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Cirineu e Verônica: Cruz e toalha símbolos da vida Cristã

Na nossa vida, o sofrimento é coisa comum! Está sempre a nos comover, e isso acaba suscitando o que de mais humano temos em nós mesmos. Basta apenas uma cena de dor para nos sensibilizar ou uma realidade de sofrimento para nos emocionar. Nos últimos tempos, vemos inúmeras cenas descortinando-se debaixo de nossas janelas ou divulgadas nos noticiários das TVs, nos jornais impressos ou nas páginas de internet.

O caminho da Cruz, na pedagogia espiritual catequética da Igreja, é formado por 14 estações que representam determinadas cenas da Paixão de Cristo, cada uma correspondendo a um acontecimento especial ou a uma maneira de devoção relacionada a tais representações. Entretanto, queremos nos concentrar na V e VI estações da Via Dolorosa, que nos apresentam duas figuras emblemáticas e que, ao mesmo tempo, nos chamam atenção no agir e no modo de ser para com Cristo. No primeiro momento, um homem chamado Simão Cireneu ajuda Jesus a carregar a Cruz e, no segundo momento, uma mulher chamada Verônica aproxima-se Dele e enxuga seu rosto ensanguentado com uma toalha, na qual fica estampada a Sagrada Face de Cristo. O que essas duas estações nos dizem? O que podemos aprender dessas atitudes para com Cristo?

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Na V estação da Via Dolorosa, a cena do Cirineu vem-nos diante dos olhos: “pegaram um certo Simão de Cirene e mandaram-no carregar a cruz atrás de Jesus” (Lc 23,26). Um homem que é desconhecido, que está chegando cansado de seu trabalho, ajuda Jesus Cristo a levar a termo a salvação de um mundo que está cansado de amar. Todavia, não importam as circunstâncias que o levou a tal ação, mas sim a sua atitude de compartilhar a cruz com o Salvador: “Carregai as cargas uns dos outros e, assim, cumprireis plenamente a lei de Cristo” (Gal 6,2). Desse modo, uma vez partilhado o fardo da Cruz, Simão de Cirene nunca mais será o mesmo, visto que trará sempre a leveza de mãos fraternas que se aproximaram e que souberam aliviar o cansaço, restabelecer a confiança no outro, promover a cultura do encontro e, ao mesmo tempo, restituir a esperança de momentos e dias melhores.

Quando recapitulamos o percurso da vida, percebemos que muitos cristãos foram Cirineus de nossa gente. Afinal, não foi isso que fez a irmã Dulce com os pobres e sofredores da Bahia? E o que fez Madre Teresa de Calcutá quando assumiu as aflições e dores dos agonizantes da Índia? Não foi Cirineu de sua gente o saudoso Oscar Romero, ao lutar pelos direitos dos pobres e sofredores da América Latina? E o que falar de tantas famílias que carregam as cruzes de seus filhos? Há um mundo anônimo de inúmeros Cirineus que aliviam os fardos de muita gente. São homens e mulheres que assumem a fraternidade com coragem e sobem o altar da existência humana para ajudar Jesus peregrino na pessoa do outro que sofre. Esses são intitulados Cirineus, que seguem aliviando e curando a dor do irmão sofredor.

Por acaso não foi isso mesmo que Jesus Cristo fez durante toda sua vida terrena? Socorrendo todos aqueles que, com seus limites, a ele se aproximaram, ou melhor, todos aqueles que a vida trouxe até ele. E nesse momento vem uma indagação: Não foi Jesus que desceu nos porões da vida e nos libertou das amarras, cravos e correntes da existência humana? No fundo, o arcabouço da cena do Cirineu nos ensina que não é o Cirineu quem acompanha Jesus e lhe estende a força de seus braços cansados, mas é o próprio Deus que, em fraternidade familiar, pessoal e comunitária, acompanha pacientemente os passos humanos, encorajando-nos de dentro de nós mesmos. Sendo assim, sua generosidade nos faz também ser generosos. Sua imensa misericórdia nos faz olhar com misericórdia. Sua pessoa e presença nos motiva e anima a carregar a Cruz do outro, a torná-la leve e a deixá-la pelo menos suportável. Portanto, sigamos adiante a nossa vocação cristã, pois Cirineu está conosco e nos faz Cirineus da nossa gente sofrida.

Por outro lado, a piedade popular regista, na VI estação da Via Dolorosa, o heróico gesto da mulher chamada Verônica que avança através da multidão e dos soldados para ver o divino Jesus e, do meio do povo, surge então Verônica, com iniciativa e coragem de enxugar o rosto de Jesus. É possível que ela fosse uma mulher que, entre muitas outras mulheres, seguia Jesus ou que intuía quem Jesus era, que o amava e que, por isso, sofria ao vê-Lo padecer com o peso da Cruz. Desse modo, “seguia com Ele uma grande multidão do povo, bem como as mulheres que batiam no peito e choravam por Jesus” (Lc 23,27).

Contudo, nenhum Evangelho nos fala da Verônica, aquela que limpa o rosto de Jesus. Sabemos dela apenas pelas tradições e pelas devoções populares, mas não devemos esquecer da lição de vida dada a cada cristão, da sua ousadia de chegar mais perto do Cristo sofredor. De fato, inúmeras mulheres naquele grupo que acompanhavam Jesus a caminho do calvário não puderam esquecer aquele rosto e, ao mesmo tempo, conservaram, no coração, esse encontro, essa imagem por toda a vida.

