450 mil presos no Brasil cairiam para 10 mil ou 15 mil.” Marcelo realça que essa, atualmente, é a conduta escolhida pelo Direito Penal brasileiro para ser punida e indaga: “Como esse inimigo é escolhido? Pela prática. Não há ninguém que escolhe. É escolhido por milhões de microdecisões que vão direcionando para esse público. Um dos grandes fatores é que eles não têm acesso à assessoria jurídica efetiva, há falhas por parte do Ministério Público, dos juízes, na investigação criminal”, afirma Cunha. Para Marcelo Cunha, essa diferenciação vem se tornando mais grave e não corresponde ao que a Constituição Federal prevê. “Se a Constituição fala que determinados crimes têm que ser punidos mais severamente, é preciso entender que os meios processuais para investigar esses crimes

têm que ser mais fáceis. O que deveria ser mais fácil? Uma quebra de sigilo telefônico de um crime do colarinho branco ou um mandado de busca e apreensão para pegar droga na casa de um cidadão? Quem tem que pautar o que é mais fácil ou mais difícil não é só a prática, tem que ser o operador do Direito.” A própria Constituição traz parâmetros para falar qual é a atual escolha de política criminal. São os crimes hediondos, ação de grupos armados civis ou militares contra a ordem constitucional e contra o Estado democrático, prática do racismo, atos de improbidade administrativa, entre outros. “Por que os crimes previstos na Constituição como os que deviam ser punidos mais severamente não o são? São, na verdade, os menos punidos. Não é algo ingênuo. Por que os atos de improbidade administrativa têm uma jurisprudência muito mais tolerante do que os crimes cometidos pelos pobres?”, questiona Marcelo Cunha. É nesse ponto que ele chama a atenção para o Direito Penal do Inimigo. “É trazer essa discussão para dentro do Direito. Discutir seriamente por que atualmente é impossível uma pessoa que se apropria de dinheiro público ser presa. Por que a Constituição fala que os crimes hediondos devem ser punidos mais severamente, mas o Congresso Nacional, quando definiu os crimes hediondos, não previu nenhum crime do colarinho branco? E qual é a postura que o Ministério Público e o Judiciário têm que tomar em relação a isso?”

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Democratizar a democracia Diferentemente dos políticos, que representam certos estratos da população, promotores de Justiça e juízes de Direito têm outra obrigação, que é atuar a constituição democrática, democratizar a democracia. “Quando o promotor de Justiça pune uma pessoa que matou o vizinho a facadas ou que entrou no tráfico de drogas, não pode simplesmente argumentar que essa pessoa nunca teve acesso a escola razoável, família estruturada, posto de saúde, opções de esporte, de lazer, de cultura, e, por isso, pedir a absolvição dele. Isso é simplificar o problema. O que podemos ver é que essa pessoa não é só vitima, mas também não é só culpada”, afirma. Para Cunha, há uma grande parcela de culpa da sociedade, mas que não exime a responsabilidade desse criminoso. “Agora, quando o promotor de Justiça pune essa pessoa, ele está enxugando gelo. Quando ele manda para a cadeia mais um dos 450 mil que fazem parte dessa estatística, o filho dessa pessoa provavelmente vai continuar fazendo isso, vai continuar sem acesso a uma escola em horário integral, com três refeições, com professores interessados. Se a cada R$ 1.000 que forem tributados, chegarem R$ 100 aos cofres públicos e, desses R$ 100, apenas R$ 1 chegar à obra, nunca conseguiremos fazer uma escola dessa.” Marcelo Cunha acredita que atualmente há duas práticas de Direito Penal: a da manutenção do status quo e a da implementação da democracia. E que as duas precisam atuar. “É preciso enxergar que o Direito Penal democrático é aquele que diminui o lapso social. Estamos em um momento em que nada disso é problematizado. Só falamos em direitos e garantias dos réus, principalmente quando é réu rico. Então, quando é um banqueiro ou um político de alta posição, nosso Direito consegue ser um paradigma para o mundo inteiro. E quando é um furto de galinha ou coisa do gênero, ele consegue ser o carrasco do pobre”, frisa. Esse é o paradoxo, segundo Marcelo, de se ter uma superpopulação carcerária e ser o país mais garantista do mundo. “Muitas vezes o pobre tem que ser preso, mas eu queria que isso acontecesse com o rico também. Eles cometem o mesmo homicídio, mas, por razões técnicas, o rico é liberado e o pobre vai para a cadeia, usando o argumento de que uma prisão preventiva só é justificável quando o cidadão apresenta risco de fuga ou risco à ordem pública. Leia-se: a pessoa tem antecedentes ou não tem emprego ou residência fixa. E, assim, estamos punindo uma classe, mas não podemos partir para um discurso de que o papel da Justiça é fazer com que o pobre seja solto.”

