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Círio de Nazaré

FOTOGRAFIA

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e a fotografia documental

Sempre me espanta pensar no tamanho do Brasil. Ainda mais daqui de Londres. Pondo tudo em perspectiva, é impressionante como sabemos muito das coisas que acontecem na Europa e tão pouco do que acontece no Brasil. Por exemplo: você arriscaria dizer qual é a maior festa católica do mundo? Seria no Vaticano? Ou Aparecida do Norte? Só que não. A maior festa religiosa do Brasil, e a terceira maior do mundo, independentemente de qual religião seja, é o Círio de Nazaré, em Belém do Pará, que acontece todos os anos, sempre no segundo Domingo de Outubro. E o que isso tem a ver com fotografia? Tem tudo a ver, oras.

Uma tradição que passa de pai pra filho: pais fantasiam seus filhos e seguem em meio à procissão.

Alessandro Filizzola Fotógrafo

Romeiros se espremem pela honra de puxar a corda que move a berlinda contendo a imagem da Santa durante os 3,6km de traslado e cerca de 6h de procissão.

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Não bastasse o tamanho dessa festa popular, que também é conhecida como o Natal dos Paraenses, há que se considerar todo o contexto cultural que ela envolve e, é claro, tudo de único que Belém tem para oferecer. Começando pelo cenário: imagine uma cidade histórica na Amazônia Brasileira, ao sul da Ilha de Marajó, perto de onde o Rio Amazonas encontra o mar, e às margens de um rio tão vasto que mais parece um mar doce de onde não se avista o outro lado. Tem até onda! Daí, você acrescenta toda a regionalidade dos ribeirinhos ao lado cosmopolita de uma cidade, que até bem pouco tempo atrás tinha mais contato com a Europa, pois era mais fácil viajar para lá do que ir ao Sudeste do Brasil. Apesar de toda essa “fluvialidade”, de Belém não se vê muito o rio, pois toda a margem está tomada por portos que recebem e distribuem produtos de toda sorte. A cidade cresceu de costas para o “mar".

A imagem de Nossa Senhora de Nazaré.

Uma das "janelas" para as águas é o antigo porto da cidade velha, que recebe e comercializa toda a produção da Amazônia, incluindo comidas, peixes, ingredientes locais e frutas exóticas de sabores inacreditáveis. Ali ao lado se pode andar e desafiar o paladar e os olhos em meio às barracas dos mercado do Ver-o-Peso, que é reconhecido como uma das maiores e mais antigas feiras livres de toda a América Latina. Faz parte deste conjunto o Mercado de Ferro – ou, simplesmente, Mercado do Peixe, como é mais conhecido –, uma construção ArtNouveau, ícone remanescente da Belle Époque e da riqueza da borracha, forjado nos EUA e na Inglaterra, e que muito faz lembrar o Mercado de Smithfield no centro de Londres. Adjacentes ao Ver-o-Peso, três galpões portuários foram inteiramente reformados e transformados em um complexo gastronômico e cultural com vistas para o rio, a Estação da Docas. E isso só pra citar um pouco da ambientação do lugar, que tem ainda muitos outros atrativos.

Romeiros passam a noite em vigília e se aglomeram em torno da corda aguardando o amanhecer do dia com o início da procissão.

Multidão de fiéis à espera da chegada da procissão na Basílica de Nazaré.

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Círio quer dizer vela e faz referência direta à procissão que escolta a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, que vai em sua berlinda atrelada a uma corda puxada por fiéis. O circuito tem cerca de 3,6 km de trasladação entre a Igreja da Matriz na Cidade Velha (bairro de influência da arquitetura colonial portuguesa e sobrados de fachadas em azulejos decorados, onde a cidade se originou) até a nova Basílica, no centro da cidade, lugar de descanso da Santa. Em meio ao trajeto, que passa pelo porto, os mercados já citados e em meio a avenidas sombreadas por mangueiras centenárias seguem os fiéis em uma espécie de transe que se inicia muito antes das quase 6 horas de procissão. Desde a noite da véspera, romeiros originários de todos os cantos da Amazônia já começam a chegar e a se amontoar próximos à corda. É uma honra máxima puxar a corda para ajudar a Santa a completar o seu trajeto. Reunidos em sua fé, lá estão brancos, pretos, caboclos, índios e mulatos. Indiferentes a todas as diferenças sociais, lá se vão ricos e pobres reunidos pela fé. Fé que impressiona até mesmo a quem não tem fé.

Durante quatro anos, entre 2004 e 2008, acompanhei as diversas manifestações que fazem parte do Círio, seja como curioso, folião, turista, fotógrafo ou tudo junto. Do sincretismo religioso às festas profanas, comidas típicas e artesanato, tudo impressiona e convida à fotografia. O registro desse evento foi parte de um projeto autoral que começou ainda com uma câmera analógica em 2004 e depois seguiu, a partir de 2006, com os meus primeiros passos na fotografia digital. Em paralelo, fui também fotógrafo da Cruz Vermelha, e registrei a ação de voluntários que se dedicam a ajudar os romeiros para que eles cumpram suas promessas. Muito da minha fotografia documental começou ali. E, 15 anos depois, este é justamente o tema da minha exposição na Embaixada do Brasil em Londres, que acontece no início de novembro deste ano.

Promesseiros exaustos são ajudados por voluntários da Cruz Vermelha a completarem a reta final da procissão em frente à Basílica de Nazaré e cumprirem com as suas promessas.

Mais do que uma festa religiosa, o Círio de Nazaré é uma manifestação cultural do povo paraense. Na imagem, os coloridos brinquedos artesanais de mirití (uma madeira regional semelhante à madeira de balsa) são confeccionados durante todo o ano especialmente para o evento.

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A berlinda com a imagem da Santa segue em procissão pelas ruas de Belém em meio a uma multidão de fiéis e chuva de papel picado.

Romeiros de toda a região vão a Belém durante as festividades do Círio de Nazaré prestar suas homenagens e renovar seus votos de fé. Numa parte do país onde são raras as estradas, o barco é o principal meio de transporte.

A fotografia de manifestações culturais é sempre um grande desafio pra qualquer fotógrafo. Neste tipo de exercício há sempre uma história visual pra contar. Quem são os personagens desta história? Onde eles vivem? Onde a ação acontece? O que eles vestem? O que eles comem? Como eles vêm e vão? No que eles acreditam? Quais as texturas, símbolos e particularidades que dão nitidez, contraste e cores únicos às imagens captadas? E o tempero disso tudo é o olhar único de cada fotógrafo e as impressões pessoais que ele deixa em cada registro. Ver o mundo aguça a nossa percepção e a capacidade de fazer distinções. Nada melhor para desenvolver esta capacidade do que registrar festas populares, que

são uma das maiores expressões da identidade de cada povo. Ah, e antes que você pergunte, a maior festa religiosa do mundo é o festival de Varanassi, na Índia, com aproximadamente 11 milhões de pessoas; a segunda é a peregrinação a Meca, na Arábia Saudita, com aproximadamente 3 milhões de pessoas. O Círio segue em terceiro, com mais de 1 milhão de pessoas na procissão principal, e cerca de 4 milhões somadas todas as outras procissões que fazem parte da celebração. O Vaticano, para ter uma ideia, teve a participação de entre 150 e 200 mil pessoas para a consagração do Papa Francisco, e Aparecida do Norte recebe em torno desse mesmo número na peregrinação, no dia 12 de outubro.

A cidade de Belém vista pela baía do Guajará.

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