Quem sabe alguma mulher tenha mesmo conseguido passar em Jesus um lenço no rosto para enxugar-lhe o sangue que escorria. Um gesto simples, mas carregado de amor e ensinamento. Assim, soube reconhecêlo naquele instante, entender que ele era Ele. E aos poucos foi fazendo o caminho do reconhecimento do mestre.

Naquele rosto desfigurado pelo sofrimento, a mulher solidária reconhece o Rosto transfigurado pela glória; na fisionomia do Servo sofredor, ela vê o rosto do Salvador. Então o coração de Verônica agarrou-se naquele instante a Cristo e, a partir daquele momento, começou uma história, a história de um grande amor e de um reconhecimento interminável.

Essa corajosa mulher não se deixa contagiar ou se impactar pela brutalidade dos soldados, nem imobilizar pelo medo e anonimato dos discípulos e seguidores. Ela provavelmente olha e observa de longe e, aos poucos, aproximase d’Ele, vendo-o banhado em suor e sangue – cena que imediatamente comove a sua alma até as lágrimas. Em um pequeno instante de segundos, então, o seu amor vence todos os receios, e aproxima-se d’Ele, enxuga-lhe o rosto desfigurado com um véu no qual fica impressa, conforme a tradição popular, a Face de Jesus. Diante dessa cena, podemos dizer que quem viu o rosto de Jesus a caminho do Calvário conservou-o com amor impresso para sempre no coração e o anunciou a muitíssimos, pois apenas e somente o amor nos torna capazes de ver o que precisa ser visto. Só o amor que acolhe, uma palavra que acalma, um olhar que desmorona qualquer barreira, nos faz reconhecer Deus, que é o próprio amor. Um amor que nos dá a certeza de que vale a pena viver.

Sendo assim, o nome de Verônica nasce como nasce um amor: de um desejo de pertencimento, do desejo de uma história, de uma convivência, de um evento que não fique isolado, mas que continue a repetir-se, por causa do desejo de ver. Portanto, o que Verônica viu falou dela mesma, ou seja, o seu gesto lhe deu uma identidade, maior do que ela podia expressar ou falar, a tal ponto que o próprio gesto de amor lhe concedeu seu próprio nome: “Verônica”.

Esse gesto de ater-se o olhar no rosto de Cristo proporcionou-lhe identidade. Ela nos ensina a sair do anonimato e a fixar o olhar no rosto de Jesus e adquirir familiaridade com Ele, de modo que a ação de Verônica nos ilumina a dizer a Cristo: “o meu coração murmura por Ti, os meus olhos Te procuram; é a tua face que eu procuro, Senhor. Não desvies de mim o teu rosto, nem afastes, com ira, o teu servo. Tu és o meu amparo: não me rejeites nem abandones, ó Deus, meu Salvador” (Salmo 26-27). Diante disso, entendemos que, na vida cotidiana, há muitos esquecidos que necessitam urgentemente ver o rosto do Senhor para poder reencontrar a si mesmos e, assim, ela nos ensina a olhar para o que Cristo olha e a descobrir o verdadeiro ícone de nossa vida cristã.

Então, olhando para nossa história, vemos que muitas pessoas foram Verônicas na vida da nossa gente. Afinal, não foi isso que fez São Francisco de Assis quando aproximou, acolheu e beijou o pobre leproso que encontrou em seu caminho missionário? Não foi Verônica de sua gente Irmã Dorothy, que ficou em favor dos mais empobrecidos camponeses no Estado do Pará? O que dizer de Dom Pedro Casaldáliga, morando numa tapera e rejeitando todo privilégio por uma vida dedicada aos direitos dos pobres e oprimidos do Araguaia? O que falar então de inúmeras famílias que enxugam cotidianamente as lágrimas e fadigas de seus filhos e filhas? São inúmeros anônimos que aliviam o caminho longo de muitos irmãos e irmãs.

De fato, homens e mulheres assumem a toalha de Verônica, caminham em direção à estrada da existência e enxugam o rosto de Jesus na pessoa do irmão sofredor. Talvez tenhamos assistido um doente, um imigrante ou um desempregado e, procurando animá-lo, talvez tenhamos limpado o seu rosto, talvez tenhamos olhado com compaixão, porque, na realidade do sofrimento, uma mão amiga e solidária tem grande valor. Vale pensar: talvez devemos nos reeducar para cultivarmos a arte do cuidado.

Desse modo, no caminho da vida, há muitos corações solidários de Verônica que, dia após dia, vão ao encontro do outro e lhe servem de ajuda, que seguem enxugando as lágrimas e o suor das pessoas que sofrem. Que possamos contemplar, enfim, aquele rosto e cruzar o seu olhar como o fez Verônica. Desse modo, o gesto de amor para com o próximo reforça, em quem o pratica, a semelhança com Cristo, Salvador do mundo, pois Ele mesmo imprime a sua imagem em cada ato de caridade, de amor e de fé como feito no lenço de Verônica.

Frater Lidiomar Pereira do Nascimento, MSF