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Por que a Constituição fala que os crimes hediondos devem ser punidos mais severamente, mas o Congresso Nacional, quando definiu os crimes hediondos, não previu nenhum crime do colarinho branco?” Marcelo Cunha


O problema é social e político Para o procurador de Justiça Rogério Greco, a legislação penal cumpre o seu papel, mas o Estado não cumpre a sua função social. Falta no Brasil, ressalta Greco, saúde, educação, lazer, cultura, habitação, e não se pode usar o Direito Penal no lugar do Estado Social, que não vai funcionar. Para ele, o problema é social e político. Ele crê que, no dia em que as funções sociais do Estado forem cumpridas, grande parte da criminalidade violenta será reduzida. Greco acredita que a legislação atual é boa e, como há muitas leis no Brasil, o que precisa é ajustá-las, pois a sociedade vive em processo de mudança. É possível, segundo ele, aplicar penas altas para quem merecer uma pena alta. E não pode um fraudador que subtraiu R$1 bilhão receber pena mínima porque é primário. Ele completa afirmando que, no dia em que a Justiça souber manejar bem a legislação brasileira, será suficiente, ressalta Greco Marcelo Cunha, por sua vez, defende que a mudança necessária é a de interpretação, que, segundo ele, mudou muito nos últimos 30 anos, e a legislação não. “É o mesmo Código de Processo Penal que mandava a pessoa recorrer presa, que tinha requisitos muito mais fáceis de serem configurados para a prisão preventiva. Com esse movimento garantista,

os advogados conseguem manter os clientes soltos durante o processo.” Ele conclui: “Precisamos enxergar que o nosso papel como promotor de Justiça está se limitando cada vez mais a ficar só em uma ponta, e o Judiciário tem também cada vez mais proferido decisões só contra os pobres. Está na hora de recorrermos cada vez mais, de usarmos sustentação oral nos tribunais cada vez mais para mudar isso e para que se consiga punir essa outra ponta dos inimigos.” Greco ressalta que interpretar não é fácil, e que a execução dessa tarefa varia muito entre juízes e promotores de Justiça. Ele, que segue a linha minimalista, trabalha com a eleição de prioridades, apurando o que é mais importante e deixando os demais casos para serem protegidos por outros ramos do ordenamento jurídico, como o Direito Civil, o Direito Administrativo, o Direito Tributário, mas não pelo Direito Penal. Ele cita como exemplos a contravenção penal do jogo do bicho e os jogos de azar. E questiona o porquê de ainda existir tal prática a não ser para estimular corrupção. Para ele, isso não interessa ao Direito Penal. Nesses casos, aplicam-se princípios penais fundamentais, como o da insignificância, na esperança de que o legislador retire do rol de contravenções penais esses tipos de conduta.

Justiça e igualdade Proteger os bens mais importantes e necessários ao convívio em sociedade é, para Greco, a função do Direito Penal. E quem define essa importância é o legislador, bem assessorado. Há, para ele, crimes importantes, como os crimes contra a vida. Ele entende que até o critério de proporção na lei é curioso. E ilustra com o seguinte exemplo: se uma pessoa estiver andando na rua e tomar um soco no rosto, a pena do agressor vai de três meses a um ano. Mas, se uma pessoa for à sala de outra e levar a sua pulseira, a pena vai ser de um a quatro anos. Ele questiona o que é que vale mais: a integridade física ou uma pulseira? Essa inversão de valores acontece, segundo Greco, porque existem leis demais. Ele defende a revisão do Código de Processo Penal e lamenta que muitas vezes a modificação é para pior, gerando muitas dúvidas. O procurador de Justiça destaca o papel do Ministério Público. Para ele é buscar justiça e, principalmente, a igualdade, pois, enfatiza, o Direito Penal não é igual. É seletivo. Ele escolhe o que quer punir. E acrescenta que, se tem escolher, então que seja

escolhido aquilo que causa prejuízo maior e deixe de lado o que causa prejuízo menor. Como um caminho para resolver esse problema, Rogério Greco pensa em uma limpeza do sistema. Uma comissão formada para limpar o Código Penal e a legislação extravagante que também prevê crimes e penas. Em segundo momento, ele defende o melhor uso do Juizado Especial Criminal, ampliando a sua competência para crimes com previsão de penas de até quatro anos, dando liberdade ao Ministério Público para fazer transação penal. Assim, iriam para o juizado basicamente todas as infrações contra o patrimônio sem violência. Em terceiro lugar, infrações graves deveriam ser julgadas de forma grave para se sentir que o Direito penal pode ser violento. Ele exemplifica: uma pessoa mata, é condenada a 12 anos e, com quatro, está na rua. Está errado. Assim o Direito Penal não fez sentir a sua força. Por último, seriam os crimes contra a humanidade, como genocídio e outros, que precisam ser imprescritíveis. Para ele, se for visualizada essa forma piramidal, pode-se resolver muita coisa. Mas tem que haver vontade política.

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Opinião

Homicídio sem cadáver A intensa exposição na mídia do provável homicídio da modelo Eliza Samúdio, que teria ocorrido no mês de junho de 2010, com o envolvimento do goleiro do Flamengo Bruno Fernandes das Dores de Souza, e participação de pessoas de seu convívio, tem suscitado interessante discussão sobre a possibilidade de os réus serem processados e condenados por crime de homicídio mesmo diante do desaparecimento do cadáver. Sem entrar no mérito do caso, o assunto gerou polêmica não apenas entre a população leiga, mas também entre os versados no Direito. Tratando-se de crime de homicídio, há ainda outra particularidade. Não é o juiz de Direito quem julga o fato, mas a própria sociedade, por meio do Tribunal do Júri, que detém soberania para tanto, determinada pela própria Constituição. Vale dizer: os tribunais superiores, inclusive o Supremo Tribunal Federal (STF), não podem alterar a decisão. Assim, se o júri absolveu ou condenou o réu, o Tribunal de Justiça, por exemplo, não pode dar outra sentença quanto ao mérito. No máximo, pode anular a decisão por alguma eventual nulidade e determinar que novo julgamento seja feito pelo mesmo Tribunal do Júri. Voltando à polêmica, aqueles que defendem a necessidade de se encontrar o corpo da vítima para que o réu seja efetivamente condenado se sustentam na tese de que o crime de homicídio é de natureza material, ou seja, deixa vestígios. No caso, o exame de corpo de delito poderia ser feito somente por meio de perícia diretamente realizada no cadáver. Sem essa prova, sempre haveria dúvidas sobre a efetiva morte da vítima, ou seja, da própria materialidade do crime.

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Os adeptos dessa corrente sempre citam o “caso dos irmãos Naves”, ocorrido na Comarca de Araguari (MG) na década de 1930, que se tornou famoso no Brasil por causa da grande injustiça que se fez com os irmãos Joaquim e Sebastião, os quais, torturados, confessaram o homicídio do primo Benedito Pereira Caetano. Este, na verdade, havia fugido da cidade em razão de dívidas. Os irmãos Naves foram absolvidos, por duas vezes, pelo júri. Porém, como naquela época o Tribunal do Júri não detinha soberania, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais reformou a decisão e condenou os irmãos a 16 anos de reclusão. Depois de cumprida a pena, a suposta vítima apareceu viva na cidade de Ponte Nova (MG), em 1952, dizendo até que não sabia do que tinha acontecido com os primos! Histórias à parte, o fato é que tem prevalecido, inclusive no STF, o correto entendimento segundo o qual um crime de homicídio não pode ficar impune somente porque o homicida cuidou de esconder, para ninguém nunca encontrar, ou destruir o corpo da vítima. Há casos em que os homicidas queimam o corpo da vítima e espalham suas cinzas pelo ar; noutros, enterram-no em lugares jamais imaginados pela polícia. Há registro até mesmo de destruição total do cadáver com ácidos poderosos. Assim, esfumado o cadáver, ou seja, desaparecidos os vestígios materiais, é possível a realização daquilo que em Direito se chama exame de corpo de delito indireto, com base em provas outras que não a perícia no cadáver da vítima, mas que do mesmo modo pode atestar a materialidade do crime de homicídio.


Nesse contexto, de importância capital a existência de testemunhas que relatem situações que revelem que o acusado realmente está implicado na morte da vítima e sumiço do corpo. A delação de comparsas também constitui valioso elemento de prova para se demonstrar indiretamente a materialidade. Além disso, hodiernamente a polícia conta com eficientes provas científicas e periciais, tais como exame de DNA, degravações de conversas telefônicas judicialmente autorizadas, definição, a partir de sinais de celular ou de GPS, da localização dos suspeitos no momento em que ocorria o crime. E tais provas, devidamente concatenadas e harmônicas com testemunhos ou delações, podem compor o exame de corpo de delito indireto e regularmente convencer a Justiça da ocorrência do crime de homicídio. Aliás, no julgamento do habeas corpus n.º 78.719, relatado pelo magistral ministro Sepúlveda Pertence, o STF autorizou o recebimento de denúncia do Ministério Público e o início de processo por homicídio, mesmo sem se ter no caso descoberto o cadáver, pois “a ausência de exame necroscópico é irrelevante, desde que demonstrada a morte por outras provas”. Por sua vez, em recente julgamento, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que, se os “homicídios têm por característica a ocultação dos corpos, a existência de prova testemunhal e outras pode servir ao intuito de fundamentar a abertura da ação penal, desde que se mostrem razoáveis no plano do conven-

cimento do julgador” (habeas corpus n.º 79.735/RJ). Como mencionado, tratando-se de crime de homicídio, quem dá a palavra final é a própria sociedade, por meio do Tribunal do Júri. Mas até esse julgamento, há outras decisões que cabem ao juiz de Direito. Primeiro, ele deve decidir se recebe a denúncia do promotor de Justiça. Recebendo-a, e depois de ouvidas as testemunhas da acusação e da defesa, deve analisar se há indícios razoáveis da materialidade e da autoria do crime e decidir se envia o processo para o Tribunal do Júri, pronunciando o réu. Em todas essas decisões, o problema da ausência do cadáver deve ser enfrentado. Nesse contexto, é importante que o Ministério Público e o Poder Judiciário nunca deixem de observar as garantias constitucionalmente asseguradas aos acusados em geral e que, para a condenação, haja elementos probatórios sérios, ainda que indiretos, de que se deduzam, por lógica estrita, a morte da vítima e o envolvimento do acusado. Por fim, quanto ao caso da modelo Eliza Samúdio, concluídos os trabalhos da polícia, devemos aguardar o posicionamento dos promotores de Justiça que nele atuam, do juiz de Direito responsável pela instrução do processo, do Tribunal de Justiça no julgamento de habeas corpus e de possíveis recursos da defesa e, por último e o mais importante, o soberano julgamento a ser feito pela comunidade do local onde o crime ocorreu, por meio do Tribunal Popular do Júri.

Alex Lanza

Antônio Sérgio Tonet Procurador de Justiça Criminal Ex-promotor de Justiça do I Tribunal do Júri de BH

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Artigo

O “flanelinha” no espaço da metrópole de Belo Horizonte: o curioso fenômeno da gestão de vagas de estacionamento em vias públicas por particulares

É notório que as metrópoles brasileiras já contam com uma imensa frota de automóveis. Notório é também que a maior parte dessas cidades não foi projetada para abrigá-la e, ao mesmo tempo, permitir a fluidez do trânsito. Desse problema comum às grandes cidades decorre, entre outros, um fenômeno curioso: a gestão particular das vagas de estacionamento em vias públicas. Qualquer cidadão que empreenda uma travessia de veículo pelas principais ruas ou avenidas de Belo Horizonte e intencione estacioná-lo por algum motivo não terá dificuldade em observar um aspecto intrigante, embora não exclusivo, da capital mineira: há poucas vagas de estacionamento em vias públicas – seja na região do hipercentro, nas concentrações de estabelecimentos comerciais e instituições políticas localizadas nos bairros situados na área englobada pela região da avenida do Contorno, ou mesmo em áreas mais periféricas com grandes aglomerações promovidas por eventos culturais e/ou esportivos – que não estejam sendo “geridas” pelos já conhecidos flanelinhas,

seja na forma de lavadores ou de guardadores (vigias) de veículos1. A representação do senso comum nos indica, em um primeiro momento, que as ruas e avenidas seriam de uso de toda a coletividade, devidamente obedecidas as regras de trânsito; em um segundo momento, tais espaços acabam sendo gradativamente ocupados e, por vezes, monopolizados pelos flanelinhas, que mormente exigem determinadas quantias (variáveis de acordo com o lugar, com o evento e, por vezes, com a marca do veículo “vigiado” e com a aparência de seu proprietário) pela utilização das vagas onde seriam permitidas a parada e o estacionamento de veículos. Mas como teria acontecido esse processo de apropriação das vagas de estacionamento em via pública? Qual o significado que os flanelinhas atribuem ao espaço e como eles o organizam nas diferentes localidades de Belo Horizonte? Quais seriam os aspectos mais controversos da relação cotidiana entre flanelinhas, usuários de vagas de estacionamento e agentes públicos locais?

1A profissão de guardador de veículo foi reconhecida pela Lei Federal n.º 6.242/75 e se encontra na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO/2002), sendo regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 79.797/77. Há algumas leis municipais que regulamentam de forma mais específica o exercício da profissão, mas não é o caso da cidade de Belo Horizonte.

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Alex Lanza

Carlos Augusto Canêdo Gonçalves da Silva é doutor e mestre em Direito Penal pela UFMG, professor da UFMG e da PUC Minas e procurador de Justiça

Várias perguntas podem ser feitas e demandam certamente uma análise mais detalhada do fenômeno socioespacial que se nos apresenta, conquanto sejam possíveis algumas breves reflexões que nos permitiriam um debate franco e aberto sobre a ocupação das vagas de estacionamento em vias públicas pelos chamados flanelinhas2, sem descuidar das implicações socioeconômicas das políticas urbanas institucionais3 relacionadas ao citado fenômeno. Vários trechos de ruas e avenidas são reparti-

Alex Lanza

Humberto Leandro de Melo e Sousa é mestre em Direito pela PUC Minas e professor da Faculdade de Ciências Jurídicas de Diamantina (FCJ-UEMG)

dos – como se fossem zonas de atuação – entre os flanelinhas, que se fixaram em regiões com grande concentrações de veículos e ali constituíram o seu local de trabalho. O monopólio do “ponto”, ao que parece, pode acontecer pelos motivos mais variados e se consolidar pelos critérios de antiguidade, de poder coercitivo (traduzido na coação física ou moral4) e de credibilidade/aceitação pelos moradores, comerciantes e frequentadores do local.

1 Inicialmente, cabe-nos ressaltar que nesta pequena abordagem o termo flanelinha será utilizado em sentido mais amplo, isto é, abrange tanto aqueles indivíduos

que se dispõem, por determinada quantia em dinheiro, a lavar os veículos estacionados, quanto aqueles que se oferecem, pela mesma benesse, a simplesmente vigiá-los contra eventuais furtos. 3 Segundo Castells, “O âmago da análise sociológica da questão urbana está no estudo da política urbana, isto é, da articulação específica dos processos designados como ‘urbanos’ no campo da luta de classes e, por conseguinte, na intervenção da instância política (aparelho de Estado) – objeto, centro e mecanismo da luta política” (CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Trad. Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 351). 4 Há diversos projetos de lei federal em tramitação no Congresso Nacional que preveem a tipificação da conduta do flanelinha de cobrar pelas vagas de estacionamento em vias públicas.

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Alguns flanelinhas pedem para lavar o veículo, outros tentam vender as folhas do talão rotativo (chamado em Belo Horizonte de “Faixa Azul”) por um preço pouco mais caro, além daqueles que simplesmente combinam determinada quantia em dinheiro para que o veículo seja vigiado. Portanto, a vaga de estacionamento na via pública estaria sendo gerida pelo flanelinha e sua ocupação não estaria mais condicionada tão somente à ausência de outro veículo e/ou uso do talão-rotativo. Agora haveria outras regras de reprodução daquele espaço (vaga de estacionamento) que não coincidiriam, necessariamente, com a ideia de uso coletivo dos bens públicos. A rigor, não poderíamos tipificar a conduta dos flanelinhas como ilícito penal (crime de extorsão ou constrangimento ilegal, por exemplo), pois a ameaça (explícita ou implícita) mediante a qual se dá a exigência ou “solicitação” de determinada quantia ao usuário da vaga de estacionamento se refere, normalmente, ao veículo, e não ao seu proprietário. Caso diverso, destaquemos, seria aquele no qual o flanelinha ameaçasse a integridade física, a vida ou a liberdade individual do usuário da vaga com o objetivo de auferir vantagem patrimonial indevida (crime de extorsão, previsto no art. 158 do Código Penal) ou viesse, efetivamente, a danificar, de qualquer modo, o veículo automotor (crime de dano, previsto em art. 163 do Código Penal). Para os flanelinhas que trabalham sem o devido cadastramento seria possível a configuração da contravenção penal pelo exercício ilegal de profissão ou atividade (art. 47 do Dec.Lei n.º 3.688/41). Em contexto de extremismos ameaçadores, diversos projetos de lei federal em tramitação no Congresso Nacional que preveem a tipificação da conduta do flanelinha de cobrar pelas vagas de estacionamento em vias públicas. Além disso, delineiam-se novas formas de controle embutidas em projetos de revalorização de espaços urbanos que não estariam comprometidos com o desafio da inclusão social e acabam por combinar a lógica punitiva, em perfeita sintonia com a modelo neoliberal, e a governamentalização das populações e situações submetidas ao que logra ser definido como risco do crime e da violência5. Os flanelinhas de Belo Horizonte, a exemplo dos de outras cidades, seriam um exemplo de organização social espontânea que, em certo ponto, replica a estrutura do mercado formal de trabalho. Alguns criam laços de confiança com seus clientes, proprietários de veículos, funcionando como peças-chave na logística urbana caracterizada pelo grande número de veículos e pelo pequeno número de vagas.6 Ora, tais perspectivas relacionadas às práticas urbanas seriam indicativos de que o espaço urbano não pode ser concebido como objetivo e neutro, mas como político e ideológico, como produto da história, como fruto de contradições e estratégias de grupos particulares e de determinados indivíduos. Nas palavras de Lefèbvre, o espaço não é um objeto científico contornado/velado/escondido/ subtraído pela ideologia ou pela política; ele sempre foi político e estratégico. Se esse espaço tem um aspecto neutro, indiferente em relação ao conteúdo, portanto “puramente” formal, abstraído/abstrato de/por uma abstração racional, é precisamente porque ele já está ocupado, organizado, já foi objeto de estratégias antigas, das quais só se encontram vestígios. O espaço foi formado, modelado a partir de elementos históricos ou naturais, mas politicamente. O espaço é político e ideológico. É uma representação literalmente povoada de ideologia. Existe uma ideologia do espaço. Por quê? Porque esse espaço que parece homogêneo, que parece dado, de uma vez, na sua objetividade, na sua forma pura, tal como o constatamos, é um produto social. A produção do espaço não pode ser comparada à produção deste ou daquele objeto particular, desta ou daquela mercadoria. E, no entanto, existem relações entre a produção das coisas e a produção do espaço. Esta vincula-se aos grupos particulares que se apropriam do espaço para o gerir, para o explorar.7

5 TELLES, Vera da Silva; HIRATA, Daniel Veloso. Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito. In: Estudos Avançados 21 (61), 2007. 6 A questão dos flanelinhas pode e deve ser analisada para além da mera permissividade legal, com exame de suas implicações para o conjunto da cidade e da cidadania. 7 LEFÈBVRE, Henri. Espaço e Política. Trad. Margarida Maria de Andrade e Sérgio Martins, p.37-38. [do original: Espace et Politique. Paris: Éditions Anthropos, 1972. Primeira versão. Início: fev. 2003].

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O fenômeno urbano do intenso tráfego de veículos que transportam, via de regra, uma única pessoa, a ocupação das calçadas por ambiciosos comerciantes e clientes com carros de luxo, a gestão particular das vagas públicas de estacionamento revelam a reprodução descontinuada e conflitante do espaço, demonstrando que a centralidade tem seu movimento dialético específico e que o antagonismo não é senão um momento da contradição no espaço, quer se trate do centro comercial (que reúne produtos e coisas), do centro simbólico (que reúne significações e as torna simultâneas), do centro de informação e de decisão etc. Mas todo centro destrói-se a si próprio. Ele se destrói pela saturação; ele se destrói porque ele remete a uma outra centralidade; ele se destrói ao passo que suscita a ação daqueles que ele exclui e expulsa para as periferias. 8 Portanto, o habitante outrora excluído, segregado, que o centro urbano não acolheu e expulsou para a periferia da capital e para as cidades mais próximas, retorna na condição de flanelinha, de “legítimo” dono das vagas de estacionamento das ruas e avenidas públicas, de camelôs ou toureiros, de mão de obra barata e subexplorada, de mendigos e pedintes, ou mesmo de praticantes de ilícitos penais (em especial de crimes contra o patrimônio). 9 Interessa-nos, nesse ponto, a perspectiva dialética para uma compreensão mais abrangente desses fenômenos sociais de segregação do habitante excluído e de negação teórica e prática do urbano, porque os relaciona com as condições históricas que lhes deram origem, das quais dependem, com as quais estão em interação. Notadamente, a segregação, a constituição de espaços periféricos e pobres permitindo a reprodução das relações de produção (o que são relações de classe), essa segregação constitui uma negação teórica e prática do urbano, mas, enquanto tal, ela o revela. 10 Na relação entre capital e trabalho, expressões como flexibilização das leis trabalhistas e terceirização ganham amplo espaço, refletindo as novas transformações no mundo do trabalho. Este, a bem dizer, desvincula-se do emprego estável e seguro. Em não poucos países, especialmente naqueles em desenvolvimento, cresce a cada dia a economia informal. Desemprego, subemprego e deslocamento de trabalhadores para os centros urbanos encaixam-se neste cenário de novas relações entre capital e trabalho. Assim também o flanelinha, à margem de uma sociedade que o rejeita e, ao mesmo tempo, o recebe como gestor informal (mesmo quando cadastrado pela Prefeitura como “lavador de carro”) das vagas de estacionamento disponíveis em vias públicas. Sua estratégia de sobrevivência tem nome: a rua.

Referências bibliográficas CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Trad. Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. LEFÈBVRE, Henri. Espaço e Política. Trad. Margarida Maria de Andrade e Sérgio Martins, p.39. [do original: Espace et Politique. Paris: Éditions Anthropos, 1972. Primeira versão. Início: fev.2003]. OLEA, Oscar. Catástrofes y monstruosidades urbanas: introduccíon a la ecoestética. México: Trilhas, 1989. 206 p. TELLES, Vera da Silva; HIRATA, Daniel Veloso. Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito. In: Estudos Avançados 21 (61), 2007.

8 LEFÈBVRE, Henri. Op.cit. p.57 9 “La ciudad ha sido el resultado de las interacciones de las sociedades humanas con el substrato físico y biológico que ha permitido su subsistencia física y

desenvolvimiento espiritual. Entre esas interacciones intervienen componentes sociales, culturales, económicos, físicos y biológicos que conforman y condicionan el ambiente urbano, cuyo objeto debe ser el mejoramiento progresivo de la calidad de vida de sus habitantes. Mas esto no será posible si la naturaleza y el ser humano sufren deterioro como resultado de su interacción, que implique desaprovechar sus potencialidades mutuas”. (OLEA, Oscar. Catástrofes y monstruosidades urbanas: introduccíon a la ecoestética. México: Trilhas, 1989. p. 40). 10 LEFÈBVRE, Henri. Op.cit. p.57-58.

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Opinião

A redução da

maioridade penal: vamos levar a diferenciação social aos adolescentes? Que a impunidade reina soberana na Terra Brasilis, isso já não é segredo para mais ninguém. O que poucas pessoas sabem é que, quando se trata de atos infracionais cometidos por menores de 18 anos, ela impera de forma robusta e insofismável. Saiba o leitor que, caso uma criança de menos de 12 anos cometa um fato grave, como um homicídio, um roubo ou mesmo o tráfico de drogas (e repare o amigo que não se trata de casos apenas imaginários, ocorrendo frequentemente na prática), ela não receberá qualquer repercussão legal, seguindo sua vida como se nada houvesse acontecido. Os adolescentes de 12 a 18 anos, por sua vez, podem receber, no máximo, a medida socioeducativa de internação por até três anos. Convenhamos que, comparado a tirar a vida de uma pessoa, tal reprimenda estatal é flagrantemente inapropriada. Some-se a isso o fato de o Código Penal prever como critério de responsabilização simplesmente o fato de o agente contar com mais de 18 anos. Ora, hoje em dia, um jovem de 16 anos já entende claramente o caráter ilícito de suas atitudes e é plenamente capaz de se portar de acordo. Tanto é assim que vários adolescentes se locomovem sozinhos, em qualquer horário do dia ou da noite, frequentam lugares desacompanhados dos pais, podem votar, trabalham e, em alguns casos, até mesmo escolhem sua profissão e iniciam a cursar a faculdade. Logo, se o sistema criminal quisesse ser adequado à realidade, deveria haver, além do critério puramente biológico (maior de 18 anos), um critério psicológico individualizado (ou seja, em determinado caso concreto, pelas circunstâncias do fato, poder-se-ia responsabilizar o adolescente se este detivesse autodeterminação). Como se pode

notar do exposto, claro fica que, quando me posiciono contrariamente à redução da maioridade penal, não quero dizer, de forma alguma, que o atual sistema seja apropriado. Dessa feita, como tive a oportunidade de falar com maior profundidade e vagar em obra que recentemente publiquei, o livro Só é preso quem quer! (Ed. Brasport), existe uma nítida correlação entre os locais considerados bolsões de miséria e altas taxas de criminalidade violenta. Nessa trilha, como já era de se esperar, a maior ocorrência de adolescentes infratores se dá, incontestavelmente, entre os menores cujas famílias têm uma renda indigna. Somado a isso, notamos que esses “clientes preferenciais” das Varas Infracionais não têm (e nem nunca tiveram) família estruturada, regular apoio acadêmico-escolar, pares que representem verdadeiros modelos de vida e, por óbvio, uma perspectiva de um futuro promissor. Resumindo, aos “clientes de carteirinha” das Delegacias de Proteção à Criança e ao Adolescente (Dopcads), o único braço estatal que se estende para alcançá-los é o policial repressor. Reduzir a maioridade penal nesse Brasil indigno de hoje, que nunca pune aquele que impede o investimento social de chegar ao menor de rua; que nunca pune o parlamentar que só se preocupa com o povo se, por povo, se entenderem unicamente os seus apaniguados, é, inegavelmente, compactuar com a odiosa diferenciação entre ricos e pobres que há muito está impregnada em nossas leis e nossas práticas. Vamos, antes, pensar em punir severamente o criminoso do colarinho branco com a mesma força que queremos punir o assassino para, depois, pensarmos em realizar uma necessária redução da maioridade penal.

Marcelo Cunha de Araújo é promotor de Justiça e autor do livro Só é preso quem quer! Blog: http://marcelocunhadearaujo.blogspot.com

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Livro aborda crime de lavagem de dinheiro A Editora Lumen Juris traz ao mundo editorial nacional obra de autoria do promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) – e, segundo prefácio assinado pelo governador do Estado e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Antonio Augusto Junho Anastasia, “prestigiado e talentoso jurista mineiro, que vem suprir uma lacuna das bibliotecas e das estantes das livrarias nacionais” – Rogério Filippetto de Oliveira. Anastasia afirma ainda que “o recorte epistemológico dado ao tema pelo autor já dá mostras da amplitude de seu pensamento, capaz de laborar com a intensa e intricada dogmática penal, de modo a atualizá-la em seu conteúdo e forma. Dono de um texto intenso, preciso e rigoroso, Rogério Filippetto, ao abordar o crime de lavagem de dinheiro, percorre os fundamentos axiológicos, históricos e dogmáticos do tipo, sem perder de vista o interesse social imanente à resposta penal”. O livro, intitulado Lavagem de dinheiro: crime econômico da pós-modernidade, trata, segundo o autor, das características do crime de lavagem de dinheiro como manifestação decorrente da criminalidade surgida a partir da era pós-industrial. Considerando essa referência histórica, realiza-se uma reflexão sobre os postulados dogmáticos, construídos em outra época pelo Direito Penal clássico, de modo a verificar sua suficiência e adequação ao delito de lavagem de dinheiro. Há, ainda, revela Filippetto, uma alternância de perspectiva do indivíduo para o coletivo, de bem jurídico individual para supraindividual. A mudança não é suficiente para dividir o Direito Penal ou para criar novo ramo do Direito, mas pede uma conciliação entre a segurança decorrente das garantias trazidas pela dogmática clássica e a necessidade de resposta penal qualificada e prática, decorrente dos tempos atuais. Essa conciliação não se assenta numa teoria geral, mas é viável com a adaptação específica dos institutos. Assim, é possível manter o esquema do Direito Penal clássico para os crimes comuns, flexibilizando suas características para os crimes surgidos na modernidade, como acontece com a lavagem de dinheiro. A partir desse ponto, discute-se a questão do bem jurídico, de difícil identificação nos crimes econômicos e principalmente no crime de lavagem de dinheiro. É feito um estudo, na obra, sobre os elementos objetivos do crime de lavagem de dinheiro, procurando delimitar o alcance de sua significação, principalmente em relação ao crime antecedente, que tem importância singular para ter-se o delito como consumado. A tentativa também é analisada, considerando a natureza de crime formal e a dificuldade na sua configuração. Foi estudado o tipo subjetivo, que considera a influência externa de maior abrangência de compor-

tamentos em contraste com o formato mais restritivo brasileiro. São analisadas as diversas possibilidades de punição, tradicionalmente previstas, buscando um ajuste para se destacar as que seriam mais apropriadas ao crime de lavagem, de modo a se aproximar dos fins das penas. Assumem especial relevo as penas de perda de bens e valores como forma de punição, e o afastamento das atividades econômicas como medida de prevenção. Como medidas de combate ao crime, não decorrentes da pena, aparecem outras espécies de medidas com o objetivo de retirar do agente a propriedade do que obteve com o crime, destacando-se a alienação antecipada. O governador Antônio Anastasia complementa as informações de Filippetto afirmando que, “ao fincar bases no garantismo de Ferrajoli, o autor desfaz a aparente contradição entre essa doutrina e a persecução penal do delito de lavagem de dinheiro, demonstrando que uma sociedade de riscos e rica em bens jurídicos supraindividuais está a exigir uma reinterpretação da dogmática, com vistas à efetividade da tutela penal. Rogério Filippetto, vocacionado jurista e cientista que é, perfaz uma análise completa dos aspectos dogmáticos do tipo penal, de modo que sua obra responde, a um só tempo, aos anseios do dogmata e às indagações da ordem da zetética”.

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Rede obtém primeiro lugar em prêmio nacional

A edição n.º 18 da revista Rede teve reconhecimento nacional. O exemplar, que destaca em suas reportagens a importância da prática da participação popular nas políticas públicas, recebeu o primeiro lugar, na categoria revista, no Prêmio Nacional de Comunicação e Justiça 2011. A revista é produzida, em todas as suas etapas, pela Assessoria de Comunicação Social do Ministério Público de Minas, por meio dos jornalistas, publicitários e revisores. Pautadas pelo coordenador da revista, procurador de Justiça Fernando Antônio Fagundes Reis, as matérias, nas mais variadas áreas, como comunicação, meio ambiente, cultura, direitos humanos,

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infância e juventude, entre outras, trouxeram uma real reflexão sobre as políticas públicas e divulgaram ações que vêm ampliando o controle social. A cerimônia de premiação aconteceu no dia 22 de junho durante o VII Congresso Brasileiro dos Assessores de Comunicação da Justiça (Conbrascom), no Rio de Janeiro. O prêmio, lançado em 2003, é uma iniciativa do Fórum Nacional de Comunicação e Justiça (FNCJ) e busca contribuir para o aperfeiçoamento dos produtos e serviços das Assessorias de Comunicação a partir do destaque de experiências bem-sucedidas na área.


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